1. Introdução/Enquadramento
No centro da fotografia, vemos um homem negro, de aparência jovem, a avançar em movimento de corrida sobre o que s assemelha a uma pista de atletismo em terra batida, por entre uma multidão, essa espécie de “espetadores-atores” (Figura 1).
Identificado com a inscrição número 20, em stencil, sobre o peito de uma camisola que corresponde a um dos equipamentos oficiais do Sporting Club de Portugal (SCP) nos primeiros anos da década de 1910. Na mão esquerda, transporta um amarrotado chapéu estilo-balde com abas amplas em tecido de peso maleável. Podemos ver que, entre a multidão, há quem aplauda e se movimente com o atleta, quem aplauda imobilizado, quem se mantenha aparentemente indiferente, quem acompanhe em movimento de ar apreensivo, quem pareça estar a chamar a atenção do repórter-fotográfico para o momento da passagem do atleta. Conseguimos perceber bem os muros em tijolo, que delimitam o “espaço-estádio”, local privilegiado para assistir a competições desportivas, e notar alguns dos cartazes no fundo, uns parecem publicitar uma corrida de touros, outros anunciam máquinas NSU - talvez velocípedes, talvez motocicletas, talvez, até, automóveis. E, imobilizada junto ao limite direito do enquadramento, está uma criança de pés descalços, figura omnipresente em fotografias durante um longo período da história de Portugal, tanto em contextos rurais como urbanos. Manuela Hasse (1999) recorda:
muitos dos homens e das mulheres que nasceram, cresceram e morreram, em Portugal, ( ... ) não tinham tido a oportunidade de conhecer outras condições de existência senão a adversidade e a dureza. Por isso, tornavam-se adultos a aprenderem desde cedo a enfrentar todos os tipos de dificuldades, miséria e doenças, não esperavam nada, adaptavam-se a tudo, às contrariedades, às privações e ao infortúnio como se estas fossem, afinal, as condições naturais de existência. (p. 22)
Esta fotografia foi recuperada diretamente de um negativo de gelatina e prata em vidro1, encontrada num espólio de 71 caixas de negativos da família do fotógrafo Arnaldo Garcez, um dos principais interlocutores no momento da ascensão e “consolidação da fotografia de reportagem e a imposição da imagem como cerne da notícia, através dos jornais ilustrados” (Tavares, 2010, p. 406).
A reprodução da fotografia em questão pode ser encontrada na primeira página da revista ilustrada Tiro e Sport, Número 507, de 31 de março de 1913, na Figura 2, com a legenda: “o vencedor da Marathona chegando á meta” (“Semana Desportiva do ‘Mundo’”, 1913), incluída numa composição de quatro fotografias atribuídas a Arnaldo Garcez, desta vez reenquadrada, invisibilizando a criança descalça2. Este conjunto de fotografias faz parte da reportagem daquela que, através da leitura panorâmica de vários periódicos da época, consideramos ter sido a mais importante celebração desportiva em Portugal no ano de 1913, a “Semana Desportiva” promovida pelo jornal O Mundo, que decorreu em Lisboa de 9 a 16 de março.
Na primeira página do jornal O Mundo, Número 4497, de 17 de março de 1913, encontramos o mesmo corredor com o número 20 ao peito, sentado num banco e com um troféu no colo (Figura 3). A legenda indica: “o vencedor da corrida de Maratona, a quem foi conferida a Taça do ‘Mundo’” (“A Semana Sportiva do ‘Mundo’”, 1913). A prova terá sido realizada no dia anterior a esta notícia.
Retirado de “A Semana Sportiva do ‘Mundo’”, autoria não identificada, e “Notas á Margem”, por M. Garção, 1913, O Mundo, (4497), p. 1
Tanto a fotografia, como o texto, não têm autoria i dentificada. Nele podemos ler (as transcrições seguintes respeitam a ortografia t al c omo f oi produzida originalmente):
- Veem ahi! - Chegaram ao Lumiar! E por mais uma vez faz-se em toda aquella multidão um movimento de curiosidade ansiosa. ( ... ) estalam foguetes, e chega de facto o vencedor. É A. de Almeida, de côr preta, socio do Sporting Club, que entra em excelente disposição, dando a volta ao campo no mesmo passo em que saiu. De toda a parte surgem palmas. O vencedor é consagrado com ovações. O publico não se contém e invade o recinto. A esgrima tem de parar. O vencedor é acompanhado á tribuna de honra, onde o sr. Presidente do ministério lhe entrega a taça do Mundo. O sr. Almeida recebe nesse momento nova ovação e depois dirige-se á sede do Sporting Club, oferecendo o seu premio à direcção. ("Uma Tentativa Coroada de Exito", 1913, p. 1)
Ainda nessa primeira página, numa coluna assinada por Mayer Garção (1913), intitulada “Notas á Margem”, podemos ler:
o vencedor de ontem, ( ... ) foi um preto. Um rapaz preto, de condição modesta, aparência fraca, foi o vencedor do certame, em que entravam algumas dezenas de brancos. Um publico em peso, publico de europeus, publico de brancos, publico em que se encontravam representadas todas as classes sociais, ovacionou entusiasticamente o vencedor, a quem foi entregue o premio pelo chefe do governo português. Não houve um protesto, não houve um assobio, não houve um sorriso depreciativo. O vencedor foi aclamado e consagrado como se fosse um branco. Não houve a menor discrepancia de opiniões, nenhum azedume, nenhum sarcasmo. Eis aqui um facto que á primeira vista se afigurará não ter especial importância, e que, todavia, a tem, e altissima. Apesar do momento avançado da civilização mundial, ainda em países que se reputam os mais adiantados existe o preconceito das raças. Ainda nelles a côr do rosto é um sinal de superioridade de casta ou um estigma de inferioridade humana. ( ... ) Noutros países, onde os ódios de raça não chegam a esse extremo, o negro é ainda hoje objecto de desprezo e irrisão. O facto de ontem um publico inteiro só ter tido palmas, simpatia e ovações para o vencedor negro, e de ser um publico português, associando-se a essas manifestações de justiça todas as classes e o proprio chefe do governo, eleva-nos a nossos proprios olhos, demonstra que somos uma sociedade compenetrada dos princípios da democracia, que nessa justiça se baseia, e comprova, mais uma vez, que não ha poucos povos, quando esses povos sabem vencer os preconceitos, as superstições e as intolerâncias arreigadas em tradições e rotinas selvagens. Somos pequenos, mas compreendemos a liberdade; somos pequenos, mas compreendemos a justiça; somos pequenos, mas compreendemos o progresso. E por isso mesmo o sentimento de igualdade e fraternidade humana, não é apenas nas palavras que o proclamamos, mas em todos os ensejos que os acontecimentos nos facultam. (p. 1)
A citação é longa, estávamos no ano de 1913, e a sua transcrição justifica-se por ser significativamente reveladora do “lusotropicalismo genérico” (Cardina, 2023, p. 31), que antecipa, mas também sobrevive, a Gilberto Freyre, e que expõe várias camadas de contradições, que acabariam por se fixar, inerentemente, à banalização da romântica narrativa do português como “colonizador-menos-mau”, “menos-racista” e mais dialogante. “Lusotropicalismo”, essa “quase teoria” da relação portuguesa com os trópicos (Castelo, 2013), uma “espécie de colonialismo não colonial” (Cardina, 2023, p. 166), o conjunto de narrativas que relativiza o acúmulo de todas as violências e que permite a negação do racismo estrutural e sistémico, patrocinado em larga escala pelo regime da ditadura do Estado Novo, e que se cravou como preponderante na maquinaria e na mentalidade hegemónica nacional, ainda hoje repetidamente propagada de forma transversal e intergeracional, estendendo-se até às mais altas figuras do espaço político e mediático nacional (Cardina, 2023; George, 2023).
Neste excerto parece igualmente evidente a referência aos Estados Unidos da América, onde a segregação racial continuava legalizada com o linchamento público como prática quotidiana, e é neste confronto, com o mergulho neste texto, que nos surge uma nova espiral de perguntas: poderia Garção estar também a referir-se a outros países? Reino Unido? França? Países Baixos? Bélgica? Alemanha? Qualquer império colonial poderia ser visado. E, ainda assim, aquilo que cristaliza é a ideia de Portugal como um país avançado em termos de direitos humanos. O mesmo texto reclama que o público na assistência é diverso na sua proveniência social, mas assume que é uma multidão “europeia e branca”, quem sabe, parecendo querer seguir por uma espécie de “sistema simbólico, [onde] a complexidade dos portugueses opõe-se à simplicidade dos negros” (Cabecinhas, 2007, p. 59). Estávamos à distância de algumas décadas da afirmação interesseira da “vitalidade do mutirracialismo português” (Cardão, 2020, p. 356).
A mesma fotografia com Armando de Almeida a segurar o troféu pode ser encontrada na Página 4 de Os Sports Illustrados, Número 143, de 22 de março de 1913, também a noticiar a maratona da “Semana Desportiva” do jornal O Mundo (Figura 4), agora com a autoria atribuída a Augusto Rato (“Semana Sportiva do ‘Mundo’”, 1913) 3.
Retirado de “Semana Sportiva do ‘Mundo’”, 1913, sem autoria identificada, Os Sports Illustrados, (143), p. 4
Em Os Sports Illustrados, Número 150, de 10 de maio de 1913 (Figura 5), a (mesma) fotografia é apresentada com o título “O Negro Invencível” (1913) e a legenda: “vencedor da anulada corrida de Marathona”. Anuncia-se sobre a maratona dos Jogos Olímpicos Nacionais, originalmente realizada a 4 de maio de 1913, que acabou anulada pela organização, a Sociedade Promotora de Educação Physica Nacional4, por se verificarem irregularidades no decorrer do percurso. Repetida 14 dias depois, no dia 18 do mesmo mês, teve Armando Almeida como vencedor nas duas ocasiões5. Já o título “O Negro Invencivel” (1913) remete para uma mediatização do atleta através da reificação fenotípica. Desumaniza-se Armando de Almeida na sua apresentação, objetificando-o como o “negro”, não como uma pessoa, não como um atleta, nem sequer recorrendo à mais comum das nomenclaturas da altura - o sportsman.
Retirado de “O Negro Invencivel” e “Um Grande Atléta”, sem autoria identificada, 1913, Os Sports Illustrados, (150), p. 4
A linguagem importa sempre, como Stuart Hall (2003) fez notar, e podemos afirmar que é através da linguagem que produzimos significado, que chegamos à representação. Nessa mesma página (Figura 5), ao seu lado direito, vemos a fotografia de Armando Cortesão em postura triunfante, sob o título “Um Grande Atléta” (1913). Armando Cortesão6 foi uma das mais presentes personagens no advento da desportivização em Portugal7. Dois meses separam os eventos da Figura 4 e da Figura 5, mas as fotografias que representam Armando de Almeida e Armando Cortesão são as mesmas, paginadas com a mesma escala e na mesma disposição.
Estes momentos de encontro com uma fotografia na imprensa, que nem sempre ilustra corretamente o evento anunciado, sugerem uma ideia que flui numa conversa entre David Campany e Stanley Wolukau-Wanambwa (2022), que é a perceção de que muitas vezes as fotografias têm relações misteriosas e camaleónicas com os contextos. Quando se vê uma fotografia reproduzida numa página, por exemplo, raramente se pensa que ela está fora do lugar, ou simplesmente que pertence a outro lugar. Ainda, no caso da repetição, aproximase de um exercício, ainda que a partir de premissas aparentemente distintas das que conduzem este trabalho, realizado por Su Braden (1983) em “Committing Photography” (Fotografia de Compromisso),
quem controla uma fotografia? É o fotógrafo, ou o sujeito, ou o fabricante da câmara, ou do filme? Ou é o editor e o distribuidor? A pergunta lança-nos numa pista tão cheia de pistas contraditórias como uma boa história de detetives. A reviravolta final inclui o inevitável reexame da questão original. Faz mais sentido se perguntarmos: "quem poderia controlar a fotografia?". (p. 19)
No espaço mediático da cultura de massas português seria preciso chegarmos às décadas de 1960 e, sobretudo, 1970, como Marcos Cardão (2020) aponta, para que abundassem personalidades ilustres provenientes dos territórios africanos colonizados por Portugal, dando como exemplo as grandes vedetas do futebol e da canção ligeira e as concorrentes dos concursos populares de beleza.
Num texto de opinião com o título “Depois de Repetida a Corrida da Marathona É Rijamente Disputada e Decorre com Toda a Regularidade” (Moreira & Rosado, 1913), antecedido pelo cabeçalho “Jogos Olímpicos Nacionais”, em Tiro e Sport, Número 512, de junho de 1913, na Figura 6 (as duas páginas), vemos no centro da primeira página uma imagem desfocada que é uma fotomontagem (Figura 7), em que o atleta aparece recortado e colocado em sobreposição, no limite esquerdo da reprodução, sendo visível o emblema do SCP no equipamento e o número 43, em dimensão generosa. Em cada mão parece ter umas tiras de tecido enroladas, como é comum verificar noutros atletas em fotografias da época. Na cabeça, um largo chapéu estilo-balde de abas largas.
Retirado de “Depois de Repetida a Corrida da Marathona É Rijamente Disputada e Decorre com Toda a Regularidade”, por C. Moreira e C. Rosado, 1913, Tiro e Sport, (512)
Ao fundo, vemos o conjunto de atletas que alinhavam na partida. Armando de Almeida está posicionado no limite esquerdo do conjunto. Vemos ainda o público à direita e o ciclista, que avança na frente dos mesmos atletas, será possivelmente um dos fiscais da prova, sendo este o único corpo em movimento. Na legenda da fotografia lê-se: “os concorrentes da Marathona, á esquerda o vencedor E. de Almeida”. A peça impressa dedicada à prova estende-se por duas páginas e está dividida em duas partes. Na primeira parte, temos um texto assinado por Corvinel Moreira; a segunda introduz e reproduz integralmente um relatório da autoria de Carlos Rosado. Iremos alongar-nos sobre essa primeira parte e o seu autor posteriormente, por esse motivo, avançamos para o relatório, reproduzido na íntegra, acerca da organização das provas de maratona (no plural). Carlos Rosado, “Secretário da Comissão Organizadora”, enviado pela Sociedade Promotora de Educação Physica Nacional, confirma Armando de Almeida, “corredor com o número 43”, como vencedor, finalizando com uma marca na casa das 2 h e 58 min. Nesta exposição podemos ler a explicação oficial para a anulação da primeira prova:
a corrida de Marathona realizou-se primeiramente no dia 4 de maio de 1913, tendo sido annullada por os concorrentes terem feito um percurso diferente do estabelecido, em consequencia de não terem tomado devidamente conhecimento do respectivo regulamento e planta (...). Repetiu-se por isso no dia 18 do mesmo mez, cumprindo-se, em geral, todos os artigos do regulamento. (Moreira & Rosado, 1913, paras. 6-7)
Esta é uma redação essencialmente técnica que não acrescenta informação relevante sobre a prova desportiva per se, mas ainda que ambígua, apresenta uma explicação sobre a anulação da corrida a 4 de maio e a sua repetição, duas semanas mais tarde. Desta vez validada, será caso para confiar que o regulamento tenha sido totalmente cumprido. Não é adiantada a informação se algum atleta terá completado a distância da prova. Duas semanas será sempre um espaço de tempo demasiado curto para recuperar de uma prova tão desgastante quanto uma maratona. Levantamos duas hipóteses: ou não existia debate e, consequente, consenso sobre esta matéria, ou tinha que se realizar a prova naquele espaço de tempo por questões de calendário. Talvez as duas estejam corretas. Regressemos à primeira parte do artigo de 15 de junho de 1913, assinada por Corvinel Moreira, médico oficial da competição, na qual descreve que foi a pedido de Carlos Trilho que aceitou organizar os serviços médicos da “Semana Desportiva” do jornal O Mundo e escrever sobre as provas a que assistiu8. No mesmo texto expressa a sua antipatia pela prova de maratona e a sua crença de que nenhum dos atletas que se apresentaram estaria fisicamente preparado para o esforço que a prova impõe,
confesso que não é prova que mereça a minha simpatia, pois julgo que, depois de tal esforço, qualquer coração, por melhor que esteja, ha de fatalmente resentir-se mais ou menos, mas sempre alguma coisa. Dos corredores, direi que todos, quer vencedores, quer vencidos, estavam mal preparados para a prova que iam disputar ( ... ). Desculpem-me estas pequenas observações, e de novo os espero para o anno, mas então em condições de só ter que dizer bem. (Moreira & Rosado, 1913, paras. 4-5)
A única referência que faz à prestação do vencedor resume-se à frase: “é justo confessar que E. A. de Almeida, o vencedor, estava regularmente preparado e só por isso venceu” (Moreira & Rosado, 1913, para. 5). Afirmação que nos parece pouco científica.
Em O Mundo, Número 4499, de 19 de março de 1913, Página 3, há uma coluna com o título “Semana Sportiva do ‘Mundo’. Depois das Provas” (1913), onde temos uma fotografia do Doutor Corvinel Moreira9, e sobre ele pode ser lido o seguinte: “ao dr. Corvinel Moreira, que montou um serviço medico modelar não só no campo como durante o percurso da Marathona” ( “Semana Sportiva do ‘Mundo’. Depois das Provas”, 1913, p. 1).
António dos Anjos Corvinel Moreira foi médico-oficial da Marinha até 1932, ano em que faleceu, e onde ocupava a posição de diretor dos Postos de Socorros Noturnos. Ocupou vários cargos executivos na Câmara Municipal de Lisboa, durante as décadas de 1910 e 1920, desde as primeiras eleições autárquicas, imediatamente após a implantação da República, que decorreram em 1913. Foi republicano militante e maçon, membro do Grande Oriente Lusitano Unido, Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa. Por indicação do ministro da Marinha foi-lhe concedido o grau de cavaleiro da Ordem Militar de Santiago da Espada, em 1921. Em 1925, aparece candidato em duas listas à Câmara Municipal de Lisboa, numa coligação entre o Partido Republicano Português e o Partido Socialista Português, e, ao mesmo tempo, na lista dos Homens Livres. A possibilidade de repetição do nome em mais do que uma lista implicava uma duplicação nos votos e teria como resultado direto uma maior votação no candidato. Esta parecia ser uma prática comum, não exclusiva de Corvinel Moreira (Relvas, 2014). Portanto, Corvinel Moreira era uma pessoa com elevado capital social, intrinsecamente ligada ao poder político. Talvez por esse motivo, a sua escrita não deixa de vir desse lugar, que é um lugar de poder, um poder social e político no maior e mais influente centro urbano do país. Uma cidade em convulsão e em acelerada transformação, também resultado de uma certa “conjuntura revolucionária” (Rosas, 2010, p. 15). Em simultâneo, o poder de quem tem a possibilidade de influenciar a pauta mediática à época, de quem tem espaço na opinião pública.
Tentar perceber a história política e dos seus agentes no município de Lisboa durante a Primeira República é também perceber a evolução e modernização nas práticas para o exercício de cidadania no país. Consideramos que o apuramento desta informação também contribui para a contextualização inter-relacional do ambiente e do ecossistema sociopolítico, ao longo desses anos, entre uma ampla multiplicidade de agentes10.
Reconhecemos que não existiu um trabalho continuado que preservasse, recontasse, refizesse e repensasse a história e a memória da passagem de Armando de Almeida pelo atletismo nacional. Perceber como é possível invisibilizar um grande campeão é, em parte, tentar contrariar “a repetição dos efeitos excludentes das grandes narrativas científicas e históricas modernas” (Silva, 2007/2022, p. 72), mas também perceber quem tem poder para escrever os momentos que podem definir a nossa memória social e a nossa memória coletiva. No seguimento desta exposição, é nossa convicção que Corvinel Moreira, médico e oficial da Marinha, seria partidário da educação física, mas antagonista ao movimento de desportivização.
Em A Capital, Número 2868, de 15 de agosto de 1918, lemos o anúncio da morte de Almeida: “morreu o grande corredor portuguez Armando d’Almeida. ( ... ) Internado no hospital do Rêgo11, onde dera entrada apenas há três semanas” (“Morte do Corredor Portuguez Armando d’Almeida”, 1918; Figura 8). Este anúncio indica Armando de Almeida como vencedor da maratona dos Jogos Olímpicos Nacionais e também da “Semana Desportiva” de O Mundo no ano de 1912, mas, a informação correta seria 1913. Pode ter sido apenas uma gralha tipográfica, mas convém lembrar que 1912 foi o ano em que Francisco Lázaro venceu a maratona e se apurou para os Jogos Olímpicos em Estocolmo. Por estar três semanas internado no Hospital do Rêgo, hospital de doenças infectocontagiosas, assumimos assim, num momento primeiro, que tinha falecido por doença relacionada com a pandemia de febre pneumónica que assolava o mundo há altura.
Retirado de “Morte do Corredor Portuguez Armando d’Almeida”, sem autoria identificada, 1918, A Capital, (2868), p. 2
No último parágrafo do anúncio pode ler-se a expressão de condolências à família do atleta, bem como aos clubes que representou, o Sport Club Cruz da Pedra e o SCP. Até ao momento não conseguimos descobrir familiares. Toda a informação contida no conjunto de 25 folhas disponibilizada pela Divisão de Documentação e Arquivo da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna indica que o Sport Club Cruz da Pedra foi dissolvido em 1938. A mesma documentação não contempla qualquer informação diretamente relacionada com atletas.
A secção de arquivo do SCP não deu resposta às nossas perguntas diretas sobre Armando de Almeida. Existe, ainda assim, uma página Wiki Sporting com a seguinte informação:
Armando Almeida foi Campeão Nacional da Maratona em 1913, ao vencer essa corrida nos Jogos Olímpicos Nacionais, que eram na altura a principal competição de Atletismo e que a Federação Portuguesa desta modalidade, considera para efeito de atribuição dos títulos de Campeão de Portugal, entre 1910 e 1913. Nesse mesmo ano também tinha ganho a Maratona da Semana Desportiva organizada pelo jornal "O Mundo". Em 1914 foi 8.º classificado na Maratona dos Jogos Olímpicos Nacionais, ajudando o SCP a vencer essa prova na classificação por equipas. (Armando Almeida, s.d., paras. 1-3)
O anúncio da morte de Almeida surge também na Página 3 do Diário de Notícias, Número 18948, de 14 de agosto 1918 (“O Campeão da Maratona Armando d’Almeida Faleceu”, 1918; Figura 9). De parca informação, ficamos a saber que tinha sido “participado” por José Duarte Pinto, António Maria Pereira12 e Adolfo Pearson. Sobre estes três “dedicados amigos” ainda não conseguimos apurar informação significativa e relevante para a biografia de Almeida.
Retirado de “O Campeão da Maratona Armando d’Almeida Faleceu”, sem autoria identificada, 1918, Diário de Notícias, (18948), p. 3
Na fotografia da Figura 10, encontrada no espólio da família de Arnaldo Garcez, com o negativo em vidro em estado elevado de decomposição, é possível reconhecer José Salazar Carreira, em representação do SCP, sem ambiguidade “com leão ao peito”, a disputar uma prova de velocidade com um elemento do Club Internacional de Football. À época, os dois clubes mais elitistas da capital.
A história do SCP, a história da Federação Portuguesa de Atletismo, a história da Confederação de Desportos e a história do Comité Olímpico de Portugal entrelaçam-se com frequência e intimidade. Salazar Carreira passou por todos estes organismos de 1911 a 1964, em todos eles ocupou posições de destaque. Na qualidade de inspetor dos desportos publicou um artigo com o título “A Corrida de Maratona na História do Atletismo Português em 1949” (Carreira, 1949). No mesmo artigo, dedica duas páginas às maratonas de 1913 e 1914 (ver Figura 11).
Retirado de “A Corrida de Maratona na História do Atletismo Português”, por J. S. Carreira, 1949, Boletim da Direcção Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, pp. 22-23
Sobre Armando de Almeida escreveu: “de raça negra, frágil na aparência e na realidade, sofria de dupla ptose palpebral, o que lhe dava um fácies característico e raro” (Carreira, 1949, p. 22). Na mesma página confirma que Armando de Almeida venceu as maratonas oficiais realizadas em Portugal, inclusive, confirma que venceu a prova de 4 de maio desse ano, e que a prova “foi anulada porque os concorrentes se enganaram no percurso, devido a má sinalização” (p. 22). A ilustrar este texto de 1949 temos um reencontro com a imagem de Armando de Almeida com o troféu da “Semana Desportiva” do jornal O Mundo de 1913. Consideramos significativo que Salazar Carreira (1949) tenha escolhido Armando de Almeida, e esta fotografia em particular, para acompanhar as duas páginas que dedica àquelas que intitula como as “últimas maratonas da primeira fase” (p. 22). Escolher Almeida implica necessariamente excluir Serafim Martins, o vencedor da “Maratona Portuguesa” de 1914.
Seria esta a única fotografia disponível a Salazar Carreira para reprodução? Seria a que melhor mostrava a descrição física de Almeida que Salazar Carreira parecia querer deixar realçada?
Encontrámos sempre esta fotografia desfocada, o que nos leva a crer que estará desfocada na matriz original. Armando de Almeida está sentado e segura um troféu no colo. Parece um troféu ao estilo dos troféus de futebol, uma vez que na parte superior tem um elemento esférico idêntico às bolas de tiras de couro costuradas que se usaram até à introdução das bolas de 32 gomos, no “Campeonato do Mundo de Futebol” em 1970.
São escassas as fontes sobre Armando de Almeida que encontrámos nos arquivos. Conseguimos identificar Almeida em corridas de estrada a partir de 1910, sempre em lugares de destaque, até aos resultados que o colocam em oitavo classificado na maratona dos Jogos Olímpicos Nacionais de 1914, com a marca “muito sofrida” na casa das 3 h e 42 min (Carreira, 1949; Jornal de Sport, 1914). Oficialmente, toda a atividade da prática de atletismo viu-se interrompida entre 1915 e 1922, pelo que também não encontramos evidências de outras maratonas até 1936 (Carreira, 1949; Fernandes, 2010). Carlos Paula Cardoso (2001) não faz uma única referência a Armado de Almeida (nem a Serafim Martins13, outro dos principais atletas da época) nas páginas da sua História do Atletismo em Portugal. Um título ambicioso para uma história que não inclui dois dos mais relevantes protagonistas nos primeiros anos da disciplina em Portugal.
2. Encruzilhada/Transcendência
As equipas de investigação que se têm dedicado à historiografia das práticas desportivas, da motricidade humana e (até mesmo) do atletismo em Portugal raramente fazem referência a Armando de Almeida e quando essas referências existem, são sempre curtas e/ou vagas, raramente ilustradas. Neste percurso lembrámo-nos várias vezes de Luíz Antônio Simas, que defende que “as pessoas às vezes confundem encruzilhada com labirinto. Porque o labirinto é onde você não sabe por onde sair. E a encruzilhada é um ponto de chegada, tem uma dimensão de transcendência, está ligada à ideia do encontro” (Zaccaro & Carneiro, 2020, para. 8). Procurámos pistas por outros arquivos, pois reconhecemos as limitações a partir das quais estávamos a investigar. Cláudia Castelo (2022) afirma:
os trabalhos dedicados às origens do nacionalismo africano, à circulação de ideias e textos anticoloniais e antirracistas ( ... ) situam-se no campo da história intelectual ou política, muitas vezes destacando figuras e grupos já com alguma visibilidade. Mesmo quando focam o domínio das sociabilidades, não deixam de se reportar a elites. (para. 3)
Cristina Roldão et al. (2023), num percurso que assumem como “mergulho numa história silenciada” (p. 13), têm “recuperado do passado a importância da população negra na transformação política, social e cultural da sociedade portuguesa” (Varela & Pereira, 2020, p. 3), e investigam sobre o primeiro movimento negro politicamente organizado na história de Portugal. Trabalham essencialmente o período que vai de 1911 a 1933, onde identificam 11 títulos da "imprensa negra". Tendo em conta esta coincidência no período temporal estudado nas nossas investigações, seguimos as pistas que foram publicando e foi num desses periódicos que voltámos a encontrar-nos com a mesma fotografia e novas informações sobre Armando de Almeida.
Nas primeiras páginas do jornal A Voz D’África, Número 15, de 1 de abril de 1913 (Figura 12), encontrámos chamadas de atenção para a vitória de Armando de Almeida. Na primeira página, com o título “Viva a Raça Negra”, lemos um texto de exaltação ao feito de Armando de Almeida, onde o autor não identificado nos informa que o atleta é “filho de Angola”14 - pensávamos que este pormenor poderia esclarecer-nos sobre a naturalidade de Almeida. A acompanhar o texto da segunda página volta a ser reproduzida a fotografia do atleta com o troféu no colo (“Os Negros Triunfam”, 1913; Figura 13). Nesta versão, a figura de Armando de Almeida também aparece menos retocada. Apesar dos pontos de impressão serem pronunciados, a expressão facial parece mais nítida do que nas restantes reproduções.
Quando julgávamos resolvido um detalhe biográfico, lemos o registo de óbito de Armando de Almeida (Figura 14), encontrado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, gentilmente partilhado por Cláudia Castelo, onde, para além de confirmar que faleceu a 13 de agosto de 1918, no Hospital do Rêgo, de tuberculose pulmonar15, aos 24 anos. Indica-nos que é “natural de Gorongosa, província de Moçambique, África Oriental Portugueza”. O mesmo documento informa-nos ainda que era “trabalhadôr”, e que o declarante do óbito desconhece a sua filiação. Residia no primeiro andar do Número 22 da Estrada da Palhavã16 em Lisboa. Esta descoberta parece não conter informações de grande relevância, mas a revelação de maior interesse é a que remete o nascimento de Armando de Almeida para uma zona situada no limite sul do Grande Vale do Rift17, no centro de Moçambique, na Gorongosa. Tendo em conta a indicação de ter 24 anos à data da morte, terá nascido cerca de 1894-1895, certamente antes da captura de Ngungunhane, ocorrida a 28 de dezembro 1895. Antecipando a ideia que desenvolveremos a seguir, convém referir que esta descoberta nos conduz a um apontamento de Denise Ferreira da Silva (2007/2022), “o sujeito pode estar morto ( ... ), mas seu fantasma - as ferramentas e matérias-primas usadas para montá-lo - permanece connosco” (p. 36).
Crê-se que “Gorongosa” é o nome aportuguesado para Kuguru Kuna N’gozi, que significa “lá no cimo há perigo”18. Em 1898, Matheus Augusto Ribeiro de Sampaio relatava sobre o território:
alem de vastissimas planicies, a perder de vista, lançadas a sul, nascente e norte, tem na parte central e ocidental serras que se elevam, umas vezes abruptamente, e outras em collinas suaves até mais de dois mil metros sobre o nivel do mar. (p. 5)
Esta província foi concessionada à Companhia de Moçambique (Figura 15), empresa privada e majestática, com direitos de soberania delegados pelo Estado.
Fotografada pelo autor na Biblioteca Nacional de Portugal, 20 de janeiro de 2023. Cota C. C. 256 V. “Esboço do Território da Companhia de Moçambique” [material cartográfico]
Para refletir sobre a existência da Companhia de Moçambique pode ser útil ter presente a ideia de que ninguém coloniza inocentemente e que, também, ninguém coloniza impunemente (Césaire, 1950/2022, p. 17). Com génese na original companhia com o mesmo nome, por decreto de 21 de dezembro de 1888, transformou-se em companhia soberana após o ultimato de 1890, sendo que a sua carta orgânica primitiva foi atribuída inicialmente por decreto de 11 de fevereiro de 1891. Durante esse período inicial, ainda com sede em Lisboa, contou como primeiro administrador-delegado “o mais célebre porta-voz da geração de 70” (Vasconcelos, 2022, p. 45), o historiador Joaquim Pedro Oliveira Martins. Oliveira Martins acabaria por morrer em agosto de 1894, mas o seu legado teórico e ideológico contou certamente como um dos mais persistentemente apropriados pela maquinaria social portuguesa entre as décadas de 1870 e 1970 (Maurício, 2005). Ao longo dos anos que se seguiram, novos decretos foram atualizando a ampliação da área concedida e as suas normas reguladoras da administração (Companhia de Moçambique, 1929). Na génese da Companhia de Moçambique está um conjunto de várias tentativas para a exploração de ouro em abundância por parte, entre outros, do Oficial do Exército Joaquim Carlos Paiva de Andrada, também com o objetivo de assegurar a ocupação efetiva do território moçambicano, tal como determinado por Portugal na “Conferência de Berlim” em 1885 (Associação dos Amigos da Torre do Tombo, s.d.). Em Portugal: A Companhia de Moçambique: Monografia Produzida Para a Exposição Portuguesa em Sevilha, de 1929, podemos ler:
quando a Companhia de Moçambique se constituiu, em 1891, dominava em toda a África do Sul a febre das explorações mineiras. Nas terras de Manica e Sofala, mais do que em qualquer outro ponto da África Portuguesa, se acentuava a tendência firme para êsse género de explorações. (Companhia de Moçambique, 1929, p. 9)
Com sede na Beira, a Companhia de Moçambique controlava a administração pública e os correios, emitia moeda por meio de banco próprio e explorava todos os recursos da região, bem como a mão de obra local, e “exercendo a sua acção civilizadora” (Companhia de Moçambique, 1929, p. 8) - expressão ancorada na terminologia colonial e intimamente ligada a uma história de violência e desumanização (Kilomba, 2008/2019, p. 11). A Companhia de Moçambique terá sido, certamente, interlocutora implicada na construção de paradigmas que provocaram o desenvolvimento de desigualdades (Gilmore, 2023) e um exemplo das múltiplas instituições políticas criadas pelas potências coloniais à imagem dos poderes metropolitanos com elevadas responsabilidades nas “raízes de um presente” (Sarr, 2016/2022).
O Estado português emitiu a certidão de óbito de Armando de Almeida, cumprindo o mínimo na “submissão a mecanismos de identificação”, sendo certo que Almeida, como pessoa, desempenhou “uma série de papéis”, aqueles que lhe foram atribuídos automaticamente e aqueles que lhe foram possíveis e permitidos conquistar (Mbembe, 2020/2021, p. 103).
Até à data não conseguimos encontrar registo de nascimento, registo de saída de Moçambique, registo de entrada em Portugal, esses registos podem nem existir, tal como Catarina Simão nos alertou19.
3. Considerações Finais/Dominar a Invisibilidade
Reparar (n)a memória de Armando de Almeida é reconhecer a sua importância e, simultaneamente, assumi-la como uma história de “uma realidade violenta”, uma violência que ao longo dos séculos tem sido “fundamental” nos processos de construção da política europeia (Kilomba, 2008/2019, p. 73), assumindo uma posição de disputa crítica e inconformada com afirmações políticas sentimentais sobre os legados ininterruptos do colonialismo (Gilmore, 2023).
Nada nos leva a crer que Armando de Almeida pudesse pertencer a uma possível elite da “metrópole”. Tudo parece indicar que seria mais “um corpo discriminado e subalternizado”, quem sabe, uma espécie de “cidadão do limbo [a] aprender a dominar a invisibilidade” (Almeida, 2023, p. 86), enquadrado no conjunto expressivo de pessoas afrodescendentes que viviam na capital do império colonial, esse fenómeno plurissecular. A sua capacidade de atuação e de fruição do sistema de desportivização em curso, no tumultuoso momento histórico da Primeira República, ocupando o espaço público, colocando-se em contacto com atletas de diferentes origens sociais e escalando no mecanismo de mobilidade social (Domingos, 2011), como saltar do Sport Club Cruz da Pedra para o SCP é exemplo, poderá sempre ser observada como uma lição de resistência, uma resistência cultural de recorte racial num país que nunca procedeu à recolha censitária dos dados étnico-raciais da sua população desde 1864, ano do primeiro recenseamento, até à atualidade (Castelo, 2022).
A presença e o protagonismo de Armando de Almeida têm sido continuadamente esquecidos, corrompidos e subalternizados na história e na memória do atletismo português.