1. Introdução
Atualmente, as incursões em inteligência artificial (IA) têm tomado grande atenção do campo da arte digital, em especial, pelo protagonismo de ferramentas disponíveis na internet que permitem a qualquer pessoa gerar instantaneamente imagens, textos, música e outros outputs criativos sem qualquer conhecimento específico, tecnológico ou artístico. Em seu uso corrente, a ideia de IA define um universo de habilidades demonstradas por máquinas ao executar tarefas que possuem complexidade, com alguma autonomia1. Através dos tempos, muitas vezes, artistas lançaram mão de sistemas digitais com estas características em variadas linguagens e formas de criação, ou seja, a intersecção entre IA e arte não é recente. Mas a mudança de escala que as atuais ferramentas de IA da internet propiciam é uma novidade para o campo da criação, um cenário bastante profícuo para reflexões e para que obras artísticas discutam essa nova conjuntura.
Ao longo da história, o uso da IA na criação artística esteve recorrentemente vinculado a práticas experimentais da arte digital. Muitas vezes observamos proposições baseadas em análises estatísticas de criações, quando o artista alimenta um sistema de IA com grande volume de outputs poéticos - como imagens, textos, música, enfim - a fim de que, a partir da leitura de padrões, o sistema “crie” algo inédito. Em regra, restringe-se essa leitura a autores, gêneros ou períodos específicos. Neste sentido, podemos citar AARON, um programa criado pelo artista Harold Cohen em 1973, que gerava imagens como uma espécie de extensão da própria criatividade do artista; nos 1980, o músico David Cope criou o programa EMI (Experiments in Musical Intelligence), que consegue compor, inspirando-se em padrões de obras de Bach, Chopin, Rachmaninov, Stravinsky; em 2016, o projeto The Next Rembrandt (Figura 1), das empresas ING e Microsoft, se propôs a gerar uma nova obra do famoso pintor do século XVII com base em criações anteriores do artista; no mesmo ano, há também o lançamento do filme Sunspring (Nascer do Sol), cujo roteiro foi escrito por um sistema de IA criado por Oscar Sharp e Ross Goodwin, com base em roteiros de filmes de ficção científica já realizados; em proximidade há Portrait of Edmond Belamy (Figura 2), produzido em 2018 pelo coletivo Obvious com base em 15.000 retratos clássicos da pintura entre os séculos XIV e XX.

Fonte. Retirado deThe Next Rembrandt de ING Group, 2021, Wikimedia Commons (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Next_Rembrandt_1.jpg). CC BY 2.0.
Figura 1 Resultado final do projeto The Next Rembrandt (2018) de ING e Microsoft

Fonte. Retirado de Edmond de Belamy de Artificial intelligence software, 2018, Wikimedia Commons (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Edmond_de_Belamy.png). Em domínio público
Figura 2 Portrait of Edmond Belamy (2018) do coletivo Obvious
Eis que, então, surge um novo cenário: ferramentas de IA na internet como StyleGAN (2018), DALL-E (2021), Midjourney (2022) e Stable Diffusion (2022); estes sistemas têm uma mesma premissa: permitir que qualquer usuário, a partir de descrições por texto, obtenha imagens que se referem ao que foi solicitado.
Vale destacar também o conhecido ChatGPT2, lançado pela empresa OpenAIem 2022. Ao contrário do domínio experimental das incursões de artistas, aqui corporações criam sistemas generativos, a grosso modo, alimentados na imensidão de dados da internet e que servem a qualquer pessoa, a partir de interações simples, gerando outputs criativos em abundância. São sistemas que operam uma massificação da IA, proporcionando uma mudança de escala nas duas pontas: uma base de dados gigantesca - a própria internet - e, ao mesmo tempo, a geração de outputs criativos em volume industrial, voltada para milhões de usuários leigos não necessariamente conhecedores da história da arte.
Evidentemente, essa massificação não surgiria sem implicações. Diante do aperfeiçoamento crescente destes sistemas em gerar outputs criativos - imagens, textos e outras criações, aparentemente indistinguíveis daquelas realizadas convencionalmente por humanos, lançam-se questões a cerca de uma potencial tomada do campo da arte por estas recentes ferramentas de IA. Mas, antes desta preocupação, é necessário observar as idiossincrasias dos processos destes sistemas. Percebe-se, por exemplo, que na pretensão de uma universalidade - ao abarcarem todo o universo de criações existentes - para gerarem novas obras, ao colocarem todo esse repertório em ação, estes sistemas esbarram em premissas como originalidade e, especialmente, singularidade, valores esperados em obras criativas. É muito comum que, por exemplo, textos e imagens criados nestas ferramentas tragam um excesso de clichês e lugares-comuns, refletindo um senso mediano, em regra, bastante previsível.
Assim, as idiossincrasias destas ferramentas de IA além de instigarem muitas reflexões, também podem inspirar incursões artísticas, da possibilidade da arte refletir de forma crítica sobre implicações da tecnologia. Uma criação como metacomentário sobre o atual cenário dessa IA de massa, revivendo premissas do campo da artemídia, que se apropria e contraria princípios de produtividade, racionalidade e da escala industrial presente nos meios de comunicação (Machado, 2004). Assim, começamos por evidenciar a estética conservadora e “mediana” destas ferramentas de IA no próximo tópico. Em seguida, nos depararemos com o termo “disruptivo” - cujo sentido atual denota uma rebeldia contida e “vendável”. O termo foi empregado por um sistema de IA para definir um dos legados mais transgressores do campo da arte na internet, as obras do duo JODI. Em sua totalidade, essa discussão alimenta uma criação artística em especial: AIDOJ, criada a partir de uma proposição hipoteticamente transgressora. Falaremos mais sobre a realização desta obra nos últimos tópicos deste artigo.
2. Problema
No texto “Towards ‘General Artistic Intelligence’?” (Rumo à “Inteligência Artística Geral?”), Lev Manovich (2023) compartilha a sua frustração ao propor descrições absurdas, estranhas, surreais e esquisitas para as atuais ferramentas de IA gerarem imagens: o resultado é sempre quase decepcionante, com cenas comuns e previsíveis. Sua decepção inspira uma provocativa comparação sobre as imagens geradas com IA; para o autor, recorrentemente os resultados propiciados pela IA se aproximam do espírito do Classicismo e da estética Kitsch. Bem, como se sabe, o primeiro estilo é caracterizado pelos valores estéticos que advêm da herança da Antiguidade Clássica, preconizando algumas premissas como pureza formal, rigor, equilíbrio e imitação da natureza; ora, são premissas que se fundem ao que há de mais tradicionalista no senso comum sobre imagens de arte. O Kitsch, por sua vez, recebe uma definição ríspida pelo próprio Manovich (2023):
Kitsch ( ... ) é melodramático, mostra apenas estereótipos e carece de originalidade. Essa, para mim, é uma excelente descrição das imagens padrão produzidas por ferramentas de IA. É possível fazê-las sem aparência kitsch, mas é preciso tempo e experiência prévia em um campo como ilustração ou fotografia. (para. 6)
Em ambas definições, há uma tendência conservadora envolvida. Afinal, o Classicismo se refere a um passado esteticamente glorioso. O Kitsch, malvisto por Manovich nas linhas anteriores, celebra copiosamente o que está estabelecido mesmo nas suas acepções mais favoráveis. O termo tem uma origem pejorativa ainda no século XIX, visto como algo que imita o que tem algum valor - remetendo a uma criação não-autêntica. Nenhum dos dois conceitos representa um tensionamento, uma ruptura sobre o que é hegemônico. Essa constatação é o ponto de partida para o nosso problema: se justamente a inconformidade com o estabelecido é um dos ideais consagrados da arte do nosso tempo - condição visível desde as vanguardas da história -, podemos pensar em criações efetivamente transgressoras ao fazer uso das ferramentas atuais de IA?
Uma das formas de utilização mais frequentes das ferramentas de IA é a possibilidade de geração de conteúdos criativos que se inspiram em “estilos” de outros autores. Isso se aplica a imagens, textos e outras produções. Por exemplo, podemos pedir ao ChatGPT que faça um poema a partir de temas da vida moderna sob o estilo do poeta Luiz Vaz de Camões, que viveu no século XVI. Ou ainda, que algum dos sistemas de “texto para imagem” gerem fotografias no estilo de Sebastião Salgado ou Oliviero Toscani, ou ainda, imagens pictóricas inspiradas em Claude Monet ou Romero Britto, para citar autores com estilos e poéticas bastante diferentes. Atualmente, essa é uma possibilidade que impacta diretamente a atuação profissional de criadores, que veem os sistemas de IA se apropriarem sorrateiramente dos estilos de suas criações sem qualquer contrapartida.
Vale esclarecer que estes sistemas são baseados em padrões, ou seja, seus modelos se baseiam na análise de conteúdos digitais já realizados por humanos ou outros sistemas de IA, considerando predominâncias em um conjunto de dados. Por exemplo, se predominam rostos de pessoas brancas em um conjunto de dados, os sistemas de IA terão dificuldade em reconhecer e gerar imagens de pessoas pretas, indígenas ou asiáticas3 (Beiguelman, 2023). Assim como, há preponderância de representações e paisagens de países do hemisfério Norte, já que é comum que os modelos em IA sejam treinados com imagens oriundas destes países; por exemplo, a ImageNet (Silva, 2021) - base de dados utilizada para treinar sistemas de visão computacional - apresenta uma concentração de imagens oriundas dos Estados Unidos (45,4%), Reino Unido (7,6%), Itália (6,2%) e Canadá (3%).
Em regra, estes sistemas tomam por padrão o que emerge de uma maioria entre os dados que analisa. Logo, percebe-se a dificuldade destes sistemas diante de assuntos pouco falados ou muito específicos, como a vida e obra de artistas desconhecidos ao mainstream (Nunes, 2023). Seguindo, o teórico espanhol Juan Martín Prada (2024), ao analisar de forma substanciosa as ferramentas atuais de IA no artigo “La Creación Artística Visual Frente a los Retos de la Inteligencia Artificial” (Criação Artística Visual Diante dos Desafios da Inteligência Artificial), entre outras questões, evidencia a inclinação conservadora no modo como estes sistemas geram imagens:
os modelos de inteligência artificial projetados para geração de imagens a partir de descrições textuais operam por meio de processos de análise de conjuntos de dados de arquivos visuais já existentes e combinação dos padrões extraídos dos estilos. Portanto, apesar de serem tecnologias de ponta no campo da inovação informática, podemos afirmar que tendem a ser, por predefinição, esteticamente conservadoras. O que é gerado por esses modelos tem a ver com a reformulação do que já foi feito. (p. 19)
É claro que os princípios conservadores deste tipo de produção não são exclusivos da IA, já que estão no cerne dos demais meios tecnológicos. Podemos lembrar do teórico Arlindo Machado (2004), em “Arte e Mídia: Aproximações e Distinções”, com reflexões ainda muito atuais, trazendo a ideia de que os meios são concebidos e desenvolvidos segundo princípios de produtividade e racionalidade, no interior de ambientes industriais e de uma mesma lógica de expansão capitalista; assim, mesmo os meios tecnológicos mais recentes apenas formalizam um conjunto de procedimentos conhecidos, herdados de uma história da arte já assimilada e consagrada. Aponta ainda que essa herança consagrada será sistematizada e simplificada para ser colocada à disposição de um usuário genérico, preferencialmente leigo, de modo a permitir uma produtividade em larga escala e atender a uma demanda categoricamente industrial.
Neste sentido, podemos voltar ao ChatGPT, certamente um dos maiores exemplos da massificação das ferramentas recentes de IA. Trata-se do mais popular robô de conversação até hoje criado. O ChatGPT alcançou 100.000.000 de usuários em dois meses - tornando-se o aplicativo com o crescimento mais rápido da história até agora (Marques, 2023). De fato, o robô apresenta capacidades notáveis em inúmeras tarefas utilizando texto, em diferentes contextos como traduzir para diferentes idiomas, gerar poemas, comunicados institucionais, conteúdo para redes sociais, organizar assuntos para a elaboração de aulas, ou mesmo, escrever linhas de código de diferentes linguagens de programação. A partir das idiossincrasias deste sistema, Leif Weatherby (2023) discute a intervenção das ferramentas de IA no processo de produção de significados, considerando que a difusão destas tecnologias implica não só mudanças no campo do trabalho ou na geopolítica, mas, especialmente, em uma “desqualificação cognitiva em massa” (para. 3). Segundo o autor, por serem capazes de realizar tarefas muito próximas da nossa percepção do que é propriamente humano, podem produzir mudanças na maneira como pensamos. A forma como os sistemas de IA lidam com a produção das mensagens, prioritariamente a partir de princípios estatísticos, acaba por resultar em versões “medianas” de tudo - podemos lembrar as imagens pouco originais que Manovich relatou anteriormente -, o que implica em um direcionamento sobre a linguagem: “trata-se de ‘linguagem como serviço’, embalada e preparada, incluindo o seu dinamismo e propriedades geradoras de significado, mas canalizadas em sua versão mais comprimida possível para ser útil àqueles que usam principalmente a linguagem como controle de responsabilidade” (Weatherby, 2023, para. 10).
A linguagem sob um paradigma do “mediano” reforça o que é hegemônico; por consequência, desvela uma ideologia que menospreza aquilo que foge ao habitual, ao que é pouco conhecido e experimental, ou ainda, ao que é particular, ao que foge à regra. Em outras palavras, propõe uma visão conservadora que lê a realidade simplesmente enquanto fenômeno estatístico. Ainda assim, tende a ser uma linguagem cada vez mais onipresente na contemporaneidade, o que torna necessária a nossa dedicação a essa discussão.
Então, acreditando que o campo da arte é um espaço potente para refletir criticamente sobre a vida contemporânea e seus fenômenos, tomaremos aqui um ponto em especial: o paradoxo destes sistemas representarem o que existe de mais “disruptivo” ao mesmo tempo em que são intrinsecamente previsíveis na produção de significados.
3. Objetivo
Um dos jargões do mundo dos negócios e tecnologia nas últimas décadas é o termo “disruptivo”4. O adjetivo era empregado de forma negativa - para designar pessoas indisciplinadas e desordeiras, por exemplo - até que Clayton Christensen e Joseph Bower (1995) empregam a palavra, no texto “Disruptive Technologies” (Tecnologias Disruptivas), para definir um novo modelo de gestão corporativa. A partir daí, inicia-se o seu uso indiscriminado enquanto uma espécie de mantra contemporâneo, contemplando uma infinidade de práticas tidas como inovadoras, sob o risco do esvaziamento de seu significado (Gerstenberger, 2023; Mazzetto, 2023). Longe de ser novidade, a arte “sempre teve ou terá algo de disruptivo, no sentido de rebeldia transformadora enquanto deslocamento do status quo” (Santaella, 2018, p. 294). O caráter disruptor da arte emerge em processos que privilegiam subversão, ruptura, confrontamento, desvio, estranhamento, fricção, incômodo, caos, interferência, entre outras tantas definições que acompanham artistas de diferentes épocas e que serão absorvidas no campo da criação com os meios eletrônicos. Torna-se emblemática, por exemplo, a iniciativa do artista Nam June Paik ao criar Magnet TV (1965), utilizando um imã sobre tubos catódicos, interferindo na imagem exibida no televisor - e, também, ultrapassando um limite técnico, já que é sabido que imãs prejudicam aquele dispositivo. Podemos nos lembrar também da invasão ao Museu do Louvre, através do aparelho de fax5 da instituição, por artistas brasileiros, capitaneados por Paulo Laurentiz, na ação L’Oeuvre du Louvre - Invasões Poéticas (1990), uma espécie de bombardeio simbólico à arte institucionalizada. Ou ainda, a dupla de artistas Eva e Franco Mattes, friccionando privacidade e vigilância, ao permitir que qualquer pessoa acesse através da internet a todos os arquivos - incluindo e-mails, extratos bancários, imagens, entre outros - de seu computador pessoal em Life Sharing (2000-2003).
Quando se trata do campo de criações pensadas para a internet, sobretudo quando artistas criam trabalhos baseados em sites da internet, uma postura transgressora torna-se evidente em comparação com seus equivalentes não-artísticos, já que endereços da rede, em regra, não são criados com finalidade exclusivamente estética e, sim, com o propósito objetivo de dispor informações da forma mais “eficiente” possível. Assim, um site de arte é, por si só, uma ruptura da funcionalidade prevista neste meio de comunicação; a história deste tipo de expressão artística nos brindou com uma série de criações icônicas neste sentido, como Unendlich, Fast6 (1995), de Holger Friese, site que não possuía qualquer informação além de um azul “infinito”; Form Art7 (1997), de Alexei Shulgin, obra na qual o artista cria composições usando elementos de formulários; Lands Beyond8 (1997), de Celso Reeks e Thiago Boud’hors, site repleto de referências literárias circunstanciadas em elementos simples de composição de páginas HTML9; No Content (2001), de Brian Mackern, que criou uma série de animações com base nas páginas de carregamento de dados - quase inevitáveis em tempos de banda estreita de dados da internet. Estas obras e muitas outras tensionam as regras indubitáveis do design de interação.
Mas, reformulando, não poderíamos deixar de perceber que ao flertarmos com o termo “disruptivo” não estamos só considerando o caráter de rebeldia transformadora e inovação ao qual o termo aparentemente se presta, mas também o sentido que ganha a partir do contexto de seu uso massivo e indiscriminado - e sua consequente conformação como uma rebeldia vendável em mirabolantes fórmulas de coaches da internet e outros modismos que habitam o imaginário corporativo. Evoca uma provocante desobediência e inovação, enquanto há o risco de esvaziar-se em sentidos, soar artificializado. O “disruptivo” está impregnado de zeitgeist - do espírito do nosso tempo -, assim como, inclusive estatisticamente falando, as ferramentas de IA na internet, como o ChatGPT, também estão impregnadas. Então, quando o ChatGPT classifica um dos mais anárquicos legados da arte para a internet como “altamente disruptivo”, estamos diante de uma interessante associação que revela as idiossincrasias das ferramentas do nosso tempo.
O caso “altamente disruptivo” indicado pelo ChatGPT é JODI, uma célebre dupla composta pelos artistas europeus Joan Heemskerk e Dirk Paesmans, que é paradigmática para as criações em rede10. Os trabalhos de JODI subvertem as expectativas dos usuários da rede, gerando situações que se assemelham a ataques por vírus de computador ou falhas computacionais, proporcionando caos e descontrole em janelas, links e outros elementos, tornando a navegação na internet uma experiência desconfortável, imprevisível, errática e absolutamente distante das expectativas funcionais dos conteúdos da rede. Aliás, conta-se que o site de JODI, criado em 1994, tendo sido submetido ao diretório de sites do Yahoo! - em uma época na qual acessava-se a listas de sites verificados por profissionais humanos com a mesma expectativa que temos hoje em uma busca no Google -, foi sumariamente recusado sob a justificativa que “não tinha conteúdo” (Nunes, 2011). Ainda assim, a influência de JODI para o campo da criação em rede é tão significativa que sua postura sobre a tecnologia, difundida nos anos 1990, continua a reverberar hoje entre muitos outros artistas da chamada “web arte” (também referenciada como “net art” ou “internet art”), especialmente porque este campo de criação se caracteriza por ocupar os campos de significações e especificidades técnicas e conceituais da internet (Nunes, 2010), premissa fundamental das ações da dupla.
Então, JODI, enquanto modelo de transgressão artística, será nosso ponto de partida para a realização de uma obra de arte utilizando uma das massificadas ferramentas de IA disponíveis na internet, o ChatGPT. O objetivo aqui é realizar um site de web arte composto por páginas escritas integralmente pelo ChatGPT sob os valores mais “disruptivos” de JODI.
Assim sendo, na criação deste experimento artístico seguiremos alguns preceitos:
Instigar o sistema a gerar páginas em seu “limite” de “disrupção”, reforçando o caráter subversivo, transgressor e caótico presente no legado de JODI, sem, no entanto, oferecer sugestões concretas de como concretizar essas premissas;
Atribuir, tal como ocorre diante de processos artísticos, uma suposta intencionalidade às escolhas realizadas pelo sistema, atuando exclusivamente a partir das proposições “estéticas” do ChatGPT na criação das páginas;
Preservar a escrita original do sistema ao propor ao ChatGPT a criação de códigos-fonte em HTML, mantendo a integralidade do processo.
4. Método
Assim, tratamos de realizar um experimento em série, constituído a partir de várias interações seguidas com o ChatGPT, em reiterações cíclicas. Antes dele, foi realizada uma obra anterior chamada Mitômato (2023)11, experimento que discute tendências das atuais ferramentas em IA em processos de desinformação. Claramente não se trata somente da continuidade do método de interpelação cíclica do robô para alcançar determinados resultados de criação, mas, também, da investigação dos comportamentos do robô e, a partir destes, do prosseguimento de uma abordagem crítico-criativa em torno do uso destas ferramentas. Mitômato, então, se baseia em uma sequência de questionamentos ao robô sobre a minha própria vida e obra: “você sabe quem é Fabio FON?”. Para cumprir a tarefa, o ChatGPT busca seguir os padrões esperados em textos biográficos de artistas. Entretanto, na quase totalidade das vezes, “o sistema acaba misturando alguns dados imprecisos com muita informação falsa” (Nunes, 2023, p. 36). Na obra, constituída de uma sequência em vídeo, os textos com dados errôneos são identificados enquanto texto tachado (Figura 3).
Evidentemente, o experimento proposto em Mitômato não está restrito a uma constatação pessoal - se as informações sobre mim estão ou não corretas. Na verdade, a prática de robôs oferecerem informações falsas é tão comum que recebeu um eufemismo difundido na imprensa especializada: o ato de “alucinar” de um sistema de IA. Há que se observar que artistas que não são suficientemente famosos, incluindo aí aqueles que trabalham em nichos restritos, que são referenciados fora do idioma inglês, que simplesmente não são considerados interessantes ao ponto de serem referenciados em exaustão, entre outras tantas situações que desfavoreçam informações abundantes nos conjuntos de dados a serem absorvidos pelas ferramentas de IA, tendem a terem suas realizações falseadas por robôs.
Então, resolvemos criar AIDOJ (2023). Seu título é a justaposição - invertida - de IA e JODI. Seu processo de criação é iniciado com o questionamento ao ChatGPT, versão 3.512, sobre o que sabe sobre as criações de JODI. Isto posto, é iniciado o processo de geração de páginas: primeiro, pede-se sugestões de criações inspiradas no legado da dupla; em resposta, o robô oferece uma lista de proposições, sendo que uma destas propostas será escolhida para que o robô gere um código-fonte especialmente baseado naquilo que ele mesmo sugeriu; caso o resultado seja funcional, ou seja, visualizável a partir de um programa navegador de internet, a página é, então, reunida ao conjunto de páginas de AIDOJ.
Neste método interessa, em primeiro lugar, compreender como o ChatGPT busca concretizar as suas considerações conceituais sobre a obra de JODI em obras digitais. O sistema define as criações de JODI como “altamente disruptivas e desafiadoras” e conhecidas por “desafiar as convenções estéticas e técnicas da arte digital”. Quando os conceitos são transpostos para a prática, listas de sugestões de páginas HTML inspiradas em JODI soam pusilânimes em comparação com as premissas anteriormente explicitadas, distantes de resultados “impactantes”, “intrigantes”, “caóticos” - ainda que os adjetivos estejam presentes. Aqui, um trecho de uma das listas de sugestões do ChatGPT:
Mouse Tracker Abstract Art: Desenvolva uma página onde o movimento do cursor do mouse deixa um rastro colorido e caótico. À medida que os usuários movem o mouse, eles podem "pintar" na tela, criando uma obra de arte abstrata em constante transformação. HTML Noise Landscape: Crie uma paisagem de "ruído" digital usando elementos HTML que se movem e interagem. Use cores vibrantes, padrões aleatórios e movimentos caóticos para criar uma cena visualmente impactante. Web-Based Error Simulator: Construa uma página que simule erros de sistema, como mensagens de erro, janelas pop-up e telas azuis da morte. Os elementos da página podem se mover e colidir, criando um ambiente de erro visualmente intrigante. HTML Abstract Sculpture Park: Desenvolva um parque de esculturas digitais abstratas, onde diferentes formas geométricas e elementos interagem de maneira caótica. Os visitantes podem influenciar o movimento das esculturas com o mouse. CSS Interactive Art Generator: Crie uma tela em branco onde os jogadores podem desenhar com o mouse. Use CSS para gerar elementos visuais abstratos e coloridos que reagem aos movimentos do mouse, criando uma obra de arte colaborativa e caótica. Virtual Reality Deconstruction: Simule um ambiente de realidade virtual onde os elementos da página são constantemente desmontados e reconstruídos em formas caóticas e desconexas. Isso pode ser alcançado com animações CSS e interações de mouse.
Conceitualmente, as proposições são simplistas. Aqui talvez caiba observar que as sugestões do ChatGPT sobre possibilidades de criação de obras interativas, evidentemente baseadas em estatísticas, refletem os clichês da arte digital; em especial, trazem o recorrente deslumbre tecnológico inerente a essa produção, bem como a frequente redução das obras digitais a seus processos interativos. De toda forma, quando se propõe a execução destas sugestões, ou seja, quando traduzidas em código-fonte, destoam da suposta ousadia inicial; mesmo que o ChatGPT seja instigado por códigos mais “criativos” ou mais “caóticos”, o resultado será significativamente mais contido na prática. Em alguns momentos, o robô ainda aconselha a ter “cuidado para não tornar a experiência confusa ou frustrante para os usuários”, o que diante de JODI é um enorme contrassenso: muitas obras da dupla justamente proporcionam confusão e frustração a seus visitantes. Ora, o robô não compreende o que é JODI de fato.
Ao final do processo, os códigos gerados pelo ChatGPT são convertidos em páginas HTML, reunidas no site de AIDOJ. Nem todos os códigos gerados são funcionais; cerca de um quarto dos códigos criados não são visualizáveis devido a erros na escrita; quando solicitado a corrigir a falha de exibição, em todas as vezes o robô não foi hábil o suficiente. Assim, os códigos não-funcionais foram descartados. Para permitir uma navegação contínua entre os códigos criados, criou-se uma janela de exibição que mantém cada página disponível ao visitante por apenas cinco segundos; após o curto tempo, uma nova página será carregada de forma aleatória. Por conta de sua exibição randômica, a cada novo acesso a AIDOJ, uma nova sequência de páginas se estabelece. Em sua configuração atual, criada em 2023, AIDOJ é um site composto de 100 páginas e que pode ser acessado a partir de https://www.fabiofon.com/aidoj.
5. Resultados e Insights
Nesta centena de páginas de AIDOJ, temos uma razoável variedade de situações (Figura 4). Algumas páginas permitem interações, como alterar a posição de objetos, desenhar ou modificar configurações visuais a partir do clique ou arraste do mouse. Em uma das páginas, intitulada pelo robô no código-fonte como “Graffiti”, o percurso do mouse sobre o fundo preto da página cria um rastro repleto de caracteres - que permanecem pulsando na tela continuamente. Em outra página, em um fundo esverdeado pulsante, quadradinhos transparentes vão surgindo freneticamente - junto a repetições da palavra “hello!” (olá) -, conforme o percurso do mouse na tela. Sem possibilidades de interação, ainda podemos citar “Página Caótica”, conforme título criado pelo robô, na qual caracteres e números giram suavemente em torno do próprio eixo de forma bastante ordenada e previsível, em meio a ícones de erro de carregamento de imagens; ou ainda, “JODI-Inspired Page”, uma página estática que exibe no topo da tela uma linha de caracteres básicos - letras, números e símbolos organizados em ordem alfabética, em fonte Courier New - tipo recorrentemente associado às instâncias mais basilares da computação - em tom branco e fundo preto. Curiosamente, “JODI-Inspired Page” não exibe um efeito glitch que é mencionado em seu código-fonte, o qual define uma animação “glitch-effect” em ciclos de dois segundos, o que nos leva a acreditar em um erro na escrita do código. À luz de uma falha de fato, a página remete a uma confluência minimalista que desperta um tênue estranhamento.
Nestas páginas citadas (Figura 5), percebe-se uma estética orientada ao glitch, ou seja, a uma estética do erro - em especial, quando artistas e outros criadores se apropriam de falhas ou se inspiram em erros computacionais para celebrar um domínio não-domesticado, do escape da expectativa de funcionalidades, buscando uma dimensão para o imponderável (Fon, 2023). Neste sentido, JODI é uma forte referência glitch em criações como Wrong Browser (2001), que é um navegador que desconstrói a experiência de navegação na internet e dos sites a serem visitados, ou ainda, Untitled Game (1998-2002), que cria uma experiência glitch a partir do game Quake 1 (1996), reduzindo os gráficos complexos e ambiente do jogo original ao mínimo possível.
Quando opta-se pelo glitch enquanto estética, há evidentemente uma disfuncionalidade que pode ser lida como transgressora. Mas, há que se perceber também que o fascínio sobre o erro computacional, a impulsionar uma infinidade de aplicativos e filtros disponíveis na internet que simulam ruídos, interferências e outras possíveis falhas para resultados em fotos e vídeos - geradas a partir de parâmetros escolhidos pelo usuário -, também pode ser lido como uma domesticação do ato criador com glitch:
essa forma de “arte conservadora com glitch” geralmente se concentra mais no design e nos produtos finais do que na quebra processual de fluxos e políticas. Há uma crítica óbvia: projetar um glitch significa domesticá-lo. Quando a falha se torna domesticada, controlada por uma ferramenta ou tecnologia (uma arte humana), ela perde seu encanto e se torna previsível. Não é mais uma quebra de fluxo dentro de uma tecnologia, ou um método para abrir o discurso político, mas sim um cultivo. Para muitos atores, não é mais um glitch, mas um filtro que consiste em uma predefinição e/ou padrão: o que antes era entendido como um glitch agora se tornou uma nova mercadoria. (Menkman, 2009/2010, p. 7)
Ou seja, só o glitch por si só não garante uma postura transgressora de fato quando consideramos a produção digital. Então, retomando, o resultado do código-fonte criado pelo ChatGPT não proporciona uma “quebra de fluxo”, mantendo-se em um resultado conservador. Ora, não podemos perder de vista que estamos tendo por meta uma estética radicalmente disfuncional da tecnologia, já que JODI privilegia a intertextualidade entre códigos da relação homem-máquina, além do desconforto, da desordem, do medo do vírus; o usuário fica em pane ou entra em looping (Donati, 1997). Assim, as páginas de AIDOJ até oferecem algum estranhamento, mas de forma contida ou ilustrativa. Se observarmos por exemplo, “Chaos Chess” (Figura 6), título dado pelo robô, temos uma composição que remete diretamente a um jogo de xadrez desconstruído, com uma animação infinita que sugere o movimento das peças do jogo, porém, sem nada de excepcional. Poderíamos aqui associar às partidas de xadrez, que já pontuaram os avanços da IA em outras épocas, tal como a famosa derrota do campeão Garry Kasparov para o “supercomputador” Deep Blue da IBM, em 1997. Cabe também mencionar o percurso desconstrutivo de jogos por JODI, que inclui o já citado Untitled Game (1998-2002) e que se estende sobre jogos clássicos, como o “jogo da velha” - tic-tac-toe - em OXO (https://oxoxxxooo.com/; 2018), inclusive referenciando disputas entre humanos e IA. A despeito das referências, “Chaos Chess” é apenas repetitiva e pretensamente agradável - cores fortes se alternam ao fundo de forma previsível.
Por outro lado, uma das coincidências possíveis de serem trazidas em uma comparação entre JODI e as páginas de AIDOJ se refere a uma suposta “inspiração” direta diante de uma das obras mais conhecidas do duo europeu. Em um código HTML, que o robô nomeou como “Retro Screen Distortion” (Figura 7), há caracteres verdes - barras, traços e outros caracteres - que surgem na tela. Quando o código-fonte da página é observado, descobre-se que formam uma composição - que se assemelha a um texto estilizado em ASCII art13 -, que é desconstruída quando exibida no navegador. Tal como um processo de criptografia - quando uma mensagem permanece oculta em um formato codificado -, o acesso ao código-fonte permite uma leitura mais legível dos caracteres da página. Podemos tecer um comparativo com uma das proposições mais célebres de JODI, que é referenciada como wwwwwwwww.jodi.org (1995). Nesta obra, ao acessar o site do duo, somos contemplados com uma indecifrável página que apresenta caracteres verdes - travessões, barras, pontos; tags de HTML -, que são exibidos de forma aparentemente aleatória, reforçando a percepção de um súbito erro em sua exibição. Entretanto, os autores reservaram uma surpresa a visitantes mais atentos: ao abrir o código-fonte da página14, é descoberta uma espécie de diagrama para se construir uma bomba atômica (Figura 8), como uma metáfora de uma dimensão oculta e potencialmente deletéria da internet. Atualmente esta obra de JODI pode ser acessada através do endereço http://wwwwwwwww.jodi.org. Entretanto, alguns softwares antivírus mantêm este endereço em suas listas de sites potencialmente perigosos, impedindo, assim, a visualização da página. Ou seja, a despeito da relevância histórica que este site possui no contexto da arte em rede, a transgressão de JODI ainda é fortemente pertinente15.

Créditos. Fábio Oliveira Nunes
Figura 7 Página e código-fonte (direita) de “Retro Screen Distortion” em AIDOJ
Voltando à AIDOJ, neste caso não há uma evidência direta de que o sistema de IA realmente se baseou em wwwwwwwww.jodi.org para imitar esta emblemática “encriptação” ASCII no código fonte. Por outro lado, a abundância das referências sobre este trabalho certamente deve estar presente no conjunto de dados utilizados pelo robô. Ainda assim, a página presente em AIDOJ se mostra muito mais dispersa em seus sentidos: sequer é possível identificar qual palavra estilizada ali se revelaria.
Também é digna de nota a página nomeada pelo ChatGPT como “Chaos Clicker” (Figura 9), conforme o título do código-fonte, que se apresenta com pequenos botões retangulares coloridos e pulsantes na tela que exibem texto - alguns com a expressão “click me" (clica em mim) e outros com "chaos" (caos). A página possui uma forma de interação com o público: a cada clique, os elementos ganham novas cores e eventualmente também alternam seus enunciados. Em primeiro lugar, chama a atenção o “click me” - convite para o visitante clicar no botão. Na primeira geração de sites da internet, nos anos 1990, era uma prática comum incentivar visitantes a acessar hiperlinks - o ato de “clicar” tinha sua excepcionalidade diante de uma cultura de leitura até então baseada em suporte impresso. Mas, mesmo assim, evidenciar “click me” unicamente soa ordenado e convencional demais, completamente destoante das premissas.
Ironicamente, é possível que, em algum momento, o robô resolveu seguir com ênfase os pedidos por uma estética “caótica”. Com uma literalidade acachapante, o “caos” lá está: na verdade, a palavra “chaos” adornando os botões do experimento, enquanto paradoxalmente sua composição é extremamente ordenada - seis retângulos alinhados com algum movimento contido. Algo muito parecido também acontece em “Noise Landscape” (Figura 10), título dado pelo robô, quando temos uma página composta por pontos brancos que formam uma grade rigorosamente ordenada com o texto “bem-vindo a Noise Landscape; Este é um ambiente visualmente caótico” -, quando, de fato, não há caos algum.
Certamente essa inversão de expectativas - uma antítese retumbante entre “caos” e a visível estabilidade da composição - pode ganhar algum sentido na leitura do público: poderíamos ter aqui uma “escolha” do sistema de IA pelo sarcasmo presente em obras de JODI?
Desde Eliza, o primeiro robô de conversação do mundo, se sabe que as respostas de sistemas de IA podem ser potencializadas pela expectativa emocional de seus interlocutores humanos. Criada no Massachusetts Institute of Technology por Joseph Weizenbaum, em 1966, Eliza viria a ser um dos programas de IA mais conhecidos do mundo, imitando a atuação de um psicanalista baseado nos princípios de Carl Rogers. Eliza, na verdade, era um programa bastante simples: se eu escrevesse “eu estou BZZZ”, o sistema responderia “por quanto tempo você tem estado BZZZ?”, ou seja, o programa imitava uma psicanálise, simplesmente modificando as afirmações e perguntas feitas pelo usuário, segundo um padrão predefinido. Embora o software fosse tão modesto em sua complexidade, Weizenbaum ficou realmente impressionado com o envolvimento emocional daqueles que usavam o programa, especialmente nos casos em que esse contato fosse bastante curto (Nunes, 2016). Eliza passou a nomear um interessante fenômeno: a tendência humana de antropomorfizar os dispositivos tecnológicos, lendo comportamentos e respostas como resultados de uma “emoção humana”, ainda que estes sejam apenas resultados aleatórios, repetitivos ou mesmo vazios de sentido (Cleland, 2004).
Assim, voltando à página “Chaos Clicker” de AIDOJ, há fortemente a possibilidade de ler a discrepância entre “conceito” e “resultado” - o “caos” - como uma intencionalidade tal como artistas humanos o fazem, como em um ato de sarcasmo explícito. Longe de fechar esta questão, mas com a intenção de aproximar algumas particularidades da criação artística no contexto das IA, há que se observar que o potencial destas ferramentas reside no domínio indeterminado das poéticas contemporâneas, que justamente convidam o público a dar sentido aos outputs criativos - nisso, há um potencial que não é específico das IA, mas favorável a estas ferramentas diante de olhares mais generosos.
6. Conclusões
AIDOJ é uma obra que ressoa a prática de sistemas de IA ao assumirem um “estilo” artístico de um autor, provocativamente entre a perspectiva de uma estética subversiva e os limites que representam idiossincrasias destes robôs, que além de serem concebidos dentro de uma lógica de racionalidade e produtividade típica de uma indústria tecnológica de massa, ainda funcionam dentro de um direcionamento estético conservador, próprio da natureza estatística destes sistemas. Além disso, quando se opta pela “inspiração” na arte da internet, na qual se privilegia processos e premissas abertas, experimentais, fluidas e não só formas e aparências estabelecidas, também tensiona-se as habilidades dos sistemas de IA em assimilar estéticas contemporâneas.
Ainda que o ChatGPT seja capaz de definir as criações de JODI como “altamente disruptivas e desafiadoras”, conhecidas por “desafiar as convenções estéticas e técnicas da arte digital”, a grande maioria dos códigos criados pelo sistema generativo são essencialmente contidos, inofensivos e/ou inconclusivos. Em um outro contexto, poderiam ser confundidos com amostras de scripts para testar efeitos em páginas da web. Ainda assim, entre as dezenas de resultados do experimento, há alguns resultados que, sob um olhar generoso do público, podem sugerir a incomunicabilidade, o caráter nonsense ou a despretensão tão característicos de JODI quando, ao mesmo tempo, podem ser apenas o resultado das limitações do robô em compreender o real sentido de ser “disruptivo”.
Por fim, na contramão da expectativa de um virtuosismo nas criações realizadas com IA, AIDOJ é uma obra desenvolvida com IA que não está exatamente voltada para as habilidades da tecnologia, mas, sim, para as fragilidades destes sistemas em compreender a essência de obras artísticas contemporâneas na prática. Mais objetivamente, quando se propõe ao sistema GPT que crie páginas HTML que se inspirem nas obras da dupla JODI, cujo trabalho é reconhecidamente desafiador e provocativo, vê-se a limitação do sistema em conseguir criar códigos-fonte tão subversivos quanto aqueles criados pelo famoso duo. Em um olhar mais atento, percebe-se como o caráter incisivo, potente e tecnologicamente visceral que caracteriza as obras da dupla é conceitualmente simplificado e domesticado. Resulta, então, em um metacomentário em torno de uma instrumentalização que serve a um enquadramento tácito das dimensões mais subversivas da criatividade e, por extensão, da vida.
Até a conclusão deste texto, AIDOJ foi exibida na sexta edição da “The Wrong Biennale 2023-2024” - um dos maiores eventos de arte digital do mundo - nos pavilhões AI/AI e Net Art Died But Is Doing Well. A obra também fez parte da exposição Panorama 5, organizada pelo Laboratório de Poéticas Fronteiriças da Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil, no primeiro semestre de 2024.