1. Introdução
Este estudo destaca a ação estética e performativa em ambiente digital e explora a influência tecnológica - na criação, exibição e interação com a audiência - das produções teatrais apresentadas na 20.ª edição do Festival Anual de Teatro Académico de Lisboa (FATAL), que decorreu online em 2021.
Embora não seja algo recente, a transição dos espaços de apresentação presenciais para o espaço digital foi significativamente impulsionada pela pandemia da COVID-19, trazendo uma série de mudanças e constrangimentos para os grupos de teatro universitário que participam regularmente no FATAL. Tais constrangimentos emergiram durante o processo de criação, principalmente nos ensaios por videoconferência, e estenderam-se até à interação com a audiência e o relacionamento habitual dos grupos em contexto coletivo.
A privação da atmosfera teatral e do ambiente de festival levou os artistas amadores a adotarem outras linguagens nos seus projetos, desde a videoarte ao cinema. Neste contexto, emergem duas questões primordiais:
Em que medida as apresentações das produções teatrais do FATAL em streaming e live streaming podem ter adotado uma linguagem cinematográfica?
De que forma os dispositivos tecnológicos de criação e exibição influenciaram a estética e a narrativa das performances?
Estas questões, além de orientarem o presente estudo, desdobram-se de acordo com a natureza técnica e artística das 12 produções teatrais do festival.
A história do uso do vídeo nas artes performativas, desde as suas primeiras aplicações como ferramenta de registo até à sua adoção como elemento integral nas performances, reflete uma trajetória de inovação contínua e adaptabilidade. Neste contexto, Célia Vieira e Rosimaria Sapucaia (2022) apontam que a transição da performance física para a performance digital tem raízes na história tradicional do teatro e da dança e que a evolução representa a continuidade e adaptação da utilização de tecnologias para enriquecer os efeitos estéticos e o sentido dos espetáculos.
Com a chegada da pandemia a Portugal em 2020, e como aponta Mariana Letras (2023), a necessidade de distanciamento social e os confinamentos obrigatórios levaram a uma aceleração sem precedentes na utilização de tecnologias por parte de artistas e instituições, adotando formatos digitais como espaços de criação e interação. Este cenário motivou a realização deste estudo, que analisa as gravações dos espetáculos da 20.ª edição do FATAL, através da grelha de cruzamento de vetores e agentes da ciberperformance, desenvolvida por Pedro Veiga (2022), ajustada e expandida por nós neste artigo. Além disso, inclui-se a observação de um artefacto de media art digital, cuja génese está vinculada à vídeo-performance. Na nossa grelha expandida de análise dos vetores e agentes da ciberperformance, vídeo-performance e artefacto de media art digital, foram registados os padrões tecnológicos e comunicativos das performances observadas.
2. Introdução do Vídeo na Prática Artística Performativa
A integração do vídeo nas artes performativas representa uma expansão significativa das capacidades expressivas, participativas e narrativas. O vídeo tem proporcionado aos artistas de diversas áreas um meio dinâmico para explorar novas dimensões de tempo, espaço e interatividade, transformando profundamente a experiência performativa.
As origens do vídeo como ferramenta artística remontam às décadas de 1960 e 1970, período durante o qual o artista Nam June Paik começou a incorporar meios audiovisuais nas suas obras. Segundo Fernando Flores Moletta (2022), Paik é considerado por muitos historiadores o fundador da videoarte. Entre várias obras, destacam-se: TV Cello (1971), uma obra criada em colaboração com a violoncelista Charlotte Moorman, onde televisores empilhados formavam um violoncelo e Moorman tocava usando um arco tradicional; Global Groove (1973), um vídeo seminal que mistura imagens de danças culturais, performances e vídeos comerciais sincronizados com som, refletindo sobre o futuro da comunicação global e o impacto dos meios televisivos; Good Morning, Mr. Orwell (1984), um evento por satélite ao vivo que conectou artistas de várias partes do mundo e antecipou os processos streaming; e uma das obras mais ambiciosas de Paik, Electronic Superhighway: Continental U.S., Alaska, Hawaii (1995), um mapa dos Estados Unidos criado a partir de centenas de televisores, repletos de imagens vibrantes representantes da cultura de cada estado, destacando a saturação dos meios de comunicação. É notório que, com o recurso aos televisores, Paik pretendeu transformar a relação passiva existente entre o telespetador e a televisão, como indica Moletta (2022).
É igualmente importante evocar para este estudo Jeffrey Shaw. Influenciado por movimentos como o Fluxus e o accionismo vienense, Shaw tem sido uma figura-chave na exploração da interseção entre vídeo e a performance em grandes suportes desde os anos 60. Com foco na interatividade, o artista tem incorporado o vídeo e as novas tecnologias para revolucionar a experiência do espetador. A sua intenção de explorar novos meios, suportes e espaços é comprovada em Smokescreen (1969), uma obra que escondia a fachada da Universidade de Swansea atrás de uma cortina de fumo. Também, segundo Carolina Fernández Castrillo (2012), Corpocinema e MovieMovie, realizados na Holanda em 1967, foram cruciais para introduzir a ideia de expansão do ambiente visual. Estes projetos fundiram elementos diversificados e criaram um dinamismo de imagens e sons num ambiente complexo de múltiplas telas.
Castrillo (2012) indica que Shaw foi inspirado pelo conceito wagneriano de “obra de arte total”, procurando novos métodos de interação mediática para se aproximar do ideal de totalidade, e descreve os seus projetos como ambientes de cinema expandido, como é o caso de Continuous Sound and Image Moments, realizado entre 1966 e 1971. Esta performance intermediática explorava a utilização de telas móveis para gerar efeitos de profundidade e de movimento. Para além das telas, também foram introduzidos outros elementos materiais, como insufláveis e pirotécnicos, expandindo a interatividade dos visitantes que circulavam entre as imagens, que também eram projetadas nos seus corpos.
No final da década de 60 e início dos anos 70, a intersecção entre a performance e o vídeo começou a ser persistente, tanto como documentação de processos, como prática artística híbrida. Artistas como Bruce Nauman começaram a explorar a combinação de ações ao vivo com gravações em vídeo. Nauman ficou conhecido pela sua abordagem experimental, misturando várias linguagens artísticas, incluindo performance, vídeo, escultura e instalação, tornando o registo do processo criativo, muitas vezes, obra artística:
muitas vezes as suas performances eram assuntos privados, exercícios feitos nos seus estúdios, gravados, mas não necessariamente mostrados. Em vez de objetos comercializáveis (como pinturas e esculturas), o processo físico de fazer arte tornou-se obra em si. A câmara representava o Outro ou o público. (Gomes, 2012, p. 9)
Nauman contribuiu, portanto, para o alargamento das fronteiras da arte contemporânea e para o questionamento das normas tradicionais da representação cénica através do cruzamento entre a performance e o vídeo.
O performer Dan Graham investigou ativamente o comportamento do público durante as suas performances nos anos 70. Segundo RoseLee Goldberg (1988/2012), o artista procurou combinar os papéis de performer ativo e espetador passivo numa única pessoa, usando espelhos e equipamentos de vídeo. Os performers podiam observar-se enquanto realizavam ações e, assim, tornavam-se espetadores das suas próprias atividades. Em Two Consciousness Projection(s), de 1973, o artista elevou essa consciência e fez com que duas pessoas expressassem verbalmente como se viam diante do público. Uma mulher examinava o seu próprio rosto num vídeo, enquanto um homem olhava através da câmara. Por um lado, ambos eram elementos ativos, contribuindo para a performance; por outro, eram espetadores passivos, observando-se um ao outro. Posteriormente, o artista aprofundou essa técnica e adicionou elementos de tempo e espaço para criar efeitos de passado, presente e futuro. Em Present Continuous Past (1974), o espelho refletia o tempo presente, enquanto o vídeo mostrava ações passadas, criando uma sensação de fluxo contínuo de tempo. Assim, os espetadores, ao entrar no espaço espelhado, viam-se no presente e, após um breve período, viam as suas ações passadas retratadas no vídeo.
Nos anos 80, o grupo italiano Falso Movimento começou por criar pequenas instalações que exploravam o cinema nos moldes estéticos dos anos 70, marcado pela experimentação e expressão autoral, abordando temas controversos sob uma perspetiva realista. Goldberg (1988/2012) mostra que o grupo fez uma mudança abrupta na sua linha estética e começou a utilizar, em grandes cenários, representações de paisagens metropolitanas com recurso ao vídeo. Exemplo disso é Tango Glaciale (1982), no qual o grupo transformou o palco numa espécie de tela de cinema e empregou diversos cenários num único espaço teatral, invocando uma casa, uma piscina e jardins através de projeções.
No fim do século XX, com a persistência tecnológica, surgiram outros tipos de performances. Apareceram, como indicam Rocha et al. (2023), nos primórdios dos anos 90, as primeiras experiências de performance em ambientes virtuais por meio de chats e MUDs1, inicialmente em formato de texto e depois com a incorporação de elementos gráficos. Neste âmbito, uma das primeiras performances documentadas foi Hamnet (1993), uma versão de 80 linhas da obra Hamlet, de Shakespeare, apresentada num chat pelo grupo Hamnet Players. Posteriormente, estas variações da performance começaram a expandir-se para mundos virtuais, como Second Life e Upstage, e foram denominadas por “cyberformance”, termo desenvolvido por Helen Jamieson (2008), que combina “cibernética”, “ciberespaço” e “performance ao vivo”. Esta designação foi adotada pela autora como forma de evitar a dicotomia entre os conceitos de “virtual” e “real”, evitando o uso de “performance online” ou “teatro virtual” para esta nova categoria.
É neste quadro que José Bidarra et al. (2023) assumem que a tecnologia desempenha um papel duplo, atuando ao mesmo tempo como intermediária e como parte ativa na criação. Neste tipo de performances, é possível que os performers partilhem o mesmo espaço físico enquanto outros participam à distância; alguns segmentos da performance podem ser previamente gravados e editados; e o público, por sua vez, pode interagir de forma remota, enriquecendo a experiência artística, como alude Pedro Veiga (2022).
Recentemente, durante os confinamentos em 2020, associou-se a performatividade do contexto vivido ao vídeo e cinema em interfaces de videoconferência, germinando o filme Host (Anfitrião), por exemplo, dirigido por Rob Savage. Dentro dos constrangimentos provocados pela pandemia, o filme pressupôs um trabalho bastante peculiar por toda a equipa técnica e artística, especialmente pelos atores. Luciano Marafon e Denize Araujo (2021) indicam que este filme adotou as diretrizes do manifesto de Bekmambetov, que estabeleceu regras de lugar, tempo e som para a criação de filmes em ambiente virtual. No que se refere ao lugar, o cenário é a realidade virtual em geral, onde cada tela de computador pertence a uma personagem e a ação nunca se desloca para fora daquele espaço; relativamente ao tempo, a ação ocorre em tempo presente; e, com edição em tempo real e sem transições visíveis, cria-se a sensação de uma filmagem contínua e os sons têm todos origem no ambiente computacional, permitindo que o espetador compreenda de que espaço/tela vem o som.
Em Host, todas as unidades foram cuidadosamente consideradas e os efeitos visuais foram desenvolvidos com inspiração nas técnicas tradicionais de efeitos cinematográficos, como o som de uma cadeira arrastada ou uma porta a fechar, por exemplo. Cada ator e atriz adquiriu habilidades necessárias para aplicar, autonomamente, efeitos da interface Zoom no decorrer da gravação do filme, além de aprenderem a interagir de forma convincente para a câmara do computador (Marafon & Araujo, 2021).
A integração do vídeo nas artes performativas, desde as primeiras experimentações até às complexas práticas contemporâneas híbridas, ilustra uma trajetória marcante de inovação e de expansão das possibilidades expressivas e comunicativas de ambas as disciplinas. Além disso, o cinema desempenhou um papel importante junto das artes performativas, e do teatro em particular, como observámos, e Jeffrey Shaw foi fundamental para a formulação do conceito de “cinema expandido”. O artista concentrou-se em explorar como as tecnologias digitais podem moldar novas maneiras de contar histórias e experienciar a arte (Castrillo, 2012). As suas obras imersivas são essenciais para questionarmos e reformularmos as práticas artísticas convencionais, posicionando-o como uma referência na evolução da interseção entre a arte e a tecnologia. Por outro lado, Nam June Paik teve um papel fundamental na consolidação da vídeo-escultura na história da arte, segundo Moletta (2022), e Bruce Nauman, que deixou de utilizar o vídeo como mero registo para o combinar com múltiplas linguagens artísticas, tornou-se um quadro de referência na história da arte da performance (Goldberg, 1988/2012).
3. Enquadramento Empírico e Metodológico: Performance, Cinema e Vídeo
Evidenciando a sua primeira performance, 18 Happenings in 6 Parts (1959), Allan Kaprow publicou no seu livro Essays on the Blurring of Art and Life (Ensaios Sobre a Indefinição Entre Arte e Vida; 1965) a primeira noção de “performance art” (Toro, 2010). A sua conceção de “performance” abriu o caminho para um novo campo de estudos, que se expandiu para várias disciplinas, incluindo o teatro. Contudo, embora os conceitos de “performance” e “teatralidade” estejam interligados no contexto das artes cénicas, a performance, segundo Fernanda de Toro (2010), refere-se à ação de realizar algo diante do público, sendo o foco a ação executada pelo artista. Este termo é amplo e pode abranger qualquer forma de apresentação, desde um ato teatral até uma dança, uma leitura poética, ou mesmo atuações em espaços públicos que não se limitam ao palco tradicional. A teatralidade, por outro lado, implica uma série de elementos que contribuem para a criação de um universo dramático específico, incluindo o uso de cenário, figurino e iluminação, por exemplo, que ampliam a perceção da narrativa pelo público.
A teatralidade encontra-se profundamente ligada ao desenvolvimento de uma experiência envolvente e, frequentemente, ilusória, suportada pelos elementos visuais e sonoros típicos do teatro. Por outro lado, a performatividade, que também se relaciona com a performance e o teatro, vai além dos limites convencionais destas artes. De acordo com Cláudia Madeira (2020), a performatividade está presente em todos os aspetos da vida, influenciando o comportamento diário, as profissões, a internet, as artes e a linguagem. Os termos “performativo” e “performatividade” abrangem uma variedade de significados, que refletem a diversidade e a complexidade com que ações e discursos são moldados pela realidade social. Portanto, o conceito de “performatividade” desafia-nos a reconhecer ações que contribuem para a construção dessa mesma realidade. Desta forma, estes conceitos encontram-se no espaço performativo, quer seja físico ou virtual, onde a teatralidade realça a performance e atribui-lhe profundidade, contexto e significado, por meio da performatividade.
Na interseção entre performance, vídeo e cinema, os três conceitos abordados são especialmente relevantes. A capacidade do vídeo de capturar e manipular o tempo e o espaço oferece novas possibilidades e permite aos artistas explorar narrativas não lineares e experiências imersivas. Assim, tanto o vídeo como o cinema, particularmente no campo do cinema expandido, tornam-se parte das performances e criam uma dimensão que funde a realidade e a ficção de maneiras complexas.
Segundo Radael Júnior (2015), o vídeo, que inicialmente aparentava ser uma transição entre o cinema do século XX e a imagem digital do computador, perdeu a sua identidade ao adotar características do cinema e da computação e, visando contrariar esta tendência, ao longo do tempo, desenvolveu a sua própria linguagem e criou um mundo distinto, designado por “videoarte”. No contexto da vídeo-performance, Wayner Tristao Gonçalves (2018) fez uma análise profunda sobre o conceito e sugere uma nova maneira de entender a relação entre a performance e a videoarte, bem como o tempo e o espaço. Ao integrar vídeo na performance, os artistas podem manipular o tempo e o espaço de maneiras que não são possíveis em simples performances ao vivo e essa manipulação oferece uma nova dimensão à experiência artística performativa, onde a temporalidade e a espacialidade se tornam fluidas.
O vídeo e o cinema são meios mais próximos da realidade e evoluíram para linguagens artísticas capazes de criar mundos e narrativas que, de outra forma, não seriam possíveis apenas com o trabalho dos performers e atores. No entanto, a principal diferença entre os dois está na forma como lidam com a representação dessa realidade. Júnior (2015) explica que no cinema a preocupação é capturar ou reproduzir a realidade de forma clara e nítida, enquanto no vídeo, a realidade é apresentada através de camadas de distorção e fantasia, onde as interferências se tornam elementos importantes na estética da obra. Na transição da performance ao vivo para a vídeo-performance ou para a ciberperformance, essas camadas de distorção, facilitadas pelas tecnologias digitais, oferecem novas maneiras de expressão e interação, mudando a forma como as performances são criadas, experienciadas e percebidas. Através de ferramentas de vídeo, os artistas podem explorar novas dimensões de teatralidade e performatividade e o vídeo deixa de ser apenas um registo para se tornar parte ativa da performance. Assim, a vídeo-performance e a ciberperformance unem teatralidade e performatividade e criam um sítio onde o tempo, o espaço e o performer se fundem. Durante os confinamentos obrigatórios ao longo da pandemia, as artes cénicas adaptaram-se e os artistas passaram a utilizar os meios digitais como um palco alternativo para a criação e a apresentação artística (Letras, 2023). Surgiu, assim, uma nova onda de experimentações no campo das artes cénicas, incluindo transmissões em streaming e live streaming, além de experiências digitais e interativas em plataformas como Google Meet, Zoom e Microsoft Teams (Veiga, 2022).
Como temos visto, há muito que o vídeo deixou de ser um simples registo de performances para se tornar também ele parte integrante da obra, repleto de significados próprios:
a vídeo-performance existe enquanto forma de registo de um evento pontual localizado no tempo, e surge como arquivo/documento ou como obra em si mesma, utilizando a linguagem própria do cinema e do vídeo para a montagem a partir da utilização de performances prévias. (Gonçalves, 2018, p. 82)
Por outro lado, o vídeo na ciberperformance reflete uma era digital que explora a interatividade, a virtualidade e a conectividade, ampliando as possibilidades expressivas e percetivas da performance e das outras tecnologias, desafiando os limites entre a realidade e a virtualidade, a presença e a representação (Veiga, 2022). A videoconferência, uma tecnologia que permite a comunicação em tempo real entre pessoas localizadas em diferentes lugares, simulando uma interação presencial por meio de câmaras e sistemas de áudio em dispositivos eletrónicos, tornou-se particularmente relevante para o progresso da ciberperformance. Para além das plataformas de videoconferência tradicionais já antes mencionadas, existiram outros ambientes virtuais utilizados pelos artistas nos períodos do confinamento, como YouTube, Second Life, Facebook Live e UpStage. O YouTube, Facebook e Instagram também foram amplamente utilizados para a difusão de vídeo-performances dos artistas.
Veiga (2022) refere que a ciberperformance é caracterizada pela sua capacidade de criar espaços híbridos que conectam o mundo físico ao virtual, desafiando as fronteiras da materialidade, que influenciam as narrativas das obras e a própria estética. Segundo o autor, a ciberperformance contém na sua estrutura uma linha temporal híbrida: o tempo da história; a definição da estrutura temporal do universo ficcional; a duração dos eventos narrativos; a indicação do horário de programação; e a determinação do tempo de interação com público. Esta combinação dos tempos e espaços possibilita vários cenários, como performers que partilham o espaço físico com a audiência, que participa remotamente, ou obras que podem incluir cenas pré-gravadas e editadas para uma experiência imersiva. Para analisar estes fatores, Veiga (2022) desenvolveu uma grelha de cruzamento de vetores e agentes inerentes à ciberperformance (Tabela 1) apontando as interfaces, as estruturas espaciais e temporais e as funções de cada agente.
4. O Festival Anual de Teatro Académico de Lisboa em Tempos de Pandemia
A Universidade de Lisboa iniciou, em 1999, um festival de teatro universitário, integrando-o na programação cultural da cidade. O teatro universitário representa uma das mais significativas atividades extracurriculares para os estudantes em Portugal, devido ao seu impacto sociocultural e histórico, evidenciado pela notável longevidade de alguns grupos teatrais, que já se aproximam de meio século de existência.
Em 2021, Portugal assistiu a uma adaptação significativa no cenário cultural devido às restrições impostas pela pandemia da COVID-19. O FATAL, que tradicionalmente promovia encontros e partilhas ao vivo, foi forçado a se reinventar, dando origem à primeira e única edição online do festival até hoje (https://fatal.ulisboa.pt/2021/).
O festival exibiu, através da sua página do Facebook, os seguintes espetáculos:
Quebra, do Tubo de Ensaios - Núcleo de Teatro da Associação Académica da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, retratou a dinâmica íntima de uma família. Enquadrado numa linguagem cinematográfica, com apresentação assíncrona, observou-se um tempo narrativo variável, com vários cortes de cena e câmara estática, determinado pelo videógrafo. No vídeo, foram apresentados vários espaços físicos e teve a realização de Gabriel Branco, Beatriz Nogueira e Catarina Silva, com edição de Beatriz Nogueira. O elenco foi composto por Mafalda Potier, Catarina Silva, Albino Almeida, Pedro Matos, Beatriz Nogueira e Fátima Gomes.
No Common Language (Não Existe uma Língua Comum), do Teatro Universitário do Porto, apresentou-se em formato de espetáculo gravado num palco de teatro, remetendo o enredo para um tempo presente, com apresentação assíncrona. Percebe-se a relevância da produção, que se alinha à cena espetacular teatral. No entanto, o olhar do espetador foi dominado pelos movimentos da câmara e foram bastante percetíveis as transições de cena com sobreposições de imagem. O grupo apresentou um espetáculo resultante de um processo de pesquisa de linguagens cénicas e recorreu à projeção de imagens durante o espetáculo, como um exercício de fusão de linguagens. A produção teve encenação de Susana Oliveira e interpretação de Margarida Silvestre, Patricia Xará, Susana Henriques e contou com a cenografia e vídeo de Helena Guerreiro.
Cântico Negro, do Grupo de Teatro da Universidade da Beira Interior, apresentou-se como um espetáculo gravado ao vivo num palco recheado de equipamentos técnicos e transmitido de forma assíncrona. Tal como em No Common Language, o tempo da narrativa remete-nos para um tempo presente, onde nada acontece e nada muda. O espetáculo, que incluiu momentos de dança, foi gravado num único plano, apenas com alguns zooms na imagem, seguindo a totalidade dos corpos dos atores/performers. Como não houve cortes no vídeo e o espetáculo foi gravado a partir do centro da plateia, o “olhar” da câmara assemelha-se ao de um espetador a assistir a um espetáculo ao vivo. Este foi dirigido por Rui Pires e contou com a cocriação e interpretação de Edmilson Gomes, Helena Ribeiro, Mário Fonseca, Nina Schneider e Sara Cruz.
Viver a Máscara - O Corpo, o Jogo, a Festa, do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, foi uma criação coletiva que refletiu sobre a construção da humanidade através da máscara popular. Gravado numa espécie de black box (caixa preta) e sempre com o mesmo plano, deu a sensação de sermos o espetador no lugar da câmara, permitindo liberdade no desvio do olhar. À semelhança das outras produções, a narrativa gravada remeteu-nos para um tempo presente e a performance também se apropriou da projeção de imagens durante a cena.
Pelo Menos Hoje, do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, apresentou-se como um espetáculo gravado que retratou o próprio tempo real em que foi instaurado o estado de emergência. Foi possível observar a entrada do público com máscaras de proteção numa sala de espetáculos, à medida que imagens eram projetadas em três telas no palco. A gravação do espetáculo ocorreu com câmara estática, sem zooms ou planos fechados, o que permitiu que o espetador, atrás do ecrã, se sentisse livre para conduzir o seu olhar. Existiu um diálogo nítido entre os atores em cena e as projeções nas telas, criando uma sensação de profundidade entre a tela do computador do espetador, a sala de espetáculos, o palco onde decorreu a ação e as três telas do fundo. O espetáculo foi encenado por Liliana Caetano e interpretado por Ane Gabilondo, Anna Roha, Carolina Quaresma, Fernanda Andrade, Gabriela Guedes, Inês Bertelo, Larissa Alves, Lia Vieira, Lucas Brito, Mailson Santana, Maria João Ribeiro, Naomi Machado, Susana Nóbrega, Vero Chiriboga e Wilson Domingues. O design e edição do vídeo foram realizados por Pedro Ramos.
9 Personagens à Janela, do Grupo de Teatro de Funcionários da Universidade de Lisboa, apresentou-se como um filme de monólogos convergentes de personagens isoladas durante a pandemia. O filme apresentou vários planos e grandes movimentos de câmara e vários espaços físicos, cada um referente às diferentes personagens. A produção foi orientada por Dora Bernardo e contou com os textos originais de Alexandra Oliveira, Dora Bernardo, Filipa Cardoso e Margarida Liberato e com os poemas de Alexandra Oliveira, Fernando Alves e Fernando Pessoa. Todas as gravações foram realizadas pelos próprios atores nas suas residências e o elenco foi constituído por Alda Guimarães, Alexandra Oliveira, Armando Almeida, Conceição Freitas, Cristina Oliveira, Fernando Alves, Filipa Cardoso, Hugo Louro e Margarida Liberato.
Não foi possível analisar no âmbito desta pesquisa o espetáculo Só, do Grupo de Teatro do Instituto Universitário de Lisboa, porque o vídeo já não se encontra no arquivo do FATAL. Contudo, através do website do festival, é possível perceber que o espetáculo foi apresentado em live streaming e foi uma partilha de um processo de criação que contou com a encenação de Ana Isabel Augusto e com a interpretação de Margarida Pereira, Marta Laranjeira, Miguel Costa, Mónica Parreira e Olinda Bento.
Aquele que Diz Sim. Aquele que Diz Não., do Curso de Teatro da Escola de Artes da Universidade de Évora, foi uma adaptação de um texto de Brecht, de 1930, sobre a situação pandémica que se vivia em 2021. Foi visível os atores a circularem num amplo espaço com máscaras de proteção, sem apetrechos de cena, vestidos de preto e com as caras pintadas de branco. A câmara estava estática e houve zooms e sobreposições nas transições de imagens no vídeo. O exercício foi encenado por Paulo Alves Pereira, com a adaptação do espaço cénico de Daniel Silvério, Daniel Ribeiro, Catarina Silva, Madalena Oliveira, Manuel Prazeres e Sara Paiva. A gravação e montagem do vídeo foram da autoria de Luís Marino.
À semelhança de Só, não foi possível analisar o espetáculo Dia de Ação de Graças, do Novo Núcleo de Teatro da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. No entanto, mais uma vez, tratou-se de um espetáculo apresentado em live streaming. Sandra Hung esteve no processo como diretora artística e contou com a interpretação de Bárbara Novado, Beatriz Nunes, Cármen Duarte, Carolina Dias, Gonçalo Barradas, Gonçalo Durães, Joana Lameira, Matilde Abreu, Pedro Machado, Pedro Tavares e Roberto Bullitta.
Rockaby, do Grupo de Teatro da Nova, apresentou-se como um vídeo constituído por monólogos que espelharam o isolamento na pandemia. Foi filmado no espaço exterior da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com vários movimentos de câmara e planos, obedecendo a uma lógica cinematográfica. A ciberperformance em live streaming foi dirigida por Marina Albuquerque e contou com a interpretação de Beatriz Afonso, Catarina Palma, Jessica Pires, Júlio Barros e Mariana Antunes.
4 Ionescos, do Teatro Académico da Universidade de Lisboa, apresentou excertos de várias obras de Eugène Ionesco. O grupo criou uma ciberperformance de como enfrentar os constrangimentos provocados pela pandemia através da plataforma Zoom. Em live streaming, o projeto assemelha-se ao filme Host, que, apesar de ser possível ouvir os cliques dos ratos de computador e outros sons e ver os atores a ajustarem a câmara dos seus computadores, não deixa de ser interessante o sentimento de estarmos a assistir a uma cena que já foi ao vivo, onde o olhar direto dos atores para a câmara e a possibilidade de interação do público enquadram-se no panorama da ciberperformance. O projeto teve a direção de Júlio Martín da Fonseca e interpretação de Sara Félix, Luís Miranda, Rosa Couto, João Nabais, Joana Santos e Mário Brito.
Vanitas, do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, foi uma vídeo-performance gravada em vários espaços físicos e com diversos planos, efeitos sonoros e uma narração que ocupa todo o vídeo. Esta performance, com grande recurso à expressão corporal e às artes plásticas, foi construída especificamente para ser assistida numa tela, onde o vídeo trabalha em colaboração com os corpos dos performers nas suas relações com os objetos. O projeto retratou a vaidade como pecado capital e teve como performers Ana Luiza Filomeno, Bernardo Agostinho, Camila Costa, Edicleison Freitas, Elara Miller, Guilherme Veras Santos, Jorgette Dumby, Letícia Galdino, Lorena Sallit, Luiz de Sá, Maria Rui Cunha, Ruan Demarco, Sabrina Carilo e Simão Almeida, e contou com Elara Miller e Sabrina Carilo na gravação e edição do vídeo.
A visualização que realizámos dos vídeos dos projetos do FATAL, na sua maioria ainda disponíveis no arquivo do festival, permite-nos concluir que alguns desses vídeos serviram, inicialmente, o propósito de documentação e que no âmbito do festival se constituíram em obras artísticas, como veremos, mais adiante, na categorização da nossa grelha expandida, a partir da grelha de Pedro Veiga (ver Tabela 1).
5. Vídeo-Performance Num Artefacto de Media Art Digital: Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede
Comecei a desenvolver vários projetos performativos com vídeo durante a pandemia da COVID-19, como resposta natural ao período de confinamento e às demandas emergentes de uma sociedade cada vez mais digitalizada e interconectada. Como artista de teatro, esta mudança paradigmática alterou a minha forma de pensar o processo de criação performativo em simultâneo com o vídeo, aventurando-me pela fusão entre as duas áreas, o que tem enriquecido as minhas obras.
O vídeo, outrora utilizado por mim apenas como meio para documentar ou prolongar a vida útil das performances efémeras, tornou-se, durante e no período pós-pandemia, um elemento essencial na criação de experiências artísticas complexas e multidimensionais. Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede (Figura 1) é um exemplo disso e não se apresenta apenas como uma vídeo-performance, podendo até se aproximar das vídeo-esculturas de Nam June Paik. A consolidação desta vídeo-performance como um artefacto de media art digital é um testemunho da capacidade de transformação das artes performativas, com e através da tecnologia.
O artefacto foi produzido segundo o método a/r/cográfico, que consiste num processo de criação e investigação em arte digital, permitindo que os artistas/investigadores avancem simultaneamente por várias direções (etapas), facilitando novas evoluções do artefacto artístico e potenciando outros projetos na mesma linha de investigação (Veiga, 2021). A obra foi apresentada ao público em Lisboa, entre os dias 17 e 19 de julho de 2024, na “Exposição de Média-Arte Digital: Circuitos”, e teve como objetivo servir de espelho à interação humana com o meio ambiente, refletindo sobre a urgência climática. Manifestou-se como uma experiência profunda que une arte e ativismo (artivismo), levando os espetadores a se confrontarem com a realidade ambiental através de uma experiência sensorial que combinou a performance com o vídeo. A par do plano digital, a performance dialogou com os elementos físicos naturais e fabricados da escultura e gerou uma atmosfera que despertou a curiosidade dos espetadores.
O performer foi o elemento primordial para transmitir a mensagem e a emoção da obra. Atuou como uma ponte comunicativa entre o artefacto e o público, utilizando o corpo para levantar questões sobre a sociedade e o seu impacto no meio ambiente. Este corpo serviu como um veículo de expressão emocional, projetando sentimentos e reações por meio de gestos, expressões faciais, movimentos corporais e produção de sons.
Luciano Vinhosa (2020) refere que o corpo do performer já é uma imagem e, por consequência, produz imagens, quer seja fotografado ou videografado. No artefacto (Figura 2), o corpo humano transformou-se numa tela viva sobre a qual a narrativa foi desenhada e representou a humanidade em geral e elementos específicos da natureza.
Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede transcendeu a simples exibição visual e tornou-se numa experiência sensorial em múltiplas dimensões. A união dos elementos sensoriais - visão, áudio, tato e olfato - teve o propósito de aproximar o espetador a um nível profundo e pessoal, com o objetivo de estimular uma resposta urgente aos desafios das alterações climáticas:
Experiência visual: os sete ecrãs foram dispostos estrategicamente para ilustrar as transformações do ambiente natural, passando de estados vibrantes para cenas desoladas, em colaboração com o corpo do performer. Esta progressão visual não apenas refletiu a decadência causada pelo impacto humano no ambiente, mas também submergiu os espetadores numa realidade que muitos escolhem ignorar.
Experiência auditiva: a camada sonora da vídeo-performance foi composta por sons que evocam a natureza e a humanidade - ventos que assobiavam através de paisagens imaginárias, suspiros e gemidos que lamentavam perdas irrecuperáveis. Esses elementos sonoros criaram narrativas próprias, intensificando a emoção da experiência e envolvendo o público em cenários belos e inquietantes, simultaneamente.
Experiência tátil: provavelmente o mais inovador dos sentidos explorados neste artefacto foi o tato. Os espetadores puderam interagir fisicamente com a obra e tocar nas texturas incorporadas, desde a aspereza da palha até à suavidade enganadora do plástico, onde cada textura serviu como um símbolo das diversas facetas do nosso ambiente, bem como das ações humanas que o afetam. Esta interação tornou a experiência dos espetadores não apenas observada, mas vivida.
Experiência olfativa: a obra teve o grande potencial de integrar o olfato dos espetadores. A quantidade de palha utilizada realçou o aroma orgânico e o cheiro, como elemento invisível, mas omnipresente, e ajudou a amplificar a sensação de urgência e deterioração ambiental.
Face ao exposto, podemos aproximar Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede à estética da obra Continuous Sound and Image Moments, de Jeffrey Shaw, embora numa escala menor. Os sete ecrãs geraram efeitos de profundidade e movimento e a introdução de elementos sensoriais expandiu a interatividade entre o público e o artefacto. Como a vídeo-performance não seguiu uma narrativa linear, isso permitiu que os espetadores traçassem a sua própria narrativa visual, assemelhando-se à vídeo-performance Vanitas, única dentro do género na 20.ª edição do FATAL.
6. Análise dos Vetores dos Espetáculos do FATAL e do Artefacto de Media Art Digital
Como percebemos neste estudo, as tecnologias digitais têm vindo a transformar profundamente as artes performativas. A vídeo-performance e a ciberperformance têm explorado inúmeras modalidades interativas e mediáticas, desafiando as fronteiras tradicionais entre artista, obra e público.
A grelha de cruzamento de vetores e agentes da ciberperformance (ver Tabela 1) ofereceu uma estrutura analítica valiosa no âmbito dos estudos de caso desta investigação, que, expandida e adaptada por nós a este estudo (Tabela 2), inclui nos seus vetores os elementos de espaço, tempo, funcionalidade e interfaces, que são essenciais para compreender como a performances se desdobram em ambiente digital. Além disso, os agentes foram transformados em variações da performance e foram adicionados mais dois a este estudo: a “vídeo-performance” e o “artefacto de media art digital”, que utiliza a vídeo-performance na sua génese. Para facilitar a leitura e análise da grelha expandida, os “agentes” passam a retratar tudo o que é definido pelas equipas artísticas, ou seja, o espetáculo em si - desde texto, encenação, cenografia e questões técnicas - e que não é relevante para o foco desta pesquisa, por isso, deixaremos essa análise para os estudos da receção. Por outro lado, os vetores passam a estar dispostos em colunas e representam tudo o que está associado às tecnologias, incluindo a narrativa adicionada aos vetores, de forma a entendermos quem determina a narrativa visual. Esta reapropriação parte da observação feita por Veiga (2022) que indicou que “a tabela não pretende enumerar de forma exaustiva os vários cruzamentos e as suas possibilidades, mas apenas apontar direções possíveis” (p. 13). Assim, a partir da visualização dos projetos teatrais e performativos da 20.ª edição do FATAL, bem como a partir do resultado do artefacto de media art digital, teve origem a seguinte tabela.
Tabela 2 Grelha expandida de análise dos vetores e agentes da ciberperformance, da vídeo-performance e do artefacto de media art digital

Foi impossível recolher dados sobre as gravações de Só e Dia de Ação de Graças por já não estarem disponíveis no arquivo do festival. Da análise, e com base nos pressupostos do vídeo, do cinema, da ciberperformance e da vídeo-performance, como resultado, apenas o projeto 4 Ionescos se destaca pela sua capacidade de criar espaços híbridos, onde existe interação e participação do público, que pode provocar impacto na narrativa, inserindo-se assim no campo da ciberperformance. Após a análise da grelha expandida de análise dos vetores e agentes da ciberperformance, da vídeo-performance e do artefacto de media art digital (ver Tabela 2), e perante as descrições dos espetáculos anteriormente desenvolvidas, conclui-se, de acordo com a perspetiva sobre a vídeo-performance de Gonçalves (2018), que estamos em presença de uma problemática dupla - o vídeo enquanto registo e enquanto obra independente. Isto é, No Common Language, Cântico Negro, Viver a Máscara e Pelo Menos Hoje transcenderam a condição de meros registos dos espetáculos e converteram-se em obras artísticas digitais destinadas a serem exibidas a um público específico no contexto da programação FATAL.
Partindo das variações da performance abordadas neste estudo, apenas Vanitas e Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede se conectam à estética vídeoperformativa, onde, de acordo com Júnior (2015), o vídeo em colaboração com uma performance corporal abstrata incorpora uma realidade que se oculta em camadas de distorção e fantasia, transformando as interferências em elementos significativos na relação com a ação dos performers. Estas duas vídeo-performances utilizaram o vídeo como parte integral da narrativa estética e plástica da obra. Em Quebra, 9 Personagens à Janela e Rockaby, grande parte da narrativa visual é determinada pelo videógrafo através dos planos fechados e abertos, movimento de câmara e pós-produção, demonstrando uma preocupação em reproduzir a realidade de forma clara e nítida, aproximando-se à linguagem cinematográfica.
7. Considerações Finais
A partir dos vetores descritos na nossa grelha expandida de análise dos vetores e agentes da ciberperformance, da vídeo-performance e do artefacto de media art digital (Tabela 2), torna-se evidente como o dispositivo digital não apenas facilita, mas também expande e redefine a prática da performance artística. Um dos vetores mais impactantes da análise é o espaço, que aponta para uma distinção clara entre o espaço físico e o digital, onde o último pode ser manipulado de formas que transcendem as limitações físicas tradicionais.
A temporalidade também é um vetor crucial. O tempo pode ser distorcido ou fragmentado nas ciberperformances e nas vídeo-performances, pelo menos naquelas que não têm apenas cariz documental, como alguns espetáculos do FATAL que observámos anteriormente. O tempo de interação, definido na referida tabela, destaca momentos específicos em que o público pode influenciar ou modificar a ciberperformance.
Na era digital, o espaço da imagem muitas vezes se torna o próprio espaço da performance, considerando todas as possibilidades de edição e captura de imagens, permitindo que hoje se fale sobre vídeo, cinema e performance, bem como processos híbridos que vão desde a experimentação, documentação e obras artísticas para serem assistidas em espaços digitais.
O presente artigo evidencia o papel central da performatividade e da teatralidade na transformação das práticas artísticas contemporâneas nos campos da vídeoperformance e da ciberperformance. A análise das obras apresentadas no FATAL e do artefacto de media art digital Dão Água aos Mortos que Já Não Têm Sede ilustra a forma como as novas tecnologias digitais permitem uma reconfiguração das fronteiras entre o real e o virtual e entre o performer, a obra e o espetador. Esta investigação, para além de ser uma análise relevante sobre uma edição peculiar do maior festival de teatro académico do país - que celebrou a sua 22.ª edição em 2024 -, oferece um contributo valioso para a documentação e reflexão sobre a evolução do teatro universitário em Portugal, num contexto em que apenas seis edições da Revista FATAL, publicadas entre 2008 e 2013, registaram informações sobre outras edições. Para além disso, este trabalho contribui significativamente para a área da performance e da media art digital ao demonstrar que as tecnologias digitais e as suas interfaces não servem apenas como plataformas de exibição, mas também como elementos essenciais para a criação de novas formas estéticas e narrativas.