1. Introdução
A entrevista com Paulo Nazareth foi realizada no âmbito do projeto de pesquisa As Práticas Artísticas Contemporâneas e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial (Sales & Cabrera, 2020). Como é evidente ao longo da entrevista, estivemos interessados em pensar em questões étnico-raciais e de identidade na obra do artista mineiro, bem como na sua inserção no campo da arte contemporânea brasileira, escavando na sua origem de formação e nos seus interesses. Entendemos que o contexto atual da arte contemporânea no Brasil tem abordado dimensões pertinentes em relação à identidade brasileira que sempre estiveram presentes na cultura visual brasileira, mas que no século XXI assumem novos contornos, questionando o nosso legado colonial e a tradição conservadora nas artes plásticas, do modernismo até aos dias de hoje, no que concerne a pauta racial.
Ao pensar a forma como o colonialismo investiu no plano da ficção, da imagem e da cultura, a entrevista com Nazareth aprofunda e discute as formas com que o racismo perpetuou e solidificou um imaginário de vasta produção imagética que subalternizou, racializou e tornou periféricos povos nativos, bem como negros escravizados e afrodescendentes. Nazareth avança também sobre a questão da mestiçagem, fantasma sempre presente na cultura brasileira, ainda, envolta num repertório proveniente de uma suposta “democracia racial”.
Como parte das atividades do projeto de pesquisa supracitado, interessou-nos a presença deste artista e de sua obra, sabendo que Nazareth, como tantos outros, tornaram-se vozes, antes ocultas pelo projeto da modernidade, e que no século XXI “retornam”, emergindo como “novos atores sociais” a partir das lutas identitárias e culturais. A questão da descolonização do campo da arte vem assumindo inúmeras frentes no Brasil, mostrando-se cada vez mais um tema transdisciplinar e coletivo face à sua urgência num mundo que se mostra cada vez mais turvo, não apenas pela recrudescência da pandemia da COVID-19, como também pelo contexto político autoritário e neocolonial em que nos encontrávamos, em 2020, no Brasil. Ainda que no momento em que esta entrevista é publicada e lida tenhamos recuperado no Brasil um contexto democrático, que desejamos não ser provisório, as sombras conservadoras e suas agendas racistas e subalternizantes ainda nos assombram.
Nascido em 1977 em Governador Valadares, Paulo Nazareth é reconhecido como um importante artista brasileiro contemporâneo, sobretudo a partir da performance Notícias da América, realizada entre 2011 e 2012, através da qual o artista mineiro atravessou a América Latina a pé até os Estados Unidos. Lavou os pés no rio Hudson ao chegar e participou na feira “Art Basel Miami” com a instalação homônima que o tornou conhecido - uma Kombi verde carregada de bananas e o artista ao lado. Também considerado um artista andarilho, foram essas “andanças”, como o próprio artista gosta de classificar, que se revelam no seu trabalho em inúmeros formatos e linguagens, entre fotografia, vídeo, instalações, objetos, publicações.
Michelle Sales (MS): Paulo, obrigada pela possibilidade dessa conversa. Gostaria que você começasse apresentando-se e, também, contando para nós os teus registros mais antigos da infância e da adolescência que você considera importantes na tua formação enquanto artista.
Paulo Nazareth (PN): Então, sou Paulo Nazareth há um tempo. Eu nasci no Morro do Carapina, é um morro em frente ao Pico Ibituruna, no vale do rio Doce. Na verdade, eu nasci no pé do morro porque minha mãe desceu o morro até ao Hospital de Santa Terezinha. Isso nos anos 1970. O morro do Carapina é um morro bem antigo lá. Eu gosto sempre de chamar lá como “vale do rio Doce” ou “Atu”, como é dito em borum. “Atu” é o nome do rio. Essa cidade se desenvolveu em torno de um posto militar, era o Porto das Figueiras e, no entorno desse posto de avanço militar, um “Porto das Canoas”, como diziam também, foi crescendo o povoado e depois as cidades. Então, era Figueiras também, Porto das Figueiras, e minha família é daí desde antes da colonização, desde antes do posto militar. Nos anos 30, mais precisamente ‘38, Benedito Valadares foi o governador interventor da era Vargas e, quando estava no posto de governador, levou o povoado à categoria de “cidade”. No final deste mesmo ano, a cidade passa a carregar o nome de Governador Valadares e o povo, os aí nascidos, carregam no gentílico o nome de Valadares. E, assim, o meu trabalho trata de questões também do nome, das nomeações. Eu reivindico cada vez mais o nome anterior, o nome de origem: Figueiras, Porto das Figueiras, Santo Antônio das Figueiras, Porto das Canoas e Atu, na língua borum. A mãe de minha mãe vem do povo borum e tem essa mistura com algumas comunidades que, na época, não se diziam quilombolas. Tanto o povo borum quanto as comunidades quilombolas, iam crescendo, também desmembrando-se em grupos menores justamente por conta de uma questão de sobrevivência nessa região. A mãe da minha mãe é de 1913, o pai dela é de 1911 e os pais dos pais e mães das mães são do final dos anos 1800, mais ou menos 1890, 1880. Essa região de onde a família era foi transformada em uma fazenda e algumas pessoas se foram, outras ficaram e se tornaram o que eles chamavam de “bugres”. Então, aqueles que eram indígenas borum permanecem no território e são transformados em bugres, são nomeados como “bugres”. A mãe de minha mãe tinha muita resistência e quando minha mãe nasce, a mãe dela sai da fazenda e vai pra cidade. Contam que no dia em que eles agarraram-na e enviaram-na para uma colônia, para o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, ela estava caminhando em direção ao rio para se afogar e matar a criança. Esse neném [no colo da avó] era minha mãe. Quanto mais eles tentavam retirar a criança, mais ela brigava e, quanto mais ela brigava, mais eles afirmavam que estava louca. De fato, ela [a avó] teve um acesso de fúria pela situação e o roubo da criança dela. Nessa situação, o patrão, que era delegado na época e também juiz de cartório, assina um documento para enviá-la para Barbacena, onde ela [a avó] é colocada no trem de “doido” e vai embora. Esta é a parte da história que eu herdo, é parte de minha história e a minha mãe tem esse choro até os dias de hoje, ela chora a mãe que se foi. Meu trabalho é ser Nazareth também, carregar Nazareth, eu carrego Nazareth e Nazareth me carrega. Sinto que é um pouco como dizem quando um Papa é eleito, ele escolhe um nome pelo qual vai ser chamado. Pode ser de um Papa anterior ou pode ser um nome novo. Assim como a arte faz isso, de diferentes modos, os artistas podem e fazem isso de eleger um nome ou carregam o próprio nome de registro ou trazem um novo nome.
MS: É um nome com uma carga religiosa muito forte. Eu não queria partir para essa pergunta agora, mas você tocou numa questão espiritual que me parece importante no teu trabalho por esse “recurso”, digamos assim, a tua história autobiográfica. Esse registro familiar que, pelo que eu entendi, fala de um legado familiar, de uma história familiar, de pessoas que caminharam como projetos de travessia, não só de ir de um lugar para o outro, mas conseguir imaginar outros mundos, outras existências, construir as suas vidas. Essa é uma pergunta que eu deixo para você responder. A questão da religiosidade, do místico no teu trabalho em relação a essas caminhadas. Eu não queria deixar de falar da Nazareth porque é central e parece central essa questão do místico, do ancestral. Entretanto, antes de você falar sobre isso, eu gostaria que você comentasse sobre o Mestre Orlando neste teu percurso de construção do Paulo Nazareth. Quem foi o Mestre Orlando para si? E, essa relação com um mestre carranqueiro, entalhador, o trabalho em madeira, a relação com a cultura popular no interior de Minas que é fortíssima, a memória do Barroco, que atravessa essas culturas populares, essas estéticas populares do interior de Minas.
PN: O Orlando é esse cruzar de caminhos. O Mestre Orlando, eu o encontro em 1997, ano em que eu fiz vestibular. Eu havia feito a prova para entrar na Escola de Belas Artes, entre muitas coisas. Foi um ano um pouco de definir caminhos. Nesse ano de 1997, tentei entrar para a Polícia, todas as categorias de polícia que tinha, e, paralelamente, a arte. Fiz prova para o Teatro Universitário, fui reprovado na habilitação, na Escola de Belas Artes também fui reprovado na habilitação. Segundo o teste de habilitação, eu não tinha habilidade nem para a Escola de Artes Cênicas, nem para a Escola de Belas Artes e nem para a Escola Militar. Apesar de passar nos testes físicos, as escolas militares também não me aprovaram. Eu não tinha habilidade psíquica. Psicologicamente, eu não servia para o serviço militar, nem para a Escola de Oficial, nem nada. Foi nesse ano que eu encontrei Mestre Orlando. O Mestre chega a Belo Horizonte também na década de 70 e, no ano em que eu nasci, recebe um prêmio no Museu de Arte da Pampulha. Orlando atuou em Belo Horizonte durante muito tempo, na década de 70, na década de 80 e na década de 90. Trabalhava em vários lugares com jovens, crianças e ensinava a arte de talhar pedra e madeira, mais precisamente a pedra talco, a pedra sabão que é algo comum aqui na região. Até o próprio Aleijadinho talhava na pedra sabão, os profetas de Aleijadinho e muito da sua produção passa pela pedra sabão, além da madeira. Mestre Orlando tinha um lugar onde era conhecido e, ao mesmo tempo, era marginalizado - muitos o olhavam como “não é artista, é artesão”. Havia até um atrito com uma das escolas daqui, não a própria escola, mas alguns professores. Falavam: “não, esse é um artesão”. Então, Mestre Orlando falava comigo e com outros desse lugar do artesão, do artesanato e dessa natureza que nasce conosco, a arte nata, desse lugar do “nascer com”. Ele aponta esse lugar, daquilo que eu fazia na minha meninice como já sendo o lugar da arte; então, o artista está aí. O que ele apontava era isso: “não começa aqui, mas você como artista começa lá. Lá atrás, quando sua mãe varria a rua, descia o morro e ia para o centro, ia limpar as ruas do centro, ia limpar as ruas da cidade e encontrava esses brinquedos (esses 'hominhos', como a gente dizia, esses bonecos. É que agora se fala ‘boneco’, né?). Então, quando sua mãe encontrava isso e levava para você e você talhava os gravetos ou moldava essas partes faltantes no chiclete, você reconstruía isso. Aí, já está o artista, ali você já traz isso consigo, isso nasce com você”. Toda essa produção anterior, Mestre Orlando me ajuda a reconhecer como uma produção em arte, como o lugar da minha formação. Esse próprio caminhar, esse encontrar, e isso que eu vou aprender com a minha mãe, de encontrar os objetos na rua e de fazer esse encontro, é a escola de formação e a produção em arte. É um lugar do aprender fazendo, e, aí nesse lugar, o exercício já se torna objeto de arte. Nada é apenas um exercício, mas tudo é. Toda a produção é um exercício, e todo exercício também é a produção. Então, toda essa produção é um exercício, sempre é um exercício para o que está por vir. Nada está desprovido do aprendizado e nenhum aprendizado é apenas aprendizado.
MS: Ainda sobre o Mestre Orlando, Paulo, pelo o que eu li em algumas entrevistas suas, e até textos também que eu pesquisei, tem um apontamento que eu gostaria que você comentasse porque o Mestre Orlando me parece um mestre importante pra você, um professor importante pra você, do ponto de vista político também, pois ele foi alguém que esteve envolvido com o processo de africanização do Carnaval da Bahia, um dos fundadores do Ilê Aye. Enfim, havia uma questão política importante no trabalho dele que envolvia essa afirmação da negritude, trazendo essa negritude para a cultura popular. Eu gostaria de entender como é que foi esse encontro no sentido político.
PN: Sim. O Mestre Orlando tinha uma coisa que era boa, que é uma coisa que eu vejo na Capoeira Angola, a mandinga. Ele carregava um pouco disso, que é o mandingueiro. É um jogo que você faz que vai, mas não vai, tem uma ginga, tem uma certa careta, uma brincadeira. Essa careta faz parte dessa luta, é aquilo pra distrair e dar rasteira. Isso não só na Capoeira Angola, mas na capoeira de rua, na capoeira regional mesmo com o Mestre Pimba; muito da ancestralidade e da preservação dela. O Mestre Orlando tinha muito disso e da coisa dessa careta, da brincadeira, essa brincadeira é uma coisa que aproxima e você não percebe: “ah, é só uma brincadeira”. E, aí, nesse brincar, é onde se localiza a rasteira. O movimento principal, aquele que vai ser o golpe principal, que vai levar ao escape, à liberdade. O Mestre Orlando tinha muito disso, pois, além de esculpir, de talhar madeira, ele brincava muito, era uma coisa de muita brincadeira. E, brincava com a música e a música falava desse lugar, então, era uma musicalidade da improvisação, uma coisa que era bonita. Ele trazia isso e apresentava para mim também porque eu já quis ser muita coisa. Meu ritmo sempre vai atrás ou vai na frente, ele sempre é quebrado e Mestre Orlando olhava isso também, e o cantar é sempre cantar, não importa o ritmo. Ele falava: “tem que usar isso do falar cantando, você fala uma verdade cantando”. Ele ensinava esse lugar da brincadeira, mas que é a verdade, essa coisa da careta enquanto muito próximo da capoeira e da capoeira antiga, a capoeira das ruas de Salvador, que vem até anterior a isso, e que era o jogo na rua que se fazia brincando. Enquanto joga a capoeira, a capoeira não é só o corpo, mas é uma coisa que invade a mente e quando a gente fala do corpo, também não é só da cabeça para baixo. Nesse lugar, todo o corpo joga, da ponta da unha do pé ao fio do cabelo, a face, a cara e, nesse momento, você tem esse lugar da carranca, que é a própria face da pessoa, o rosto que se torna essa carranca, a máscara. Então, a gente aprende a fazer a própria carranca. O Mestre Orlando ensinava essa coisa, nisso se fala de corpo, mas o corpo vai além disso. Essa emanação dessa energia do corpo que a gente pode chamar de “calor”, ou qualquer coisa, também é corpo e ela pode se estender pelo mundo. E, aí esse jogo, essa carranca, pode estar aqui dentro da própria cabeça e a gente vai imprimindo em outros cantos, esse jogo da capoeira. Então, esse lugar da afirmação é um pouco da história dele também, quando ele descobre o que pode fazer com as mãos e passa isso para outros mundos/muitos em Salvador, depois aqui em Minas, em Belo Horizonte, em muitas ocupações. Mestre Orlando, apesar de não ter passado por uma escola, trazia muito conhecimento e buscava também. Falava até dessa coisa de muitos artistas beberem nessa fonte, de artistas da Europa que bebiam na fonte africana e, tratando essa arte africana, não importa onde essa arte africana estivesse, era vista só como um lugar do artesanato, como arte menor. E só era valorizada, quando apropriada por um artista europeu. O artista europeu a gente pode pensar não como um artista nascido na Europa, mas como um artista herdeiro da cultura europeia. Mestre Orlando falava que é importante sempre lutar contra isso, porque, às vezes, o lugar, a fonte de inspiração, é tratado como um lugar menor e a cópia, aquilo que é apropriado, tem um grau maior de reconhecimento.
MS: Paulo, eu estudo o seu trabalho na minha monografia e uma coisa que me interessa saber também, não só para a monografia, mas também para o nosso grupo de pesquisa, é um dos tensionamentos do seu trabalho que está em subverter essa questão da mestiçagem, e, pensando o mestiço como uma personagem da ficção de Brasil que foi colocado nas teorias raciais do século XIX como uma figura degenerada e depois romantizada como representante desse símbolo nacional. Ambos os lugares partem de um conceito de “raça” como uma construção da biologia, a partir da biologia. Já no seu trabalho, essa figura, o mestiço, é usada para pontuar não somente os apagamentos, mas extrapola uma noção de “identidade racial” essencializada e fixa. Você opera uma construção de vínculos por meio das semelhanças, como no projeto Cara de Índio (Figura 1), por exemplo. Quando, ao falar do México, você questiona as fronteiras, isso foi uma coisa que eu vi lá no seu livro, eu penso numa relação muito forte do seu trabalho com a escrita da chicana Gloria Anzaldúa, essa relação de ambivalência em habitar esses entrelugares, e é aqui que eu queria entender: de que modo essa consciência mestiça alimenta as suas travessias? E, considerando o território também como um fator fundamental na elaboração dos seus trabalhos, até que ponto você acredita ser possível negociar esses encontros?
PN: Bem, esse lugar do mestiço, acho que sempre foi, desde lá de pequeno, pouco falado. É um lugar do esquecimento e da busca por um outro lugar. A questão do lugar, esse lugar de origem, fica marcado. Até a questão linguística tem uma variação da zona rural, do interior do estado para o centro, e esse que vem de fora é sempre tratado como o errado. Para eu entender um pouco esse lugar, é importante dizer, volto lá atrás no final dos anos 1980. Naquele período, tudo foi muito difícil e essa questão da racialidade era muito negada e a gente ficava sempre sonhando com uma impossibilidade. Uma coisa que eu gosto de lembrar é a televisão, pois o que chegava para nós vinha dela, e isso vai alimentar muito até o meu próprio trabalho agora, numa pergunta: qual é a cor da minha pele?, por exemplo, no qual eu trago nesse projeto/processo Cadernos de África. Durante muito tempo a gente não teve televisão, e aí num certo período dos anos 1980, chega uma televisão velha, em preto e branco (p&b). Então, todas as imagens que nós víamos era p&b, imagens televisivas. Tinha um seriado, que era O Esquadrão Classe A, que passava sempre numa televisão p&b, e num canal que era muito ruim na época, e que ficava chuviscando, ainda mais para quem era afastado do “centro” (da cidade). A partir desse seriado, perguntavam quem eu queria ser e eu dizia que queria ser o cara mais negro ali, e os amigos respondiam: “não pode, não. Não pode ser esse”. Eu queria ser o Mr. T, mas esse personagem eu não podia ser. Meus amigos diziam que eu tinha que escolher outro, mas eu também não podia escolher um personagem que era considerado o bobo e, também, não podia escolher aquele que era considerado velho e, obviamente, também não podia escolher uma personagem que era mulher. Então, a escolha era restrita a um, na verdade essa é a escolha: “você tem que escolher esse!”. A escolha tinha que ser aquele [personagem] que era considerado bonito, o padrão. Era difícil fazer essa escolha, uma escolha que não fosse a predeterminada e isso era também muito parecido com o voto. O voto que é predeterminado, o voto que é de cabresto. Você está livre para fazer a sua escolha, mas tem que escolher esse: você não pode ser esse, não pode ser aquele. Mas, aí no final dos anos 1980, as coisas começam a mudar, começa a ter uma outra coisa, a gente vai poder escolher. Essa possibilidade de poder escolher o Presidente parece que reflete também na possibilidade de ter outras escolhas. E, aí no início dos anos 1990, muitas possibilidades, muitas coisas vão acontecendo nesses anos. Tinha uma revista muito popular que aparece nos anos 1980, embora ainda estivesse dentro de um padrão, que era a Revista Raça, ali aparece um outro padrão porque os modelos da Revista Raça também representavam um modelo de negro que não era “qualquer negro”: não era o negro fraco, era um modelo que era escolhido, não era aquele que era considerado feio. Isso acho que foi se transformando ao longo dos anos 1990 com a possibilidade de frequentar outros lugares, conhecer outros artistas que não estavam na revista, que não estavam na televisão, artistas de carne e osso: o próprio Mestre Orlando e esse encontro com a questão das carrancas. Essa questão não é uma virada, é uma coisa que vai sendo construída e, ainda não está completamente construída, é sempre um questionamento, a dúvida. Tivemos uma vivência nos anos 1980, onde a piada com os corpos negros, indígenas e outros corpos fora do padrão era algo superforte. Piadas racistas, em relação a negros e indígenas, piadas sexistas e homofóbicas, tudo isso era permitido - nos anos 1980 era comum, ria-se disso. O riso era de deboche e de ridicularização, ria-se do outro e não com o outro e quando esse outro se aproximava do próprio eu, a gente não queria ver aquilo. São momentos de muita luta, até atingir momentos em que esse tipo de piada, de deboche, não é permitido. Nos anos 1980, anos 1990, a gente vai tendo mais e mais possibilidades de diálogo, de troca. A própria questão do cabelo, que para mim era uma coisa muito forte e que estava ligada também, porque tinha o cabelo afro, black, que eu tinha que carregar e eu não podia cortar, só podia ir ao salão uma vez por ano, porque era uma questão de escolha econômica: “ou corta o cabelo ou come”, “ou corta o cabelo ou compra não sei o quê”. A opção era sempre pela outra coisa, e aí levar esse cabelo também provocava. A própria figura do cabelo trazia essa imagem do “dorme sujo”, eu tinha esse apelido: “o dorme sujo”. Atualmente, estou fazendo um trabalho que é a coleção dos meus apelidos, o “dorme sujo” e muitos outros. O apelido mais sútil que eu tinha era “bombom”, me chamavam de “bombom”, mas bombom não era uma coisa para ser carinhoso. O apelido, principalmente na escola e outros ciclos, é sempre uma questão ligada ao bullying. O apelido é sempre uma coisa para menosprezar em alguns lugares. Tive uma colega na época que era muito malvista, era uma das meninas mais inteligentes do grupo, mais questionadora e que argumentava. Era uma menina negra, de pele escura, que era sempre considerada como “a louca”, “a doida”. Essa amiga foi muito importante, ela me traz esse lugar da questão racial, da questão negra, e ela me traz o Raízes, ela me traz esse livro Raízes, me empresta para ler, e uns dos personagens, o Kunta Kinte, traz muitas questões raciais pra mim. É importante esse movimento nos anos 1990, anos 2000, para o entendimento de que esse lugar do mestiço, o filho de mistura que, mesmo carregando essa pele clara, sempre será um negro. Há variações, mas ele está nesse lugar do negro e, como negro, é um corpo marginalizado que é usado para muitas coisas. Esses anos foram importantes para eu ir construindo e essa construção vem até hoje desse lugar.
MS: Primeiro, eu queria agradecer ao Paulo pela gentileza de estar compartilhando a sua história, eu estou muito emocionada. Principalmente quando você faz um resgate histórico do seu percurso me emociona porque, apesar de não ser um corpo negro, eu sou um corpo periférico, sou um corpo de mata indígena, de serra indígena onde a tecnologia não chega, a palavra nem chegou lá e também recebi muitas negações, meu corpo foi muito negado, mesmo não sendo um corpo negro, foi um corpo negado enquanto um corpo gay, enquanto um corpo pobre, enquanto um corpo de família sem grana, sem nenhum estudo, sem intelectualidade, e eu venho de uma pesquisa sobre ritual e arte. Estava comentando o quanto me toca quando você traz a ancestralidade para o seu discurso porque me vem uma impressão de uma ancestralidade muito próxima enquanto arte, enquanto resgate, enquanto restauro e, que eu acho que é um lugar importante inclusive para outros corpos alheios àquela prática que, originalmente, é de corpos indígenas e de corpos negros. A impressão que eu tenho é que você fala de uma ancestralidade muito ligada à tua história e de que ela é muito próxima e isso é muito bonito, uma ancestralidade reconhecida na própria história, no próprio fazer de artista, e de muitas coisas que você é. Um corpo que está vivo, de uma ancestralidade que está viva e pulsante. Quando você fala da sua avó, da sua mãe, você não está falando de um passado. Falar do teu corpo é falar dessas outras mulheres que te compuseram e isso para mim é muito bonito, significativo. Me vem muito uma flecha no meu corpo, muito positiva de impulso, que me faz ter um olhar para minha pesquisa, para minha arte, para minha própria história e eu agradeço muito por essa partilha.
PN: É bom ouvir. Fico agradecido pelo retorno. Bom saber que o trabalho atinge esse lugar. Ia até falar um pouco da Nazareth, mãe da minha mãe. É um lugar muito de dúvida. A gente não sabe muita coisa, pois ela foi para Barbacena e essa coisa do nome volta. Ela se torna um número, ela perde o nome. É retirada dela essa identificação do nome. Nazareth Cassiano de Jesus passa a existir como um número e esse número existe por cerca de 20 anos e depois desaparece, não tem um atestado de óbito, não existe nada. Existe apenas a entrada de Nazareth nesse hospital e a gente não sabe mais nada. Esse hospital, mais do que hospital, foi um campo de concentração, durante muito tempo vendeu corpos, esse lugar se tornou uma fábrica de corpos e vendeu os corpos para universidades de vários lugares. A universidade onde eu estudei, aqui de Minas, dizem que comprou 500 corpos. Nazareth poderia estar em qualquer lugar do território enquanto corpo objetificado, corpo morto. Então é isso, essa ancestralidade está aí presente mesmo, a própria mãe, a minha mãe que está aqui, é sempre uma conversa ou uma não conversa. A gente tem aproximações e questões. Na minha história de chegar até aqui eu sempre tive um embalo feito por mulheres. Minha mãe e a minha irmã mais velha, que era quem cuidava de mim enquanto a minha mãe saía para trabalhar, são duas Anas e eu acabava chamando as duas de “mãe”, e as duas tinham o mesmo nome. Então, isso também acaba construindo essa história e o trabalho é pensar o quanto essa história conversa com outras histórias, o quanto essa é uma história comum. Quantos corpos foram desaparecidos em Barbacena e não só lá. Portanto, existe essa aproximação, o quanto que eu me aproximo de minha mãe, que se aproxima da mãe dela e quanto esses corpos vão conversando e o quanto essa ancestralidade comunica com outras ancestralidades. Quem é borum, quem se identifica como borum, como herdeiro dessa ancestralidade borum, também tem essa ancestralidade que se denominava “botocudo”, os aimorés, e, também, tem uma ancestralidade que vem de lá atrás que é a do povo de Lagoa Santa, o povo de Luzia, que é uma coisa que, muitas vezes, é negada. O povo borum sempre diz e fala das pinturas rupestres e fala dessas pinturas de várias partes, pinturas que são dos parentes. Às vezes, até mesmo os indigenistas negam e falam: “eles dizem que sim, mas nada se prova e se nada se prova, não é?”. Mas essas pinturas rupestres, que, e não sou eu que falo, não é o outro que fala, é uma herança desse lugar, pertencem ao povo. É uma transmissão que vem de uma oralidade que é pré-cabralina, pré-colombiana, é uma questão de algo que se transmite há muito tempo.