INTRODUÇÃO
A insuficiência cardíaca (IC) é uma doença crónica e constitui um problema crescente de saúde pública. De acordo com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia, a prevalência da IC em Portugal corresponde a cerca de 400 000 indivíduos. A sua incidência aumenta abruptamente com a idade, constituindo a primeira causa de hospitalização após os 65 anos, nos países industrializados. Apesar dos avanços da medicina, os clientes com IC mantêm elevadas taxas de mortalidade e reinternamento associando-se a custos financeiros elevados para o Serviço Nacional de Saúde1. Estes dados evidenciam uma falta de organização dos recursos para a assistência às pessoas com IC em Portugal nos vários níveis da assistência e de acompanhamento, tornando-se urgente priorizar esta doença nas políticas de saúde.
O enfermeiro desempenha um papel ativo na prevenção da doença cardiovascular, pois a evidência demonstra que programas multidisciplinares coordenados por enfermeiros são mais eficazes do que os cuidados habituais na redução do risco car diovascular 2. Os enfermeiros, para além de constituírem o maior grupo profissional nos cuidados de saúde, possuem competências de ensino e comunicação que potenciam os comportamentos de adesão dos clientes 3)(4.
De igual forma, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia reconhece, nas suas recomendações, o papel do enfermeiro especialista em enfermagem de reabilitação (ER) enquanto elemen to fundamental das equipas de Reabilitação cardíaca (RC), com base no core de competências específicas da mesma especialidade 5. Os programas de RC pretendem dar resposta à melhoria do potencial de saúde da pessoa com problemas cardía cos, constituídos por equipas multidisciplinares com funções complementares de suporte que incluem a avaliação do risco cardiovascular; a educação para a saúde; a mobilização precoce e o treino com exercício físico 6)(7. Embora na literatura esteja dividida em três fases - intra-hospitalar, ambulatório e intervenção de longo prazo (designadas, respetivamente, fases 1, 2 e 3), a RC deve constituir um processo contí nuo ao longo do ciclo de vida 4)(8.
Tendo em conta as evidências descritas na literatura e as recomendações nacionais e internacionais torna-se crucial a criação de estratégias que permitam o autocuidado e a autogestão da IC, incluindo a RC 4)(7)(9)(10)(11)(12)(13.
Programa de Reabilitação e Ensino à Pessoa com Insuficiência Cardíaca (Programa REPIC)
O programa de Reabilitação e Ensino à Pessoa com IC (REPIC) é desenvolvido mediante a inter venção de ER, com início no internamento e o acompanhamento após a alta. Previamente à implementação do progra ma REPIC, é efetuada a avaliação inicial, que deve incluir as comorbilidades, os fatores de risco cardiovasculares, o exame físico (força muscular, peso, perímetro abdominal e edemas), os hábitos de atividade e exercício físico e a avaliação dos conhecimentos sobre a doença. Os objetivos do programa REPIC incluem:
- Prevenir sequelas da imobilidade e/ou melhorar a capacidade funcional;
- Garantir educação para a saúde;
- Promover a adesão à realização de exercício físico e autogestão da doença;
- Encorajar a responsabili zação partilhada e a continuidade da reabili tação a longo prazo.
O programa REPIC inclui o processo educativo sobre comportamentos de autogestão da doença e o treino com exercício físico, logo que a estabilidade clínica, elétrica e hemodinâmica estejam asseguradas (Pestana e Vermelho, 2021). As sessões de treino são iniciadas com o período de aquecimento (com duração de cinco minutos), seguindo-se o período de exercício propriamente dito, que pode oscilar entre 5 a 20 minutos (de acordo com a tolerância individual), terminando com alongamentos e redução gradual da inten sidade do exercício 7. O tipo de exercícios é de baixa intensidade, com dispêndio energético até 4 equivalentes metabólicos (METS), incluindo exercício da ponte, marcha, pedaleira e escadas 2. Durante a realização do treino com exercício está recomendada a ex piração na fase concêntrica dos exercícios e inspiração na fase excêntrica dos exercícios, como estratégia de conservação de energia e diminuição do esforço respiratório e cardía co 14. De forma a determinar a tolerân cia ao esforço e prevenir complicações, é garantida a avaliação da perceção subjetiva de esforço (Borg); frequência cardíaca; dor; pressão arterial; saturação periférica de oxigénio e vigilância do ritmo cardíaco 4)(7.
O ensino relativo à autogestão da doença e do regime terapêutico constituem componentes fun damentais do programa REPIC, sendo efetuada a avaliação prévia dos conhecimentos sobre a doença. A informação forne cida tem em conta as comorbilidades com o potencial de influenciar a retenção de informações (como demência, alterações cognitivas e/ou depressão) e inclui sessões educativas individualizadas coadjuvadas com panfletos informativos 9. A intervenção edu cativa de ER à pessoa com IC incide nas infor mações gerais sobre a doença; no tratamento farmacológico; nos aspetos psicossociais; nos sinais e sintomas de alarme; no controlo de fatores de risco cardiovasculares; no regime dietético (incluindo a ingestão de sal e a ingestão hídrica); na vacinação; na atividade e exercício fí sico e na atividade sexual 9)(15.
METODOLOGIA
Estudo original assente no paradigma quantitativo e, tendo em conta o seguimento, do tipo longitudinal prospetivo. Tendo por base a manipulação trata-se de um estudo quase-experimental com desenho antes-após de grupo único. A opção por um estudo quase-experimental relaciona-se com a existência de evidências suficientes dos benefícios das intervenções em estudo (nomeadamente os programas de RC e o acompanhamento de enfermagem na pessoa com IC), pelo que estabelecer um grupo de controle constituiria um dilema ético.
O guia para estudos quase experimentais (Transparent Reporting of Evaluations with Nonrandomized Designs: TREND) foi utilizado como referência no planeamento e execução deste trabalho de investigação 16.
Estabeleceu-se uma amostragem do tipo não probabilística de conveniência constituída por 110 participantes incluídos no programa REPIC. Foram estabelecidos como critérios de inclusão: doentes admitidos no serviço com o diagnóstico de IC e aceitação em participar no estudo. Como critérios de exclusão foram estabelecidos: clientes submetidos a cirurgia cardíaca, transplante cardíaco ou implante valvular percutâneo, pois pretende-se nesta fase incluir os clientes com IC como diagnóstico clínico.
O programa REPIC foi iniciado durante o internamento e incluiu o ensino, o treino com exercício físico e o acompanhamento após a alta. Este acompanhamento foi realizado mediante contacto telefónico ao final de 1 mês, 6 meses e 1 ano após a alta, sendo a recolha de dados efetuada por formulários concebidos para esse efeito (ver figura 1).
A variável independente é o programa REPIC (intervenção de ER que inclui a educação para a saúde, treino com exercício durante o internamento e o acompanhamento após a alta). As variáveis de caraterização sociodemográfica incluem a idade, o sexo e os fatores de risco cardiovasculares. As variáveis consideradas como dependentes foram definidas operacionalmente da seguinte forma:
O nível de conhecimentos sobre a doença: definido operacionalmente pela média do conjunto de respostas obtidas pela aplicação da Escala European Heart Failure Self-care Behaviour Scale 17) ou Escala Europeia de comportamentos de autocuidado de IC, validada para Portugal 18. Permite avaliar os dois comportamentos-chave para o autocuidado na insuficiência cardíaca: reconhecimento dos sinais e sintomas de descompensação e tomada de decisão na ocorrência de tais sintomas. Trata-se de uma escala tipo Likert de 1 a 5, em que o valor mais alto atingido pela média das respostas será o que apresenta um melhor comportamento de autogestão acerca dos parâmetros avaliados pelo instrumento. Esta escala é composta por 9 questões, com uma pontuação mínima de 9 e máxima de 45), com ponto de corte estabelecido em 32;
Qualidade de vida definida operacionalmente pela média do conjunto de respostas obtidas pela aplicação da Escala EuroQOL 5D/3L. Esta escala é composta por 2 secções distintas de avaliação. A primeira parte do instrumento inclui a avaliação do estado de saúde em 5 dimensões mediante uma escala tipo Likert de 1 a 3. Embora na instrução da escala esteja indicada a leitura mediante a utilização do algoritmo numérico da totalidade das respostas, por opção dos autores, será feita a análise de cada uma das dimensões da escala. Assim, a leitura foi feita mediante a análise do valor da média das respostas obtidas, sendo que um valor mais alto está associado a um melhor comportamento acerca dos parâmetros avaliados. A segunda parte da Euro QOL inclui a escala visual analógica da saúde, graduada de 0 a 100 (em que um valor mais alto corresponde a uma melhor perceção individual do estado de saúde, no momento da avaliação);
Realização de exercício físico regular: definida operacionalmente pelo tempo médio diário (em minutos) na realização de exercício físico aeróbico relatado pelos participantes, incluindo os seguintes tipos de atividade: marcha, corrida, pedaleira, ciclismo e natação (modalidades referidas pelos participantes).
As hipóteses estabelecidas com esta pesquisa incluem:
a) Existe um impacto positivo no nível de conhecimentos da pessoa com IC com o programa REPIC;
b) O programa REPIC melhora a perceção de qualidade de vida na pessoa com IC;
c) Há aumento no tempo médio despendido na prática de exercício físico pela pessoa com IC antes do programa REPIC e ao final de 1 ano.
Para a realização desta pesquisa foram assegurados todos os procedimentos éticos, nomeadamente a obtenção do consentimento informado e esclarecido dos participantes, e a aprovação pela comissão de ética institucional (Refª. 526/2012).
Para a análise dos dados utilizou-se a estatística inferencial e também a descritiva para caraterizar as variáveis em estudo. Foi utilizado o teste t de Student para amostras emparelhadas para comparar as médias e avaliar as diferenças, antes e 1 ano após o programa REPIC e os dados obtidos foram armazenados e analisados mediante o uso do software SPSS (versão 27) e o nível de significância adotado foi de 5% (valor p< 0,05).
RESULTADOS
A caraterização sociodemográfica da amostra revela que a maioria dos participantes são do sexo masculino (66%) e 34% são do sexo feminino. No que concerne à idade, a amplitude varia entre uma idade mínima de 30 e máxima de 89, com uma média de 64,3 anos e um desvio padrão de 14,4 (figura 2).
Relativamente aos fatores de risco cardiovasculares, verifica-se um predomínio da hipertensão arterial e sedentarismo, correspondendo a, aproximadamente, 74% da amostra, seguindo-se a diabetes e a dislipidemia (presentes em cerca de 50% dos participantes) e finalmente o tabagismo, presente em 21% dos participantes (figura 3).
A avaliação do impacto do programa REPIC quanto ao nível de conhecimentos sobre a IC, foi definida operacionalmente pelas respostas que resultam da aplicação da Escala European Heart Failure Self-care Behaviour Scale 17. Para o efeito foram comparadas as médias das respostas obtidas entre a avaliação efetuada antes do programa REPIC e a avaliação efetuada 1 ano após, com recurso ao teste t de Student para amostras emparelhadas (Tabela 1).
Parâmetros avaliados | n | Avaliação inicial | Avaliação ao final de 1 ano | P | ||
---|---|---|---|---|---|---|
M | Dp | M | Dp | |||
Peso-me todos os dias ou de 2/ 2 dias | 110 | 1,87 | 1,34 | 4,07 | 1,1 | 0,01 |
Se a falta de ar aumenta, contacto o médico/enfermeiro | 110 | 2,06 | 1,4 | 3,44 | 1,13 | 0,01 |
Se os pés/pernas incham mais, contacto o médico/ enfermeiro | 110 | 1,59 | 1,16 | 3,9 | 0,97 | 0,01 |
Se o meu peso aumenta 2kg numa semana, contacto médico/enfermeiro | 110 | 1,26 | 0,76 | 3,71 | 1,14 | 0,01 |
Limito a quantidade de líquidos que bebo por dia | 110 | 1,45 | 0,76 | 3,46 | 1,07 | 0,01 |
Se noto que o meu cansaço aumenta, contacto o médico/enfermeiro | 110 | 1,8 | 1,15 | 3,73 | 1,15 | 0,01 |
A minha dieta é com pouco sal | 110 | 3,83 | 1,37 | 4,8 | 0,65 | 0,01 |
Cumpro com a medicação prescrita | 110 | 4,67 | 0,92 | 5 | 0 | 0,01 |
Pratico exercício físico | 110 | 2,32 | 1,41 | 3,91 | 1,29 | 0,01 |
M- Média; S - desvio-padrão; P - p value pelo teste t de amostras emparelhadas
Relativamente à avaliação do impacto do programa na perceção da qualidade de vida, esta foi definida operacionalmente pelas respostas obtidas pela aplicação da Escala EuroQOL. Da mesma forma, foram comparadas as médias das respostas obtidas entre a avaliação prévia à implementação do programa REPIC e a avaliação realizada 1 ano após (Tabela 2). Quanto à perceção do estado de saúde, esta foi definida operacionalmente pela escala visual analógica incluída na Escala EuroQOL, sendo 0 o “pior estado de saúde” e 100 o “melhor estado de saúde.
Parâmetros avaliados | n | Avaliação inicial | Avaliação ao final de 1 ano | P | ||
---|---|---|---|---|---|---|
M | S | M | S | |||
Mobilidade | 110 | 2,26 | 0,54 | 2,65 | 0,48 | 0,01 |
Cuidados pessoais | 110 | 2,39 | 0,65 | 2,69 | 0,52 | 0,01 |
Atividades habituais | 110 | 2,34 | 0,63 | 2,63 | 0,57 | 0,01 |
Dor/mal-estar | 110 | 2,53 | 0,63 | 2,61 | 0,49 | 0,21 |
Ansiedade/depressão | 110 | 2,05 | 0,66 | 2,26 | 0,69 | 0,01 |
Comparação do estado de saúde durante os últimos 12 meses | 110 | 1,6 | 0,83 | 2,51 | 0,65 | 0,01 |
M- Média; S - desvio-padrão; P - p value pelo teste t de amostras emparelhadas
Finalmente, a tabela 3 representa os resultados obtidos relativos à duração média na realização de exercício físico diário (em minutos). Verificou-se que existem diferenças estatisticamente significativas entre o momento prévio de implementação do programa REPIC (M=17,04; DP=22,67) e ao final de um ano (M=33,32; DP=20,99), sendo estes resultados igualmente confirmados pelo teste t para amostras emparelhadas t (109)=6,03; p=0,01.
DISCUSSÃO
A análise dos resultados permite concluir que ocorreu uma melhoria no nível de conhecimentos sobre a doença nos participantes do estudo em todas as dimensões da escala após o programa REPIC, com resultado estatisticamente significativo (p=0,01).
Os resultados deste estudo demonstraram que existe um impacto positivo no nível de conhecimentos sobre a doença, uma melhoria na perceção da qualidade de vida e que existem diferenças no tempo médio despendido na realização de exercício físico com o programa REPIC. Da mesma forma, verificou-se uma melhoria na perceção da qualidade de vida na pessoa com IC após o programa REPIC, com significado estatístico nas dimensões da mobilidade (p=0,01); cuidados pessoais (p=0,01); atividades habituais (p=0,01) e nível geral de saúde (p=0,01). Finalmente, a análise dos resultados permitiu concluir que existem diferenças na perceção do estado de saúde avaliado antes da implementação do programa REPIC (M=50,9; DP=17,36) e 1 após o mesmo programa de intervenção (M=69,5; DP=18,8), sendo estes dados confirmados igualmente pelo teste t de Student para amostras emparelhadas t(109)=7,67; p=0,01.
O estado da arte vai de encontro aos resultados desta pesquisa, uma vez que o enfermeiro, por meio da implementação de práticas de educação para a saúde no doente com IC potencia a compreensão da doença, incrementa os comportamentos de autogestão e reforça a vigilância dos sinais e sintomas de descompensação da IC. De facto, também as recomendações da sociedade europeia de cardiologia associam o ensino facultado por profissionais de enfermagem sobre a autogestão da IC a um menor risco de readmissões hospitalares e à diminuição da mortalidade 9. Em consonância com os resultados da nossa pesquisa, os resultados de um estudo revelaram que o ensino de enfermagem sobre autogestão melhorou significativamente os comportamentos de autogestão da doença nas pessoas com IC. Essa diferença foi estatisticamente significativa (β = 4,15, p < 0,05) e aumentou a cada sessão de ensino 19. O internamento hospitalar constitui um período de excelência para o início do processo de ensino sobre os comportamentos de autogestão, uma vez que a pessoa e o cuidador estão mais recetivos e disponíveis para assimilar os conteúdos e é facilitado o contacto diário com os enfermeiros especialistas em ER, responsáveis pelo processo. O programa REPIC inclui o processo de ensino sistemático e padronizado durante o internamento e o reforço educativo no momento da alta clínica, sendo coadjuvado por panfletos informativos. Tais estratégias parecem melhorar a compreensão acerca da doença, de seu tratamento e, consequentemente, a adesão ao regime terapêutico, com melhoria na qualidade de vida. Outro trabalho de investigação realizado conclui que um programa de intervenção e acompanhamento de enfermagem implementado em pessoas com IC melhorou os comportamentos de autogestão e a qualidade de vida, estando igualmente associado a um menor número de internamentos 21. No entanto, em contraste com os resultados do nosso estudo, uma meta-análise indicou que a educação de enfermagem sobre a autogestão da doença não está associada a melhorias na qualidade de vida ou no conhecimento sobre a IC 22. Tais resultados contraditórios podem dever-se ao facto da qualidade de vida não constituir uma medida de resultado fidedigna em intervenções realizadas a curto prazo. Por outro lado, o impacto da educação para a saúde de enfermagem sobre a autogestão da doença está intrinsecamente dependente da duração e frequência do processo educativo, sendo potenciados por acompanhamentos periódicos ao longo do tempo.
Relativamente ao acompanhamento de Enfermagem após a alta, os resultados de um estudo vão de encontro aos resultados da nossa pesquisa. Trata-se de um estudo randomizado que descobriu que existe uma maior adesão terapêutica medicamentosa e não medicamentosa no Grupo Intervenção que foi sujeito ao ensino e acompanhamento telefónico de Enfermagem em relação ao Grupo Controle (p<0,001). O menor índice de reinternamentos e mortalidade no Grupo Intervenção após 90 dias foi outro dos resultados obtidos 23. Tais conclusões reforçam a importância do acompanhamento telefónico como uma estratégia alternativa associada a múltiplos benefícios (maior adesão terapêutica, diminuição de reinternamentos e da mortalidade). Para além disso, permite assegurar o acompanhamento de pessoas com IC, considerando determinados fatores como a disponibilidade para deslocações às unidades hospitalares, o estado clinico/comorbilidades e a distância geográfica.
No que concerne o treino com exercício físico na pessoa com IC, existem evidências consistentes na literatura que vão de encontro aos resultados obtidos com o presente trabalho de investigação e que comprovam que os programas de RC e o treino com exercício físico melhoram a capacidade funcional e a qualidade de vida em clientes com IC. Ensaios clínicos e meta-análises realizados em pessoas com IC com fração de ejeção reduzida demonstram que a RC reduz a taxa de reinternamentos hospitalares por IC, embora persista a incerteza sobre os seus efeitos sobre a mortalidade 9. A prática de exercício físico regular na pessoa com IC está associada à melhoria da capacidade funcional e constitui uma recomendação Nível de evidência IA15. Uma meta análise refere como efeitos benéficos da RC baseada em exercício na IC, a melhoria na capacidade funcional e na qualidade de vida, bem como a redução de hospitalizações e a diminuição da mortalidade 24. Da mesma forma, a instituição de protocolos com exercício físico que incluam caminhada e treino de força muscular de membros superiores melhoram a realização das atividades de vida diárias, a marcha e a capacidade funcional em pessoas com IC 11. No caso do programa REPIC, o treino com exercício foi realizado durante o internamento, o que permitiu a avaliação da capacidade funcional individual, facilitou o início da prática de exercício físico em ambiente controlado e a gestão de sintomas e potenciais complicações antes da alta hospitalar. Assim, as conclusões da nossa pesquisa vão de encontro aos resultados do estudo INCARD, ao confirmar os benefícios da reabilitação intra-hospitalar, nomeadamente na melhoria na fração de ejeção do ventrículo esquerdo e aumento no volume máximo de oxigénio, o que corrobora a ideia que o treino com exercício físico tem um impacto positivo sobre essas pessoas e deve ser realizado independentemente da etiologia da IC 13. Da mesma forma, também os resultados do estudo randomizado ERIC-HF comprovam que existem diferenças estatisticamente significativas entre o grupo que foi submetido a uma intervenção de treino com exercício durante o internamento e o grupo de controle. O protocolo ERIC-HF, à semelhança do programa REPIC, demonstrou segurança e eficácia durante a sua realização, não tendo ocorrido quaisquer efeitos adversos. Para além disso, o estudo ERIC-HF revela um incremento da capacidade funcional (avaliada pelo teste de marcha de 6 minutos e na realização das atividades de vida diárias). As conclusões deste estudo revelaram diferenças estatisticamente significativas de 54,2 metros para o grupo de treino (p=0,026) no teste de marcha de 6 minutos e na realização das atividades de vida diárias (p=0,003), mas não no nível de dependência, avaliado pelo índice de Barthel (p=0,072) 25.
Embora os programas de RC tenham demonstrado muitos benefícios clínicos, as taxas de participação dos clientes com IC variam entre 14% a 43% em todo o mundo, estando igualmente associados a elevadas taxas de abandono 26. Da mesma forma, a adesão ao exercício físico na pessoa com IC constitui um desafio, apesar dos benefícios do mesmo na capacidade funcional da pessoa com IC e já citados anteriormente 11)(13)(15)(24)(25.Tendo por base os resultados do programa REPIC, verificou-se um aumento na duração média do tempo despendido na realização de exercício físico. Assim, podemos inferir que este incremento foi aprimorado pelos contactos telefónicos regulares, que permitiram motivar os participantes para a prática e reforçar a importância e benefícios do exercício físico. Posto isto, o enfermeiro especialista em ER ao deter um conjunto de competências específicas na área da readaptação, ensino e treino com exercício físico, funciona como um agente facilitador na adesão a comportamentos de autocuidado e autogestão, bem como um agente promotor da prática de exercício físico regular.
CONCLUSÃO
O presente estudo permitiu demonstrar o impacto positivo do programa REPIC no nível de conhecimentos sobre a doença, na melhoria na perceção da qualidade de vida e nas diferenças no tempo médio despendido na realização de exercício físico. Assim, este programa de intervenção de ER permitiu reforçar o processo educativo, potenciar os comportamentos de autogestão, melhorar a qualidade de vida e aumentar a duração média na realização de exercício físico regular.
Apesar dos resultados francamente positivos, as descobertas devem ser interpretadas com cautela devido a algumas limitações inerentes. O período temporal necessário para a realização do estudo foi influenciado pela necessidade de assegurar o acompanhamento cronológico previsto das pessoas com IC, e correspondeu a um total de seis anos, de forma a alcançar a amostra definida (n=100). Tal se deve a inúmeros fatores, incluindo os próprios critérios de exclusão do estudo; a taxa de ocupação dos serviços onde o estudo foi realizado, bem como o elevado número de a óbitos que ocorreram durante o período em que foi realizado (n=46). Da mesma forma, por escassez de recursos humanos de enfermagem, ocorreu a suspensão do programa de RC por um período de 6 meses, o que condicionou a recolha de dados e continuidade do programa de intervenção de ER. Finalmente, cada chamada telefónica de acompanhamento podia chegar a atingir uma média de 40 minutos de duração, pelo que a realização deste estudo implicou igualmente muita disponibilidade e motivação pessoal.
Como possíveis vieses importa referir que o contacto telefónico, enquanto modalidade de acompanhamento não presencial, limitou a avaliação e monitorização de determinados parâmetros, tais como o peso, tensão arterial ou a capacidade funcional. De igual modo, os dados fornecidos por terceiros, nomeadamente os cuidadores (n=17), pode ter condicionado, de alguma forma, os resultados obtidos. Além disso, a avaliação das variáveis em estudo teve por base o método auto-relatado que é propenso a erro de estimativa e a viés de memória.
Finalmente, destacamos a necessidade de garantir a continuidade de cuidados a nível dos cuidados de saúde primários, uma vez que não existe até à presente data, consulta de enfermagem de IC na unidade hospitalar onde foi realizado o estudo, por carência de recursos humanos de enfermagem. Em jeito de síntese, os resultados do programa REPIC, enquanto programa de intervenção de ER, fornecem valiosos subsídios para a replicação deste programa noutros contextos, serviços ou instituições a pessoas com IC.