Introdução
A História é “um elemento fundamental para olhar o tempo presente e o futuro”1 (p.3).
Na declaração de Ribeirão Preto sobre a Educação em História da Enfermagem2, consta que a compreensão da História da enfermagem alarga o suporte de conhecimentos e promove um entendimento dos primórdios sociais e intelectuais da profissão, ajudando “a compreender o contexto, significado da profissão de enfermagem e dos cuidados de saúde, e é um instrumento valioso para compreender e abordar as complexas lutas culturais, antropológicas, sociais e políticas que se passaram no passado” (p.3).
Por outro lado, considera-se que “a enfermagem ocupa hoje um lugar inquestionável e indispensável no sistema nacional de saúde, ao nível dos cuidados hospitalares e dos cuidados de saúde primários, na saúde individual, na saúde dos grupos e da comunidade” (1 (p.4).
Os cuidados de reabilitação e a própria Enfermagem de Reabilitação (ER) não se dissociam desta conjetura. Quer ao nível dos cuidados de saúde primários, quer ao nível dos cuidados de saúde diferenciados, têm assumido um papel cada vez mais preponderante e diferenciado na resposta assistencial da saúde em Portugal ao indivíduo, família e comunidade.
Neste sentido, o surgimento da formação especializada em ER foi um marco importante na História da Enfermagem, mas também na saúde pública em geral. Assim, surgiram no decénio de 60 do século XX medidas que foram aprovadas pelo Governo e prepararam o percurso para a programação dos cursos de especialização em ER.
O Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA) cuja construção foi iniciada em 1956 foi inaugurado em 1966 sob alçada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa3, e estabeleceu o primeiro local no país (Escola de Reabilitação de Alcoitão) a oferecer formação especializada em ER, aceitando exclusivamente como candidatos enfermeiros com o curso de enfermagem geral e apresentando “condições únicas para nele serem professados os cursos e realizados os estágios exigidos para a formação do pessoal técnico especializado em reabilitação” (3) (p.1064).
A formação em ER iniciou-se, assim, na Escola de Reabilitação de Alcoitão3-5, tendo em conta influências estrangeiras, e atendendo ao contexto que trouxe novas necessidades de saúde prementes ao país.
O primeiro plano de estudos em ER surgiu em 19653-5. Atendendo a diferentes fatores influenciadores, foi progressivamente reformulado até ao surgimento da denominada escola pós-básica de Lisboa em 1987, a qual foi criada após o Decreto-Lei (DL) nº265/834-10. Na sequência deste DL, são criadas ainda as escolas Pós-Básicas do Porto e de Coimbra, onde também passa a ser lecionado o curso de especialização em ER10.
O período cronológico entre 1965 e 1987 foi significativo na afirmação, edificação e consolidação progressiva da formação especializada em ER em Portugal, sendo este percurso de formação acompanhado também pelo desenvolvimento e complexidade cada vez maior de funções inerentes ao desempenho da profissão na prática diária nas diversas instituições.
Desta forma, iniciou-se a construção de um percurso progressivo em que, associado ao desenvolvimento da formação e de funções mais complexas, despertava também, e cada vez mais, um sentimento de identidade profissional e de pertença. Neste sentido, a ER foi sendo mais reconhecida no âmbito das políticas nacionais de saúde em favor da pessoa, família e comunidade6-10.
Assim, os objetivos deste estudo foram: identificar as variáveis de interesse no corpus documental próprio dos planos de estudos dos cursos de especialização em ER entre 1965 e 1987 em Portugal; descrever e analisar a formação especializada em ER de 1965 a 1987, tendo em conta o contexto político e social no país nesse período; analisar os planos de estudos dos cursos de especialização, constantes nos arquivos da Escola Superior Enfermagem de Lisboa5-9, da Escola Superior de Saúde de Alcoitão4, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra11 e da Escola Superior de Enfermagem do Porto12 .
Colocaram-se as seguintes questões de investigação: “como é caracterizada a formação em ER, entre 1965 e 1987 tendo em conta os planos de estudos dos cursos de especialização em ER nas diferentes instituições de formação em Portugal?” e “que fatores influenciaram a formação em ER em Portugal entre 1965 e 1987?”.
Metodologia
Torgal13 reflete sobre o sentido da História, mencionando que “a História como ciência” não se deve confundir com “uma mera narrativa de curiosidades (...) de divulgação fácil” (p.20). Pretende-se, desta forma, “refletir interrogativamente”13 para analisar e descrever a formação especializada em ER em Portugal de 1965 a 1987, tendo em conta os planos de estudos.
Este estudo foi realizado com recurso ao método histórico, com análise documental narrativa e descritiva de fontes primárias inerentes aos planos de estudos dos cursos de especialização em ER, seguindo os pressupostos de Rüsen14, tendo em conta que “a cientificidade da ciência moderna da história se situaria não mais no que ela narre, mas sim descreva, analise, explique” (p. 119).
Foram seguidos ainda os pressupostos de Nunes15, em que a edificação historiográfica é disseminada no presente com Método, partindo da correlação de assuntos e termos-chave para construir as singularidades da pesquisa.
Foram utilizados os seguintes “termos-chave”15: “educação em enfermagem”, “enfermagem de reabilitação”, “história da enfermagem”, “plano de estudos” e “reabilitação”.
A primeira fase do estudo consistiu na recolha documental dos diferentes planos de estudos dos cursos de especialização em ER em fontes arquivísticas constituídas nos arquivos da Escola Superior de Saúde de Alcoitão4, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa5-9, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra11, e da Escola de Enfermagem do Porto12, decorrendo de julho de 2022 a janeiro de 2023.
Como critérios de inclusão das fontes documentais para análise foram contemplados os documentos que se referissem aos planos de estudos acerca da formação especializada em ER das diferentes instituições de formação em Portugal entre 1965 e 1987, sendo os documentos analisados por dois investigadores independentes de acordo com os objetivos da investigação. Utilizou-se o método de livre leitura e documentação para registar as principais variáveis de interesse que foram: motivo da criação dos cursos, conhecimento científico nos planos de estudo, relação com contexto nacional, carga letiva, e relação com as funções desempenhadas pelos enfermeiros em resposta aos cuidados de saúde.
Foram ainda incluídos alguns documentos primários e secundários na análise que apesar de não constituírem documentos primários acerca dos planos de estudos na pesquisa efetuada referem-se a aspetos relevantes para complementar a mesma16,17,18,19,20,21,22,23.
A razão para o estabelecimento do friso cronológico com inicio em 1965 relaciona-se com o facto de nesse ano se ter iniciado a formação especializada em ER em Portugal3-5,16,17, devido às necessidades imprescindíveis do país em plena Guerra Colonial e sem capacidade de resposta tendo em conta a recuperação do “individuo diminuído”4.
O ano de 1987 foi escolhido para término da pesquisa, pois foi o ano em que as três escolas Pós-Básicas de enfermagem em Lisboa, Porto e Coimbra já tinham, na sequência do DL nº265/8310, os planos de estudos de especialização em ER a serem implementados.
A segunda fase do estudo contemplou a descrição, análise e explicitação da narrativa histórica tendo em conta os principais resultados com base na análise hermenêutica das fontes documentais e a sua divulgação no presente com “Método”15.
Resultados
Foram selecionados para análise final documentos correspondentes a sete planos de estudos constantes dos arquivos da Escola Superior de Saúde de Alcoitão4, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa5-9, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra11 e da Escola de Enfermagem do Porto12.
Os conteúdos programáticos do primeiro curso de especialização em ER (Figura 1) de 1965 não se cingiram “a programas existentes em instituições congéneres (…) no estrangeiro dadas as características próprias do nosso País”5 e constituíram um curso provisório “porque a reabilitação se encontra em contínuo desenvolvimento”5.
O curso, além de inovador, era “acelerado”5 e decorria em 14 semanas de “aulas teóricas”, 20 semanas de “estágio” e duas semanas de “férias”5(p.4). Incluía “assuntos” nas aulas de “preparação científica e prática”5, como introdução à reabilitação, anatomia funcional, cinesiologia, noção de teste muscular, anatomia e fisiologia do sistema nervoso central e respiratório, neurologia, doenças do sistema locomotor, psicogénese, noções de eletroterapia, hidroterapia, atividades de vida diária, terapêutica da fala, serviço social, orientação vocacional e ER (p.5).
Os estágios, após a componente teórica, realizavam-se na área neurológica, locomotora e respiratória, embora “não pudesse estar dentro das estruturas ideais de ensino - coadjuvar a teoria e prática como estágio - deveria contudo tornar o ensino o mais funcional e objectivo possível”5 (p.4). Eram realizados nas “primitivas instalações do Centro de Paralisia Cerebral, Hospital de Sant’Ana e Pavilhão da Cruz Vermelha”16.
Foram formadas 14 especialistas exclusivamente para o CMRA. O Pavilhão da Cruz Vermelha estava localizado na periferia do Hospital de Sant’Ana na Parede e recebia militares, principalmente os feridos da Guerra do Ultramar22.
Decorreu ainda um segundo curso antes da reestruturação do plano de estudos, tendo-se formado 11 especialistas16.
Em 1966, surge o segundo plano de estudos de formação especializada em ER (Figura 2), no qual houve um interesse maior pela “educação física”, continuando-se a dar relevância a aspetos como o “espírito de equipa” e ao gradual “enriquecimento de conhecimentos teóricos”, quer pela motivação para as “matérias de ensino”, quer pela “discussão de casos, trabalhos e tarefas”6(p.3).
O primeiro curso nestes moldes realizou-se em 1967/1968 no CMRA e foi organizado em 11 meses divididos em 42 semanas, sendo 20 teóricas e 22 de estágio4,16.
Os estágios aumentaram de 19 para 22 semanas “para assegurar uma consciente aplicação das técnicas” e o “ensino teórico” enriquecido pelo emprego de “métodos audiovisuais e apresentação de casos clínicos concretos”6(p.5).
Em 1973, o conselho Diretivo do CMRA nomeia um “grupo de trabalho para nova revisão do plano de estudos constituídos pelas Enfermeiras Stillwell, Monteiro de Barros e Sales Luís e pelos fisiatras Dr. Rocha e Dr. Fonseca”16, tendo em conta a ideia explanada no programa inicial que previa “a atualização necessária em matéria de aulas estágio, a fim de se acompanhar o contínuo desenvolvimento da Reabilitação”7(p.3) e o desejo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e da Direção Geral dos Hospitais em “manter o nível do Curso, dando especialmente predomínio à formação prática” (7(p.3).
Surgem, desta forma, o terceiro e quarto planos de estudos em 1974 e 1975 organizados num esquema modular em unidades didáticas (UD) (7,8. As disciplinas desenvolviam-se em fases, a que se atribuíam horas, constituindo-se em UD, existindo uma linha de continuidade ao longo do curso, podendo a disciplina iniciar-se na primeira fase, segunda ou terceira, conforme a mesma. As disciplinas evidenciavam ligação, dependência e integração. No terceiro plano de estudos estavam estabelecidas quatro UD (Figura 3): 1ª UD designava-se “Âmbito da Reabilitação - Integração do Enfermeiro”; 2ª UD designava-se “Bases Científicas de suporte às técnicas de ER”; a 3ª UD denominava-se “Deficiente físico - sua reabilitação”; e a 4ª UD consistia na “Aplicação prática dos conhecimentos adquiridos”7(p.6).
O terceiro e quarto planos de estudos incluíam conteúdos similares aos anteriores. Porém, foram introduzidos novos conteúdos, como organização dos serviços de ER, próteses ventilatórias, avaliação da condição física e educação orgânica ao esforço e fadiga7,8.
A única diferença do terceiro plano de estudos para o quarto, é que neste último juntaram-se a segunda e terceira UD, passando assim o plano de estudos a ter uma organização em três UD, sendo a terceira UD designada “Aplicação prática dos conhecimentos adquiridos”8.
Estes novos planos de estudos duravam 10 meses, previam duas aberturas por ano em função da disponibilidade orçamental, nível de candidatos e das condições de ensino quanto ao corpo docente e instalações7,8,16. Os estágios, inicialmente apenas na área neurológica, locomotora e respiratória, passaram em 1974 a incluir treino de atividades de vida diária e os contextos de consultas externas e visitas domiciliárias como componentes obrigatórias.
O DL nº 265/8310,17 dos Ministérios das Finanças e do Plano, dos Assuntos Sociais e da Reforma Administrativa, cria em 1983, as escolas Pós-Básicas de enfermagem em Lisboa, Porto e Coimbra para “diminuir os custos e aumentar a capacidade de resposta”10, porque concentram em si a formação pós-básica já existente na região e põem em prática novos planos de estudos para outras áreas de especialização. A escola pós-básica de Lisboa integrou o curso de especialização em ER do CMRA (Figura 4), reconhecendo-se assim a “necessidade dos enfermeiros prestarem cuidados cada vez mais complexos que exijam um aprofundamento dos conhecimentos do curso de enfermagem geral”10(p.2134).
O quinto plano de estudos de especialização em ER da Escola Pós-básica em 1987, contemplou temáticas como pedagogia, estatística, investigação e administração e passou a ter uma duração de 18 meses9. Os estágios, além das áreas já anteriormente incluídas, passaram, a partir de 198310, a incluir como obrigatórios estágios nas áreas de pedagogia e administração.
Os planos de estudos dos cursos de especialização em ER da Escola Pós-Básica de Lisboa9, da Escola Pós-Básica de Coimbra de 198711 e da Escola Pós-Básica do Porto12) possuíam uma organização similar, tal como preconizado pelo DL nº 265/8310, decorrendo em três fases: “aprendizagem teórica”, “actividades de estágio” e “actividades teóricas e práticas”9,11,12,18.
Os planos de estudos refletiam a exigência e carga intensiva do curso. Tomando como exemplo a programação da Escola Pós-Básica do Porto12,18 que refletia a realidade nacional, os estágios, além do “contexto hospitalar” que se desenrolava em 32 semanas (correspondendo a 1152 horas e 36 horas por semana), contemplava também estágio “em contexto de pedagogia” e em “contexto de administração” (6 semanas para cada).
Assim, a partir de 1983, os planos de estudo passaram a incluir áreas de formação tais como a pedagogia, estatística, antropologia e sociologia, mecânica corporal, investigação, epidemiologia e administração, sendo aumentada a carga letiva para a disciplina de ER e reservados estágios específicos para administração e pedagogia9-12,16,17,18.
Discussão
A ER iniciou-se em Portugal, nos anos 50 e 60, adquirindo visibilidade especialmente após a construção do CMRA em 196417. Foi aqui que, em 1965, surgiu o primeiro curso de formação de especialização em enfermagem de reabilitação dirigido pela enfermeira Sales Luís3,4,5,16,17.
A criação do primeiro curso de especialização em ER foi algo de arrojado e empreendedor.
Segundo Luís16, pouco antes da formação em ER, houve um conjunto de circunstâncias como o período após “a Segunda Grande Guerra, o aumento de doenças crónicas e degenerativas, o desenvolvimento do parque automóvel” (p.1), que contribuíram para a formalização da formação especializada em ER. Como consequência, houve um aumento do “número de deficientes” a nível mundial com consequentes dificuldades financeiras, económicas e da resposta assistencial pelos serviços de saúde. Este cenário mundial também se refletiu em Portugal, verificando-se várias lacunas na “terapêutica eficiente” e na “integração social do deficiente”16 / “reintegração do incapacitado na Sociedade”5,6.
Simultaneamente, verificava-se um desenvolvimento cada vez maior dos conhecimentos técnico-científicos na área da saúde, principalmente na medicina, com o surgimento de uma nova resposta: a “função reabilitadora”16. Também a enfermagem começava a abandonar a prática de “mera execução de prescrições médicas” para adotar uma “participação autónoma” complementar ao “acto médico”16 (p.1).
Tendo em conta os aspetos mencionados, à época (década de 50 do século XX), a SCML desempenhou um papel importante no desenvolvimento de condições para a assistência de reabilitação. O seu provedor, Dr. Mello e Castro, baseado no modelo norte-americano (criado na década entre 1940 e 1950), impulsionou a implementação de um “sistema de reabilitação” e a sua sustentabilidade, concretizando-se através de medidas como a construção de CMRA, a criação de um “suporte económico” como o totobola e investimento na formação de profissionais de forma “apropriada, metódica e atempada com soluções diferentes para as diferentes áreas”16.
Para complementar a sua formação alguns “diplomados foram então enviados ao estrangeiro”16, principalmente para os Estados Unidos da América (EUA) e Inglaterra, começando a colaborar na docência na Escola de Reabilitação do CMRA a partir de 1962.
Denotam-se, assim, na formação fortes influências americanas, que começaram a ser implementadas em Portugal de forma genérica em 1940 por influência do instituto Rockfeller na Escola Técnica de Enfermeiros23,24, tendo sido consolidadas pelos profissionais que, na década de 60 do século XX, se deslocavam ao estrangeiro para complementar a sua aprendizagem de forma mais específica para a especialização de ER. Neste sentido, é de realçar a experiência nos EUA das enfermeiras que contribuíram para implementação do primeiro curso (realce para Sales Luís e Maria Eduarda Carmona).
Para o ensino, à época seguiu-se desta forma o modelo norte-americano, e devido ao elevado número de vítimas da Guerra colonial, iniciada em 1961, a formação intensiva para a reabilitação do “indivíduo diminuído” foi apressada3,4,5,16, uma vez que não havia no país instituições, nem profissionais em quantidade suficiente que dessem uma resposta eficaz para as necessidades de assistência e recuperação dos militares feridos.
Foi no ano de 1965 que a Escola de Reabilitação foi transferida para as instalações do CMRA (desde 1957 que funcionava em instalações cedidas pelas Irmãs de São Vicente de Paulo apenas com os cursos de Terapêutica da Fala e de Terapêutica Ocupacional e Fisioterapia)4,16,20. Precisamente em outubro desse ano, iniciou-se na Escola de Reabilitação de Alcoitão o primeiro curso de especialização em ER. Os seus conteúdos programáticos centraram-se na “aquisição de conhecimentos científicos aprofundados do foro anátomofisiopatológicos e clínicos relacionados, do foro psicossocial, vocacional e de ER”4,5,16. Havia a preocupação com o “todo do utente”3,4 de forma a diminuir os riscos de complicações relacionadas com a situação clínica, potenciando simultaneamente as capacidades remanescentes, valorizando a atividade e levante precoce4,5,16, associada a uma diminuição de gastos de materiais e a redução do tempo de internamento, visando a reintegração profissional e social.
Simultaneamente, verifica-se pela estruturação dos planos de estudos que há uma maior valorização do trabalho em equipa multidisciplinar, primeiramente na formação teórica e posteriormente teórico-prática, pois a “atuação da enfermeira funde-se com a de outros especialistas, através de uma continuidade de trabalho de 24 horas por dia”5,6 (p.3). A formação, além de baseada em “experiências” estrangeiras, era também estrategicamente baseada em “reuniões havidas com especialistas de reabilitação”6(p.2), tendo a participação de diferentes profissionais com ênfase nos de enfermagem (coordenação da enfermeira Sales Luís), incluindo outros profissionais de saúde como o médico, terapeuta ocupacional, sociólogo, psicóloga, terapeuta da fala e assistente social4,5,6. A audácia e inovação deste pensamento na altura foi desafiante e levou a que a centralidade de cuidados passasse a ser na pessoa e não no médico ou na doença, contribuindo para uma maior horizontalização nas relações interprofissionais, com consequente maior autonomia do profissional de enfermagem na prática clínica.
É interessante verificar que, nessa época, já eram contemplados na formação inicial aspetos bastante importantes do ponto de vista da integração dos conhecimentos técnico-científicos nos conteúdos programáticos e também eram considerados como aspetos muito importantes no processo reabilitativo como a “orientação vocacional”4,5,6, o trabalho em “equipa multidisciplinar”5,6, a continuidade do tratamento em “ambulatório na comunidade”16, tendo em conta a reinserção profissional e social da pessoa, bem com a sua satisfação pessoal, o seu bem-estar e a promoção da inclusão social (aspetos ainda hoje advogados pela Ordem dos Enfermeiros)19.
Temáticas como o “centro de treino profissional, o emprego, oficina de trabalho protegido”5,6 eram abordadas na disciplina de introdução à reabilitação, o que por si só, denota a importância que era dada à reintegração profissional da pessoa em Portugal (denote-se que havia falta de mão de obra devido à Guerra Colonial).
De realçar ainda que, à altura, outro dos aspetos influenciadores da formação especializada em ER foi inerente às “normas estabelecidas para a reforma e ensino da enfermagem em Portugal”6, principalmente pela aprovação do Decreto nº 4644821,24 do Ministério da Saúde e Assistência que regulamentou o ensino da enfermagem. Este Decreto compreendeu algumas diretrizes internacionais da Organização Mundial de Saúde e “já posta em prática noutros países” (p. 1023), tendo passado a organização e coordenação do ensino de enfermagem para os enfermeiros. A articulação entre a teoria e a prática era valorizado neste Decreto, sobretudo as práticas clínicas em ambiente de trabalho, algo bastante importante na formação formal sobre cuidados de ER, pois com o passar dos anos a formação passou a contemplar cada mais tempo para a formação prática e inclusive a obrigatoriedade da mesma se realizar em alguns contextos específicos.
Concomitantemente com a reforma legislativa implementada, houve também uma preocupação em introduzir “noções básicas introdutivas de uma mentalidade de reabilitação na prática geral da Enfermagem”16 (p.4) como por exemplo o “levante precoce”. Este aspeto foi fundamental para modelar a formação inicial sem descurar a visão do processo reabilitativo e inclusive para se poder encarar o enfermeiro com formação geral como parceiro fundamental para a continuidade de cuidados.
O segundo plano de estudos surge em 1966, sendo aprovado em 1967 e verificava-se um maior interesse pelo “deficiente não só físico” mas também “psicológico” (dimensão psicológica) e sua reintegração na sociedade6.
Fala-se pela primeira vez no termo “deficientes psíquicos”6, embora houvesse anteriormente conteúdos já introduzidos no primeiro plano de estudos relacionados com esta área, mas não havia uma referência objetiva ao problema de forma a encará-lo como uma deficiência. Em Portugal, nessa altura, por diligência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o país foi despertado para o problema da “reintegração do incapacitado na sociedade”6 de uma forma muito objetiva. Foi mencionado que esse “facto deve ser saudado, pois marca um passo importante, dado em frente, na promoção da saúde” (6) (p.1).
Este segundo plano de estudos já mencionava que uma das finalidades era preparar “enfermeiros aptos a trabalhar em Serviços de Medicina Física de hospitais gerais ou especializados e ainda em Centros de Reabilitação de incapacitados físicos”6) (p.3). Desta forma, não seriam apenas formados profissionais para o CMRA, mas também para outras instituições do país que tanto deles necessitavam, nomeadamente os hospitais das grandes cidades.
É interessante notar que, entre os vários objetivos estabelecidos no plano de estudos, um deles era focado no formando, no sentido de “desenvolver o interesse pela educação física tão necessária para o equilíbrio da saúde e mais eficiente desempenho das suas funções”6) (p.4), o que de certa forma constituiu um primeiro passo para o que atualmente é contemplado no plano formativo em aspetos inerentes ao exercício físico19.
Outro aspeto interessante a analisar é o regresso à comunidade, algo bastante evidente na expressão “aparecimento da doença ou acidente até ao regresso do indivíduo à comunidade”6(p.4).
Os estágios mantinham a sua incidência nos campos neurológico, locomotor e respiratório. É interessante analisar é que já eram contempladas seis semanas de estágio em pediatria (incapacidades motoras), sendo pela primeira vez descriminada a área pediátrica como área de prestação de cuidados, indo ao encontro do que atualmente é preconizado no Aviso n.º 3915/202119, onde é referido que o enfermeiro especialista em enfermagem de reabilitação “cuida de pessoas com necessidades especiais ao longo do ciclo de vida”(p.223).
O terceiro e quarto plano de estudos em 1974 e 1975 surgem na sequência de um questionário “dirigido” a todos os enfermeiros de reabilitação “para obtenção de dados sobre as alterações a introduzir”16), acomodar o maior avanço nos “conhecimentos científicos, tecnológicos e pedagógicos”7,8,16 e refletir a experiência obtida em anos anteriores7,8.
A organização em UD permitia uma “certa largueza de disponibilidade nos ajustamentos inter-matérias, sem causar crises de totalidade”7(p.4). A primeira UD designava-se “Âmbito da Reabilitação - Integração do Enfermeiro” e permitia a obtenção e compreensão de conhecimentos no “universo da Reabilitação”, a segunda UD designava-se “Bases Científicas de suporte às técnicas de ER” e permitia dotar o enfermeiro de “fundamentos para uma metodologia do exercício da especialidade”. A terceira UD era “O deficiente físico - sua reabilitação” e pretendia oferecer ao enfermeiro uma visão global do deficiente físico bem como integrá-lo nos “métodos terapêuticos específicos” 7)(p.6). Por fim, a quarta UD consistia na “Aplicação prática dos conhecimentos adquiridos” e o seu objetivo era “aplicar os conhecimentos adquiridos na efectivação da prática da Especialidade, com supervisão orientada no sentido de uma progressiva autonomia responsável”7(p.6). Este tipo de organização privilegiava uma complementaridade entre os diferentes conteúdos (alguns deles novos), permitindo, ao mesmo tempo, um ajustamento entre os mesmos de acordo com os objetivos estabelecidos e permitindo “conhecer 3 períodos: doença aguda, fase de convalescença e preparação da alta”7(p.14). A respeito da preparação para a alta, é notória no terceiro e quarto planos de estudos a ênfase dada à mesma, incidindo nas “técnicas de reabilitação que se processam até à integração do individuo na comunidade”7(p.16).
Posteriormente, em Lisboa, Porto e Coimbra, surgem três escolas de enfermagem Pós-Básicas, reconhecendo-se a especialização, tendo em conta o “nível de eficácia dos serviços e elevar o nível de cuidados que, através deles, visam o bem-estar da pessoa, família e comunidade”10(p.2134).
O curso adota a duração de 18 meses, “habilitando os enfermeiros para a prestação de cuidados directos e para o exercício de funções nas áreas de docência e da administração”16(p.5), permitindo ainda uma melhor “articulação e interligação teórico-prática, sendo a relação destas duas realidades de quarenta por cento para actividades teóricas e sessenta por cento para actividades práticas, dando-se grande ênfase à disciplina de ER”18(p.24). Interessante verificar é que já era contemplada a prática clínica na comunidade, nomeadamente uma semana de “experiência de observação em Serviços da Comunidade”9,11,12,18, que apesar de pouco tempo atribuído comparado com o preconizado atualmente no plano formativo19, foi um primeiro passo importante na formação em ER.
Interessante verificar que para o estágio dos enfermeiros especialistas de reabilitação já era preconizado que: participassem na gestão de uma unidade de cuidados (não só as especializadas em reabilitação como anteriormente); avaliar a qualidade de cuidados de enfermagem; orientar, supervisionar e avaliar o pessoal de enfermagem; realizar e/ou participar em estudos no âmbito dos cuidados de enfermagem ou da gestão, colaborar no planeamento do ensino de enfermagem, colaborar ou realizar ações de formação permanente e realizar projetos de investigação9,11,12,18.
Já se contemplava na formação as designadas “disciplinas comuns” (por exemplo administração, pedagogia, investigação, estatística) e as “específicas” (anatomia, fisiologia e patologia do aparelho locomotor, respiratório, ER e educação física) (9,11,12,18, procurando-se que os conteúdos lecionados fossem “imediatamente consolidados no estágio respectivo”11(p.2).
Outro aspeto importante estipulado nos planos de estudos iniciais das escolas Pós-Básicas é que a “pedagogia actual apela cada vez mais para a auto responsabilização dos estudantes pela aprendizagem, não subestimando o papel do professor, mas tornando-o um verdadeiro orientador, facilitador da aprendizagem”11(p.1). Era contemplado que a relação “professor/aluno” permitisse “ajustamentos na estratégia ensino aprendizagem”, que fosse utilizado o “processo de enfermagem” e que de acordo com os objetivos de aprendizagem “dos alunos” e “possibilidades da escola” haveria “áreas de opção integradas na disciplina de Enfermagem de Reabilitação III, tendo em vista o exercício profissional e as necessidades da instituição”11(p.10). As áreas de opção contemplavam cuidados de enfermagem de reabilitação a cardíacos; cuidados de enfermagem de reabilitação a crianças; cuidados de enfermagem de reabilitação em gerontologia e cuidados de enfermagem de reabilitação em neurologia11.
Os aspetos mencionados por si só, constituíram uma inovação vanguardista à altura e atualmente são tacitamente assumidos nos diferentes cursos em Portugal e ocorreram numa fase do século XX, em que já havia um maior aumento da esperança média de vida. Por outro lado, já começava a haver uma diminuição da mortalidade infantil e também havia uma maior sobrevida da pessoa após eventos neurológicos e cardíacos, fruto da melhoria da qualidade assistencial, criando cada vez mais necessidades de reinserção destas pessoas na sociedade.
Os planos de estudos que surgiram na sequência do DL 265/839-12 já eram bastante aproximados à formação especializada em ER que é atualmente preconizada19, dando-se a partir dessa altura cada vez maior relevância à inovação de técnicas, instrumentos, métodos e de conteúdo lecionado e a áreas como a investigação e gestão, enquanto partes integrantes do processo formativo. Por outro lado, manteve-se uma tendência progressiva para aumentar as designadas “actividades práticas” aplicadas a “todos os grupos etários”9,11,12.
Conclusão
A formação especializada em ER beneficiou de vários fatores influenciadores, primeiramente com influências norte-americanas e inglesas. Estas, associadas ao contexto do país, que possuía diferentes deficiências e necessidades inerentes ao processo reabilitativo, principalmente no que respeita à necessidade de recuperação de soldados feridos na Guerra Colonial, permitiu fomentar este tipo de formação.
Estas necessidades em época do Estado Novo suportaram a criação do primeiro curso de formação em ER, mas também encaminharam a criação de legislação importante que enquadrou legalmente a formação especializada em ER.
No período em análise houve acompanhamento da evolução dos conhecimentos técnico-científicos e das alterações sociodemográficas que progressivamente se consolidavam no país, aspetos que levaram ao reconhecimento da especialidade com DL n.º 265/8310. Por outro lado, verificou-se também um aumento progressivo nos planos de estudos4-9,11,12, da carga letiva das “atividades de teóricas e práticas” e das “atividades de estágio” e à introdução de conteúdos cada vez mais inovadores, os quais ainda se mantêm atuais19.
Assim, foram sendo formados progressivamente profissionais capazes de dar uma resposta a situações de complexidade acrescida, incluindo, além das disciplinas específicas, as relacionadas com a gestão e investigação. No que respeita às disciplinas mais específicas, verificou-se uma certa diversidade entre os diferentes planos de estudos com designações gerais da aprendizagem até disciplinas com maior grau de especificidade.
As fontes documentais basearam-se principalmente nos planos de estudos da formação especializada em ER, facto que poderá constituir uma limitação. Assim, neste sentido será importante incluir de forma mais específica na exploração desta temática aspetos mais específicos como a legislação, contexto social e político e ainda sobre o papel da ER no Ultramar.