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Revista Portuguesa de Enfermagem de Reabilitação

versão impressa ISSN 2184-965Xversão On-line ISSN 2184-3023

RPER vol.7 no.1 Silvalde jun. 2024  Epub 01-Jun-2024

https://doi.org/10.33194/rper.2024.366 

Artigo original reportando investigação clínica ou básica

INTERVENÇÃO DE ENFERMAGEM E O AUTOCUIDADO ANDAR NO ADULTO EM CONTEXTO HOSPITALAR: UM ESTUDO DESCRITIVO E CORRELACIONAL

Intervención de enfermería y autocuidado de la marcha en adultos en el contexto hospitalario: estudio descriptivo y correlacional

Salomé Sobral Sousa1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação do rascunho original, Supervisão, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-1316-1394

Sara Valente1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação do rascunho original, Supervisão, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-6690-7172

Marisa Lopes1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação do rascunho original, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-0805-0531

Sílvia Ribeiro1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação do rascunho original, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9996-7857

Nuno Abreu1  , Concetualização, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-0418-6135

Eduardo Alves1  , Concetualização, Recursos, Software, Visualização, Redação - revisão e edição, leram, concordaram com a versão publicada do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-8739-8864

1Centro Hospitalar do Porto, Porto, Portugal


RESUMO

Introdução:

O internamento hospitalar está associado a baixos níveis de mobilidade, com impacto na capacidade para andar, sobretudo nas populações mais idosas. Este estudo tem como objetivo identificar a relação entre as intervenções de enfermagem no domínio da marcha em contexto hospitalar e o autocuidado andar.

Metodologia:

Estudo quantitativo, retrospetivo, descritivo e correlacional com dados dos registos clínicos dos enfermeiros relativos a pessoas internadas com diagnósticos e intervenções de enfermagem no domínio do andar.

Resultados:

A amostra é predominantemente idosa (média 65,99 anos, Desvio Padrão 16,73) e dependente no andar (69,7%). De 6546 participantes, 1142 (17,4%) apresentavam como diagnóstico de admissão patologias do foro musculoesquelético, 916 (14%) lesões de causa externa e 903 (13,8%) doenças do sistema circulatório. As intervenções de enfermagem no domínio da marcha realizaram-se em serviços de Medicina Interna (22,9%), Ortopedia (17,9%) e Neurocirurgia (13,1%). Durante o tempo de internamento hospitalar, cada participante recebeu em média 24 intervenções de enfermagem (DP 50,37), sendo o “assistir no andar”, a mais frequente (47%). Sob as intervenções no domínio da marcha, 92,15% dos participantes mantiveram ou melhoraram a sua capacidade para andar (p<0,001). Os programas especializados para a capacitação na marcha foram aplicados em 6,5% dos participantes, dos quais 7,9% adquiriram esta capacidade ainda no hospital. A aquisição da competência para andar com auxiliar de marcha verificou-se em 28% dos participantes que necessitaram do equipamento adaptativo (p<0,001). Dos participantes, 88,8% receberam alta para domicílio. Pessoas independentes na marcha à data de alta estiveram internadas menos 1,44 dias (p=0,006).

Conclusão:

Neste estudo, as intervenções de enfermagem no domínio da marcha estão associadas à manutenção e recuperação dos níveis de funcionalidade durante a hospitalização, não sendo possível isolar o efeito de outras variáveis.

DESCRITORES: Marcha; Autocuidado; Hospitais; Cuidados de Enfermagem

RESUMEN

Introducción:

La hospitalización se asocia a bajos niveles de movilidad, con un impacto en la capacidad para caminar, especialmente en las poblaciones de mayor edad. Este estudio tiene como objetivo identificar la relación entre las intervenciones de enfermería en el dominio de la marcha en el contexto hospitalario y lo autocuidado caminar.

Metodología:

Estudio cuantitativo, retrospectivo, descriptivo y correlacional con datos de las historias clínicas de enfermeras de un hospital universitario sobre personas hospitalizadas con diagnósticos e intervenciones de enfermería en el ámbito del autocuidado de la marcha.

Resultados:

La muestra es predominantemente de edad avanzada (edad media 65,99 años (Desviacion Estandar 16,73)) y dependiente de la marcha (69,7%). De 6546 participantes, 1142 (17,4%) tenían como diagnóstico de ingreso patologías musculoesqueléticas, 916 (14%) lesiones de causa externa y 903 (13,8%) enfermedades del sistema circulatorio. Las intervenciones de enfermería en el ámbito de la marcha fueron realizadas en los servicios de Medicina Interna (22,9%), Ortopedia (17,9%) y Neurocirugía (13,1%). Durante la estadía hospitalaria, cada participante recibió en promedio 24 intervenciones de enfermería (SD 50.37), en que "asistir a caminar" la más frecuente. Bajo las intervenciones de enfermería en el dominio de la marcha, el 92,15% de los participantes mantuvieron o mejoraron su capacidad para caminar (p<0,001). Se aplicaron programas especializados de entrenamiento de la marcha al 6,5% de los participantes, de los cuales el 7,9% adquirió esta habilidad estando aún en el hospital. La adquisición de la competencia para caminar con andador fue verificada en el 28% de los participantes que necesitaron el equipo adaptativo (p<0,001). 88,8% de los participantes fueron dados de alta. Las personas independientes el día del alta estuvieron hospitalizadas menos de 1,44 días (p=0,006).

Conclusión:

En este estudio, las intervenciones de enfermería en el dominio de la marcha se asociaron con el mantenimiento y la recuperación de los niveles de funcionalidad durante la hospitalización, aunque no fue posible aislar el efecto de otras variables.

DESCRIPTORES: Marcha; Autocuidado; Hospitales; Atención de Enfermería

ABSTRACT

Introduction:

Hospitalisation is associated with low levels of mobility, with an impact on the ability to walk, especially among the elderly. This study aims to identify the relationship between nursing interventions in the gait domain in the hospital and the self-care walking.

Methodology:

Quantitative, retrospective, descriptive and correlational study with data from the clinical records of nurses at a university hospital related to inpatient with nursing diagnoses and interventions related to selfcare walking.

Results:

The sample refers to a predominantly elderly population (mean age 65.99 years old (Standard Deviation 16.73)) and dependent on walking (69.7%). From the 6,546 participants, 1,142 (17,4%) had musculoskeletal pathologies as their admission diagnosis, 916 (14%) external cause injuries and 903 (13.8%) diseases of the circulatory system. Nursing interventions in the field of gait were carried out in Internal Medicine (22.9%), Orthopedics (17.9%) and Neurosurgery (13.1%) department. While in hospital, each participant received an average of 24 nursing interventions (SD 50.37), with “assisting with walk” being the most frequent (47%). Under nursing interventions in the gait domain, 92.15% of participants maintained or improved their ability to walk (p<0.001). Specialized programs for gait training were applied to 6.5% of the participants, of which 7.9% acquired this ability while still in the hospital. The acquisition of competence to walk with a walking aid was verified in 28% of the participants who needed toexdhe adaptive equipment (p<0.001). 88.8% participants were discharged home. Gait independency participants at discharge were hospitalized for less than 1.44 days (p=0.006).

Conclusion:

In this study, nursing interventions in the gait domain were associated with maintaining and recovering levels of functionality during hospitalisation, although it was not possible to isolate the effect of other variables.

DESCRIPTORS: Gait; Self Care; Hospitals; Nursing Care

Introdução

A capacidade para andar é um importante indicador de saúde sendo amplamente reconhecido como um sinal vital funcional(1, 2). Nos últimos anos, vários estudos têm encontrado relações significativas entre o desempenho na marcha e resultados como a mortalidade, a morbidade e a qualidade de vida3-5. Uma melhor capacidade para andar está associada também a uma redução sustentada dos custos dos cuidados de saúde(6, 7).

O internamento hospitalar é um acontecimento comum que surge em diferentes fases da vida da pessoa, devido a uma doença súbita, a um evento cirúrgico ou à agudização de uma condição crónica. Essa experiência pode, no entanto, ter um impacto significativo na capacidade funcional, sobretudo nas populações mais vulneráveis. Existe ampla evidência de que a hospitalização produz perda de funcionalidade, agravamento na capacidade de deambulação e necessidade de ajuda para a realização das atividades da vida diária, representando uma ameaça à vida independente após a alta8-10.

Garantir os níveis de atividade física e períodos de marcha durante a hospitalização é uma forma de inverter estes resultados. Programas de marcha assistida aplicados em idosos durante o internamento hospitalar, melhoraram significativamente a sua capacidade de andar à data da alta(11, 12). Uma revisão tipo scoping aferiu que os programas de marcha no hospital têm impacto em indicadores clínicos e não clínicos, podendo estar associados a uma melhoria funcional e a uma redução do tempo de internamento de um a três dias13.

Este estudo tem como objetivo identificar a relação entre as intervenções de enfermagem e o autocuidado andar, em contexto hospitalar. Pretende dar resposta à questão norteadora - Qual a relação entre as intervenções no âmbito da marcha desenvolvidos por enfermeiros e o autocuidado andar durante o internamento hospitalar?

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório de cariz quantitativo, retrospetivo, descritivo e correlacional elaborado com dados do registo clínico dos enfermeiros, dos serviços de internamento de um centro hospitalar e universitário da região norte de Portugal. Definiram-se como critérios de inclusão todos os internamentos de pessoas com idade igual, ou superior, a 18 anos, que ocorreram no intervalo temporal de 01/01/2021 a 31/12/2022, com diagnósticos e intervenções de enfermagem no domínio do autocuidado andar. Os dados foram fornecidos pelo serviço de sistemas de informação e gestão da instituição. A análise estatística descritiva e inferencial foi realizada com recurso ao IBM SPSS®, considerando-se um limiar de significância de 0.05% para os testes de hipóteses efetuados.

O grau de dependência da pessoa no autocuidado andar foi aferido pela conjugação do juízo clínico do enfermeiro e da utilização do formulário de autocuidado de Hernani Duque, integrado no sistema de informação. A pontuação obtida classifica a capacidade para andar em quatro graus: independente, dependente em grau reduzido, grau moderado e grau elevado. Na operacionalização da variável, os graus de dependência foram agrupados em dois níveis: independente e dependente. Por sua vez, o compromisso para andar com auxiliar de marcha compreende uma avaliação dicotómica da eficácia da marcha com a utilização de um produto de apoio (andarilho, canadianas, tripé, entre outros), classificado em: sem compromisso e com compromisso.

Recolheram-se informações relativas ao score da primeira avaliação (momento 1 - M1), aquando definição do diagnóstico e da última avaliação de enfermagem (momento 2 - M2), realizada após a implementação de intervenções de enfermagem no domínio da marcha e antes da alta clínica. Nos casos em que existiu apenas uma avaliação, assumiu-se que a capacidade para andar em M2 foi igual a M1.

Foram recolhidos dados relativos às intervenções de enfermagem do tipo avaliar, assistir, supervisionar, incentivar, ensinar, instruir e treinar a andar, com e sem auxiliar de marcha. Os diagnósticos de admissão foram agrupados pelas categorias definidas pela Classificação Internacional de Doenças ICD-10.

Durante o estudo respeitaram-se as normas éticas e direitos dos participantes, atendendo ao que está subjacente à Declaração de Helsínquia na Convenção de Oviedo. Foi obtida a autorização do Conselho de Administração e da Comissão de Ética do centro hospitalar. De forma a garantir o anonimato dos participantes, os dados demográficos e clínicos foram anonimizados, codificados, inseridos e analisados num programa informático.

Resultados

Dos 11.190 episódios identificados, 4.644 foram excluídos por não garantirem conformidade com os critérios de inclusão. A descrição da amostra é representada na tabela 1.

Tabela 1 Descrição da amostra 

Variáveis
Idade (anos)
Média (DP)
Mediana
Moda

65,99 (16,73)
68
76
Sexo n (%)
Mulheres
Homens

3299 (50,4%)
3247 (49,6%)
Tempo de internamento (dias)
Média (DP)
Mediana
Moda

12,75 (20,68)
5,75
1,03
Tipo de admissão n (%)
Programada
Urgência

3172 (48,5%)
3374 (51,5%)
Proveniência n (%)
Consulta externa
Urgência
Outras proveniências
Exterior

3096 (47,3%)
3245 (49,6%)
72 (1,1%)
133 (2%)
Destino n (%)
Domicílio
Outro Hospital
Falecido

5810 (88,8%)
493 (7,5%)
243 (3,7%)

A amostra é constituída por 6546 episódios de internamento, provenientes do serviço de urgência (49,6%) e da consulta externa (47,3%). As idades dos participantes variaram entre os 18 e os 101 anos, sendo a média de 65,99 (DP 16,73) anos, correspondendo predominantemente a uma população idosa. Observou-se uma distribuição equitativa do sexo dos participantes (49,6% homens Vs 50,4% mulheres). A média de dias de internamento foi de 12,75 (DP 20,68) dias, apesar de existir uma variação entre 1 e 369 dias. A tabela 2 apresenta a distribuição dos participantes pelos serviços de internamento.

Tabela 2 Distribuição dos participantes por serviços de internamento 

Serviço n %
Medicina interna 1502 22,9
Ortopedia 1173 17,9
Neurocirurgia 859 13,1
Otorrinolaringologia 652 10
Oftalmologia 582 8,9
Cirurgia geral 492 4,5
Neurologia 295 4,5
Cirurgia de especialidades 281 4,3
Infeciologia 192 2,9
Outros 165 2,5
Cardiologia 144 2,2
Urgência 98 1,5
Urologia 63 1
Nefrologia 48 0,7

Como se pode observar os participantes com intervenções de enfermagem no âmbito do autocuidado andar estiveram internadas maioritariamente nos serviços de medicina interna (22,9%), ortopedia (17,9%) e neurocirurgia (13,1%). A tabela 3 apresenta a distribuição dos participantes por diagnóstico de admissão.

Tabela 3 Distribuição dos participantes por diagnóstico de admissão 

Admissão por patologia n %
Sistema músculo esquelético 1142 17,4
Lesões de causa externa e trauma 916 14
Sistema circulatório 903 13,8
Neoplasias 696 10,5
Doenças dos olhos 504 7,7
Sistema respiratório 498 7,6
Contactos com serviços de saúde 344 5,3
Sistema digestivo 342 5,2
Doenças dos ouvidos 256 3,9
Doenças metabólicas 210 3,2
Doenças infeciosas 198 3
Sistema Nervoso 185 2,8
Sistema génito urinário 162 2,5
Doenças da pele 77 1,2
Sinais/sintomas não definidos 60 0,9
Doenças hematológicas 24 0,4
Malformações congénitas 21 0,3
Doenças mentais 18 0,3

Os diagnósticos de admissão mais frequentes foram as patologias do foro musculoesquelético (17,4%), lesões de causa externa (14%) e doenças do sistema circulatório (13,8%). As malformações congénitas e as doenças mentais, ambas com 0,3%, foram as categorias com menor representatividade nos programas de marcha.

Relativamente aos cuidados de enfermagem no domínio do autocuidado andar foram registadas 156511 intervenções, correspondendo a uma média de 24 intervenções (DP 50,37) por participante, no período de internamento. As intervenções mais frequentes foram o “assistir no andar” e o “avaliar o andar”. Os registos de enfermagem demonstraram que as intervenções dirigidas ao prestador de cuidados neste domínio foram menos frequentes (Tabela 4).

Tabela 4 Intervenções de Enfermagem no domínio do autocuidado andar 

Intervenção de enfermagem n %
Avaliar o andar 28631 18,3
Incentivar a andar 2874 1,8
Assistir no andar 73494 47
Avaliar o andar com auxiliar de marcha 8981 5,7
Avaliar capacidade para andar com auxiliar de marcha 2603 1,7
Providenciar dispositivo adaptativo para andar 758 0,5
Incentivar o andar com auxiliar de marcha 7776 5
Assistir no andar com auxiliar de marcha 14848 9,5
Avaliar capacidade para executar técnica de adaptação para andar 3097 2
Ensinar sobre técnica de adaptação para andar 1674 1,1
Instruir a andar 2831 1,8
Treinar o andar 2446 1,6
Instruir a andar com auxiliar de marcha 3113 1,9
Treinar a andar com auxiliar de marcha 3268 2,1
Avaliar capacidade do prestador de cuidados para assistir no andar 21 0,01
Avaliar conhecimento do prestador de cuidados para assistir no andar com auxiliar de marcha 53 0,03
Instruir o prestador de cuidados para assistir no andar 30 0,02
Treinar o prestador de cuidados para assistir no andar 13 0,01

Na avaliação da capacidade para andar, no M1, existiam 30,3% (n=1531) pessoas independentes e 69,7% (n=3515) dependentes na marcha, por sua vez, no M2, existiam 33,4% (n=1687) e 66,3% (n=2959), respetivamente. A análise da variância entre a primeira e a última avaliação mostra que 13,99% (n=706) melhoraram, 7,85% (n=396) agravaram e 78,16% (n=3944) mantiveram o seu estado. O teste t para amostras emparelhadas encontra diferenças significativas nos níveis de dependência dos participantes, nos dois momentos t(5045)=8,028; p<0,001. O número de intervenções realizadas não demonstrou associação estatisticamente significativa com a variação da dependência no autocuidado andar (F=1,43; gl=1; p=0,233).

No que se refere ao destino após a alta, 88,8% (n=4484) dos participantes receberam alta para domicílio e 6,72% (n=339) foram transferidas para outro hospital, dos quais 84,96% (n=288) apresentavam dependência no andar. A dependência dos participantes no M2 mostrou associação significativa com o destino após a alta (F=170,892; gl=3; p<0,001), portanto as pessoas que têm alta para outra instituição hospitalar são mais dependentes.

Simultaneamente, foi analisada a relação entre o tempo de internamento e a capacidade para andar à data de alta. A média do tempo de internamento das pessoas independentes é de 12,01 dias (DP 19,76), enquanto as pessoas com dependência na marcha estiveram internadas em média 13,45 dias (DP 22,127). Esta diferença de 1,44 dias revela significado estatístico t(5044)=2,259; p=0,006.

As intervenções especializadas para a capacitação na marcha integraram 9,36% (n=329) dependentes na marcha. Analisando M2, 7,9%(n=26) das pessoas adquiriram capacidade para executar a técnica de adaptação para andar durante o período de internamento, mantendo 92,1% (n=303) a necessidade de continuidade de cuidados após a alta hospitalar. Verifica-se significado estatístico na análise da variância da capacitação para andar entre os dois momentos de avaliação (Z=-4,849; p<0,001). As pessoas que adquiriam esta capacidade estiveram internadas, em média, mais 1,725 dias do que as que mantiveram a necessidade de continuidade de cuidados, apesar desta diferença não ter atingido significância estatística t(353)=-0,647; p=0,538.

Perante uma mudança da condição clínica, pode surgir a necessidade de utilização de produtos de apoio para a mobilidade. Durante o internamento hospitalar, verificou-se existência de um maior compromisso na primeira avaliação comparativamente à última - em M1 existiam 73,13% (n=215) participantes com compromisso e 26,87% (n=79) sem compromisso para andar com auxiliar de marcha, enquanto em M2 existiam 58,8% (n=167) e 43,2% (n=127), respetivamente, uma diferença com significância estatística t(293)= 6,766; p<0,001. As intervenções especializadas para a capacitação no andar com auxiliar de marcha foram identificados em 2,7% (n=134) participantes.

Das pessoas que necessitaram de auxiliar de marcha 77,21% (n=227) receberam alta para domicílio e 19,73% (n=58) foram transferidas para outro hospital. Destas últimas, 72% (n=42) mantiveram necessidade de assistência para andar com produtos de apoio. Observou-se uma associação estatisticamente significativa entre o compromisso para andar com auxiliar de marcha e o destino após a alta (F=7,511; gl=1; p=0,007). Embora não atingindo significância estatística t(292)=0,927; p=0,063, os participantes que à data de alta eram competentes no andar com auxiliar de marcha estiveram, em média, internadas mais 2,1 dias do que as que mantiveram compromisso.

Discussão

Este estudo procurou identificar a relação entre as intervenções de enfermagem e o autocuidado andar, tendo verificado que as intervenções no domínio da marcha estão associadas à manutenção e recuperação dos níveis de funcionalidade das pessoas durante a hospitalização.

Andar é uma atividade básica de vida14 e a capacidade para andar um fator chave para a independência funcional15. A hospitalização tem sido associada a um agravamento na condição física, à perda de marcha independente, pelos baixos níveis de mobilidade e pelos períodos de repouso no leito(10, 11, 16). Estes dados são aferidos pela avaliação dos níveis de atividade dos doentes em internamento de agudos, em que apenas um, dos 450 minutos observados foi passado em ortostatismo ou a andar17. A redução do número de passos entre as primeiras e as últimas 24 horas de hospitalização foi também associada a um risco quatro vezes maior de morte nos 2 anos após a alta18. Esta realidade tem implicações sobretudo na população mais idosa. A incapacidade associada ao internamento hospitalar ocorre em aproximadamente um terço das pessoas com mais de 70 anos de idade, podendo ser desencadeada mesmo quando a doença que exigiu a hospitalização é tratada com sucesso19. Nesta população, a imobilização pode ainda aumentar a complexidade da doença primária ou trauma, traduzindo-se num problema maior do que o motivo que conduziu à admissão20.

Neste estudo, verificou-se que os serviços onde mais se desenvolveram programas de marcha foram os serviços de medicina interna, de ortopedia e de neurocirurgia, prevalecendo patologias do foro musculoesquelético, lesões de causa externa e doenças do sistema circulatório. O relatório anual de acesso aos cuidados de saúde constata que, no ano de 2019, os problemas do sistema circulatório foram uma das três principais causas de internamento e as especialidades de ortopedia e neurocirurgia destacaram-se no volume de procura de cuidados de saúde21. Nestes contextos, a literatura apresenta evidência da importância dos programas de marcha durante o internamento, demonstrando uma melhoria da capacidade funcional em idosos internados em serviços de medicina(11, 12), a uma redução do tempo de internamento em neurocirurgia(22, 23) e mais altas para casa em pessoas internadas em ortopedia24.

O envelhecimento da população é uma inevitabilidade a que os sistemas de saúde devem preparar-se para dar resposta. Em Portugal a esperança média de vida é de 80,96 anos25, ligeiramente superior à apresentada na União Europeia, no entanto a esperança de vida saudável aos 65 anos é de apenas 7 anos26. Tal significa que nos anos subsequentes existe um aumento da utilização de cuidados de saúde, incluindo a hospitalização27. Por outro lado, o recenseamento de 2021, corroborou que a principal dificuldade reportada pelos idosos é andar25. Neste estudo, numa população com necessidades de cuidados no âmbito da marcha, a média de idades dos participantes foi de 65,99 anos e a idade mais frequente foi de 76 anos, correspondendo a uma população envelhecida.

Compreender as necessidades de saúde integradas na complexidade das pessoas mais idosas exige uma abordagem de cuidados inovadora não centrada apenas na doença11. Os programas de incentivo à mobilidade que incluem marcha, representam estratégias de intervenção face a uma elevada incidência de incapacidade iatrogénica28.

Neste estudo, durante o período de internamento hospitalar, cada participante foi alvo de cerca de 24 intervenções de enfermagem no domínio da marcha, refletindo investimento destes profissionais no autocuidado andar. A maioria dos participantes apresentavam dependência para andar na primeira avaliação, verificando-se o efeito positivo das intervenções, pelo não agravamento e redução dos níveis de dependência ao longo do internamento. Apenas 7,85% dos participantes aumentaram o nível de dependência na marcha, o que pode ser justificado por estados de saúde mais agravados(13, 29, 30) ou pela necessidade de programas de marcha especializados11. Estes dados sugerem a importância de manter a sensibilização dos enfermeiros para garantir os níveis de mobilidade dos doentes, uma vez que a marcha é em alguns contextos, negligenciada em detrimento de outros cuidados(12, 31).

Durante muito tempo, caminhar foi considerado um processo automático, de controlo inferior, dependente da função de músculos, reflexos e amplitude articular. Atualmente, estudos demonstram que a marcha é controlada por processos cognitivos envolvendo uma rede neuronal complexa, essenciais para permitir a caminhada em circunstâncias desafiadoras, mas também durante as condições habituais da vida quotidiana15. Programas de treino motor, têm potencial para melhorar a marcha, o equilíbrio e a cognição32-34. Os resultados deste estudo revelam que à data de alta hospitalar, as pessoas independentes apresentaram menor tempo de internamento comparativamente com as pessoas dependentes na marcha, sublinhando a importância de uma avaliação sistemática da capacidade para andar e o investimento nos processos de capacitação. A adoção de programas de treino de marcha especializados durante o internamento, embora num reduzido número de participantes, relacionou-se com a aquisição da competência para andar, com ou sem auxiliar de marcha, estando associado a um aumento do tempo de estadia hospitalar entre 1,7 e 2,1 dias. Achados semelhantes foram obtidos noutros estudos, sugerindo que o tipo de programas de reabilitação e o processo individual de recuperação determinam um tempo de internamento superior, com vista à maximização da capacidade para andar(29, 30). O aumento do tempo de internamento não pode ser apenas justificado pela implementação de programas de marcha, uma vez que não foi possível isolar o seu efeito, representando esta outra das limitações deste estudo.

Na última avaliação, antes data de alta, a maioria dos participantes que apresentaram dependência para andar e/ ou compromisso para andar com auxiliar de marcha, teve alta para outra instituição hospitalar, depreendendo-se uma necessidade de continuidade de cuidados a vários níveis, incluindo a marcha. Estes resultados corroboram que a perda de competências e a deterioração da condição de saúde causadas pela idade e pela imobilização favorecem a alta hospitalar para outras instituições(35, 36). Por sua vez, uma melhor capacidade para andar traduz-se numa menor necessidade de cuidados após a alta, uma vez que a dependência neste autocuidado assume um papel preponderante no processo de cuidar37. Neste sentido, e sabendo que um limiar de 400 passos diários é preditor de alta para domicílio12, os programas de reabilitação da marcha potenciam a ida para casa após o internamento24. Os mesmos resultados foram obtidos nesta pesquisa em que 88,8% dos participantes sujeitos a programas de marcha tiveram alta para o domicílio, resultando numa menor necessidade de transição de cuidados para outras instituições e, consequentemente, menor custo global para o sistema de saúde.

A integração de programas de marcha no plano de cuidados relaciona-se com a melhoria da condição clínica das pessoas, sobretudo idosas, potenciando uma maior autonomia. Este facto é inquestionavelmente promotor da redução sustentada do consumo de cuidados de saúde e dos custos que lhe estão associados, no entanto, neste estudo os ganhos económicos inerentes aos programas de marcha foram de difícil mensuração. Evidencia-se, assim, a necessidade de mais estudos, em contextos específicos, que permitam validar estes resultados e estimar o efeito destes programas.

Conclusão

Andar é uma atividade básica de vida e um importante indicador de saúde. O envelhecimento está associado a menores níveis de mobilidade, podendo este problema ser agravado pelo declínio funcional durante a hospitalização. As intervenções de enfermagem no domínio da marcha surgem como uma estratégia para colmatar a incapacidade iatrogénica associada ao internamento.

Este estudo mostrou que as pessoas submetidas a estes programas são sobretudo idosas, com patologias do foro musculoesquelético, lesões de causa externa e doenças do sistema circulatório, internadas nos serviços de medicina interna, ortopedia e neurocirurgia. As pessoas independentes na marcha à data de alta ficaram menos tempo hospitalizadas e as intervenções no domínio da marcha realizadas por enfermeiros mostraram efeitos mensuráveis significativos na manutenção e melhoria da capacidade para andar, ao longo do internamento. A maioria das pessoas teve alta para o domicílio, verificando-se uma associação entre o destino após a alta e a dependência na marcha.

A capacidade de andar é já considerada um sinal vital funcional. Dada a importância deste indicador, sugere-se a avaliação sistemática da capacidade para andar em todos os doentes internados e a intervenção nos processos de capacitação, pelos enfermeiros, a fim de garantir a manutenção dos níveis de mobilidade durante o internamento, a maximização da capacidade funcional e maior número de altas obtidas para casa, inferindo-se uma redução dos custos dos cuidados de saúde.

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Recebido: 05 de Setembro de 2023; Aceito: 20 de Fevereiro de 2024

Autor correspondente: Salomé Sobral Sousa, salome.sobral.sousa@gmail.com

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