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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.34 Porto dez. 2020  Epub 01-Dez-2021

 

Dossier Temático

Direitos humanos e a situação da criança e da educação na Guiné Bissau: Caminhos de um “Universalismo de Chegada”

Human rights and the situation of children and education in Guinea Bissau: Pathways to “Universalism of Arrival”

Cláudia Favarato1 

Paulo Castro Seixas2 

1ISCSP, Universidade de Lisboa.

2Universidade de Lisboa.


Resumo

Este artigo apresenta um breve diagnóstico da situação da criança e da educação no contexto da Guiné-Bissau. Destacam-se fatores estruturais quer de base estatal, quer socioculturais e dois estudos de caso são especificados: o das crianças-irân e o das crianças talibé. Sendo tal situação atentatória em termos de direitos humanos, discute-se a relação entre estes direitos e a realidade vivida. Para além da dicotomia entre universalismo e relativismo cultural propõe-se, na senda de outros autores as possibilidades de um “universalismo de chegada” pelo incrementalismo, pelo confronto dos etnocentrismos e por uma ampla e autêntica participação. Propõe-se, ainda, a necessidade de ter em conta novos quadro de vida em regiões internacionais que possibilitem esse poliálogo, implicando uma atenção particular à sobreposição de “ecumenes” seu mapeamento e relação com a diplomacia.

Palavras-chave: Crianças; Direito Humanos; Guiné-Bissau, Tráfico de Pessoas, Ecumene

Abstract

This article presents a brief diagnosis of the situation of children and education in the context of Guinea-Bissau. Structural factors stand out, both state-based and socio-cultural, and two case studies are specified: that of irân-children and that of talibé children. Since this situation is detrimental in terms of human rights, the relationship between these rights and the reality experienced is discussed. In addition to the dichotomy between universalism and cultural relativism, it is proposed, in the wake of other authors, the possibilities of an “arrival universalism” through incrementalism, the confrontation of ethnocentrisms and a wide and authentic participation. It is also proposed the need to take into account new frameworks of life in international regions that allow this polygraph, implying a particular attention to the overlap of “ecumenes” its mapping and relationship with diplomacy.

Keywords: Children; Human Rights; Right to Education; Guinea-Bissau; human trafficking; Ecumene

Introdução

O direito a ser criança e o direito à educação estão consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais. No entanto quando procuramos fazer um diagnóstico da situação de tais direitos, vemos que as situações encontradas não se conformam ao que é defendido pelos normativos jurídicos. Surgem-nos algumas hipóteses de abordagem desta desconformidade: denunciar tais casos como simplesmente não cumprindo o direito de ser criança ou/e o direito à educação; discutir a diversidade do direito entre os normativos que temos como referência e o costume e, finalmente, discutir o direito versus a vida vivida. Evidenciam-se posições clássicas como a da critica do eurocentrismo e da hegemonia ocidentalocêntrica como homogeneização cultural; do universalismo versus o relativismo cultural; discute-se a necessidade de abordar o “pluralismo jurídico” e o Direito como construção social e política num quadro de poderes desiguais tendo como ferramenta a tradição da Antropologia Jurídica.

No final, a pergunta que fica é, glosando Borges (2011), até que ponto a referência a tais direitos e estes diagnósticos têm benefícios para a vida das pessoas nos países não ocidentais? Na possível resposta a esta pergunta a imagem da Romeu e Julieta assola-nos como se a instigação da consciência dos direitos individuais não criasse senão falsas expectativas nos indivíduos constantemente restringidas pelas estruturas sociais envolventes. Propõe-se como possibilidade em discussão a solução das regiões internacionais como novo quadro de pluralismo de vida e de direitos em “zonas de contacto” em poliálogo que possibilitem um “património comum” num tempo médio-longo e a ultrapassagem, pelo incrementalismo, etnocentrismo de confronto e participação autêntica, do maniqueísmo nós-eles em que esta questão está ofuscada e que se apresenta quase sem saída.

No presente artigo, o caso em causa é a situação da criança e da educação na Guiné-Bissau. Sustentada numa pesquisa aprofundada e com trabalho de campo, apresenta-se a situação da educação no país, assim como dois casos específicos da situação das crianças, o das crianças-irân e o das crianças talibé. Em relação à educação identifica-se, por um lado, as debilidades estruturais do Estado para a prestação de serviços públicos, desde logo a sobrevivência como (primeira) prioridade. Em termos específicos, a falta de escolas e a sua centralidade em zonas urbanas e, portanto, uma distância acentuada casa-escola e escolas sobrelotadas, ao mesmo tempo que há falta de pagamento aos professores, são problemas estruturais.

Por outro lado, o atraso na entrada das crianças no sistema escolar, assim como o abandono e o insucesso no percurso escolar são evidências. Em relação aos casos específicos das crianças-irân e crianças talibé, identificam-se situações de infanticídio por questões culturais no primeiro caso e, no segundo, a inclusão das crianças da Guiné-Bissau num quadro de abuso e tráfico de seres humanos que abrange a região da África Ocidental associado a processos de islamização da região.

Perante este quadro muito sintético, temos duas gerações dos direitos humanos postas em causa. Por um lado, de uma forma clara, a primeira geração, a dos direitos individuais à dignidade, à vida, à liberdade; por outro lado, a segunda geração de direitos, a dos direitos sociais a serem garantidos pelo Estado, como sejam claramente o direito à saúde e à educação. Num quadro de “Estado falhado”, num Estado em anarquia normativa em fragmentação infra e supra estatal, organizando-se por esquemas informais e refém dos costumes relativos às diversas etnias e às suas estruturas locais, assim como de interesses estrangeiros, como é possível invocar de forma estável direitos individuais e direitos sociais? Podemos mesmo perguntar-nos qual o objetivo deste artigo em última análise pois pode muito bem apenas vitimizar as vítimas. Assim, a situação concreta de um país na sua complexidade cultural confronta-nos, assim, com o papel da ciência na sua relação com a política.

É em face de tal confronto que procuramos discutir os direitos do Direito em face da vida que uma socio-etnografia nos revela. Qual a utilidade da perceção de tal dicotomia? Qual o valor de defender os direitos do Direito em detrimento da vida vivida? E o valor da vida vivida em detrimento dos direitos do Direito? É possível encontrarmos caminhos entre esse pretenso universalismo e o de um falso enraizamento? É possível uma geometria variável dos direitos definidos em função da sua acomodação social? É possível identificar um gradualismo na acomodação dos direitos, priorizando uns e tomando outros como secundários? É possível partir de um confronto de etnocentrismos enquanto imperfeições para se atingir uma espécie de “cosmopolitismo prático”, capaz de definir um “património comum”? Pode um novo quadro territorial transnacional ajudar à construção de uma zona de contactos culturais fortes (uma “Ecumene”), possibilitando a criação de pontes das diferenças socioculturais e dos direitos?

Essas são algumas das perguntas que este artigo pretende levantar na senda de uma discussão que já tem muitos contributos. Assim, na secção seguinte, apresentamos de forma mais clara, ainda que breve, os pressupostos teórico-conceptuais da relação entre o Direito e a Vida, os quais servem para nos interrogarmos na secção seguinte sobre o que fazer em relação à Vida quando não se conforma com o Direito ao confrontarmo-nos com a situação da criança e da educação na Guiné-Bissau.

Finalmente, procuramos na conclusão renovar a discussão sobre os caminhos a percorrer e perguntarmo-nos até que ponto a Guiné-Bissau se pode entender como um país entre “ecumenes” e se pode a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ser o espaço-ponte nesse desafio.

1. A criança como sujeito de direitos e o direito à Educação

O “direito à educação” é no Ocidente uma expressão com ressonâncias burocráticas que remete para números ou percentagens de crianças com e sem acesso à escola, de crianças que abandonam a escola e sobre o diferencial de classe que a escola reproduz. Mas se o direito à educação tem sido entendido como o direito à escola, a verdade é que a educação é muito mais que isso:

"o inteiro processo da vida social pelo qual indivíduos e grupos sociais aprendem a desenvolver de forma consciente, nas comunidades nacionais e internacionais, e pelo beneficio das próprias, a totalidade das suas capacidades, atitudes, aptidões e conhecimento pessoais”1 (BEITER, 2005, p. 19)

Não há educação sem uma inscrição social concreta. A Escola como instituição delegada da educação e seu centro identifica um determinado espaço-tempo, uma determinada confluência de culturas, associando-se a uma visão específica das crianças como sujeitos de direito e à infância como fase etária autónoma em termos psico-socio-culturais. Pretender que todas as culturas do planeta partilhem tal visão da criança e da educação, associando-as à infância e à educação não só é impossível na prática como é, porventura, uma evidência de “colonialidade” (ASSIS, 2014). E, no entanto, a questão que se levanta é a de que discurso se pode ter sobre a diferença em relação à criança e à infância? E em relação à escola e à educação?

Que discurso se pode ter em face de evidências de crianças discriminadas em termos de género e em função de handicaps ou deficiências? Que discurso se pode ter perante evidências de crianças subordinadas a um poder parental, familiar e social que as condena à morte ou à mera sobrevivência, a raptos, a casamentos precoces ou a dependências sexuais? Que discursos se pode ter perante impossibilidades estruturais de existência de escolas ou do seu adequado funcionamento, impossibilidade de frequentar a escola, o atraso na sua entrada, o abandono precoce da mesma, o contínuo insucesso escolar e, portanto, a ineficácia da mesma como processo educativo de valor?

Não podemos deixar de partir de uma conceção da criança e da infância enquanto construções socioculturais e, por isso, plural. Tal diversidade coloca-se como constrangimento à acomodação de um padrão jurídico tomado como universal relativo aos direitos humanos e aos direitos das crianças. É perante tal confrontação entre a realidade sociocultural e jurídica que se torna necessário discutir possibilidades.

Gartstein e Putnam (2018) estabeleceram correlações entre cultura e infância, estudando como os comportamentos e características específicas de cada sociedade tomam forma e passam de uma geração à seguinte. A hipótese de que partiram foi a de perceber de que forma os valores de uma sociedade influenciam as escolhas que os pais fazem e, como tais escolhas, por sua vez, influenciam quem os seus filhos se tornam (PUTNAM; GARTSTEISN, 2019). Relacionando a educação com os valores da sociedade segundo dimensões culturais de Hofsted (mais individualistas ou mais coletivistas; mais indulgentes ou mais restritivas), esta obra da área da psicologia social reafirma, num quadro atual, perspetivas que a Antropologia apresentou já há muito tempo: a infância é uma construção social diferente no tempo e no espaço, bem como as instituições primárias influenciam as instituições secundárias, criando uma reprodução social da cultura.

A infância não é, assim, de todo um dado. E todo o discurso sobre as crianças e a infância há de estar sempre entre a ciência que nos diz como é ser criança em determinado tempo e espaço e a política que nos propõe o que deve ser a criança. O indivíduo só se tornou de forma clara sujeito de direitos no Ocidente de forma paulatina e com avanços e recuos ao longo dos últimos dois séculos (XIX e XX) e a escola de massas serve especificamente um contexto de urbanização, industrialização e individualização característicos deste espaço e período que temos denominado modernidade (EL AMINE, 2016).

É também nesse contexto específico que a criança deixou de ser um adulto em ponto pequeno para se tornar um sujeito de direitos relativos a uma idade específica: a infância (ARIÈS, 1978). Ariès caracteriza a construção social da infância na modernidade como tempo de brincadeira e proteção/cuidado. No entanto, nas últimas décadas, cada vez mais se procura também ver a criança como um sujeito de direitos e em que o direito de participação é em grande medida o medidor/mediador de todos os demais (HART, 1992).

Esta aproximação às diferenças educativas e à própria noção de criança e infância está na base da discussão entre o relativismo cultural e o eventual imperativo dos direitos humanos (ver por exemplo FREEMAN, 2001; IFEDIORA, 2004; EBERHARD, 2004; SANTOS, 2002; BORGES, 2011). Em alguns casos, o olhar ocidental de cientista social não discriminará tais diferenças como relevantes, enquanto noutros casos elas serão referidas como atentados aos direitos humanos: um dos problemas é, assim, o próprio olhar.

Ifediora refere a dupla fragilidade dos Direitos Humanos (sustentados na ideologia de direitos e liberdades individuais das democracias e no imperativo, que não considera senão ético-religioso, da “dignidade humana”) e indica a necessidade de distinguir entre direitos “principais” e “secundários”, sendo que só quando os primeiros estivessem consolidados se poderia avançar para os segundos. É assim uma proposta que parece seguir a via do incrementalismo em políticas públicas. Ora, a Educação é, curiosamente, um dos direitos “secundários” para Ifediora (2004, p. 4).

Outros referem, antes, que as diferenças socioculturais devem servir a uma “racionalidade de resistência”, numa lógica de confronto de etnocentrismos imperfeitos, como que seguindo a lógica das “arenas sociais” na produção de políticas públicas. Esta é a perspectiva da “hermenêutica diatópica” (PANIKKAR, 1983; SANTOS, 2002), que parte da múltipla imperfeição (cada cultura implicar abertura ao outro para melhorar) como pressuposto para um poliálogo em direção a um “património comum” emancipatório capaz de “defender a igualdade quando a diferença inferioriza e defender a diferença quando a igualdade descaracteriza” (SANTOS, 2002).

Tendo em conta o que vamos defendendo em muitos outros textos, optando pela lógica do incrementalismo ou/e pela lógica das arenas sociais, consideramos a lógica da participação como fundamental. É em função de uma participação autêntica que a dissonância é possível sem se tornar conflito e em que a tradução entre as diferenças se poderá constituir em compromissos. Considerámos já que a Escola é a instituição que deve ser o palco de tal processo (SEIXAS, 2018) mas, porventura, colocar os países num quadro de novas regiões internacionais pode também ser relevante para fazer esse caminho. E é aqui que a CPLP pode e deve ter um lugar.

A CPLP é uma plataforma que pode promover uma “hermenêutica diatópica” capaz de relacionar a defesa de uma diversidade e pluralismo culturais numa democracia cultural que possibilite uma democratização da cultura de cariz emancipatório. Assim, a CPLP poderá e deverá ter um programa que a constitua cada vez mais como “Ecumene” (HANNERZ, 1992; MINTZ, 1996; PINA-CABRAL, 2010), ou seja, como um espaço de forte intercâmbio cultural que possibilite fazer face ao desafio da concretização de um “multiculturalismo progressista” capaz de a partir de uma “hermenêutica diatópica” e, através de uma “racionalidade de resistência”, no enfrentamento franco de vários reducionismos etnocêntricos construir de forma incremental um “património comum” emancipatório (PUREZA, 1998), enquanto “universalismo de chegada” possível (HERRERA FLORES, 2002).

Tal implica processos de “planeamento cultural” (SEIXAS, 2017; SEIXAS; DIAS ET AL, 2017) de baixo para cima, promotores de “planos transformacionais” (SEIXAS; LOBNER, 2018) fortemente participados capazes de serem confrontados e discutidos criando nesse processo as “ecumenes” enquanto consolidações de traduções culturais das diferenças na ambição de um destino comum, enquanto comunidade ilimitada da comunicação. Será que este quadro nos serve ao desafio dos problemas relativos às crianças e à educação num país como a Guiné-Bissau?

2. A situação da criança na Guiné-Bissau

O ano de 2014 representou, no ideal de muitos guineenses, um ano de viravolta no futuro do país e as eleições presidenciais geraram um sentimento generalizado de esperança e de renovação. Até entre os mais novos as expetativas eram tantas que, apoiados por mais de trezentas organizações e redes da sociedade civil, as crianças começaram um movimento de advocacia sob o nome de “Republica di Mininus Hoje!” (“República de Meninos Hoje”). O Movimento inspirou-se no popular filme do realizador guineense Flora Gomes; no filme, os adultos abandonam o país devastado pela guerra, deixando para trás as crianças. Autónomas a cuidar delas próprias, as crianças organizam-se para governar o país, com base em regras, direitos e igualdade pensados e estabelecidos pelas próprias crianças, gerando assim uma verdadeira republica di mininus.

Para além da ficção, o ideal proporcionado pelo movimento de advocacia teve de enfrentar a dureza da realidade ainda governada pelas regras dos adultos. As esperanças de estabilidade política desapareceram pouco tempo depois das eleições por desentendimentos entre o presidente José Mário Vaz e o primeiro-ministro Domingos Simões Pereira, que levaram o presidente a demitir o governo de Pereira. Seguiram-se vários governos de nomeação presidencial, alguns dos quais de duração breve, até mesmo de poucos dias. O programa de governo e a recuperação da economia, tal como dos serviços básicos prestados pelo Estado, saíram ainda mais enfraquecidos do impasse político, já que o esperado desenvolvimento e “modernização do Estado” que os cidadãos aguardavam, não aconteceu.

O colapso das instituições estatais foi particularmente evidente nos setores da educação e da saúde. O segundo está agora a passar pelo duro teste de resistência criado pela pandemia de COVID-19, que assinalou a patente carência de aparelhos de auxílio respiratório não somente nas áreas rurais, mas até no hospital nacional Simão Mendes em Bissau. O setor da educação, por seu lado, passou por anos de precariedade devido a atrasos e falta de pagamento de salários. Inconformados com a atitude do governo, funcionários e professores engajaram-se em greves e protestos, o que gerou intermitências no normal desenvolvimento do ano escolar e até obrigou o governo a anular anos escolares por falta de número mínimo de dias de aula.

Em função dos dados reportados pelo governo da Guiné-Bissau e pelos relatórios da UNICEF, a taxa de inscrição de crianças no ensino primário cresceu de 53,7 por cento em 2006, para 67 por cento em 2010, para descer novamente a 62,4 por cento em 2014 . Contudo, a percentagem de alunos que completam o ciclo de estudos básicos corresponde a pouco mais da metade do total ; além disso, a maioria dos estudantes reporta não ter conseguido adquirir os conhecimentos necessários em áreas disciplinares estratégicas, como português e matemática.2 Portanto, são vários os fatores que determinam esta escassa taxa de escolaridade.

Os primeiros anos no sistema de ensino são marcados por impedimentos estruturais e dificuldades de frequentar a escola antes do sétimo ano de idade da criança. O relatório SABER destaca que, em 2015, 96 por cento das crianças no segundo ano do ensino básico tinha mais de sete anos, sendo a idade média dos alunos de onze anos. O atraso na entrada no sistema de educação causa uma elevada taxa de desistência ao longo do percurso educacional.

Para além disso, as salas de aulas estão sobrelotadas devido ao ratio de distribuição geográfica de institutos de ensino e densidade populacional, juntamente com a incidência da elevada taxa de reprovação dos alunos . De facto, a distância entre a escola e a casa da criança representa uma das mais importantes causas de desistências nos primeiros anos de educação, como reportado pelo relatório UNICEF sobre a situação da criança e da mulher na Guiné-Bissau . Por exemplo, a escola primária de Quinhamel, na região de Biombo, acolhe crianças das aldeias nos arredores, que andam até dez quilómetros por dia para ir frequentar as aulas. Ao cansaço físico acrescentam-se as dificuldades para as famílias no meio rural em providenciar pequeno-almoço para os filhos antes das atividades letivas, o que influencia as capacidades de atenção e aprendizagem das crianças.

As dificuldades relacionadas com a oferta formativa aumentam ao prosseguir o ciclo de estudos. Somente 25 por cento das escolas primárias do país oferece o quinto e o sexto ano do ensino primário e estas estão concentradas em áreas urbanas ou periurbanas. Isto significa que, mesmo que a taxa de entrada no ensino básico esteja igual entre áreas urbanas e rurais, a taxa de finalização do percurso escolar varia muito entre as duas áreas . De igual forma, nos bairros e aldeias onde se regista uma maior concentração de famílias abaixo da linha da pobreza, há menos crianças inscritas no ensino público. Este fenómeno é, em parte, explicado pela criação, ao longo dos últimos anos, de organizações comunitárias para o ensino.

É este o caso da escola comunitária em Plack 1, que visitámos no Bairro Militar em Bissau. Gerida pela comunidade local, a escola dispensa aulas para mais de cem crianças e conta com um presidente e seis professores. Contudo, como no caso de muitas outras escolas comunitárias, o ensino básico em Plack 1 fica condicionado pela falta de recursos materiais e financeiros, e pela impossibilidade de fazer frente ao crescimento demográfico do país. As salas sobrelotadas de crianças acabam, por um lado, por dificultar a atividade letiva dos professores, e, por outro lado, por causar mais desistências.

As limitações estruturais e financeiras constrangem também as escolas públicas. Conforme o relatório apresentado pelo governo, em 2013 só dois por cento do PIB foi alocado no setor da educação e a quase totalidade do orçamento destinava-se ao pagamento dos salários de professores e funcionários . Em seguimento de anos de crise e instabilidade política, o sistema de ensino guineense encontra-se hoje em dia profundamente dependente de ajuda, de doadores estrageiros para fazer frente a despesas de rotina e à manutenção do setor da educação.

O breve parênteses de estabilidade política em 2015 ofereceu alguma esperança à educação, levando à elaboração do Plano Sectorial da Educação da Guiné-Bissau 2015-2025 . O plano visa promover a estratégia de desenvolvimento do setor da educação ao longo desta próxima década, dando prioridade à alocação do orçamento, ao incentivo de escolas profissionais e ensino superior e à melhoria da qualidade do ensino e da gestão do setor.

A falta de continuidade nos ministérios, todavia, afetou a execução do plano estratégico, e no ano letivo 2019-2020 havia muitas vozes a proclamar o ano letivo nulo por falta de cumprimento dos programas escolares antes da pandemia de COVID-19 explodir. O incumprimento deve-se, sobretudo, à greve dos professores, os quais reclamam o pagamento dos salários em atraso há meses, o que conduziu a um protesto feroz em Bissau em fevereiro de 2019. A marchar nas ruas da capital não estavam somente os professores desanimados por estarem sem receber, mas também crianças e jovens em idade escolar a reclamar o seu direito à educação face a um Estado que falha na gestão do sistema público de ensino.

Contudo, a responsabilidade das fragilidades e insucessos no respeito do direito à educação não cabe só ao Estado; elementos socioculturais impactam duramente na taxa de acesso e completamento do ensino. De acordo com a UNICEF, um dos maiores obstáculos a completar o ensino básico é o envolvimento das crianças em atividades laborais. Um estudo desenvolvido na região de Biombo em 2010 reporta que até 30 por cento das crianças abandonava a escola na época de recolha da noz de caju . Em contexto rural, tal como no urbano, muitas são as famílias que consideram normal as crianças contribuírem para a economia doméstica, através de pequenos comércios informais ou ajudando nas tarefas de casa. Seja qual for a atividade laboral, esta comporta um maior cansaço para a criança e uma pior performance nos estudos.

Estes problemas estão ainda mais acentuados tendo em consideração as diferenças de género. Laudolino, presidente da Associação Amigos da Criança (AMIC), ao tempo da entrevista3, enfatiza que a Associação está a lidar quase diariamente com casos de meninas que tiveram de abandonar os estudos por estarem grávidas ou para contrair casamento ainda em idade escolar. Além das dificuldades em determinar a real extensão do fenómeno por falta de estudos estatísticos e a não comunicação às autoridades competentes em meios rurais , associações locais e ONG’s internacionais relacionam as diferenças de género na educação com, principalmente, três fatores: o casamento precoce, o casamento forçado e as catorzinhas. Enquanto os primeiros dois são reconduzíveis a questões tradicionais e/ou de especificidades étnicas, o último é um fenómeno substancialmente recente.

De acordo com a cultura de vários grupos étnicos da Guiné-Bissau4, é aceite que o casamento duma menina seja combinado pelos pais, até ainda quando ela é criança . O casamento é depois celebrado quando a noiva atinge a puberdade ou a idade adulta. O casamento precoce, ao invés, ocorre quando a noiva ainda está na puberdade. De acordo com a Liga Guineense dos Direitos Humanos , o casamento precoce é associado “à tradição de oferecer as filhas ou sobrinhas em casamento em troca de um dote antecipado ou de serviços prestados, bem como pelo reconhecimento social e capacidade financeira demonstrada pelo possível marido na comunidade” . Este ideal não é igualmente partilhado por todos os grupos étnicos, sendo que a frequência dos casos varia amplamente duma região para outra, registando-se a maior incidência de casos nas regiões de Gabu e Oio. Os dois tipos de casamento afetam o direito à educação das meninas, presas nas tarefas domésticas, negadas a instrução ou que engravidam ainda novas.

Pelo contrário, o fenómeno das catorzinhas representa um desvio no crescente padrão de precoce atividade sexual entre os jovens. De acordo com os relatórios da UNICEF , a maioria das meninas já teve uma relação sexual antes dos quinze anos. Em parte devido à globalização e em parte ao relaxamento dos jovens perante os costumes, este fenómeno tem consequências importantes. Por um lado, estimula o casamento precoce, uma vez que os pais esperam assim garantir a virgindade da filha. Por outro lado, a escassez de contracetivos bem como a falta de uso deles até quando disponíveis, aumentou os casos de gravidez durante a adolescência da mãe e levou a que ela abandonasse os estudos. Em último, as catorzinhas são casos de meninas novas, frequentemente com catorze anos, que iniciam uma relação sexual aparentemente ciente e consensual com homens de idade mais madura (mais de quarenta anos) em troca de bens (roupa, telemóveis e outros aparelhos de tecnologia) ou promessas (pagar os estudos numa escola privada ou na faculdade) .

No momento em que uma catorzinha engravida é vítima de uma dupla rejeição: pelo “namorado” e pela família. A AMIC acolhe-as, assim como oferece abrigo a meninas e crianças que recusaram ou fugiram dum casamento forçado e/ou precoce. Contudo, a AMIC, como outras associações similares, não dispõe de meios financeiros adequados para fazer frente a este problema. Faltam recursos financeiros para a manutenção básica das instalações das casas de acolhimento e ainda mais os necessários meios para sustentar a educação e instrução das(os) hóspedes.

2.1. Os casos das crianças-irân e das crianças talibé

A discriminação no sistema de educação não se limita à questão de género. As possibilidades de obter uma instrução em condições de paridade para as crianças com deficiência são poucas, ou até inexistentes no país. As crianças com deficiência não estão isentas de pagar as propinas escolares a partir do sétimo ano, apesar da prolongada advocacia para uma intervenção legislativa para que estejam isentas até ao décimo-primeiro ano. Desde 2013, o Ministério da Educação está a trabalhar na revisão do currículo de estudos, de forma a que seja mais inclusivo e promova a paridade ao lado da diferença .

Contudo, os bons propósitos do(s) governo(s) enfrentaram grandes dificuldades quanto à aplicação efetiva de renovação. Os professores do ensino básico e secundário não estão a receber qualquer formação para acompanhar as necessidades especiais de aprendizagem dos alunos com deficiência. A sobrelotação das salas de aula não ajuda em prestar atenção aos alunos com necessidades especiais e não há professor que tenha tempo e paciência para cuidar disto. Além destes aspetos institucionais, as crianças com deficiências sofrem discriminação por motivos socioculturais.

As crianças nascidas com deficiências, físicas ou mentais, são frequentemente acusadas de serem crianças-irân e destinadas a práticas de infanticídio ritual. De facto, a escassez de crianças com deficiência a viver na Guiné-Bissau (0,33 por cento da população com menos de cinco anos5) é notável, tendo em consideração a média global de quinze crianças com deficiência em cada cem . Ainda que estes dados possam ser atribuídos à escassez e fiabilidade das informações disponíveis, a presença de bebés com deficiência é um acontecimento tão raro que choca até os profissionais de saúde, como reporta uma psicóloga infantil:

“Apesar que é traumatizador, quando eu vi estas crianças pela primeira vez… eu estudei em Cuba, quando estava no meu quinto ano de psicologia especial fui numa casa desta fui…passei dois dias sem comer, não queria nada, sem dormir, só a chorar porque nunca vi estas crianças daqui…afinal existem, mas como matam estas crianças nunca vi uma criança com deficiência assim. Primeira vez que vi uma criança desta era em Cuba…foi difícil para mim, em Cuba, muito difícil, foi um choque”6.

Aos bebés que nascem com deficiências, malformações físicas ou atrasos mentais7 são atribuídos o estatuto de criança-irân, isto é, seres considerados espíritos a viver dentro do corpo dum bebé humano. A crença, oriunda da cosmologia animista local, é partilhada e/ou conhecida pela maioria da população , independentemente da orientação religiosa.

O estatuto das criança-irân não é claramente definido, mesmo que elas sejam em geral consideradas causas de má sorte, desgraças, assim como doenças e morte a acontecer na família. Crê-se que estas crianças possuam poderes sobrenaturais e os adultos consigam detetar o aparecimento destas capacidades pelos gestos ou hábitos inusuais que estas crianças manifestam. Entre outros, as pessoas referem olhos a brilhar na escuridão, imobilidade e transportar-se por sítios longe de onde o bebé fora deixado. De igual forma, anomalias físicas assinalam a presença dum irân no corpo do bebé, como baba na boca, macrocefalia ou falta de resposta aos estímulos exteriores .

Preocupados com a ameaça que ela representa para a mãe, família e a comunidade toda, os pais recorrem ao auxílio dum especialista ritual (um djambakos) para tratar a criança. O curandeiro irá efetuar um ou vários testes para averiguar qual a natureza do ser a viver no corpo do bebé, muitos dos quais são uma verdadeira prova de resistência que pode levar à morte da criança. Enquanto o ritual mais comum é o de “levar ao mar”8, entre alguns grupos há também o ritual de abandono do bebé no mato9.

Mesmo que os pais não queiram levar o bebé ao djambakos, a pressão social e a família intervêm na tomada de decisão acerca do futuro da criança. A psicóloga infantil da Casa Bambaran, em Bissau, refere casos em que tios ou outros familiares chegaram ao orfanato com intentos de aleijar ou matar a criança, depois de ter descoberto que os pais a entregaram, de escondida, à Casa. Em Quinhamel, uma jovem mãe referiu que está a sofrer um forte isolamento social por ter decidido ficar com a sua bebé, que tem atrasos mentais. Lamenta que agora é privada da rede de suporte da comunidade, e que até as tarefas mais comuns do dia a dia, como ir buscar água, tornaram-se um problema porque as pessoas recusam-se a ajudá-la - e ainda mais a tocar na criança.

“[...] a criança se encontrava sem cuidados. Fomos ao local, quando nos aproximamos à criança, fomos prontamente avisados: “ah, tomem cuidado, porque esta criança não é normal, é irân!”. Portadora de mau espírito. “E caso vocês a tocarem a responsabilidade é vossa, não é nossa”. Eu peguei na criança, entretanto levantei a criança [...]”10

Laudolino, da AMIC, insiste várias vezes que as pessoas, tanto em meio rural como urbano, rejeitam de todo as crianças consideradas espírito. A psicóloga da Casa Bambaran também reporta uma acrescida dificuldade e necessidade de dar formação às amas para que cuidassem com algum carinho das crianças com deficiências, assim como fazem com os outros órfãos. Juntamente com os dois entrevistados, exponente da Liga Guineense dos Direitos Humanos e do Comité para Abolição das Práticas Tradicionais Nefastas lamentam que a crença nas criança-irân é devida, juntamente com a resiliência da tradição, à falta de educação e conhecimento sobre o significado de ser portador de deficiência. A respeito disto, reportamos a seguir um excerto do questionário submetido a parte dos membros do Parlamento Nacional Infantil, secção de Biombo. As linhas referem a resposta às duas perguntas pelo mesmo entrevistado, o que enfatiza como a perceção da criança com deficiência e da criança-irân sejam divergentes, mesmo tratando-se do mesmo sujeito.

Quadro n.º 1  Perceção da criança com deficiência 

O que é criança-irân? Conheces ou conheceste alguma criança considerada irân? Qual é a tua opinião sobre crianças com deficiência?
Para mim não há criança irân porque muitas vezes as crianças nascem com deficiência devido a falta de acompanhamento médico, a mãe pode ser que tinha outra doença e passou ao filho durante a gravidez ou parto Sim, conheço. Para mim essas crianças são pessoas normais, infelizmente podem contrair doença e nasceram com problemas físicos ou mentais, o importante é procurar o tratamento adequado
A criança-irân é a criança que não anda muito cedinho ou não está a falar, dizemos de que isso é Irân mas caso contrário não é irân Sim, conheceste algumas crianças considerada irân A minha opinião das crianças com deficiência deve ser respeitada em qualquer momento que seja
A criança-irân para os homens é um mito, mas não só mito; às vezes aqueles crianças tornarei na verdade irân, porque nós vimos muitas crianças que levado por pais para mar então aquele criança vai para mar Sim conheceste alguma criança que foi considerada irân aqui no Setor, mas hoje em dia alguns aquele irân tornarei são criança Acho que a deficiência vem da natureza, não são coisas desejada mas se vai acontecer e destinatário por Deus e na vida de um ser humano em qualquer parte do mundo
O criança-irân não existe, as pessoas diz a criança-irân para mim não existem crianças-irân Eu não conheço alguma criança-irân A minha opinião é para os pais cuidaram de essa criança deficiente se o governante tem meio para fazer um jardim para essa criança
A criança irân é aquele criança que é [-] E por isso que os mais velhos considera que aquela criança e irân Sim, algumas crianças consideradas irân conheces A minha opinião das crianças com deficiência precisa de cuidado e o amor para o bem estar dele
Criança-irân são aquelas crianças mais pequenas que não é famoso para os que adorá-lo ou aqueles que nascem com uma coisa admirável que os velhos nunca viu Não A minha opinião sobre crianças com deficiência, são aquelas crianças que mas tem vergonha porque eles não pensam que são como os outros
Mas na verdade existe menino irân pelo visto a criança começa a fazer algum gesta desagradável, com idade elevada sem andar Sim, em Bissau, na messa existia uma criança mas com o tempo perdeu a vida As crianças com deficiência merecem ser tratados com amor e carinho em todos os dias

Fonte: Extrato do questionário submetido aos membros do Parlamento Nacional Infantil (PNI). Seis jovens, de idade entre 16 e 30 anos, quatro rapazes e duas raparigas. Submetido em Quinhamel, no dia 3 de dezembro de 2016.

Uma outra dificuldade que se põe à implementação do direito à educação das crianças é devida ao sistema de ensino multifacetado. Este conta com escolas públicas (sob gestão do Estado), estabelecimentos privados (religiosos ou laicos), escolas comunitárias e, enfim, madraças, que seguem o currículo escolar do ensino básico, mas estão sob gerência privada e lecionam em língua portuguesa e árabe . Parecidas com as madraças, também há escolas corânicas, fincadas no sistema tradicional do ensino do Corão, que dá prioridade à aprendizagem de versículos do livro sagrado antes de outras disciplinas sociais e naturais .

As madraças e as escolas corânicas estão, mesmo que indiretamente, ligadas ao aparecimento dos casos de talibé ao longo dos últimos anos. A palavra talibé deriva do árabe طَلَبَة, estudante, quem quer (aprender). O problema é especialmente difuso entre grupos étnicos de cariz muçulmano, mesmo que o elemento religioso não represente, em si, a causa primária do fenómeno. Por um lado, a maioria das madraças funcionam regularmente como os outros institutos de ensino, acrescentando o estudo do Corão ao currículo escolar básico. Por outro lado, os pais mandam os filhos estudar em escolas corânicas por confiarem no potencial da educação e para reter a importância da religião na vida do indivíduo. Nesta perspetiva, o facto de a criança ir estudar no estrangeiro, num dos países vizinhos da Guiné-Bissau, é visto como uma possibilidade de melhoria das condições de vida e de possibilidades para o futuro .

Todavia, existem casos em que as crianças enviadas para estas escolas não ficam na sala de aulas, mas tornam-se vítimas de abusos, trabalho infantil e tráfico de pessoas. Estes casos cabem sob a definição de talibelismo - criança em movimento. A questão dos talibé não só viola o direito à educação, tal como institui o crime de tráfico de ser humanos, a nível intrarregional.

O fenómeno do talibelismo tem raízes antigas na África Ocidental, região cujos povos há séculos desenvolveram contactos e influência dos vizinhos povos árabes. As ligações históricas e culturais sobrepõem-se às modernas fronteiras nacionais e o facto da criança viajar para longe, até a Gâmbia, a Guiné-Conacri, o Mali, ao fim de seguir os estudos do Corão, era parte do percurso de ensino e aprendizagem. Portanto, consoante os princípios do talibelismo, uma criança que sai do território nacional a fim de estudar o Corão não cabe sob o estatuto de criança traficada . Ela torna-se tal por causa das condições de vida que deve enfrentar no país de destino.

No ensino de talibelismo, os estudantes ficam sob guia dum mestre, chamado marabu (ou marabout, do árabe مرابط), que é suposto educar as crianças. Contudo, relatos por ONG’s e associações de salvaguarda dos direitos humanos destacam que, nas últimas duas décadas, as condições de vida destes alunos prejudicam gravemente os seus mais básicos direitos humanos. Os talibé, levados para longe das famílias e para fora do país de origem, são obrigados a trabalhar e/ou a mendigar na rua. No fim do dia, de volta à escola, os mestres obrigam-nos a apresentar a quantia de dinheiro recolhida; se não for o suficiente, o estudante pode receber punições, os quais incluem espancamentos e jejum forçado.

Além das pausas para rezar, os talibés passam o dia em ruas das cidades a pedir esmola, receando não conseguir ganhar o suficiente. Este medo torna-se perigoso para a própria vida das crianças, como refere um dos nossos entrevistados:

“[...] ele era, era meu vizinho de casa. Foi mandado para uma escola corânica, no Senegal, e nunca mais soubemos nada dele. Até que recebemos a notícias, que estava no Senegal, estava na rua a pedir esmola e estava com medo porque não conseguia mendigar o que o mestre pedia e não podia voltar à escola sem o dinheiro... e um dia estava a andar, na rua, a pensar em recolher esmola, e foi atropelado, assim... não houve hipótese dele sobreviver [...]”11.

As condições de vida nos alojamentos, por sua parte, não respeitam as normas mínimas de higiene, nem garantem espaço suficiente para todos os talibés hospedados. Pelo contrário, os alojamentos representam um perigo à vida, saúde e liberdade das crianças, sendo que dentro dos muros acontecem abusos e maltratos. A escassez de dados e relatórios por fontes oficiais na sub-região é parcialmente compensada pelo trabalho de investigação do jornalista e fotógrafo português Mário Cruz12. O jornalista documentou através de imagens os maltratos a acontecer em escolas corânicas em Dakar, no Senegal. As fotografias, muitas das quais chocantes, mostram crianças acorrentadas, ou batidas pelo marabu quando erram na leitura ou na recitação dos versículos.

Para além da mendigagem e dos abusos físicos e psicológicos, o que resta do direito à educação das crianças talibé corre o risco de ser prejudicado por um currículo escolar que negligencia disciplinas estratégicas, quais português, francês ou matemática, em prol da aprendizagem religiosa. Todavia, os dados expostos pela UNICEF mostram que os alunos de escolas corânicas, assim como os talibés, não detêm competências mínimas de alfabetização, e decoram os versículos em vez de aprender a ler e escrever .

O fenómeno do talibelismo é especialmente relevante dadas as dimensões de tráfico de crianças a ocorrer na África Ocidental. Já em 2010, o Relatório Anual sobre o Tráfico de Pessoas reportava que havia oito mil crianças forçadas a mendigar nas ruas de Dakar, um terço das quais oriunda da Guiné-Bissau. O mesmo relatório calcula que cada mês cerca de duzentas crianças saem da Guiné-Bissau para ir frequentar escolas corânicas; a maioria delas segue os marabu no Senegal, mas há também quem vá para o Mali e para a Guiné-Conacri . Ao longo da década de 2010, o fenómeno parece ter crescido; a UNICEF refere, no Relatório Anual de 2017, ter resgatado cento e cinquenta crianças no Senegal e acompanhado a reinserção delas nas famílias de origem. A ONG também chamou a atenção do governo guineense para este fenómeno, cujas proporções eram desconhecidas .

Mesmo que não haja dados fiáveis disponíveis até hoje, o fenómeno de talibelismo, associado ao tráfico de seres humanos, já apareceu aos olhos do público várias vezes em 2020. A sensibilização sobre o assunto é estimulada, por um lado, pela UNICEF13, através de histórias e testemunhos de crianças que passaram por esta experiência; por outro lado, o tema foi exposto pelos jornais.14 Num destes artigos, publicado em junho de 2020 no Deutsche Welt (DW), a Presidente do Instituto Mulher e Criança (IMC), Maria Vitoria Correia, afirma que há muitos anos estão a ser feitos esforços para combater o tráfico, nomeadamente da aproximação formal e institucional entre o ensino público e as escolas corânicas. Neste sentido, o Ministério da Educação aprovou a inserção da língua árabe no currículo escolar .

3. Perspetivas de futuro: recomendações e intervenções

O caso da Guiné-Bissau é, porventura, um caso-limite, mas em parte revelador de muitas dinâmicas que ocorrem em muitos países do mundo, mesmo que de formas menos evidentes: um Estado que se fragmenta dando lugar a poderes intraestatais e a poderes supra-estatais e uma realidade vivida em que os direitos decorrem de tal fragmentação e da sua serendipidade.

Centrando-nos na situação da criança e da educação percebe-se que o país coloca em causa normas jurídicas internacionais relativas aos Direitos Humanos e aos Direitos das Crianças. No entanto, por muito que a situação descrita da Guiné-Bissau nos surja como atentatória de uma vida digna e emancipada, o quadro teórico-conceptual que temos não nos permite uma posição clara de salvaguarda de direitos: direitos para quem, definidos por quem? Entre um pretenso universalismo e também um falso enraizamento, teoricamente parece estarmos numa tensão grandemente impeditiva da ação entre universalismo e relativismo, entre pós-colonialismo ou colonialidade e invisibilidade/desinteresse. E, ainda assim, é preciso abordar sempre e mais este assunto: confrontar etnocentrismos, promover gradualismos e ativar participações.

O caso da Guiné-Bissau possibilita-nos ainda a discussão da fragmentação supranacional e novas plataformas de tradução cultural, suas ameaças e oportunidades. O talibelismo é a evidência de uma arena social internacional entre “ecumenes”: entre o mundo cristão e o mundo islâmico em que as crianças são o principal alvo, pois o objetivo é político. Este aspeto da vida das crianças na Guiné-Bissau enquanto objeto de tráfico internacional revela como os processos de pós-colonialismo e colonialidade são complexos e cada vez mais temos de conceber arenas sociais globais em luta entre “ecumenes” enquanto definição/domínio de espaços de forte intercâmbio cultural. A relação entre diferentes “ecumenes” deve ser compreendida como causal em relação a muitas situações de direitos e de vidas nos diversos países.

Para além disso, devemos mapear a sobreposição de “ecumenes” e procurar identificar possibilidades de tradução cultural que construam espaços de vida digna e emancipada. Esse é o caminho que propomos deve ser percorrido no sentido de encontrar compromissos que caracterizem um “Universalismo de Chegada”. Porventura, essa bem poderia ser uma das missões da CPLP!

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1Traduzido do inglês: the entire process of social life by means of which individuals and social groups learn to develop consciously within, and for the benefit of, the national and international communities, the whole of their personal capabilities, attitudes, aptitudes and knowledge.

2De acordo com um relatório da situação do sistema educativo, publicado em 2013, (República da Guiné-Bissau, 2013), apenas 65 por cento da população entre os 22 e os 44 anos é alfabetizada de forma sustentável depois do sexto ano de escolaridade, precisando de pelo menos dez anos de estudos para alcançar qualidade e sustentabilidade na aprendizagem. Estes dados são corroborados pelas recentes análises desenvolvidas pelo Instituto Camões (CARVALHO; BARRETO; BARROS, 2017).

3Entrevista realizada em Bissau, no dia 20 de outubro de 2016

4Entre estes, destacam-se os Balanta e os Fulas, os grupos étnicos mais populosos do país

5O censo de 2009 (o mais recente que se encontra disponível) reporta que neste ano só foram registadas 12 crianças com menos de cinco anos com alguma forma de deficiências mental no país todo (INE, 2009)

6Entrevista semiestruturada com a psicóloga infantil da Casa Bambaram, efetuada em Bissau, em 17 de outubro de 2016

7Os trabalhos pioneiros de António Carreira reportam uma detalhada série de sintomas e causas que levam à acusação de uma criança ser irân. Vejam-se, entre outros, “Símbolos, Rituais, Ritualismo na Guiné Animista” (1961), “O Infanticídio Ritual em África” (1971), disponíveis no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

8O ritual de “leba mininu ao mar” é um teste ritual para averiguar se um bebé é um ser humano, ou uma criança-irân. O bebé é levado por um especialista ritual, acompanhado, em raros casos, por uma(s) mulheres(s) da família materna, à beira rio quando a maré baixar. A criança é posta dentro dum cabaz, frequentemente com ovos e farinha, os alimentos preferidos pelos espíritos irân, e é ali deixada durante dois ciclos de marés, ou seja, enquanto o rio encher e até o nível das águas voltar a descer. Neste momento o djambakos irá confirmar se o bebé está no cabaz onde fora deixado (confirmando assim a sua alma humana), ou se este voltou para o mundo a que pertence - o mundo dos irâns.

9Este caso é reportado com mais frequência entre a etnia Balanta, sobretudo no caso de nascimento de gémeos

10Entrevista semiestruturada com Carlos Laudolino Medina, Presidente da AMIC, em Bissau, no dia 20 de outubro de 2016

11Conversa informal com Mamadou, tida em 30 de novembro de 2018

13Ver informação disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2019/05/1672351>.

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