Introdução
As Políticas Públicas são ações desenvolvidas pelo Governo para atender as necessidades da população visando o bem-estar da mesma (Marcondes & Dias, 2021). Sendo assim, o encarregado por essas ações é o Estado e esse deve atuar de maneira a garantir os direitos de um indivíduo. Refletir sobre as Políticas Públicas é lembrar projetos, programas e leis que prezam pelos Direitos Humanos (Sousa, 2020).
O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) refere-se sobre um indivíduo ter uma alimentação em quantidade, qualidade, diversidade e segurança que supra suas demandas nutricionais (Silva, Camargo & Monteiro, 2017). Para que isso ocorra, a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) deve existir por intermédio de Políticas Públicas (Leão, 2013). A SAN possui duas vertentes, a alimentar e a nutricional, a primeira faz referência para a produção de alimentos e sua disponibilidade à população, visando atender as necessidades da sociedade em quantidade e qualidade suficientes, além de garantir o acesso aos alimentos de modo permanente, buscando ser sustentável. Já a segunda vertente se refere ao acesso a alimentos saudáveis, preparados de maneira adequada para melhor aproveitamento dos nutrientes, respeitando cada fase da vida e buscando a promoção de saúde (Cervato-Mancuso, Fiore & Redolfi, 2015).
De acordo com o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI), realizado em 2020, a situação da fome pode ocorrer até o ano de 2030, principalmente pensando nas consequências da pandemia de COVID-19. Além disso, o documento levanta questões envolvidas na transformação da SAN como conflitos, mudanças climáticas e econômicas, sendo que esses são agravados pela desigualdade e pobreza. Outrossim, o relatório destaca que pessoas que sofrem com desnutrição e insegurança alimentar não possuem condições de manter uma dieta saudável (FAO, IFAD, UNICEF, WFP & WHO, 2022).
Para que ocorra mudanças no consumo alimentar, as Políticas Públicas de SAN devem incentivar a aquisição, acesso, utilização e a ingestão de alimentos saudáveis. Diante disso, essas políticas podem atuar nos espaços institucionais visando a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), abordando sobre os alimentos in natura e os alimentos regionais. Também, pode-se fazer investigação sobre a situação alimentar e nutricional, dentre marcadores antropométricos e de consumo alimentar da população, e propor medidas educacionais adequadas, utilizando-se de mídias sociais para promoção de uma alimentação saudável, pelo incentivo ao conhecimento sobre como o alimento é produzido, estímulo na formação de profissionais vinculados a SAN, entre outros (Cervato-Mancuso, Fiore & Redolfi, 2015).
Na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi criada a Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional (ESAN-CPLP), no ano de 2011, que tem por objetivo erradicar a fome e pobreza nos países membros, tendo como apoio o DHAA, auxílio de políticas e programas de Segurança Alimentar e Nutricional e associação entre os países (CPLP, 2015). Essa comunidade foi criada em julho de 1996, durante a Cimeira, em Lisboa, e conta com nove países membros, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste que possuem em comum o idioma oficial a língua portuguesa (Ilharco, 2014; Leite, 2020).
Por fim, a SAN relaciona o direito de uma alimentação adequada com os demais direitos humanos, de modo que a extinção da fome e o anseio por melhorias no campo da alimentação e saúde nutricional da população tornam-se almejados pela sociedade e autoridades de governo (Machado & Sperandio, 2020). Assim, a junção de diversas Políticas Públicas de SAN, além de contribuir ao combate à fome da população, deve ser vista como subsídio ao desenvolvimento sustentável, a integração de programas, ações intersetoriais e desenvolvimento dos países. Perante o exposto, o objetivo deste artigo é realizar a identificação das principais Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional dos países que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a fim de enfatizar as principais ações de SAN, e ainda, identificar possíveis fragilidades na efetivação do DHAA nestes países.
Metodologia
Este artigo trata-se de uma pesquisa documental de caráter exploratório e qualitativo que, segundo Prodanov & Freitas (2013), são respectivamente, compostos por dois momentos. O primeiro, um estudo que levanta informações acerca de um tema facilitando o entendimento de tal e possibilitando assim novas perspectivas sobre o assunto, e o segundo, um estudo que não utiliza dados e métodos estatísticos, mas sim dados que retratem de melhor forma o assunto estudado de modo descritivo e sem interferência do pesquisador sobre a problemática em estudo.
Foram utilizadas técnicas de pesquisa documental que ocorreu através da coleta de dados em documentos escritos ou não (Lakatos & Marconi, 2017), sendo utilizados arquivos públicos e legislações em âmbito Federal, como Constituições Federais, Leis, Decretos, Estatutos, Portarias, Resoluções e Instruções Normativas, necessários para se compreender o contexto da SAN nos países da CPLP. Sendo assim, foi realizado o levantamento das Políticas Públicas, Programas, Ações e Estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional presentes nos países que compõem a CPLP e então foram analisados os impactos que estas têm sobre a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e ao combate à fome da população desses países. A coleta de dados foi realizada no período de outubro de 2021 a julho de 2022, em documentos oficiais, livros, artigos científicos, relatórios e legislações dos países da CPLP que serviram para o levantamento de Políticas Públicas associadas à SAN. Os artigos foram selecionados por meio de busca nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (Lilacs, Medline, SciELO, Bireme, Pubmed e Cochrane Library) e as demais documentações, via as páginas virtuais (websites) do Governo Federal dos respectivos países.
Resultados e Discussão
As Políticas Públicas são intervenções tomadas pelo Governo para que os Direitos Humanos sejam garantidos. Isso pode ocorrer através de leis, programas e ações em diferentes áreas institucionais para que uma determinada realidade social seja transformada. Dessa forma, uma Política Pública será criada em virtude dos interesses e demandas de uma população para que os seus direitos sejam realizados (Dottes de Freitas, Cassol & Rodrigues, 2021).
É fato que as Políticas Públicas são importantes para a garantia dos Direitos Humanos, como por exemplo, o Direito Humano à Alimentação Adequada. Contudo, a criação destas é complexa e permanente, uma vez que demanda várias etapas e aprimoramentos ao longo de sua execução (Rua, 2014). Na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa as legislações que asseguram o DHAA e a SAN nos nove países membros ainda são frágeis, visto que, apenas o Brasil tem legitimado o Direito à Alimentação em sua Constituição Federal (CF) e nem todos possuem regulamentação voltada para a Segurança Alimentar e Nutricional (Quadro n.º 1).
Países | Direito à Alimentação | Lei de Segurança Alimentar e Nutricional | Regulamentação |
Angola | Implícito na Constituição da República | Estatuto Orgânico do Ministério da Agricultura e Florestas - Decreto Presidencial nº 15/18 de 25 de Janeiro de 2018 | Decreto Executivo nº 265/18 de 19 de Julho de 2018 (Regulamenta o Gabinete de Segurança Alimentar do Ministério da Agricultura e Florestas) |
Brasil | Art. 6º da Constituição Federal de 1988 Emenda Constitucional nº 64/2010 | Lei nº 11346/2006 de 15 de Setembro de 2006 (Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências) | Decreto nº 7272/2010 de 25 de Agosto de 2010 (Regulamenta a Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada, institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PNSAN, estabelece os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e dá outras providências) |
Cabo Verde | Implícito na Constituição da República | Lei nº 37/IX/2018 de 16 de agosto de 2018 (1 - A presente Lei estabelece os princípios, normas e procedimentos que garantem o reconhecimento e exercício efetivo do Direito Humano à uma Alimentação Adequada, e define as bases orientadoras da política de Segurança Alimentar e Nutricional. 2. A presente Lei reconhece o Direito Humano à Alimentação Adequada, mediante a garantia de um acesso permanente e estável dos indivíduos à uma alimentação suficiente, saudável, nutritiva e segura, adaptando-se sempre às suas necessidades e preferências alimentares e culturais) | Não há |
Guiné-Bissau | Implícito na Constituição da República | Programa Nacional de Segurança Alimentar (PNSA) (ainda não aprovada) | Não há |
Guiné Equatorial | Implícito na Constituição da República | Não há | Não há |
Moçambique | Implícito na Constituição da República | Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional II - ESAN II (2007-2015) | Não há |
Portugal | Implícito na Constituição da República | Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (ENSANP) | Resolução do Conselho de Ministros nº 132/2021 de 13 de Setembro de 2021 (aprova a ENSANP) |
São Tomé e Príncipe | Implícito na Constituição da República | Programa Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) 2012-2023 | Não há |
Timor-Leste | Implícito na Constituição da República | Política Nacional de Segurança Alimentar (PNSA) | Não há |
Em relação ao Direito Humano à Alimentação Adequada, dentro da CPLP, o Brasil possui de maneira explícita o termo “alimentação” em sua Constituição Federal que legitima esse Direito Humano no país (Cavalcante & Belanda, 2021). Já nos demais países membros da CPLP, o DHAA encontra-se de maneira implícita na Constituição da República. Como exemplo pode-se citar Timor-Leste que tem no Artigo 23º da Constituição da República Democrática que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes da lei e devem ser interpretados em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (Timor-Leste, 2002). Além deste, pode-se exemplificar o caso da Angola que traz no Artigo 26º de sua Constituição da República que
(...) Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e os tratados internacionais sobre a matéria, ratificados pela República de Angola (...) (Angola, 2010).
Ter a legitimação desse Direito Humano na Constituição de um país é fundamental, pois confere caráter obrigatório ao Estado em garantir a alimentação de um cidadão, por intermédio de ações públicas (Martins, 2018). Uma vez que isso não ocorre, a população não tem seus direitos humanos garantidos por legislações, o que acarreta uma fragilidade ao país. Assim sendo, observa-se que na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa há um obstáculo para se alcançar com plenitude o Direito Humano à Alimentação Adequada uma vez que a maioria de seus países membros possui esse direito humano subentendido nas Constituições.
Em relação a Segurança Alimentar e Nutricional, no Brasil um fato marcante foi a criação da Lei nº 11.346 no ano de 2006 que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências (Brasil, 2006). Esta lei é regulamentada no país pelo Decreto nº 7272/2010. Dentro da CPLP além do Brasil, Cabo Verde também é um país que possui uma Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, a Lei nº 37/IX/2018 de 16 de agosto de 2018 que estabelece os princípios, normas e procedimentos que garantem o reconhecimento e exercício efetivo do Direito Humano a uma Alimentação Adequada, e define as bases orientadoras da política de Segurança Alimentar e Nutricional (Cabo Verde, 2018).
Já nos demais países da CPLP existem apenas estratégias, políticas, programas ou estatutos relacionados a SAN, o que torna frágil a realização de Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional nestes por não terem uma lei específica para tal. Ao comparar-se a lei de SAN do Brasil com a de Cabo Verde é visto que ambas falam sobre o SISAN. No caso do Brasil, na Lei nº 11.346/2006 é criado este sistema, as diretrizes, princípios, objetivos, definições e composição do mesmo, sendo:
Art. 11. Integram o SISAN: I - a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; II - o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA; III - a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN); IV - os órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e V - as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN (Brasil, 2006).
Essa composição deste Sistema é fundamental para a criação de ações de SAN no país, principalmente devido à participação social. Através das conferências nacionais diferentes grupos sociais podem participar das discussões e atividades relacionadas aos direitos à cidadania. No Brasil, a primeira Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) foi em 1994 sendo organizada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Após esta, ocorrem mais três conferências até o ano de 2015 caracterizando-as como frequentes e mobilizadoras. Através dessas conferências é possível estabelecer espaços onde a sociedade pode discutir e interagir, produzindo assim medidas para alcançar resultados necessários. Portanto, as Conferências de SAN auxiliam na construção de Políticas Públicas de SAN trazendo-as para o debate político (Ramos & Santos, 2020).
Outro componente importante do SISAN é o CONSEA que articula o Estado e a Sociedade Civil através de um espaço intersetorial que possibilita a construção de Políticas voltadas a SAN participando na formulação, monitoramento e avaliação destas. Além do CONSEA, existe a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), um órgão que possui diferentes setores do governo sendo esta importante para a intersetoriedade das Políticas de SAN. As discussões que ocorrem na CAISAN são derivadas das demandas do CONSEA, sendo assim esta pode criar respostas e soluções para as necessidades levantadas através dos ministérios. Já o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN) é um documento discutido pelo CONSEA e CAISAN que é usado como ferramenta para materialização da Política de SAN, sendo considerado fundamental para a intersetoriedade das ações (Moraes, Machado & Magalhães, 2021).
Já Cabo Verde, pela Lei nº 37/IX/2018, no Artigo 20.º define a natureza e composição do sistema, sendo o Estado de Cabo Verde, representado por instituições públicas locais e central; a Sociedade Civil representada por associações, cooperativas, famílias produtivas, organizações não-governamentais e redes de associações; as Universidades; o Setor Privado e o Indivíduo sozinho ou em contexto familiar, comunitário e/ou num grupo especial integrantes do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Cabo Verde, 2018). Ao observar-se tal composição deste sistema em Cabo Verde é notável que a participação social no contexto da Segurança Alimentar e Nutricional é garantida por legislação, o que é essencial, pois assim a população pode intervir e expor suas demandas no que tange à alimentação e nutrição.
Ademais, outros aspectos importantes para a execução da SAN e DHAA como as Políticas de Alimentação e Nutrição, Agricultura Familiar, Alimentação Escolar e Educação Alimentar e Nutricional (EAN) foram analisadas entre os países da CPLP e percebe-se que não são todos os países que possuem ações e/ou programas nestas temáticas, sendo que alguns países se encontram mais fragilizados no âmbito de políticas nesses temas, no caso a Angola, Guiné Equatorial e Timor-Leste (Quadro n.º 2).
Em relação à temática da Alimentação e Nutrição na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, apenas o Brasil e São Tomé e Príncipe possuem uma Política Pública voltada a esta. A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) do Brasil tem como propósito “Melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população brasileira, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis, a vigilância alimentar e nutricional, a prevenção e o cuidado integral dos agravos relacionados à alimentação e nutrição” (Brasil, 2013).
Já a Política Nacional de Nutrição e Alimentação de São Tomé e Príncipe (PNNA) visa implementar ações com a finalidade de “promoção, no quadro da alimentação e do modo de vida, dos fatores de proteção da saúde e da redução de exposição aos fatores de risco de doenças crônicas” (República Democrática de São Tomé e Príncipe, 2018). Estas ações de Alimentação e Nutrição, especialmente no escopo da Atenção Básica, visam o trabalho intersetorial, a fim da promoção da saúde e alimentação saudável, visando o combate às carências nutricionais, problemáticas de alimentação e nutrição, como o sobrepeso e obesidade, e ainda, ações de clínica ampliada e o aumento da resolutividade das abordagens previstas (Bortolini et al., 2020).
Outra temática importante para a execução da SAN é a Agricultura Familiar (AF). No Brasil, esta é fundamental, pois os alimentos consumidos pelos brasileiros são maioritariamente advindos desse modelo de produção. Além disso, a AF garante renda para as pessoas que vivem no campo (CONAB, 2021). Uma característica importante da agricultura familiar é que a gestão é realizada pela família e a renda gerada por essa atividade é a principal fonte de renda. Ademais, os alimentos cultivados além de serem comercializados são direcionados para a alimentação da família, o que dá outra característica essencial desse modelo de produção de alimentos: a diversidade de alimentos cultivados (Brasil, 2019).
Além da agricultura familiar, outro ponto importante para a garantia do DHAA e SAN é a alimentação escolar. Os hábitos alimentares adquiridos na infância e adolescência de um indivíduo perduram na vida adulta, dessa forma é importante que atividades educativas sejam desenvolvidas na escola. A oferta de uma alimentação saudável, com variedade, que atenda as demandas nutricionais dos estudantes e que esteja de acordo com a cultura alimentar daquela região é essencial no ambiente escolar, pois se torna um instrumento de educação alimentar e nutricional. Além disso, essas refeições oferecidas permitem que os alunos consumam alimentos in natura (frutas, verduras e legumes) e deixem de consumir os produtos ultraprocessados (Kassaoka & Raimundo, 2017).
No Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem por objetivo “contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos saudáveis dos alunos” para que isso ocorra atividades de EAN são desenvolvidas e refeições saudáveis são ofertadas aos alunos enquanto estão nas escolas. Além disso, a alimentação ofertada visa atender as necessidades nutricionais destes (Brasil, 2015). Na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa oito dos nove países apresentam alguma política pública relacionada à alimentação escolar. Tal fato mostra que esses Estados estão contribuindo para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e Segurança Alimentar e Nutricional visto a importância de tal política pública.
Já a Educação Alimentar e Nutricional fornece autonomia para que um indivíduo tenha hábitos alimentares saudáveis e assim, assegurar o DHAA. Para tanto, a EAN deve ser intersetorial, transdisciplinar, multiprofissional, permanente e contínua (Brasil, 2018a). No Brasil, através da Lei 13.666/2018 o tema Educação Alimentar e Nutricional foi incluído no currículo escolar, de maneira transversal (BRASIL, 2018b). Em relação a essa temática na CPLP o Brasil se destaca, pois é o único que apresenta uma lei específica de EAN. Já os demais possuem apenas legislações e artigos que relacionam a Educação Alimentar e Nutricional com os programas de alimentação escolar, como por exemplo, os Estados de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que enfatizam o desenvolvimento de ações de EAN nas escolas através das legislações referentes aos programas PNASE. No caso de Cabo Verde, no Decreto-lei nº 11/2016 é trago no Artigo 16.º que ações de educação alimentar devem ser desenvolvidas no âmbito da saúde escolar, e ainda, no Artigo 18.º é dito que cabe ao subprograma saúde escolar desenvolver atividades como fazer o diagnóstico sistemático e o acompanhamento do estado nutricional e de saúde dos alunos, distribuir suplemento de ferro, dentre outras (Cabo Verde, 2016). Já São Tomé e Príncipe pela Lei 04/2012, no Artigo 5.º n.º 2, traz que uma das orientações do PNASE é a realização e promoção de atividades de educação nutricional (República Democrática de São Tomé e Príncipe, 2012).
Além dessas políticas vinculadas a alimentação e nutrição, agricultura familiar, alimentação escolar e educação alimentar e nutricional, outras como os Programas de Transferência de Renda (PTR), acesso e aquisição de alimentos estão relacionados com o Direito Humano à Alimentação Adequada e Segurança Alimentar. Na CPLP existem alguns países que se encontram mais defasados no âmbito dessas políticas como nos casos de Guiné Equatorial e Portugal (Quadro n.º 3).
Países | Acesso aos alimentos | Aquisição de Alimentos | Programa de Transferência de Renda |
Angola | Estratégia de Combate à pobreza | Programa de Aquisição de Produtos Agropecuários PAPAGRO Decreto Executivo nº 506/15 de 3 de Agosto de 2015 (O presente Regulamento estabelece os procedimentos referentes à operacionalização do PAPAGRO, na aquisição de produtos agropecuários, apícolas e pesqueiros por agentes do sector privado, constituídos em associações e cooperativas, no quadro do seu apoio e colaboração na luta contra a fome e a pobreza e na conquista de melhorias substanciais das condições de vida da população) | Programa de Fortalecimento da Proteção Social - Transferências Sociais Monetárias KWENDA Decreto Presidencial nº 125/20 de 4 de maio de 2020 (É aprovado o Programa de Fortalecimento da Proteção Social - Transferências Sociais Monetárias, denominado KWENDA) |
Brasil | Programa Fome Zero (2003) | Programa Alimenta Brasil Lei nº 14.284 de 29 de dezembro de 2021 (Institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil; define metas para taxas de pobreza; altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993; revoga a Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e dispositivos das Leis nos 10.696, de 2 de julho de 2003, 12.512, de 14 de outubro de 2011, e 12.722, de 3 de outubro de 2012; e dá outras providências) | Programa Auxílio Brasil Lei nº 14.284 de 29 de dezembro de 2021 (Institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil; define metas para taxas de pobreza; altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993; revoga a Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e dispositivos das Leis nos 10.696, de 2 de julho de 2003, 12.512, de 14 de outubro de 2011, e 12.722, de 3 de outubro de 2012; e dá outras providências) |
Cabo Verde | Não há | Decreto-Lei nº11/2016 de 22 de fevereiro Artigo 22º (Sempre que seja exequível, e respeitando a lei de aquisição pública, a FICASE deve celebrar contratos com produtores e fornecedores locais para o fornecimento direto de produtos às unidades escolares) | Não há |
Guiné-Bissau | Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza da Guiné-Bissau DENARP II 2011-2015 | Decreto-Lei nº 1/2019 (Artigo 4º- Diretriz E: o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de gêneros preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares) | Não há |
Guiné Equatorial | Não há | Não há | Não há |
Moçambique | Planos de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta PARPA II 2006-2009 Programa Quinquenal do Governo 2020-2024 | Uma diretriz do PRONAE - a compra local de gêneros alimentícios | Programa Subsídio Social Básico PSSB Decreto nº 47/2018 de 6 de Agosto de 2018 (O Programa Subsídio Social Básico, adiante designado PSSB, consiste em transferências monetárias regulares mensais, por tempo indeterminado visando reforçar o nível de consumo, autonomia e resiliência dos grupos da população que vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade, bem como a melhoria da nutrição das crianças) |
Portugal | Não há | Não há | Não há |
São Tomé Príncipe | Estratégia Nacional de Redução da Pobreza ENRP-II 2012-2016 | PNASE (Artigo 41º - Preferência à compra de produtos nos mercados localizados na proximidade das respectivas unidades escolares, promovendo assim a capitalização da economia local e promoção da produção agropecuária) | Estratégia Nacional de Proteção Social - Política de reformulação dos programas existentes |
Timor-Leste | Plano Estratégico de Desenvolvimento Decreto-Lei nº 10 /2022 de 4 de Março de 2022 (Aprova medidas de reforço da distribuição de cesta básica às famílias timorenses mais necessitadas e de apoio aos operadores económicos locais e cria um regime especial de aprovisionamento para o efeito, no âmbito do Plano de Recuperação Económica) | Lei nº 8 /2021 de 3 de Maio de 2021 (Primeira alteração à Lei nº 14/2020, de 29 de dezembro, Orçamento Geral do Estado para 2021 e aprovação de medidas de apoio socioeconómico) (Artigo 18º - Aquisição de alimentos (O Centro Logístico Nacional deve proceder, durante o ano de 2021, à aquisição de alimentos aos produtores nacionais, até ao limite da dotação estabelecida para esse efeito, podendo recorrer à importação de alimentos apenas quando não exista, comprovadamente, oferta de produtores nacionais disponível no mercado nacional)) | Programa Bolsa da Mãe-Nova Geração Decreto-Lei nº 22/2021 de 10 de Novembro de 2021 (Cria os subsídios de gravidez e para crianças, designado por subsídios “Bolsa da Mãe-Nova Geração” e procede à primeira alteração ao Decreto-Lei nº 18/2012 de 4 de Abril de 2012) |
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão estabelecidos no documento Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável aprovado em 2015. Dentre os dezessete ODS, o segundo refere-se à fome zero e agricultura sustentável (Valadares & Alves, 2019). Tal fato demonstra a preocupação global ao combate à fome. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), mais de 125 mil pessoas vivem em situação de insegurança alimentar e mais de 33 milhões vivem em situação de fome. Esse cenário atual do país demonstra a injustiça e desigualdade social a que os brasileiros estão sujeitos (Rede PENSSAN, 2022).
Já em Timor-Leste, cerca de 36% da população vive em insegurança alimentar moderada ou severa e 39% vive em insegurança alimentar ligeira, totalizando assim 75% da população do país vivendo em insegurança alimentar. Os principais fatores que influenciam esse cenário em Timor-Leste são a desnutrição crônica e a má alimentação (Timor-Leste, 2019). Frente a esses dados e aos resultados encontrados do acesso a alimentos nos países da CPLP, faz-se necessário que medidas sejam tomadas para alcançar o ODS número 2 referente à fome zero e garantir a Segurança Alimentar e Nutricional para a população dos países que compõem essa Comunidade.
Pensando nesse contexto, outro aspecto importante para a garantia do DHAA e SAN são as Políticas Públicas de aquisição de alimentos, pois fortalecem a agricultura familiar. No Brasil, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), denominado hoje de Programa Alimenta Brasil, e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) são políticas que incentivam o comércio de alimentos da agricultura familiar formando assim um mercado institucional em que o Estado se torna um comprador desses alimentos. Tal fato possibilita que as famílias tenham uma fonte de renda e preços estáveis, além da segurança alimentar para quem irá receber aqueles alimentos (Sousa, 2021).
Observando a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa percebe-se que nem todos seus países membros possuem uma política de aquisição de alimentos específica. Tal fato é encontrado em Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe que possuem a aquisição de alimentos da agricultura familiar e produtores nacionais vinculados apenas na alimentação escolar. Porém, isso ocorre de forma sutil uma vez que não são obrigatórias tais compras institucionais, mas há o incentivo e preferência para alimentos desse modelo de produção. No Brasil, o atual Programa Alimenta Brasil apresenta-se como uma importante estratégia à abertura de canais de comercialização e a inclusão produtiva rural, promovendo o abastecimento alimentar por meio de compras governamentais de alimentos e incentivando hábitos alimentares saudáveis e estimulo ao cooperativismo e associativismo (Cunha, Freitas & Salgado, 2017; Sambuichi et al., 2020). Para mais, os Programas de Transferência de Renda também são essenciais para o combate à fome e garantia do DHAA e SAN. Na CPLP observa-se que apenas cinco dos nove países possuem alguma política pública nesse âmbito. Sendo assim, há uma fragilidade voltada a essa temática na comunidade. Contudo, é notável a importância de uma política de transferência de renda, uma vez que essas causam efeitos positivos na economia do país (Silva & Ferreira Filho, 2018).
Por fim, vale ressaltar que os países que compõem a CPLP são diferentes em diversos aspectos que influenciam o cenário governamental de cada um e consequentemente as Políticas Públicas, podendo citar-se como exemplo a colonização pelos portugueses nesses Estados. Os países Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste tiveram sua independência de Portugal somente em 1975. Em contrapartida, o Brasil que foi colonizado também pelos portugueses teve sua independência em 1822, completando em 2022 duzentos anos (Feldman, 2019). Além disso, alguns dos países da Comunidade estão entre os mais pobres do mundo, como é o caso de Moçambique e Guiné-Bissau (Bouene, 2020; Embalo, Wilke & Joia, 2020; Vicente, 2017). Frente à realidade de cada país da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, pode-se dizer que estes são distintos e que muitos sofrem até hoje com os problemas deixados pela colonização portuguesa e crise política que afetam a sociedade e o governo.
Considerações finais
Pode-se afirmar que, apesar de existirem Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, alguns Estados-Membro encontram-se fragilizados, pois a maioria não possui legitimado de maneira clara o direito à alimentação que seria a base para se exigir e garantir o DHAA. Além disso, muitas políticas que interferem no contexto da Segurança Alimentar e Nutricional encontram-se defasadas ou limitadas, como por exemplo, na aquisição de alimentos e Educação Alimentar e Nutricional. Observando as oito temáticas de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional dentro da CPLP, foi possível notar que apenas o Brasil tem uma política para cada eixo escolhido se destacando assim entre os membros da comunidade. Já os demais países possuem algumas falhas na elaboração de políticas de SAN.
Porém, apesar de muitos desses Estados não apresentarem essas Políticas para alguns eixos abordados, pode-se afirmar que as estratégias, planos e programas que estes possuem impactam fortemente a realidade da população, pois são conquistas importantes dos países, principalmente ao se pensar na realidade de cada um destes. Assim, este trabalho evidencia que a luta pelo direito fundamental da alimentação humana e pela SAN devem ser constantes e que as Políticas Públicas devem ser efetivadas pelos Estados, pois só assim as populações poderão viver com dignidade e qualidade de vida, livre da fome e da insegurança alimentar e nutricional.
No cenário brasileiro, este estudo foi realizado durante o período pós-Covid 19 e durante o Governo Presidencial anterior (2019-2022). Neste período, vários ataques à democracia brasileira tiveram repercussão internacional, além de constantes ameaças às Políticas Públicas no país. A extinção do CONSEA, em seu primeiro ato político em 2019, foi um exemplo da tentativa de desmonte da Participação Social na agenda de SAN no país. Em 2023, com o Governo Federal vigente, o CONSEA foi retomando, e com isso, o estado brasileiro reafirma o seu compromisso de combate à fome no país, e ainda, de garantir a participação popular, por meio da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, realizada em dezembro de 2023, com o tema “Erradicar a fome e garantir direitos com Comida de Verdade, Democracia e Equidade”.