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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.41 Porto jun. 2024  Epub 02-Set-2024

https://doi.org/10.52224/21845263/rev41a1 

Dossier Temático

Uma Perspetiva Histórica sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974

A Historical Perspective on the Revolution of April 25, 1974

1CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, Porto, Portugal.


Resumo

O presente artigo pretende efetuar uma análise comparativa entre a Revolução de 25 de Abril de 1974 e as suas duas antecessoras no Portugal Contemporâneo (1910 e 1820), procurando compreender a importância relativa de cada uma delas, apreender os traços comuns a todas elas e as características distintas que as permitem individualizar e detetar os legados que estes fenómenos revolucionários deixaram à sociedade portuguesa.

Palavras-chave: Revolução de 25 de Abril de 1974; Revolução Liberal de 1820; Revolução de 5 de Outubro de 1910; Liberalismo; República; Democracia.

Abstract

This article aims to carry out a comparative analysis between the Revolution of April 25, 1974, and its two predecessor revolutions in Contemporary Portugal (1910 and 1820). The objective is to understand the relative importance of each revolution, identify the common traits among them, and distinguish the unique characteristics that individualize them. Additionally, this study seeks to detect the legacies these revolutionary phenomena have left on Portuguese society.

Keywords: Revolution of April 25, 1974; Liberal Revolution of 1820; Revolution of October 5, 1910; Liberalism; Republic; Democracy.

Introdução

A Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974 constituiu a primeira da vaga revolucionária que varreu a Europa meridional na década de 1970, extinguindo as anacrónicas ditaduras que aí subsistiam e abrindo caminho para a entrada de três países na Comunidade Económica Europeia (CEE).

Assim, a Grécia, que sofreu um golpe de Estado em 4 de abril de 1967, implantando a “Ditadura dos Coronéis”, foi derrubada em 1974. A Espanha, em regime de ditadura desde 1939 com o general Francisco Franco, volta à Democracia em 1975, após a sua morte, fortemente influenciada pelos acontecimentos de Portugal. E Portugal, que conheceu um regime ditatorial a partir de 1926, recupera a Democracia, como vimos, em 1974, com o “Movimento dos Capitães”.

No caso português (como nos outros dois países), não se trata do início do regime democrático, outrossim, de retomar a Democracia, uma vez que o regime constitucional, a separação dos poderes, o pluralismo político e partidário, a liberdade de opinião e expressão, surgiram, pela primeira vez, com a Revolução Liberal do Porto, em 1820, estabelecendo-se, definitivamente, após uma sangrenta guerra civil, em 1834.

Entre 1974-1975, ou seja, durante o período revolucionário, designado, mais tarde, como PREC - Processo Revolucionário em Curso, são rapidamente extintos os organismos de inspiração fascista - como a polícia política (PIDE-DGS), a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, a União Nacional (partido único), a Assembleia Nacional e Câmara Corporativa - e inicia-se o processo de democratização e independência das nossas colónias - Guiné, ainda em 1974, seguida, no ano seguinte, de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola, tendo-se mantido o caso do território de Timor em suspenso durante largos anos, uma vez que, entretanto, foi ocupado pela Indonésia.

Durante longos meses assistimos à tentativa de instauração de uma ditadura esquerdista em Portugal, sobretudo após o movimento militar de 11 de março de 1975, que inicia a nacionalização da banca, de companhias de seguros e outras instituições que, sob o pretexto da “legalidade revolucionária”, da “Frente Popular”, assim designada, são ocupadas pelos trabalhadores e populares, jornais, empresas, propriedades privadas, etc. É igualmente institucionalizado o Conselho da Revolução formado por militares, ignorando-se praticamente os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte, de 25 de abril de 1975, que deram clara vitória ao Partido Socialista (PS).

Regressadas as unidades militares que se encontravam nas colónias - estas, entregues a forças ou partidos comunistas -, um novo movimento militar em 25 de Novembro de 1975 liquida definitivamente a “tentação totalitária”, defendendo-se, a partir de então, um regime político de tipo ocidental - “a normalização democrática” -, terminando a unidade sindical - a Constituição irá garantir a formação livre de novos sindicatos -, aprovando uma nova Constituição da República Portuguesa (1976), elegendo por voto universal um Presidente da República (1976) e levando à criação do I Governo Constitucional (1976).

Formula-se, em 1977, o pedido de adesão à CEE, mas o Conselho da Revolução, com largos poderes, só vai ser extinto em 1982 com a primeira revisão constitucional - substituído pelo Conselho de Estado -, que a isso obrigava a nossa integração na União Europeia (anterior CEE), de que passamos a ser Estado-Membro desde 1 de janeiro de 1986.

A bibliografia sobre o 25 de Abril de 1974 e anos seguintes é extensíssima, permitindo-nos, assim, escrever as breves notas que aqui deixamos sobre este facto tão relevante da nossa história, cuja interpretação está ainda hoje longe de ser consensual, apesar de já terem decorrido cinco décadas.

Afastando-nos dessa problemática e polémica, o objetivo que agora perseguimos é o de efetuarmos uma análise comparativa entre as três revoluções que marcaram o Portugal Contemporâneo, ou seja, as que ocorreram em 1974, 1910 e 1820. Pretendemos, fundamentalmente, compreender a importância relativa de cada uma delas, apreender as transformações que provocaram e que vieram, em menor ou maior grau, a influenciar e determinar, porventura, o tempo presente, com todas as grandezas e misérias que se detetam no Portugal de hoje, bem diferente, sem dúvida, caso não tivessem ocorrido estes fenómenos revolucionários.

Escreveu-se, por exemplo, que com 1974-1975, “Portugal sofreu a mais profunda mudança da sua história, não só do ponto de vista do sistema político, mas também nos aspetos fundamentais das conceções, estruturas e relações sociais e económicas” (Afonso, 2004, p. 51). Por sua vez, António Reis, na sua obra Portugal Contemporâneo, irá dizer que a Revolução de 25 de Abril de 1974 representa “um marco fundamental não apenas na história do Portugal Contemporâneo, mas em toda a história da nacionalidade” (Reis, 1992, II, p. 7).

Manuel de Lucena, porém, citado por Medeiros Ferreira, considera quanto ao 25 de Abril de 1974 que “a queda do regime autoritário” não impediu uma certa continuidade que prevaleceu “sobre as ruturas ocorridas” e “realça a persistência do corporativismo de associação na sociedade portuguesa e, mesmo…na Constituição vê relevantes semelhanças entre a plebiscitada em 1933 e a aprovada pela Assembleia Constituinte de 1976” (Ferreira, 1993, VIII, p. 8).

Por seu lado, Rui Ramos entende que existem “dois grandes momentos de transformação na História contemporânea portuguesa”, a Revolução Liberal de 1834, que liquidou o Antigo Regime, fazendo com que “o Estado e a política contemporânea” ficassem “definidos nas suas estruturas básicas”, correspondendo o segundo à mudança operada após a Segunda Guerra Mundial, “talvez a rutura mais radical da História social portuguesa” (Ramos, 2010, p. 762-763).

Face a interpretações distintas, quanto à Revolução de 25 de Abril de 1974, parece-nos que a melhor maneira de avaliarmos a intensidade do impacto provocado por esta será compará-la com as anteriores revoluções do Portugal Contemporâneo, perceber o que é que os fenómenos revolucionários de 1820-1834, 1910-1911 e 1974-1975 tiveram de comum e simultaneamente de irreversíveis, detetar ruturas que se prolongaram no tempo, acabando por se tornarem património adquirido e definitivo da sociedade portuguesa. É o que vamos fazer.

1. A mãe de todas as revoluções - 1820

Em 24 de agosto de 1820, na sequência do descontentamento generalizado que se fazia sentir em Portugal - provocado, entre outros fatores, pela ausência do Rei D. João VI no Brasil; pela saída contínua de dinheiro, sob a forma de rendas e contribuições, para a América portuguesa; pela decadência do comércio, tendo em vista os novos privilégios concedidos aos britânicos; pelas dificuldades financeiras crescentes; pelo esmagador domínio inglês na administração portuguesa e no Exército -, e, por outro lado, devido ao triunfo do liberalismo em Espanha, teve lugar no Porto uma Revolução Liberal, à qual acabou por aderir todo o Reino.

Simbolicamente, marca o fim do Antigo Regime em Portugal, o qual, segundo Vitorino Magalhães Godinho, surge com os Descobrimentos (séculos XV-XVI) e caracteriza-se por ser uma organização política de monarquia absoluta a que corresponde uma sociedade dividida em “ordens” ou “estados”, se bem que só termine definitivamente em 1834, após uma violenta guerra civil entre liberais e absolutistas.

O triunfo do liberalismo em Portugal marca uma profunda rutura no País sob o ponto de vista político, económico e social.

Sob o ponto de vista político-jurídico, a Constituição de 1822, aprovada pelas Cortes Constituintes de 1821-1822, subordina a organização do poder político aos princípios da soberania nacional, da representação através do Parlamento constituído por cidadãos legalmente eleitos; a independência dos poderes legislativo, executivo e judicial (quatro com a Carta Constitucional de 1826, uma vez que contempla o poder moderador, do rei); e os direitos individuais, nomeadamente a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, a liberdade de opinião e expressão, a liberdade de imprensa, a abolição da censura, etc.

Criou-se também o Supremo Tribunal de Justiça (1821 e 1832-1833) e procedeu-se, em 1832, à separação das magistraturas administrativas e judiciárias (Marques, 1993, V, p. 167-181; Marques, 1981, III).

Oliveira Marques escreveu, e bem, que “os princípios básicos do Liberalismo” mantiveram-se “e foram cumpridos durante todo o período monárquico constitucional (1820-1910) e mesmo durante a 1.ª República (1910-1926)” (Marques, 1981, III, p. 53-54), e com exceção da Ditadura que ocorreu entre 1926-1974, vieram até hoje.

Sob o ponto de vista económico, a Revolução Liberal do Porto em 1820, que ocorreu no âmbito da uma grave crise económica, caracterizada por uma acentuada baixa de preços, seguida da instauração definitiva do Liberalismo em Portugal (1834) vai criar “um novo quadro institucional para a economia em geral” (Rodrigues & Mendes, 1999, p. 187), liquidando o Antigo Regime e com ele muitos dos bloqueios que constrangiam a economia nacional, baseada fundamentalmente na agricultura.

Com tal objetivo, procedeu-se à abolição dos votos de Santiago - taxa cobrada sobre produtos agropecuários no Norte de Portugal -, dos dízimos - décima parte da produção agrícola -, e de outros direitos de natureza eclesiástica; à abolição das coutadas, “serviços pessoais e direitos banais”, próprios do regime senhorial; à abolição dos direitos da Coroa sobre as terras que tinham sido doadas; à abolição dos direitos de portagem que impediam a livre circulação de mercadorias no Reino, inclusive entre concelhos; à redução/reforma dos forais, ou seja dos numerosos encargos pagos ao rei ou donatários (1822), que vão ser extintos em 1832, definitivamente, em 1846, no Governo de Costa Cabral; à extinção dos senhorios e pequenos morgadios; à extinção das ordens religiosas masculinas (1834), revertendo os seus bens para o Estado e vendidos em hasta pública; à passagem dos bens da Coroa - propriedades, capelas, direitos, comendas, etc. - a bens nacionais (1834).

Por outro lado, a sociedade portuguesa liberal, implantada definitivamente com o triunfo do Liberalismo em 1834, caracteriza-se fundamentalmente pela afirmação da burguesia, que lenta mas irreversivelmente acaba por adquirir uma “consciência de classe” na segunda metade do século XIX (Marques, 1981, III).

Grande, média ou pequena burguesia, burguesia rural ou urbana, burguesia comercial, financeira ou industrial, é ela que vai substituir a aristocracia típica do Antigo Regime e chamar a si a supremacia da vida política, da banca, do comércio, da indústria e da propriedade fundiária (graças à venda dos bens nacionais), o exercício das profissões liberais, os quadros do funcionalismo público, nomeadamente das forças armadas e os professores do ensino superior e universitário.

Isto não quer dizer que, durante o Antigo Regime, a burguesia não fosse ganhando, progressivamente, um importante papel na vida nacional, sobretudo com o consulado pombalino (1750-1777). E também não queremos dizer que, com o Liberalismo no século XIX, não se verificou a “sobrevivência dos aristocráticos e a persistência de valores tradicionais”, que, de certo modo, como explicou Vitorino Magalhães Godinho, limitaram a “instauração da nova ordem social”, a civilização burguesa que tardou em afirmar-se. Mas é com o liberalismo que este grupo social acaba por se tornar dominante, desempenhando um papel fundamental na construção do Portugal Contemporâneo.

As hierárquicas e arcaicas “ordens” ou “estados” do Antigo Regime dão lugar às “classes”, em particular às classes da burguesia e do operariado. Os “vassalos” ou “súbditos” transformam-se em “cidadãos”, que passam a gozar de “igualdade civil”. O mérito individual vai substituindo os privilégios da “aristocracia de nascimento”, que dá lugar, durante o Constitucionalismo Monárquico, à “aristocracia de nobilitação”, através da concessão de títulos aos oficiais do Exército e a burgueses, e, finalmente, a uma autêntica sociedade burguesa, que passa a secundarizar os títulos nobiliárquicos, reforçando o seu estatuto de “categoria social distinta”, construindo “modelos de conduta e de comportamentos específicos”, que a distinguem dos outros grupos e classes.

A nobreza titular do Antigo Regime, desprovida dos seus privilégios, comendas e direitos feudais (1821-1846) e dos vínculos (1832-1863), vai entrar em declínio, ceder o lugar à aristocracia constitucional, nobilitada, dos viscondes e barões, e aproximar-se da burguesia dominante, a quem cede, progressivamente, a responsabilidade governativa, até à proclamação da República em 1910, que termina com os títulos nobiliárquicos (Marques, 1981, III, p. 118-120).

O clero, desprovido dos benefícios e privilégios de que gozou durante o Antigo Regime, uma vez extintos os dízimos por decreto de 30 de julho de 1832, que até então, direta ou indiretamente, garantiam a sua subsistência e bem-estar, passou a receber, mais tarde, uma côngrua, verba a que, no caso dos párocos, eram deduzidos os rendimentos dos passais e pé de altar, “as esmolas de missas, ofícios e festividades e os emolumentos de batizados, casamentos e outros” (Santos & Cruz, 2004, X, p. 151), reduzindo-o assim a uma penosa dependência, quer quanto ao Estado, quer quanto aos seus paroquianos, e limitando fortemente a multissecular influência social e moral que detivera até então - tanto mais reduzida quanto a burguesia se revelava anticlerical.

2. A mãe da República que mudou o nosso tempo - 1910

A Revolução de 5 de Outubro de 1910, que estabeleceu a República em Portugal, deve ser considerada como o termo final do processo revolucionário aberto no Porto com a Revolta de 31 de Janeiro de 1891. O Partido Republicano Português, fundado em 1876, herdeiro das tradições, ideias e princípios republicanos que remontam a 1820, registou até 1890 uma escassa implantação nas massas populares. Nesse ano, porém, a afronta do Ultimatum permitiu que os republicanos acusassem a Monarquia de cedência dos territórios africanos aos ingleses - como se pudesse ter outra posição - e transformassem rapidamente as manifestações antibritânicas em manifestações antimonárquicas.

Daí em diante, sobretudo após 1891, o Partido Republicano não só engrossou as suas fileiras, como se gerou no País uma importante corrente de opinião favorável ao estabelecimento da República. A crise económica de 1891-1892 e os difíceis anos que se lhe seguiram, com a depreciação da moeda, o aumento da dívida pública, a contração dos investimentos, a elevadíssima taxa de analfabetismo e o crescimento da emigração, demonstravam à opinião pública a falência da Monarquia, assim como dos partidos e dos governos que a suportavam, aqueles fragmentados por graves dissensões, estes desacreditados pela corrupção política.

O Partido Republicano, antimonárquico por definição e anticlerical por formação, consubstanciava os anseios da pequena e média burguesia urbana, a qual, preocupada com a dependência económica do País e o futuro das colónias, sentia que o progresso e o desenvolvimento nacional obrigavam à mudança do regime. Com efeito, a aspiração republicana de uma boa parte da burguesia portuguesa, após 1890, face à extinção na economia portuguesa dos traços fundamentais do Antigo Regime, assumiu o caráter de uma tomada de consciência nacional, que visava à modernização do País.

Os primeiros anos do século XX vão assistir a um reacender da tradição revolucionária do Partido Republicano. Em 1906, deu-se a Revolta dos Marinheiros e, em 1907, a greve académica culminou um período de forte agitação social que levou à instauração da ditadura franquista.

Em 1908, fracassou uma nova tentativa de conquista do poder. Mas, nesse mesmo ano, o Rei D. Carlos e o príncipe herdeiro tombavam assassinados. No ano seguinte, a Maçonaria, organização formada na sua maioria esmagadora por republicanos, mandatou uma comissão para levar a efeito a revolução.

Em 1910, a 28 de agosto, o Partido Republicano obteve em Lisboa uma estrondosa vitória, elegendo dez deputados pela capital. Finalmente, a 5 de outubro, na sequência de uma revolução que teve lugar em Lisboa, foi proclamada a República.

A Portuguesa é adotada como hino nacional e a Bandeira Nacional passa a ter as cores da bandeira da revolta do Porto de 1891, verde e rubra. Uma nova Constituição, em 1911, substitui definitivamente a Carta Constitucional de 1826, embora, no essencial, nada se tenha alterado. Como moeda, o escudo sucede ao real e uma reforma ortográfica irá simplificar a escrita da língua portuguesa.

O primeiro aspeto que importa registar é a profunda instabilidade política e social que logo se fez sentir. O Partido Republicano Português divide-se e vai dar origem a novos partidos e grupos políticos. Surgem revoltas, conspirações e incursões monárquicas ao longo de toda a Primeira República.

A instauração da República em Portugal abriu o período mais dramático da História da Igreja em Portugal. A hostilidade para com a Igreja Católica, no século XIX, nunca deixou de se manifestar e o anticlericalismo demonstrado por alguns setores da população e corroborado pelos principais órgãos da imprensa diária, constituía uma realidade incontestável - anticlericalismo tanto mais radical quanto, a partir da década de 1860, se assistiu a uma maior intervenção da Igreja na sociedade portuguesa e a uma inegável renovação da vida espiritual.

Mas foi com a Primeira República que a luta do Estado contra a Igreja se exacerbou e conheceu a sua fase mais aguda, vendo nesta, e não nos monárquicos, o adversário principal. Uma vez proclamada, escreveu Oliveira Marques, “a República identificou-se com a luta contra a Igreja”, multiplicando-se as manifestações de hostilidade contra os sacerdotes e religiosos, levando à saída do núncio apostólico de Lisboa e do bispo de Beja, ainda em 1910.

Foram abolidos os juramentos e as invocações de tipo religioso (18 de outubro de 1910), incluindo os das escolas, suprimidos os feriados católicos e decretado o registo civil obrigatório de nascimentos, casamentos e óbitos, que começou a vigorar em 1 de abril de 1911. A legislação revolucionária declarou livres todos os cultos, proibiu o ensino da doutrina cristã nas escolas e o ensino geral aos sacerdotes, suprimiu os seminários, estabeleceu o divórcio (3.11.1910), nacionalizou os bens da Igreja, incluindo os próprios templos e residências dos párocos, e introduziu uma fiscalização rigorosa sobre as manifestações de culto. Os sacerdotes foram proibidos de usar vestes talares fora das igrejas, e proibição semelhante recaiu sobre as procissões e manifestações religiosas públicas. Os cemitérios foram secularizados.

Despojados da côngrua que recebiam e de todos os seus bens, na sequência da Lei da Separação do Estado das Igrejas, de 20 de abril de 1911, o Estado atribuiu aos párocos uma pensão para a sua subsistência, recusada pela maior parte do clero - apenas cerca de 700 sacerdotes terão reclamado esse direito. No que diz respeito ao clero secular, logo um decreto de 8 de outubro de 1910 mandou continuar em vigor as leis de 1759 e 1767, que tinham expulsado os jesuítas, e o decreto de 1834, que extinguira as ordens religiosas; anulou o decreto de 1901 que autorizara a existência das congregações religiosas desde que se dedicassem exclusivamente à educação, beneficência, propaganda da fé e civilização no Ultramar; e determinou que os “membros das demais companhias, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou outras casas de religiosos pertencentes a ordens regulares” fossem expulsos do território da República Portuguesa, quando estrangeiros, e compelidos a “viver vida secular ou, pelo menos, a não viverem em comunidade religiosa”, sendo de nacionalidade portuguesa.

A 15 do mesmo mês, as irmãs de caridade foram substituídas nos hospitais por enfermeiras laicas. E no último dia de 1910, nova legislação regulou a posse para o Estado dos bens das extintas corporações religiosas e proibiu todos os membros de associações religiosas autorizados a viver em Portugal de exercerem o ensino ou intervirem na educação, “quer como professores ou empregados, quer como diretores ou administradores de quaisquer institutos ou estabelecimentos de ensino, seja diretamente, seja por interposta pessoa”.

Com tais medidas, que constavam já do programa apresentado por Trindade Coelho, no seu Manual Político do Cidadão Português, em 1906, para combater a “reação”, a República não só erradicava de Portugal os institutos religiosos, como também impedia, definitivamente, qualquer dos seus membros de continuarem na assistência ou de participarem de algum modo no ensino.

Mas as divisões entre os republicanos, moderados e radicais mantiveram-se e acentuaram-se durante a existência da Primeira República (1910-1926), gerando novos partidos políticos e uma permanente instabilidade governamental e social, com movimentos revolucionários a pôr em causa a República, que limitou o sufrágio universal, criando-se, assim, um ambiente pouco democrático na sociedade portuguesa.

Na economia pouco ou nada se alterou - não houve qualquer “alteração substancial” na questão agrária e no regime de propriedade; a indústria manteve valores modestos, dependente de capitais estrangeiros, sendo de registar apenas as conservas de peixe, a indústria química e cimenteira; o comércio externo pouco mudou; e as infraestruturas dos transportes e comunicações não conheceram qualquer alteração significativa, agravando-se até nalguns setores. Fragilizada pela intervenção de Portugal na Primeira Guerra Mundial (1916-1918), a Primeira República morreu em 1926, na sequência de uma “severa depressão” (Marques, 1981, III).

Sob o ponto de vista social, também a vida dos portugueses pouco se alterou, com a pequena e média burguesia, que fizeram a República, a revelar-se descontente com o regime. E o clero, como já referimos, viu-se desprovido dos seus tradicionais recursos e perseguido.

Em suma, a estrutura socioeconómica manteve-se, praticamente, intacta, e o nível de vida da maioria dos portugueses não melhorou.

3. A mãe da Democracia plena - 1974-1975

Vimos já, sumariamente, as principais decisões tomadas pela Revolução mais recente: fim da ditadura mais antiga da Europa Ocidental; sufrágio universal pleno; democratização da sociedade; descolonização e reconhecimento dos Estados independentes que dela emergiram e reconhecimento internacional, criando-se, assim, condições para que Portugal pudesse vir a fazer parte da CEE. Sob o ponto de vista político, ainda que num processo doloroso, estas conquistas revelaram-se definitivas.

Contudo, o mesmo não podemos dizer sob o ponto de vista socioeconómico. Com efeito, as nacionalizações de empresas efetuadas maioritariamente após o golpe de 11 de março de 1975 e que tinham como objetivo principal “a destruição dos principais grupos económicos e financeiros e a centralização nas mãos do Estado dos setores-chave da economia portuguesa” (Reis, 1992, II, p. 174) começaram paulatinamente a ser revertidas a partir de 1976-1977 (nomeadamente com o fim do regime de intervenção do Estado na gestão das empresas privadas), acabando-se, assim, já na década de 1980, com o preceito constitucional da irreversibilidade das nacionalizações (Reis, 1992, II, p. 180).

E a reforma agrária que se traduziu por um movimento de ocupação das grandes propriedades, também protegida constitucionalmente, acabou, a partir de 1976-1977, por fazer recuar as unidades coletivas de produção. As conquistas irrealistas do período revolucionário acabaram por desaparecer, reajustando-se novamente o País para poder entrar na atual União Europeia.

Conclusão

Se compararmos a Revolução de 25 de Abril de 1974 com as suas antecessoras no Portugal Contemporâneo, 1910-1911 e 1820-1834, podemos ver em que medida encontramos traços comuns a todas elas e as características distintas que as permitem individualizar, como não podia deixar de ser, tendo em atenção as diferentes conjunturas em que eclodiram e os objetivos que pretendiam.

Em primeiro lugar, todas são de natureza militar, se não na conceção, pelo menos na sua execução. Começam como golpes de Estado efetuados por militares (não há revoluções populares) e só numa segunda fase é que passam a revoluções com a participação do povo. A Revolução de 25 de Abril de 1974 é exclusivamente militar, tendo as anteriores uma componente civil na sua conceção.

Em segundo lugar, sendo datáveis sob o ponto de vista político, de mudança de regime, não o são quanto aos aspetos socioeconómicos. A sociedade e a economia só se transformam no tempo longo, precisam, não de um ano mas de décadas para que as mudanças sejam percetíveis.

O Antigo Regime, liquidado politicamente de forma definitiva em 1833-1834, só deixa de ter significado na segunda metade do século XIX. O regime republicano saído da Revolução de 5 de Outubro de 1910 termina definitivamente com a Monarquia mas não tem qualquer oportunidade, durante os escassos anos da sua atribulada existência, para “marcar” a economia e a sociedade portuguesa.

E a Revolução de 25 de Abril de 1974, que liquida a Ditadura do Estado Novo e procura criar um “novo” e anacrónico Portugal sob o ponto de vista socioeconómico, também não teve qualquer oportunidade de sucesso, uma vez que, a partir de 1976, viu as suas “conquistas” serem desmanteladas, de forma a permitir a entrada de Portugal na então CEE, atual União Europeia, em 1986.

Sob o ponto de vista da geografia política, só a primeira, de 1820-1834, se iniciou no Porto. As duas que lhe sucederam pertencem a Lisboa, acatando o resto do País as transformações ocorridas na capital. É que, se em 1820, o Porto ainda tinha capacidade de réplica quanto a Lisboa sob o ponto de vista económico - indústria, comércio externo -, dispondo de um espaço reservado à sua burguesia de negócios, o Norte de Portugal, a partir da segunda metade do século XIX, devido à revolução dos transportes, à modernização da economia, à burocratização e consolidação do aparelho de Estado afirmaram definitivamente Lisboa como o único centro de decisão do País.

Eça de Queirós, já em finais do século XIX, escrevia que “Lisboa é Portugal” e que fora de Lisboa “não havia nada” (Sousa, 1977, p. 53). A República, escreverá mais tarde João Chagas, faz-se em Lisboa e transmite-se à província por telégrafo!

Que legados é que estes fenómenos revolucionários deixaram à sociedade portuguesa?

A Revolução de 25 de Abril de 1974 deixou-nos a democracia e a liberdade plenas, acelerando a europeização de Portugal.

A Revolução de 5 de Outubro de 1910 legou-nos a República que hoje somos, o Hino Nacional e a Bandeira Nacional - nem a Ditadura do Estado Novo ousou alterar o regime ou os símbolos nacionais.

A Revolução de 1820-1834 é, sem dúvida, aquela que, de forma mais perene, substantiva e definitiva provoca as transformações mais profundas da política, economia e sociedade na História de Portugal, aquela que permitiu a curto e a médio prazo o desenvolvimento dos fatores e instrumentos que estruturaram o Estado Liberal e construíram o Portugal do presente, nomeadamente a libertação da terra e o desenvolvimento da agricultura; a extinção das corporações de artes e ofícios, de origem medieval; a reforma das finanças públicas; o aparecimento e expansão da banca; a inovadora e profunda reforma administrativa (leis de Mouzinho da Silveira de 1832-1833, Códigos Administrativos de 1836 e 1842, divisão racional do território), política (separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, a igualdade dos cidadãos perante a lei, existência de partidos políticos, etc.) e judicial (separação definitiva da administração da justiça e da administração pública e independência dos tribunais); o lançamento das infraestruturas de comunicação e transportes e supressão progressiva das barreias alfandegárias internas; o declínio da nobreza e o triunfo da burguesia que se afirma como classe dominante; a liberdade de imprensa e multiplicação das publicações periódicas (jornais e revistas); a proliferação das associações da mais diversa natureza.

O Portugal moderno, que procura caminhar ao ritmo da Europa, nasceu da Revolução Liberal de 1820-1834. Não é por acaso que a resistência à sua implantação tenha sido tão forte e tão prolongada no tempo.

Fontes e Bibliografia

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Recebido: 30 de Maio de 2024; Aceito: 22 de Junho de 2024

Correspondência/ Correspondence: Fernando de Sousa E-mail: fernandosousa@cepese.pt

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