Introdução
No âmbito das Relações Internacionais, os Estados interagem e relacionam-se tendo por base os instrumentos e as prioridades definidas no contexto da sua política externa. A política externa é, assim, uma atividade indispensável para a capacidade de os Estados atuarem internacionalmente. O Dicionário de Relações Internacionais define a política externa como “a atividade pela qual os Estados agem, reagem e interage (...) uma atividade de fronteira cruzando dois ambientes - o interno e o externo” (Sousa, 2008, p. 159). No entendimento de Freire & Vinha (2011), a política externa é uma “uma ferramenta essencial no posicionamento dos actores no sistema internacional”, na medida em que esta “projeta interesses e objetivos domésticos/internos para o exterior” (p. 13).
Na esteira de autores como Snyder, Bruck & Sapin1, Allison2, Rosenau3, Jerbis4, ou Harold e Margaret Sprout5, a definição da política externa, isto é, a decisão em política externa, é influenciada por diversos fatores e variáveis. Indo para além do puro interesse nacional, estes autores, vanguardistas da Análise de Política Externa (APE), procuraram identificar as diversas variáveis que intervêm na definição da política externa dos Estados, abrindo um debate centrado, sobretudo, nos fatores internos e nas pressões sistémicas. Neste sentido, Moon reconhece que a análise da política externa “deve centrar-se, em grande medida, nos regimes domésticos” (Moon, 1985, p. 328), o que se associa à ideia de Rosenau de que “a política externa de uma nação reflete o seu modo de vida” (Rosenau, 1967, p. 2).
Neste domínio, alterações de grande magnitude no ambiente doméstico dos Estados naturalmente traduzem-se em alterações das dinâmicas e prioridades da sua política externa. Este é o caso das revoluções e dos processos de transição democrática. Tal como salienta A. K. Stanger, uma revolução leva ao surgimento de governos provisórios que geralmente procedem à “promoção de uma reorientação radical da política externa do ancien régime” (Stanger, 1995, p. 256).
Assim, e tendo por base este quadro teórico, o presente artigo procura explorar, analisar e interpretar as implicações das transformações motivas pela queda do regime e pelo processo de transição democrática na política externa portuguesa, mais concretamente nas suas prioridades e objetivos.
Mediante o recurso a uma abordagem interdisciplinar entre as Relações Internacionais, a História e a Ciência Política, este artigo propõe-se a analisar o debate em torno da redefinição das prioridades de ação externa de Portugal - que se traduz numa nova edição do debate entre a terra (Europa) e o mar (Atlântico) - e que se estende ao longo do período de tempo decorrente do I Governo Provisório ao I Governo Constitucional. Mais do que isso, é nosso objetivo analisar o impacto desta redefinição da política externa na posição e no papel de Portugal no Mundo, consistindo, deste modo, num contributo para a compreensão das dinâmicas que moldaram a inserção internacional do País no pós-25 de Abril.
O debate entre a terra e o mar na política externa portuguesa
O debate entre a terra e o mar tem sido uma constante na política externa portuguesa desde a fundação do Reino em 1143. Num primeiro momento, estabeleceu-se como grande prioridade o alargamento do território na Península Ibérica, na lógica da Reconquista Cristã, posição que se manteve até 1249 quando se dá a conquista do Algarve (Motta, 2019). Nesta época, as relações externas do Reino limitavam-se praticamente ao relacionamento com os demais reinos ibéricos. Fruto da necessidade de acautelar a estabilidade e a manutenção das fronteiras, os reis portugueses estabeleceram como prioridade a consolidação dos laços com estes reinos mediante alianças matrimoniais (Motta, 2019; Teixeira, 2010). Desenvolve-se, assim, o primeiro modelo de integração internacional de Portugal, que Nuno Severiano Teixeira designa como “modelo medieval” (Teixeira, 2010).
A primeira grande exceção ao modelo das relações intrapeninsulares ocorreu em 1372, quando, através da assinatura do Tratado de Tagilde, Portugal firma uma aliança com Inglaterra contra Henrique II de Castela, resultando, em 1373, na assinatura do Tratado de Westminster, e, em 1386, a assinatura do Tratado de Windsor, “uma aliança de ajuda mútua entre os dois reinos” (Motta, 2019, p. 25).
No início do século XV, Portugal enfrenta uma grave crise económica, o que, aliado ao fim da reconquista peninsular e à unificação de Espanha pelos reis católicos, impôs a Portugal a necessidade de aumentar o seu poder numa perspetiva de contrabalançar o poder de Espanha (Motta, 2019; Reis, 2015; Teixeira, 2010). Inicia-se, assim, o segundo modelo de inserção internacional que Nuno Severiano Teixeira designa como “modelo histórico” ou “modelo clássico” (Teixeira, 2010). Com a conquista de Ceuta, em 1415, o Atlântico passa a representar a principal prioridade estratégica de Portugal, o que se vê refletido na assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494 (reis, 2015).
Observamos, deste modo, que até ao século XV a prioridade dos reis portugueses foi a “terra”, isto é, assegurar a conquista de território na península e a proteção das fronteiras face a Castela. Porém, a partir daí e até à queda do Estado Novo, a política externa portuguesa fica alicerçada no mar, em especial no Atlântico, que é configurado como uma ponte para o domínio de outros territórios e para o controlo de importantes rotas comerciais marítimas, servindo, primeiramente, para contrabalançar o poder de Espanha, mas também para afirmar Portugal internacionalmente (Reis, 2015; Teixeira, 2010).
Esta aproximação ao Atlântico e afastamento face à Europa fundamentou-se, sempre, conforme aponta Nuno Severiano Teixeira, no projeto colonial e numa aliança com uma grande potência, reconhecendo, num primeiro momento, este papel a Inglaterra, através da Aliança Luso-Inglesa, e, num segundo momento, aos Estados Unidos da América através da Aliança Atlântica (NATO) (Teixeira, 2010).
Observamos, assim, que desde o século XV o mar assumiu-se enquanto o principal vetor estratégico nacional, tornando-se, com o passar dos séculos, cada vez mais dependente do Império e circunscrito ao projeto colonial, realidade que, aliás, foi responsável pelo envolvimento do País em duas guerras - I Guerra Mundial e Guerra Colonial - e pela queda de três regimes - Monarquia Constitucional fruto do Ultimatum; Primeira República em virtude do desastre na Primeira Guerra Mundial; e Estado Novo por meio do impacto da Guerra Colonial. No século XX, por sua vez, e fruto da queda do regime do Estado Novo, seguida pela dissolução do Império, impôs-se a definição de uma nova orientação de política externa, exigindo um repensar do debate entre a terra e o mar.
A conjuntura internacional: a estrutura internacional da détente
A compreensão das dinâmicas que moldaram a reorientação da política externa portuguesa no pós-25 de Abril requer, além da análise da evolução do quadro doméstico, a consideração sobre os processos que se desenrolavam na esfera internacional. À conjuntura doméstica contrapunha-se, neste sentido, uma conjuntura internacional marcada pela Guerra Fria, um fenómeno caracterizado por O. A. Westad como “o período em que o conflito global entre os Estados Unidos e a União Soviética dominou os assuntos internacionais, aproximadamente entre 1945 e 1991” (Westad, 2007, p. 3). Mais precisamente, a Revolução de 25 de Abril de 1974 insere-se dentro de uma fase de relativo desanuviamento entre as duas superpotências, a détente. Esta fase iniciou-se após a Crise dos Misseis de Cuba (1962) e durou até ao final da década de 1970, quando a rivalidade entre os EUA e a URSS reacendeu fruto da instabilidade no mundo árabe (Munhoz & Rollo, 2015).
A détente pode ser caracterizada pelo “progressivo ‘relaxamento’ das tensões políticas e ideológicas da Guerra Fria e da estrutura bipolar rígida do sistema internacional” (Gualtieir, 2004, p. 428), realidade permitida pelas estratégias de diálogo entre os Estados Unidos da América e a União Soviética. Conforme destaca J. L. Gaddis, a détente “não foi um fim para as tensões da Guerra Fria, mas antes um relaxamento temporário”, possibilitado pela existência de uma “paridade aproximada na corrida armamentista” entre os EUA e a URSS, por uma “minimização das diferenças ideológicas” e por “uma disposição mútua para se abster de desafiar os interesses dos rivais” (Gaddis, 1983, p. 354).
Fruto da evolução da conjuntura internacional, e sobretudo por exigência dos desafios internos, ambas as superpotências acordaram em avançar para um desanuviamento, relaxando as tensões existentes. Após a Crise dos Misseis de Cuba, ambos os blocos depararam-se com dificuldades internas. Do lado ocidental, o início da década de 1960 ficou marcado pelas divergências entre os Estados Unidos e a França de De Gaulle. Enquanto os EUA defendiam uma Europa unida e consideravam estar em posição para assumir a liderança do mundo ocidental, De Gaulle contestava ambas as premissas adotando uma política antiamericana, procurando emancipar França através do armamento nuclear e da aproximação aos países do Leste (Duroselle & Kaspi, 2014; Hanhimäki, 2010).
A par disto, a posição dos EUA também se via enfraquecida pela Guerra do Vietname, e pela sua situação económica, num contexto doméstico que, aliás, se viu agravado com o escândalo Watergate em 1972 (Duroselle & Kaspi, 2014; Munhoz & Rollo, 2015). No Bloco do Leste também surgiram diversos desafios que limitaram a capacidade de ação do regime de Moscovo, nomeadamente o abrandamento do crescimento económico soviético, os problemas relativos à Roménia que procurava escapar ao controlo da URSS, a rutura Sino-Soviética, e a crise na Checoslováquia (Duroselle & Kaspi, 2014).
Nestas circunstâncias, a Europa experienciou uma maior autonomia, permitindo novos avanços na negociação entre o Ocidente e o Leste. Aliás, J. M. Hanhimäki reconhece, inclusive, que a détente “começou (e continuou por muito mais tempo) na Europa” (Hanhimäki, 2010, p. 198). De um modo semelhante, a França e também a Alemanha Ocidental procuraram desenvolver novos laços com a Europa do Leste, sobretudo com a RDA num movimento que ficou conhecido por Ostpolitik, contrariando a posição norte-americana (Hanhimäki, 2010). O apogeu desta política de estabelecimento de pontes foi a criação da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), cujo desenvolvimento iniciou-se em 1972 resultando na assinatura dos Acordos de Helsínquia em 1975 (Hanhimäki, 2010; Munhoz & Rollo, 2015).
Conscientes da conjuntura e das suas debilidades, mas também das aspirações dos povos europeus, “as autoridades dos EUA foram impelidas a prosseguir uma política de construção de pontes para a parte oriental do continente”, reconhecendo, assim, a détente “como uma política apropriada a ser empreendida multilateralmente para aliviar as tensões na Europa, enquanto se concentravam noutras partes do mundo que agora consideravam cada vez mais importantes” (Hanhimäki, 2010, p. 217). O mesmo ocorreu do lado soviético, gerando um clima propício a um relativo desanuviamento (Duroselle & Kaspi, 2014; Hanhimäki, 2010).
O MFA e o I Governo Provisório: indeterminações e dúvidas na orientação de política externa
A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (MFA) depôs o Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, acabando com o Estado Novo e dando início a um processo de transição democrática. Dava-se, assim, “por esgotado o conceito estratégico nacional (…) que tinha como elemento essencial a missão colonizadora e evangelizadora” (Moreira, 2000, p. 316). Deste modo, “a implosão do Império significava que Portugal estava reduzido à sua expressão continental” (Rato, 2008, p. 209), impondo a definição de uma nova orientação de política externa que atendesse à conjuntura da época e às demandas decorrentes do interesse nacional.
Após o golpe militar que rapidamente se converteu em revolução, o Movimento das Forças Armadas entregou a condução dos destinos da nação à Junta de Salvação Nacional, encarregue de cumprir o desígnio de ‘democratizar, descolonizar e desenvolver’. Em termos de relações externas, não tardou até o novo regime ser reconhecido internacionalmente. Em poucos dias, a legitimidade da Junta de Salvação Nacional foi reconhecida pelo Brasil, África do Sul, Estados Unidos da América, Espanha, República Federal Alemã, Reino Unido, entre outros (Ferreira, 2004).
Num momento inicial não eram totalmente claras as prioridades de ação externa do País. Como destaca A. Cunha, “o programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) é muito lacónico quanto à política externa”, limitando-se a apontar alguns princípios, e advogando, através deles, a democratização e a descolonização (Cunha, 2013, p. 384).
O grande avanço trazido pelo MFA em termos de relações exteriores foi a subscrição dos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, assumindo que, em matéria de política externa, o País se deveria guiar “pelos princípios da independência e da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros países e da defesa da paz, alargando e diversificando relações internacionais com base na amizade e cooperação” (Movimento das Forças Armadas, 1974, p. 4).
A par disso, reconheceu que “a solução das guerras no Ultramar é política e não militar” (Movimento das Forças Armadas, 1974, p. 4). Deste modo, verifica-se “uma alteração de fundo na orientação externa do Estado português” (Teixeira, 2005, p. 112) comparativamente ao rumo seguido pelo Estado Novo e que privilegiava a manutenção das posses coloniais e rejeitava qualquer perspetiva de democratização. Além disso, e mesmo com a garantia de respeito pelos compromissos internacionais do País, as reivindicações do MFA deixavam clara a necessidade de uma alteração das prioridades e narrativas de ação externa.
“Apesar de o programa do MFA anunciar e garantir o cumprimento de todos os compromissos internacionais de Portugal, tornava-se claro que esses dois simples princípios - democratizar e descolonizar - implicariam uma reinterpretação desses mesmos compromissos e uma alteração de fundo na orientação externa do Estado português” (Teixeira, 1995, p. 815).
Em contraste com o programa do MFA, a Junta de Salvação Nacional apontava no sentido da Comunidade Económica Europeia (CEE), não sendo, porém, este o rumo defendido pelo movimento e pelos seus apoiantes - pelo menos não no imediato (Cunha, 2013). Seria, portanto, necessário aguardar até à tomada de posse do I Governo Provisório para que se iniciasse o processo de redefinição das prioridades da política externa portuguesa.
O I Governo Provisório assume funções a 16 de maio de 1974, tendo como primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos e como ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares (Decreto-Lei n.o 203/74 da Junta de Salvação Nacional, 1974). Este era, essencialmente, um governo moderado e de unidade nacional, apoiado num primeiro-ministro conservador, que tinha como braço-direito um ex-deputado da Ala Liberal, Francisco Sá Carneiro; como ministro dos Negócios Estrangeiros um socialista e convicto europeísta; e como ministro do Trabalho um comunista, Adelino Gonçalves (Ramos, 2015).
Em termos de política externa, o I Governo Provisório subscreveu os princípios já adotados pelo MFA, estabelecendo, porém, outras prioridades, nomeadamente a “intensificação das relações comerciais e políticas com os países da Comunidade Económica Europeia”, a “manutenção das relações com o Reino Unido”, o "estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com todos os países do Mundo”, o “reforço da solidariedade com os países latinos da Europa e da América”, a “manutenção da tradicional amizade com os Estados Unidos da América”, a “renovação das históricas relações com os países árabes”, a “participação e colaboração activa com a ONU”, e a aproximação ao Terceiro Mundo (Decreto-Lei n.o 203/74 da Junta de Salvação Nacional, 1974, pp. 625-626).
Deste modo, o I Governo Provisório (re)introduziu na política externa portuguesa o elemento global, procurando diversificar e expandir o alcance das suas relações exteriores até então limitadas pelo eixo Atlântico/Império. Não obstante, ao reinscrever o compromisso de Portugal para com os seus aliados atlânticos (EUA e Reino Unido) e a América Latina, o I Governo Provisório procura continuar a apostar neste vetor, porém de forma distinta aos últimos séculos, abandonando o intuito colonizador, e complementando-o com as relações com os países europeus e com países doutras regiões, nomeadamente com o Terceiro Mundo, assumindo, deste modo, uma posição de equilíbrio entre o Bloco Ocidental e o Bloco de Leste.
De forma sumária, as prioridades de ação externa deste governo centraram-se, por um lado, em alcançar o pleno reconhecimento internacional do novo regime e, por outro, na questão da descolonização, pelo que se procurou estabelecer relações com o máximo número de Estados possível. Destaca-se, a par disso, uma convicção generalizada entre as principais forças políticas da “necessidade do alargamento das relações diplomáticas de Portugal, nomeadamente aos países do Leste, à África, Ásia e mundo árabe” (Telo, 1999, p. 291).
Todavia, e noutro sentido, o I Governo Provisório também procurou aprofundar as relações económicas e comerciais com a CEE, tendo, inclusive, decorrido nesta época a terceira reunião do Comité Misto CEE-Portugal (Cunha, 2013, 2018). Mário Soares beneficiou de liberdade de ação política suficiente para encetar uma alteração face ao rumo anterior da política externa portuguesa, permitindo, ainda que consciente das limitações da economia portuguesa à época, uma aproximação às Comunidades, demonstrando uma clara vontade em participar do mercado comum.
“Perante um Governo Provisório, sem uma definição política clara, Soares encontrava margem suficiente para ir pondo em prática as suas ideias relativamente à política externa portuguesa, mantendo a linha de pensamento que vinha preconizando e praticando no exílio, mas com alguma cautela, atendendo à delicadeza política do momento” (Sebastião, 2010, p. 56).
A pedido de Spínola, Mário Soares organiza um périplo por várias capitais da Europa, procurando “conquistar as boas vontades para o novo regime” (Telo, 1999, p. 283). Na tentativa de “consolidar o reconhecimento externo do novo regime e dar garantias aos principais aliados e amigos de que os compromissos seriam respeitados” (Telo, 1999, pp. 288-289), Mário Soares assegura o reconhecimento internacional da legitimidade do novo governo, nomeadamente de Espanha, República Federal Alemã e também dos Estados Unidos da América e da República da China.
Também durante o I Governo Provisório, Portugal estabelece relações diplomáticas com a Roménia, a União Soviética, a República Democrática Alemã e a Hungria, sendo ainda na vigência deste executivo que ocorre o encontro entre Spínola e Nixon, presidente norte-americano, nas Lages, simbolizando o receio do presidente português no avanço das forças comunistas (Brandão, 2002; Sá, 2009).
A aproximação ao Bloco do Leste e ao Terceiro Mundo
Em resultado das perturbações causadas pelas alas radicais do MFA e do Partido Comunista Português (PCP), bem como da discordância entre as principais forças políticas quanto ao futuro do País, o pós-25 de Abril ficou marcado por uma crescente instabilidade política e social, resultando na demissão do primeiro-ministro do I Governo Provisório (Cunha, 2013; Silva, 2023).
O II Governo Provisório toma posse a 12 de julho de 1974, sendo liderado por Vasco Gonçalves e tendo como ministro dos Negócios Estrangeiros novamente Mário Soares (Programa do II Governo Provisório: Novo Governo Provisório. Homens e Programa, 1974). Com o II Governo Provisório denota-se uma clara predominância do MFA e do PCP, impondo uma “viragem à esquerda” (Cunha, 2013). A preponderância de forças radicais na composição do II Governo Provisório alarmou os EUA quanto à possibilidade de Portugal se tornar numa “Cuba da Europa”, situação que piorou com o 28 de setembro, quando pendeu a “balança de poderes a favor do MFA” (Sá, 2009, p. 205).
Em termos de relações exteriores, as prioridades da ação externa de Portugal estão ausentes do programa político apresentado, o que demonstra a primazia concedida às questões internas do País. Apesar disso, é durante este governo que se iniciam as conversações tendo em vista a adesão de Portugal ao Conselho da Europa, tendo-se, também registado novos avanços no processo de descolonização (Brandão, 2002). Neste domínio, através da Lei n.º 6/74 de 27 de julho é reconhecido o direito à autodeterminação dos povos, enfraquecendo as posições federalistas de Spínola e intensificando os esforços em torno da descolonização, que se assume como real prioridade. Aliás, o discurso de tomada de posse de Vasco Gonçalves havia já asseverado esta posição (Pavia & Monteiro, 2013).
O III Governo Provisório toma posse a 30 de setembro de 1974, sendo novamente liderado por Vasco Gonçalves e continuando Mário Soares a servir como ministro dos Negócios Estrangeiros (Programa do III Governo Provisório, 1975). Num contexto marcado pelos avanços do processo de descolonização e de democratização, o III Governo Provisório, consciente das oportunidades criadas por estes progressos, elege como objetivo da ação externa de Portugal a inserção e afirmação do País no plano económico internacional. Para tal, estabelece como prioridade a “consolidação e intensificação das relações existentes, em especial no plano multilateral”, representado pelo GATT, pela OCDE, pela EFTA e pela CEE (Programa do III Governo Provisório, 1975).
Como salienta A. Cunha, o III Governo Provisório “assume formalmente no respetivo programa a vontade de aprofundamento das relações de cooperação a vários níveis”, e para isso “irá apresentar propostas para modificar determinadas cláusulas dos acordos comerciais CEE-Portugal, e para alargar a cooperação a outros domínios” (Cunha, 2013, p. 390).
Seria, porém, durante a vigência deste governo provisório que se iniciaria, a 11 de março de 1975, o Período Revolucionário em Curso (PREC), impondo a radicalização do processo revolucionário, resultando em diversas nacionalizações e numa crescente preocupação do governo para com a economia, que agora passava quase totalmente para o controlo estatal (Cunha, 2018; Pavia & Monteiro, 2013). No decurso desta nova conjuntura, a política externa portuguesa é remetida para segundo plano, o que, aliás, era visível através do programa de governo apresentado, o qual centrava as prioridades de ação na economia e no Estado Providência (Programa do III Governo Provisório, 1975).
Em simultâneo, as prioridades estratégicas da ação externa ficavam cada vez mais centradas no Bloco Comunista e no Terceiro Mundo. Neste sentido, o III Governo Provisório alargou as relações com a Europa do Leste, estabelecendo diversos tipos de acordos com a URSS, a Roménia, a Bulgária, e a Checoslováquia, e reconheceu, ainda, a República Popular da China, rompendo as suas relações com a Formosa (Brandão, 2002). Quanto à Europa comunitária, enquanto ao longo do II Governo Provisório não existiram sinais de aproximação, o III Governo Provisório procurou diversificar as áreas de cooperação, mas inviabilizando a adesão (Cunha, 2018).
A 26 de março de 1975, toma posse o IV Governo Provisório, sendo também liderado por Vasco Gonçalves, e tendo, agora, como ministro dos Negócios Estrangeiros Ernesto Melo Antunes6. Este Governo estende e reforça os laços de Portugal não só com os países do Bloco do Leste, de onde são de destacar a Jugoslávia e a Polónia, como com outros regimes socialistas, nomeadamente com a Coreia do Norte e com a República Democrática do Vietname, ficando, ademais, patente um acentuar da via terceiro-mundista (Brandão, 2002; Pavia & Monteiro, 2013).
Por outro lado, com este Governo verifica-se um retrocesso na aproximação de Portugal às Comunidades, muito por influência da crescente viragem à esquerda imposta pelo PREC. Nesta conjuntura, o ministro dos Negócios Estrangeiros chega a excluir uma adesão de Portugal naquele momento (Cunha, 2013). Também é durante o IV Governo Provisório que ocorre a independência de São Tomé e Príncipe, Moçambique e Cabo Verde, tendo lugar a assinatura de acordos de cooperação com estes novos Estados (Pavia & Monteiro, 2013).
O V Governo Provisório, também liderado por Vasco Gonçalves, e contando com Mário Ruivo como ministro dos Negócios Estrangeiros, tomou posse a 8 de agosto de 1975, durando pouco mais de um mês. O programa do V Governo Provisório subscreveu, mais uma vez, os princípios da coexistência pacífica, estabelecendo como objetivo a condução de uma política externa “que coloque o nosso País numa situação que melhor lhe permita reforçar a sua independência e estabelecer relações justas e paritárias com todos os países do mundo”, dando destaque àqueles com os quais Portugal possui “laços históricos profundos” ou àqueles “que estejam em condições de melhor compreender e apoiar o nosso processo revolucionário rumo ao socialismo” (Programa do V Governo Provisório, 1975).
Para tal, define um conjunto de prioridades de ação externa, como a defesa da independência nacional e da segurança internacional, o respeito pelo direito à autodeterminação dos povos, e o “alargamento da cooperação fraterna com todos os povos”, com especial relevância aos países do Leste e do Terceiro Mundo (Programa do V Governo Provisório, 1975).
Com o V Governo Provisório reconhece-se, assim, um reforço da aproximação de Portugal ao Terceiro Mundo e ao Bloco de Leste, quer por afinidades ideológicas, quer numa tentativa de procurar apoios na transição para o socialismo, recorrendo a uma “diplomacia ativa e revolucionária”, contrariando, adicionalmente, a influência norte-americana, e combatendo aquilo que foi apelidado como “a campanha de difamação orquestrada contra a revolução portuguesa” (Programa do V Governo Provisório, 1975).
Tal como aconteceu com o seu antecessor, observa-se, com o V Governo Provisório, uma falta de empenho na aproximação de Portugal à CEE, tendo, inclusive, “sido rejeitada qualquer hipótese de associação à Comunidade e assumido expressamente o relacionamento privilegiado com os países do Terceiro Mundo” (Silva, 2005, p. 410).
Em termos de relações com a superpotência ocidental, os EUA, importa destacar que o agravamento da instabilidade política e social e o avanço das forças comunistas sentido desde março de 1975, levou a que Washington, à semelhança de toda a CEE, receasse a possível instauração de um regime do tipo democracia popular em Portugal (Cunha, 2013; Sá, 2009). Neste contexto, Kissinger sugere a Gerald Ford que não intervenha, e que permita a instauração de um regime comunista, utilizando Portugal como exemplo dos efeitos nefastos do modelo comunista, naquilo que ficou conhecido como “teoria da vacina” (Sá, 2009). Frank Carlucci, embaixador em Portugal, defendia, por outro lado, que “deviam-se auxiliar os moderados, tendo em vista conduzir a evolução política rumo a uma democracia parlamentar” (Cunha, 2013, p. 394). Esta acabou por ser a tese adotada tanto por Washington como pelos Estados membros da CEE, traduzindo-se no auxílio aos partidos moderados, nomeadamente ao Partido Socialista (PS), mas também na promessa de concessão de auxílios financeiros ao País, impondo, porém, como condicionante a “evolução para a democracia pluralista” (Cunha, 2013, p. 394).
O VI Governo Provisório e o I Governo Constitucional: a democratização e o esboçar da nova orientação de ação externa
A 19 de setembro de 1975, tomou posse o VI Governo Provisório, cujo mandato duraria até 23 de julho de 1976. Este Governo teve como primeiro-ministro José Pinheiro de Azevedo, substituído interinamente por Vasco Almeida e Costa a 23 de junho de 1976, e como ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Melo Antunes.
Em termos de política externa, o programa do VI Governo Provisório pouco desenvolveu, apenas salientado a importância de continuar os processos de descolonização, e reconhecendo como objetivo da ação externa libertar “o País progressivamente de tutelas económicas ainda existentes através da diversificação equilibrada dos acordos de comércio”, nomeadamente no âmbito da EFTA e em relação aos países da CEE, de modo a ser, assim, possível assegurar a independência nacional (Programa do VI Governo Provisório, 1975). Mais do que isso, reconhece, novamente, a mais-valia de expandir e aprofundar as relações com os países socialistas e o Terceiro Mundo (Programa do VI Governo Provisório, 1975).
Num momento inicial, o rumo de política externa definido pelo Governo fica marcado, à semelhança dos anteriores, pelo relacionamento com o Bloco do Leste, porém fruto da inflexão trazida pelo 25 de Novembro, que frustrou as opções gonçalvista e terceiro-mundista, e tornou a opção ocidental “virtualmente inquestionável” (Rato, 2008, p. 214), Portugal inicia uma viragem para o Ocidente, alcançando um acordo de apoio financeiro com a RFA e iniciando, de igual modo, negociações tendo em vista a obtenção de financiamento por parte dos EUA (Brandão, 2002).
Agora já sem a influência da esquerda radical, este Governo retoma os esforços de aproximação à Europa e às Comunidades Europeias (Cunha, 2018). Assim, após o 25 de Novembro, a CEE retoma o diálogo com o VI Governo Provisório, resultando nos “Protocolos Adicionais” ao acordo de 1972 (Ferreira, 2004). Como aponta José Medeiros Ferreira, tal marca a normalização das relações entre Portugal e a CEE, sendo que no início de 1976 assiste-se, de igual modo, a “uma progressiva normalização das relações entre a NATO e Portugal” (Ferreira, 2004, p. 150).
Resultado das eleições legislativas de 1976, o I Governo Constitucional toma posse a 23 de julho do mesmo ano, sendo chefiado por Mário Soares e tendo como ministro dos Negócios Estrangeiros, até 1977, José Medeiros Ferreira, e após o próprio Mário Soares. O I Governo Constitucional foi o responsável por assumir politicamente a nova orientação da política externa portuguesa, que em larga medida reflete o pensamento e as esperanças de Soares, mas também de Medeiros Ferreira (Silva, 2023).
Durante a campanha eleitoral, o Partido Socialista apelou à necessidade de “vencer a crise” e “reconstruir o País” e para tal assumiu como objetivo a conquista de maior prestígio internacional, propondo uma “nova forma de estar no Mundo” (Programa para um Governo PS, 1976, pp. 3-21). À semelhança dos governos provisórios, o PS considerava imprescindível expandir e alargar as relações diplomáticas de Portugal, mas, pela primeira vez, assumiu politicamente a inserção de Portugal na Europa, estabelecendo a posição do País no espaço Ocidental (Programa para um Governo PS, 1976). Neste sentido, e considerando que a participação na Comunidade Europeia era crucial ao desenvolvimento económico e social do País, o programa eleitoral do Partido Socialista impõe como prioridade a adesão de Portugal à CEE (Programa para um Governo PS, 1976).
Esta não foi, apesar de tudo, uma prioridade exclusiva do PS. Também o Partido Popular Democrático (PPD) de Francisco Sá Carneiro defendeu, na campanha às eleições de 1976, a aproximação à Europa ocidental e a adesão de Portugal às Comunidades (Programa de Governo do PPD, 1976). Vale ainda destacar que o programa eleitoral do PS propôs uma política externa com dois eixos: o eixo Europeu, representado pela CEE; e o eixo do Terceiro Mundo, destinado a substituir o Império, e resultado das relações com os países africanos e das “afinidades e [d]a mesma preocupação de luta contra as formas de satelitização, dependência ou vassalagem (Programa para um Governo PS, 1976, pp. 21-22).
O programa do I Governo Constitucional atribuiu uma larga importância às relações internacionais e à política externa portuguesa, declarando como o seu principal objetivo “a defesa da independência nacional” (Programa do I Governo Constitucional, 1976, p. 125). Contestando as correntes antieuropeístas, o I Governo Constitucional assume a predisposição europeia de Portugal, destacando que “a vocação europeia de Portugal é indesmentível e, o que mais é, irrecusável” (Programa do I Governo Constitucional, 1976, p. 126).
Neste sentido, o executivo liderado por Mário Soares opta pela inserção de Portugal na Europa Ocidental, através da adesão ao Conselho da Europa e à CEE, mas também da continuidade na EFTA e na CSCE (Programa do I Governo Constitucional, 1976). Mais do que isso, o I Governo Constitucional também reconhece a necessidade de permanecer na NATO e aprofundar os laços com os demais Estados membros (Programa do I Governo Constitucional, 1976).
Tal demonstra não só a adoção de uma política externa pragmática e livre de ideologias, como também o compromisso de Portugal para com as suas alianças (EUA e Reino Unido), complementando o eixo europeu com o eixo atlântico. Nas prioridades da política externa portuguesa contam também o reforço das relações diplomáticas com o Terceiro Mundo, em específico com a América Latina (Brasil), com os países africanos (Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) e com os países árabes, e em geral com todo o Movimento dos Não-Alinhados, não ignorando a situação de Timor-Leste (Programa do I Governo Constitucional, 1976).
No que concerne à Europa, cinco meses após a apresentação do Programa de Governo, Mário Soares visitou as capitais de cinco Estados membros da CEE e também o Parlamento Europeu, o Banco Europeu de Investimento, o Tribunal de Justiça, e o Comité Económico e Social, num périplo cujo principal objetivo era “explicar as razões subjacentes ao pedido de adesão de Portugal à Comunidade” (Comissão Europeia, 1977, p. 65).
A 18 de março de 1977, Mário Soares apresenta na Assembleia da República um balanço sobre as suas visitas7, seguindo-se a 22 de março a votação do envio do pedido de adesão8, e, finalmente, o envio do próprio pedido a 28 de março (Cunha, 2018; Silva, 2023). Estava, assim, “introduzida a formulação de uma opção de política externa com o foco principal virado para o continente europeu” (Chaves, 2013, p. 41). A Europa e as Comunidades Europeias tornavam-se, por conseguinte, “o grande desígnio da diplomacia portuguesa” (Rocha, 2009, p. 12).
Em relação à NATO e ao Atlântico, vale, antes de mais, realçar que apesar da vaga terceiro-mundista dos governos provisórios, a permanência do País na Aliança Atlântica nunca foi posta em causa, porém, com o I Governo Constitucional e a consequente estabilização e sucesso da transição democrática, este vetor adquire maior protagonismo (Teixeira, 1995, 2010). Neste sentido, a 27 de setembro de 1977, Portugal e os Estados Unidos da América apresentaram uma declaração conjunta “afirmando a intenção (...) de concluírem tão rapidamente quanto possível as negociações com vista a prorrogar os arranjos ao abrigo do Acordo de Defesa (...) para a utilização pelos Estados Unidos de facilidades relacionadas com a Base das Lajes”9. A partir daí, Portugal foi estreitando a aliança transatlântica e alargando os domínios de cooperação, tornando os EUA num dos seus principais aliados (Rocha, 2009).
“A Europa era um garante de estabilidade político-económica, essencial para a consolidação democrática. O Atlântico assegurava a segurança do país, através da sua potencialização geoestratégica, evitando a marginalização internacional e posicionando o país nos principais centros de decisão europeia” (Cabrita, 2019, p. 159).
A par da Europa/CEE, da NATO e da relação transatlântica com os EUA, foram eleitas outras grandes prioridades da política externa do Portugal democrático, nomeadamente o relacionamento com o mundo lusófono (Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné-Bissau, e Timor-Leste) e com Espanha (Rocha, 2009). Neste domínio destaca-se, a título de exemplo, a assinatura de diversos acordos nos domínios cultural10, da cooperação científica e técnica11, do ensino e da formação profissional12 e da saúde13 entre Portugal e Cabo Verde; a assinatura de um acordo no domínio da saúde com São Tomé e Príncipe14; e a assinatura de acordos de cooperação nos domínios da pesca15 e da cooperação marítima16 com a Guiné-Bissau.
Em termos da participação em organizações internacionais, além do Conselho da Europa, da NATO e da CSCE/OSCE, a política externa do Portugal democrático priorizou o envolvimento do País na Organização das Nações Unidas (Magalhães, 2001). O fim do Império e a transição democrática permitiram uma normalização das relações dentro da ONU, passando esta a servir de palco para a afirmação internacional de Portugal e para a conquista de maior prestígio. Neste sentido, T. C. Bruneau reconhece, após o sucesso da transição democrática, um “elevado grau de envolvimento e interacção entre Portugal e as referidas instâncias estrangeiras” (Bruneau, 1982, p. 885), isto é, a NATO, a CEE e o FMI, especialmente em comparação com o período correspondente ao Estado Novo.
N. Bermeo (1988) reconhece duas principais alterações na política externa portuguesa após a Revolução de 1974 - a saída de África, e consequente dissolução da política imperialista, e a (re)adesão e novo papel no Bloco Ocidental, dado o reforçado compromisso para com a NATO. Também neste sentido, Vasco Rato considera que “o 25 de Abril encerrou o ciclo colonial, mas passaram mais dois anos caóticos até que fosse possível definir o consenso - assente no ‘duplo pilar’, europeu e atlântico - que ainda hoje enquadra a nossa atuação na cena internacional” (Rato, 2008, p. 197).
Apesar disso, nós constatamos que a nova orientação da política externa portuguesa foi muito além destes dois eixos, traduzindo-se, também, num novo modelo de Portugal se relacionar com o mundo e de projetar o seu poder, e que muito se encontra fundado no novo tipo de relações estabelecidas com os recém-emancipados países lusófonos.
A partir do I Governo Constitucional observamos, portanto, a instituição e solidificação das prioridades da política externa portuguesa, e que hoje se traduzem em três vetores estratégicos: o vetor Europa, que representa a inserção de Portugal no espaço europeu e na CEE/UE; o vetor Atlântico, ligado à aliança de Portugal com os Estados Unidos e com o Reino Unido, assim como à inserção do País na NATO; e o vetor Lusófono, associado às relações entre Portugal e os seus antigos domínios imperiais (Carvalho, 2015; Galito, 2019). Cada um destes vetores traduz-se num contributo para o contexto doméstico e para a inserção internacional de Portugal. O vetor europeu é o garante do desenvolvimento económico. O vetor atlântico é o garante da segurança e da defesa nacional. E o vetor lusófono assegura uma maior projeção internacional de poder de Portugal, e uma posição mais proeminente do País na CEE/UE e na NATO, configurando-o enquanto um “país-ponte”.
O período que se inicia após 1974 e se prolonga até à tomada de posse do I Governo Constitucional é caracterizado pela “luta em torno das opções externas do País, pelo exercício de diplomacias paralelas e, consequentemente, pela indefinição da política externa” (Teixeira, 1995, p. 816). De um modo geral, a definição da política externa portuguesa foi o resultado das barganhas políticas durante o período de transição democrática, que reconheciam diferentes conceções do interesse nacional e defendiam diferentes orientações estratégicas (Moreira, 2000; Rato, 2008).
Destacam-se, neste período, a existência de três posições: o posicionamento de Portugal junto do Bloco de Leste, defendida pelo Partido Comunista Português e pela fação gonçalvista do MFA; a adesão ao Bloco dos Não-Alinhados e ao Terceiro Mundo, defendida pelos moderados do MFA (meloantunistas); e a opção democrática e ocidental, pressupondo o estabelecimento de uma democracia-liberal, a adesão às Comunidades Europeias, e a permanência na NATO, defendida pelos partidos moderados e pela ala mais conservadora dos militares (Rato, 2008). A supremacia dos partidos moderados (Partido Socialista, Partido Popular Democrático e Centro Democrático e Social) tanto nas eleições para a Assembleia Constituinte (213 deputados em 250)17 como para a I Legislatura (222 deputados em 263)18 deixaram claro o desejo da nação em que Portugal se inserisse dentro do Bloco Ocidental.
Com o I Governo Constitucional a opção democrática e ocidental é assumida definitivamente, e ficam, assim, definidos os principais eixos da política externa portuguesa, dando início ao que Nuno Severiano Teixeira designa como “terceiro modelo de inserção internacional de Portugal”, o “modelo democrático” (Teixeira, 2010).
“O período constitucional, que se inicia, precisamente, com o primeiro Governo Constitucional, caracteriza-se pela clarificação da política externa portuguesa e pela definição unívoca e rigorosa do posicionamento externo do país. Portugal assume inteiramente a sua condição de país ocidental, simultaneamente europeu e atlântico. Serão estes, pois, os dois vetores fundamentais e as verdadeiras opções estratégicas do Portugal democrático” (Teixeira, 1995, p. 816).
Considerações finais
A Revolução de 1974 e a queda do regime provocaram uma alteração das bases e estruturas da política externa portuguesa. A dissolução do Império e o início do processo de transição democrática impuseram a definição de novas prioridades. Os objetivos da Revolução em termos de ação externa, consubstanciados no programa do MFA, sintetizam-se na expressão “democratizar, desenvolver, descolonizar”, a qual impôs a adesão aos Princípios da Coexistência Pacífica, significando uma nova leitura do até então espaço colonial e dos compromissos internacionais de Portugal.
Com o I Governo Provisório surgem as primeiras tentativas concretas de reorientação da política externa portuguesa. Estabelecendo como principal prioridade o reconhecimento e apoio internacional da Revolução, a ação externa do I Governo Provisório pode ser caracterizada pela sua mundialidade, procurando estabelecer relações com o maior número de países possível, independentemente da esfera de influência à qual pertençam. Também neste Governo fica patente a vontade em honrar os compromissos internacionais de Portugal, nomeadamente através da participação na NATO e do relacionamento com os aliados atlânticos (EUA e Reino Unido), assim como do reconhecimento da importância do País em se aproximar da Europa, através da CEE.
Entre o II e o V Governo Provisório, todos eles liderados por Vasco Gonçalves, a orientação da política externa portuguesa pendeu a favor do Terceiro Mundo e do Bloco do Leste. Apesar de com o II Governo Provisório ter ocorrido uma aproximação do País ao Conselho da Europa, e posteriormente, com o III Governo Provisório, uma aproximação de Portugal a várias instituições internacionais, nomeadamente à CEE, o início do PREC resultou numa secundarização da ação externa e, mais do que isso, na aproximação ao Leste. Este rumo de aproximação aos países socialistas, dentro e fora da Europa, intensificou-se com o IV Governo Provisório - o qual já não tinha Mário Soares como ministro dos Negócios Estrangeiros - e que, aliás, se afasta da CEE. O V Governo Provisório continua esta tendência de aproximação ao Leste e, sobretudo, ao Terceiro Mundo, assumindo como objetivo da política externa a conquista do apoio internacional essencial para o sucesso do projeto socialista em Portugal. É também durante o V Governo Provisório que assistimos a uma escala das tensões entre Portugal e os Estados Unidos, com o Governo a assumir uma “diplomacia revolucionária” e opositora à hegemonia e influência norte-americana.
Com o VI Governo Provisório, por outro lado, são dados novos passos na aproximação de Portugal às Comunidades, mantendo-se, apesar de tudo, a convicção da mais-valia representada pelo Terceiro Mundo. Após o 25 de Novembro, por fim, Portugal assume como prioridade o relacionamento com o Ocidente, posição assumida e continuada pelo I Governo Constitucional. Este governo liderado por Mário Soares insere oficialmente o País no Bloco Ocidental, assumindo claramente uma política externa orientada para a Europa (CEE), para o Atlântico (NATO e EUA) e para o mundo lusófono. Mais do que isso, assume-se convictamente o elemento global, através do empenho dentro das Nações Unidas e no aprofundamento de relações com os países com os quais Portugal tem afinidades históricas e culturais.
Concluímos, assim, que a Revolução causou uma alteração das orientações e prioridades da ação externa portuguesa. Na esteira de Stanger (1995) o novo regime que se configura entre 1974-1976 impôs diferentes objetivos e linhas de ação à política externa portuguesa. Apesar disso, e em contraste com a tese de Stanger, a Revolução não resultou numa rutura completa, dado manterem-se alguns elementos de política externa, nomeadamente a permanência do País na NATO, ainda que com uma renovada postura decorrente da nova condição de Portugal; e a continuação da aposta na lusofonia, se bem que não com um intuito imperial e colonial, mas antes numa lógica de relações bilaterais e multilaterais assentes na igualdade e no respeito pela soberania.
Fruto de um processo iniciado com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e marcado pela indefinição dos Governos Provisórios, o I Governo Constitucional assume claramente um novo rumo de política externa, apresentando um esboço dos três eixos pelos quais a política externa portuguesa se tem orientado ao longo dos últimos 50 anos, e que tem colhido uma aceitação e beneficiado de um consenso generalizado independentemente dos governos e das forças políticas neles envolvidas.