Introdução
O bruxismo é definido como uma atividade involuntária do sistema mastigatório, produzida por contrações dos músculos elevadores da mandíbula, caracterizado pelo comportamento parafuncional de ranger e/ou apertar os dentes. 1 Pode ocorrer durante o sono (bruxismo do sono) ou quando a pessoa está vigil (bruxismo em vigília). 1
O bruxismo pode ser diagnosticado numa perspectiva clínica pelos seguintes sinais e sintomas: história actual de apertar e/ou ranger os dentes ou sons confirmados por outros; detecção de facetas de desgaste dentário anormais, não compatíveis com o desgaste funcional; cefaleia; cansaço ou fadiga muscular ao acordar; estalidos e ruídos na articulação temporomandibular (ATM); dentes hipersensíveis ou hipertrofia dos músculos da mastigação.2
O bruxismo é frequentemente assintomático, podendo-se tornar clinicamente significativo quando interfere no sono ou resulta em desgaste dentário, cefaleias, dor e/ou fadiga muscular na mandíbula e rigidez ou dificuldade de abertura da mandíbula ao acordar. 3 Relativamente às suas complicações, salientam-se o risco de desenvolver sintomas decorrentes de alterações temporomandibulares (mialgia e artralgia), hipertrofia muscular, desgaste e fraturas dentárias, e até mesmo perdas dentárias. 3
Os principais factores de risco de bruxismo são: distúrbios do sono, como Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) ou parassonias; má oclusão dentária; distúrbios psiquiátricos; doenças neurológicas, como paralisia cerebral ou epilepsia e refluxo gastroesofágico, uma vez que a estimulação do ácido intraesofágico pode induzir a atividade muscular mastigatória rítmica durante o sono e a atividade do músculo masséter durante a vigília. 3
De facto, vários autores têm sugerido a apneia obstrutiva do sono como o principal factor de risco para bruxismo. Para além disso, nos adultos, o tratamento da apneia do sono com CPAP tem demonstrado a melhoria do bruxismo. 4,5
Nas crianças, a hipertrofia das amígdalas palatinas e adenóides é a principal causa de apneia obstrutiva do sono 6, pelo que têm sido realizados vários estudos comparando a prevalência do bruxismo antes e após a cirurgia de remoção das amígdalas e adenóides.
Existem várias teorias sobre a possível fisiopatologia desta associação: as crianças com apneia apresentam frequentes microdespertares nocturnos, estando associados a um aumento da actividade parafuncional, incluindo a actividade mastigatória, com activação dos músculos da mastigação, que por sua vez desencadeia bruxismo. 7 Por outro lado, as crianças com obstrução da via aérea, colocam a mandíbula numa posição mais anterior para melhorar a patência da via aérea, o que estimula receptores, aumentando o tónus das vias aéreas superiores. 8 Também a respiração oral pode interferir com o ciclo do sono e afectar a oxigenação cerebral, provocando contrações involuntárias dos músculos da face. 8
O objectivo deste trabalho é identificar a prevalência de bruxismo em crianças com distúrbios respiratórios do sono de causa obstrutiva (DRSO) e avaliar o impacto da adenoamigdalectomia na melhoria ou resolução do mesmo.
Material e Métodos
Realizou-se um estudo retrospectivo avaliando a existência e evolução de bruxismo em crianças com idades entre os 2 e 12 anos, que realizaram adenoamigdalectomia por DRSO entre Janeiro e Novembro de 2021, no Hospital Beatriz Ângelo.
Foi aplicado um questionário por telefone, representado na Figura 1, com perguntas de resposta fechada, respondido pelo responsável da criança, num período que variou de 3 a 12 meses após a cirurgia.
Os critérios de inclusão foram crianças com idades entre os 2 e 12 anos, com diagnóstico clínico de Distúrbio Respiratório Obstrutivo do Sono (roncopatia, respiração oral, pausas na respiração, défice de atenção, sonolência diurna, hiperactivade), com grau de hipertrofia amigdalina grau III ou IV, de acordo com a Classificação de Brodsky.
Foram excluídas do estudo crianças com antecedentes pessoais ou familiares de fenda do palato ou outros síndromes craniofaciais, com tratamento ortodôntico actual ou prévio e ainda crianças com cuidadores sem conhecimento sobre a existência ou não de bruxismo.
Resultados
Entre Janeiro e Novembro de 2021, 54 crianças realizaram adenoamigdalectomia por distúrbio respiratório do sono, com uma idade média de 6,7 ± 2,6 anos.
A Tabela 1 mostra a distribuição das crianças com bruxismo por género, idade e grau de hipertrofia amigdalina, de acordo com a Classificação de Brodsky, prévia à cirurgia.
Bruxismo (n) | Sem bruxismo (n) | |
---|---|---|
Género | ||
Feminino | 11 | 18 |
Masculino | 11 | 14 |
Idade (anos) | ||
2-5 | 9 | 14 |
6-9 | 11 | 11 |
10-12 | 2 | 7 |
Hipertrofia amigdalina | ||
Grau III | 18 | 26 |
Grau IV | 4 | 6 |
Das 54 crianças, 22 (41%) apresentavam evidência de bruxismo no questionário. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre a prevalência de bruxismo e o género (Teste do Qui-Quadrado de Pearson; P-value=0,65), idade (Teste Mann Whitney; P-value=0,34) ou grau de hipertrofia amigdalina (Teste One Way ANOVA; P-value=0,08).
Das 22 crianças com bruxismo antes da cirurgia, 17 (77%) melhoraram após a cirurgia, sendo que apenas 5 (23%) mantiveram as queixas (Figura 2).
A prevalência de bruxismo pré cirurgia era de 40,7%, tendo reduzido para 9,3% após a adenoamigdalectomia (Figura 3), havendo uma diferença estatisticamente significativa entre a prevalência de bruxismo pré e pós cirurgia (Teste do Qui-Quadrado de Pearson, P value= 0.0015).
Discussão
Uma das principais causas de DRSO é a hipertrofia adenoamigdalina, sendo a adenoamigdalectomia o principal tratamento; 6 de facto, vários estudos têm sugerido a associação entre a adenoamigdalectomia e a melhoria do bruxismo.
Neste trabalho foi avaliada a prevalência de bruxismo em crianças com DRSO e o impacto da adenoamigdalectomia na sua melhoria ou resolução, tendo-se verificado uma redução da prevalência de 40,7% para 9,3% com a cirurgia.
Este trabalho apresenta como principais limitações tratar-se de um estudo retrospectivo, uma amostra reduzida, ausência de análise multivariada e o diagnóstico de bruxismo ser realizado apenas clinicamente, sem monotorização electrofisiológica.
Os nossos resultados estão de acordo com os de outros estudos realizados (Tabela 2).
DiFrancesco et al.9, (2004) realizou um estudo prospectivo onde foram avaliados 69 doentes com hipertrofia adenoamigdalina e SAOS, dos 2 aos 12 anos. Antes da cirurgia 45,6% das crianças com SAOS apresentavam bruxismo, sendo que após a cirurgia apenas 11,8% das crianças mantiveram. 5
Também Ali Eftekharian et al. (2007) realizou um estudo prospectivo onde foram avaliadas 140 crianças, com idades entre os 4 e os 12 anos com sintomas associados a hipertrofia adenoamigdalina. As crianças foram avaliadas através de um questionário antes e 2 meses após a remoção adenoamigdalina, sendo que 25,7% apresentava bruxismo pré cirurgia e apenas 7,1% apresentava bruxismo após a cirurgia. 4
Oh et al. (2021) identificou características craniofaciais estruturais e funcionais associadas a maior prevalência de bruxismo. Para tal realizou um estudo com 96 crianças, com idades entre os 6 e 12 anos e investigou a associação de bruxismo com hipertrofia amigdalina, respiração oral e limitação da mobilidade da língua quer isoladamente quer os 3 factores de risco associados. Das 25 crianças com hipertrofia amigdalina, 56% apresentou bruxismo; das 30 crianças com obstrução nasal com respiração oral, 50% tinha bruxismo. 8
Valera et al. (2003) identificou alterações musculares, funcionais e dentoesqueléticas em crianças com idade entre os 3 e 6 anos com hipertrofia adenoamigdalina. Segundo este estudo, a prevalência de bruxismo no grupo de crianças com hipertrofia adenoamigdalina foi 43,2%, enquanto que no grupo de controlo foi 0%.10
Gregório et al. (2008) num estudo poligráfico do sono realizado a 38 crianças com diagnósticos de SAOS, observou a presença de bruxismo em 34,3% dos casos. 11
Outro estudo de Grechi et al (2008), avaliou 60 crianças dos 2 aos 13 anos com obstrução nasal, verificando que 65,2% destas crianças apresentavam bruxismo. 12
Ferreira et al. (2014) verificou que entre várias crianças com bruxismo, 11,03% também apresentava SAOS. 13
Assim, são vários os estudos publicados que identificaram uma associação positiva entre os DRSO e a presença de bruxismo do sono, verificando-se uma prevalência de bruxismo em crianças com hipertrofia adenoamigdalina entre 26 e 56%, sendo de 41% no nosso estudo (Tabela 2).
Apesar de não se pretender propor adenoamigdalectomia apenas para melhorar as queixas de bruxismo, é importante conhecer o efeito da cirurgia, não só nos DRSO mas também no bruxismo. De facto, segundo os estudos que compararam a prevalência antes e após a cirurgia houve uma melhoria do bruxismo em 72 a 77% das crianças que apresentavam queixas antes da cirurgia4,5, tendo havido, no nosso estudo, uma melhoria em 77% das crianças.
Assim, o nosso estudo vem reforçar e alertar para a associação entre DRSO e bruxismo, que poderá ser um dado a considerar em casos de dúvida na decisão terapêutica cirúrgica destas crianças.
N | Autor | Ano | % Bruxismo em crianças com hipertrofia adenoamigdalina/SAOS | % Bruxismo após adenoamigdalectomia |
1 | Valera et al. 10 | 2003 | 43,2% | - |
2 | DiFrancesco et al. 5 | 2004 | 45,6% | 11,8 % |
3 | Ali Efterkharian et al. 4 | 2007 | 25,7% | 7,1 % |
4 | Gregório et al. 11 | 2008 | 34,3% | - |
5 | Oh et al. 8 | 2020 | 56% | - |
6 | F. Morgado et al. | 2022 | 40,7% | 9,3% |
Conclusão
Os autores concluíram existir uma diminuição significativa do bruxismo após a cirurgia, uma vez que das 23 crianças que apresentavam bruxismo, 17 (77%) deixaram de apresentar esse comportamento após a remoção das amígdalas e adenóides.
O conhecimento desta associação permite que os pediatras e médicos dentistas referenciem crianças para a especialidade de Otorrinolaringologia (ORL) para investigação de DRSO em casos de bruxismo e ao mesmo tempo alertar os Otorrinolaringologistas para investigar queixas de bruxismo em crianças com DRSO.
Assim, a consulta de ORL em conjunto com a consulta de Ortodontia é importante para avaliação e decisão terapêutica em casos de bruxismo na idade pediátrica.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.