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Revista Portuguesa Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço

versão On-line ISSN 2184-6499

Rev Port ORL vol.61 no.1 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.34631/sporl.1084 

Caso Clínico

Leishmaniose mucocutânea nasal - uma manifestação rara da doença

Nasal mucocutaneous leishmaniasis - an unusual form of presentation

Isa Elói1 
http://orcid.org/0000-0003-2328-8652

Nuno Dias Silva1 

José Pedro Carneiro1 

Filipa Vaz Carvalho1 

João Carlos Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0002-1039-6358

António Carlos Miguéis1 

Jorge Eva Miguéis1 

1 Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal


Resumo

A leishmaniose é uma doença infeciosa, causada por protozoários do género Leishmania, cujo vetor de transmissão é a picada de mosquitos (fêmeas) chamados flebótomos. Existem três formas principais - visceral, cutânea e mucocutânea, sendo a afeção da mucosa a manifestação mais rara da doença. A incidência em Portugal é considerada hipoendémica.

Apresentamos um caso clínico de uma mulher, com queixas de obstrução nasal, epistáxis e lesões irregulares eritematosas a nível das asas do nariz, columela, vestíbulo e septo nasal.

Foram realizadas biópsias das lesões cutâneas e da mucosa nasal que revelaram a presença de corpos de Leishman-Donovan. A doente foi submetida a tratamento com anfotericina B e itraconazol com boa evolução clínica e desaparecimento das lesões.

A leishmaniose mucocutânea atinge preferencialmente a mucosa nasal e se não diagnosticada e tratada atempadamente pode levar a destruição da cartilagem e disseminação das lesões para a nasofaringe, faringe e laringe comprometendo a via aérea e provocando desfiguração.

Palavras-chave: leishmaniose; leishmaniose mucocutânea; leishmaniose nasal

Abstract

Leishmaniasis is caused by the protozoan parasite Leishmania which is transmitted through bites of infected female phlebotomine sandflies. There are 3 main forms - visceral, cutaneous and mucocutaneous, with mucosal affection being the rarest manifestation of the disease. The incidence in Portugal is considered hypoendemic.

We present a case of a 48 years old female, with complaints of nasal obstruction, epistaxis and irregular erythematous scaly plaques surrounding the nostrils. Histology of the nasal septum and skin revealed the presence of Leishmania-Donovan bodies. She was treated with amphotericin-B and itraconazole with clinical improvement and disappearance of lesions.

Mucocutaneous leishmaniasis preferably affects the nasal mucosa and if not diagnosed and treated in time can lead to cartilage destruction and dissemination of mucosal lesions to the nasopharynx, larynx, compromising the airway and even leading to disfigurement.

Keywords: leishmaniasis; mucocutaneous leishmaniasis; nasal leishmaniasis

Introdução

A leishmaniose é uma doença infeciosa, causada por protozoários do género Leishmania, cujo vetor de transmissão é a picada de mosquitos (fêmeas), chamados flebotomíneos, pertencentes ao género Phlebotumus e Lutzomyia. As espécies Phlebotmus pernicious e ariasi são as espécies mais importantes na Europa Ocidental. 1,2,3

Estima-se que existam cerca de 0,7 a 1 milhão de novos casos de leishmaniose anualmente no mundo com aproximadamente 350 milhões de pessoas em risco. É endémica em regiões subdesenvolvidas como a América Latina e Médio Oriente, contudo a sua incidência em países europeus é mais rara. A leishmaniose humana em Portugal é considerada hipoendémica. 4,5

Quando sintomática existem três formas principais de manifestação clínica da leishmaniose: cutânea, mucocutânea e visceral. A leishmaniose mucocutânea, ou espúndia, é uma forma rara da manifestação da doença e é causada principalmente pela espécie Leishmania Braziliensis. Pode surgir como manifestação primária da doença ou ser secundária à apresentação cutânea. 1,3,6

O caso apresentado refere-se a uma paciente do sexo feminino, com antecedentes de leishmaniose cutânea tratada há 5 anos, enviada à consulta de otorrinolaringologia por queixas nasais de novo.

Descrição do caso

Descreve-se o caso de uma mulher de 48 anos, residente em área rural, enviada à consulta de otorrinolaringologia por obstrução nasal e episódios autolimitados de epistáxis. Apresentava como antecedentes relevantes diabetes mellitus tipo II e leishmaniose cutânea (Leishmania tropica) diagnosticada em 2015 e tratada com itraconazol oral 600 mg id durante 28 dias, com resolução das lesões. Sem história de trauma nasal ou clínica de rinossinusite crónica. Negava viagens ao estrangeiro recentes ou prévias ao diagnóstico de leishmaniose cutânea.

Ao exame objetivo apresentava lesões eritematosas, infiltrativas nas asas do nariz, columela e vestíbulo nasal (figura 1). Na endoscopia nasal apresentava ainda lesões em placas, espessadas, eritematosas com crostas na região anterior do septo. Concomitantemente constatava-se a presença de uma perfuração septal anterior com cerca de 0,5x0,5cm nas áreas de Cottle II e III (figura 2). 7

A palpação cervical era inocente assim como o restante exame objetivo ORL. Não foram encontradas lesões eritematosas noutros locais do corpo.

Figura 1 Pré-tratamento. Eritema bem demarcado no terço médio da face, homogéneo a nível das asas do nariz, columela nasal e filtrum nasal 

Figura 2 Endoscopia nasal - Fossa nasal direita. Múltiplas pequenas lesões, com bordos eritematosos. 

Analiticamente apresentava linfopenia ligeira 0,79 x 109/L, hemoglobina glicada 6.9% e velocidade de sedimentação de 7 mm/h. O estudo de autoimunidade, vasculites e serologias VDRL e VIH foi negativo.

A tomografia computorizada dos seios perinasais mostrava uma descontinuidade da porção cartilagínea da região anterior do septo nasal e espessamento dos tecidos moles da mucosa septal. A Tomografia computorizada abdominal não apresentava alterações relevantes.

Foram realizadas biópsias cutâneas e endonasais que histologicamente revelaram um denso infiltrado inflamatório com numerosos histiócitos que continham estruturas intracitoplasmáticas compatíveis com corpos de Leishman-Donovan. A polymerase chain reaction foi compatível com o diagnóstico de leishmaniose.

A doente foi internada para tratamento com anfotericina B endovenosa 4 mg/kg. Após 3 semanas de tratamento, por ausência de melhoria clínica e surgimento de nefrotoxicidade e mialgias, foi substituída por itraconazol 600 mg id que cumpriu durante 3 meses. Observou-se uma resolução clínica com melhoria do eritema, obstrução nasal, epistáxis e desconforto nasal, e ausência de corpos de Leishman-Donovan nas biópsias pós-tratamento.

A doente mantém seguimento em consulta de dermatologia e otorrinolaringologia, sem nenhuma outra manifestação da doença até ao momento.

Figura 3 Após tratamento 

Discussão

A leishmaniose é uma infecção primariamente zoonótica, causada por parasitas protozoários do género Leishmania spp. Todas as espécies de Leishmania são transmitidas pela picada dos insetos fêmea do género Lutzomyia e Phlebotomus. Essa transmissão é feita por inoculação das formas promastigotas na pele do hospedeiro vertebrado. 1,3,8

Esta doença é endémica maioritariamente em áreas rurais tropicais da América Central e do Sul (New World), África, India e Médio Oriente (Old World), mas também em regiões mediterrâneas da Europa. Em Portugal, os últimos dados recolhidos revelam que a prevalência da infeção em cães (principal reservatório da leishmaniose humana) e gatos é uma preocupação para o aumento do número de casos e disseminação desta parasitose. 5,6

A gravidade da manifestação clínica da leishmaniose depende de fatores tais como: parasita, resistência natural do hospedeiro e magnitude da resposta imunológica. A leishmaniose visceral é habitualmente mais grave, sendo frequentemente fatal quando não tratada. O VIH aumenta a suscetibilidade do hospedeiro a doença ativa que maioritariamente se manifesta de forma mais agressiva e atípica. Em Portugal, registou-se um aumento do número de casos de leishmaniose visceral em adultos associado à co-infecção por VIH, tendência que tem vindo a diminuir desde a introdução da terapêutica anti-retroviral. 2,9

A leishmaniose pode ser cutânea, mucocutânea ou visceral. A leishmaniose cutânea e mucocutânea não constitui uma doença de notificação obrigatória pelo que se pensa que está subdiagnosticada dado o geral curso benigno das lesões. A leishmaniose visceral é de notificação obrigatória desde os anos 50. 2

A leishmaniose cutânea é a forma mais comum da apresentação da doença e caracteriza-se por máculas rosadas únicas ou múltiplas que evoluem para nódulos e posteriormente úlceras bem delimitadas de bordos elevados, indolores que podem afetar qualquer zona do corpo. Cursa geralmente com adenomegalias, não dolorosas, próximas ao local de inoculação do parasita. 1,3,8

A leishmaniose mucocutânea/espúndia é a forma mais rara da manifestação da doença e é causada principalmente pela forma L. braziliensis. É quase sempre secundária à apresentação cutânea. Pode aparecer com a lesão cutânea ainda ativa, mas geralmente aparece meses ou anos após a sua resolução. Afeta principalmente a mucosa nasal, contudo com o desenvolvimento da doença mais agressiva pode acometer a mucosa da cavidade oral, faringe e laringe. A região anterior do septo nasal favorece o desenvolvimento de amastigotas. Baixas temperaturas a este nível diminuem a capacidade de fagocitose dos macrófagos e consequentemente favorecem o crescimento do parasita. 1,6,8,10

Os sintomas e sinais incluem obstrução nasal, epistáxis, rinorreia, granuloma nasal, úlceras e crostas. Com a evolução da doença, a pele do nariz torna-se espessada, com aumento do volume da pirâmide nasal (fácies leishmaniótica), e pode cursar com destruição da cartilagem septal. 1,6,8,11

O diagnóstico diferencial da leishmaniose mucocutânea inclui tumores, rinofima, perfuração septal traumática ou decorrente da utilização de drogas de abuso, vasculites, sífilis e outras doenças granulomatosas tais como paracoccidioidomicose, tuberculose e lepra. 3,6,8

A leishmaniose visceral é a forma mais grave da doença e cursa com manifestações sistémicas que incluem febre, hepatoesplenomegalia, anorexia, perda de peso e anemia. 1,8

Perante a suspeita diagnóstica deve-se proceder a uma biópsia da lesão. Os corpos de Leishman-Donovan podem ser visualizados no meio de cultura apropriados e o método de polymerase chain reaction permite a detecção molecular do DNA do protozoário. A pesquisa de anticorpos anti-leishmania spp apenas é recomendada na suspeita de leishmaniose visceral por serem pouco específicos para distinção entre exposição passada e infeção presente. 10,12,13

O risco de morbilidade (desfiguração cosmética) e mortalidade na leishmaniose mucocutânea é superior em relação à leishmaniose cutânea pelo que o tratamento nestes casos deve ser sistémico. A escolha do fármaco anti-leishmaniótico, dose e duração do tratamento deve ser individualizado. A administração pode ser feita por via oral ou parentérica. Na via oral pode optar-se pelos azóis (itraconazol 600 mg id ou cetoconazol 600 mg id durante 4 semanas, ou fluconazol 200 mg id 6 semanas) ou miltefosina (2,5 mg/kg máximo 150 mg/dia durante 4 semanas). Por via parentérica, os fármacos utilizados são os antimoniais pentavalentes compostos [20 mg/kg idI IV (intravenoso) ou IM (intramuscular) por 4 semanas] ou a anfotericina lisossómica B (3-7 mg/kg com uma dose cumulativa total entre 20-60 mg/kg). O objetivo do tratamento é a cura clínica e não parasitológica. 12,13

Os critérios de cura incluem o desaparecimento das lesões e dos sintomas nos três meses seguintes ao tratamento. É recomendada vigilância mensal até se objetivar o cumprimento dos critérios de cura e posteriormente seguimento anual dado o grande potencial de recidiva. 8,9,10

O diagnóstico e orientação do doente com leishmaniose deve envolver uma equipa multidisciplinar que inclua as valências de dermatologia, infeciologia, medicina interna, otorrinolaringologia e anatomia patológica.

A leishmaniose é uma doença com uma importante morbilidade. Quando diagnosticada a tempo tem um excelente prognóstico. Apesar de rara, em Portugal é por isso importante que o otorrinolaringologista a inclua como hipótese diagnóstica.

Conflito de Interesses

Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.

Proteção de pessoas e animais

Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.

Política de privacidade, consentimento informado e Autorização do Comité de Ética

Os autores declaram que têm o consentimento por escrito para o uso de fotografias dos pacientes neste artigo.

Financiamento

Este trabalho não recebeu qualquer contribuição, financiamento ou bolsa de estudos.

Disponibilidade dos Dados científicos

Não existem conjuntos de dados disponíveis publicamente relacionados com este trabalho.

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Recebido: 22 de Agosto de 2022; Aceito: 03 de Novembro de 2022

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