Introdução
A leishmaniose é uma doença infeciosa, causada por protozoários do género Leishmania, cujo vetor de transmissão é a picada de mosquitos (fêmeas), chamados flebotomíneos, pertencentes ao género Phlebotumus e Lutzomyia. As espécies Phlebotmus pernicious e ariasi são as espécies mais importantes na Europa Ocidental. 1,2,3
Estima-se que existam cerca de 0,7 a 1 milhão de novos casos de leishmaniose anualmente no mundo com aproximadamente 350 milhões de pessoas em risco. É endémica em regiões subdesenvolvidas como a América Latina e Médio Oriente, contudo a sua incidência em países europeus é mais rara. A leishmaniose humana em Portugal é considerada hipoendémica. 4,5
Quando sintomática existem três formas principais de manifestação clínica da leishmaniose: cutânea, mucocutânea e visceral. A leishmaniose mucocutânea, ou espúndia, é uma forma rara da manifestação da doença e é causada principalmente pela espécie Leishmania Braziliensis. Pode surgir como manifestação primária da doença ou ser secundária à apresentação cutânea. 1,3,6
O caso apresentado refere-se a uma paciente do sexo feminino, com antecedentes de leishmaniose cutânea tratada há 5 anos, enviada à consulta de otorrinolaringologia por queixas nasais de novo.
Descrição do caso
Descreve-se o caso de uma mulher de 48 anos, residente em área rural, enviada à consulta de otorrinolaringologia por obstrução nasal e episódios autolimitados de epistáxis. Apresentava como antecedentes relevantes diabetes mellitus tipo II e leishmaniose cutânea (Leishmania tropica) diagnosticada em 2015 e tratada com itraconazol oral 600 mg id durante 28 dias, com resolução das lesões. Sem história de trauma nasal ou clínica de rinossinusite crónica. Negava viagens ao estrangeiro recentes ou prévias ao diagnóstico de leishmaniose cutânea.
Ao exame objetivo apresentava lesões eritematosas, infiltrativas nas asas do nariz, columela e vestíbulo nasal (figura 1). Na endoscopia nasal apresentava ainda lesões em placas, espessadas, eritematosas com crostas na região anterior do septo. Concomitantemente constatava-se a presença de uma perfuração septal anterior com cerca de 0,5x0,5cm nas áreas de Cottle II e III (figura 2). 7
A palpação cervical era inocente assim como o restante exame objetivo ORL. Não foram encontradas lesões eritematosas noutros locais do corpo.
Analiticamente apresentava linfopenia ligeira 0,79 x 109/L, hemoglobina glicada 6.9% e velocidade de sedimentação de 7 mm/h. O estudo de autoimunidade, vasculites e serologias VDRL e VIH foi negativo.
A tomografia computorizada dos seios perinasais mostrava uma descontinuidade da porção cartilagínea da região anterior do septo nasal e espessamento dos tecidos moles da mucosa septal. A Tomografia computorizada abdominal não apresentava alterações relevantes.
Foram realizadas biópsias cutâneas e endonasais que histologicamente revelaram um denso infiltrado inflamatório com numerosos histiócitos que continham estruturas intracitoplasmáticas compatíveis com corpos de Leishman-Donovan. A polymerase chain reaction foi compatível com o diagnóstico de leishmaniose.
A doente foi internada para tratamento com anfotericina B endovenosa 4 mg/kg. Após 3 semanas de tratamento, por ausência de melhoria clínica e surgimento de nefrotoxicidade e mialgias, foi substituída por itraconazol 600 mg id que cumpriu durante 3 meses. Observou-se uma resolução clínica com melhoria do eritema, obstrução nasal, epistáxis e desconforto nasal, e ausência de corpos de Leishman-Donovan nas biópsias pós-tratamento.
A doente mantém seguimento em consulta de dermatologia e otorrinolaringologia, sem nenhuma outra manifestação da doença até ao momento.
Discussão
A leishmaniose é uma infecção primariamente zoonótica, causada por parasitas protozoários do género Leishmania spp. Todas as espécies de Leishmania são transmitidas pela picada dos insetos fêmea do género Lutzomyia e Phlebotomus. Essa transmissão é feita por inoculação das formas promastigotas na pele do hospedeiro vertebrado. 1,3,8
Esta doença é endémica maioritariamente em áreas rurais tropicais da América Central e do Sul (New World), África, India e Médio Oriente (Old World), mas também em regiões mediterrâneas da Europa. Em Portugal, os últimos dados recolhidos revelam que a prevalência da infeção em cães (principal reservatório da leishmaniose humana) e gatos é uma preocupação para o aumento do número de casos e disseminação desta parasitose. 5,6
A gravidade da manifestação clínica da leishmaniose depende de fatores tais como: parasita, resistência natural do hospedeiro e magnitude da resposta imunológica. A leishmaniose visceral é habitualmente mais grave, sendo frequentemente fatal quando não tratada. O VIH aumenta a suscetibilidade do hospedeiro a doença ativa que maioritariamente se manifesta de forma mais agressiva e atípica. Em Portugal, registou-se um aumento do número de casos de leishmaniose visceral em adultos associado à co-infecção por VIH, tendência que tem vindo a diminuir desde a introdução da terapêutica anti-retroviral. 2,9
A leishmaniose pode ser cutânea, mucocutânea ou visceral. A leishmaniose cutânea e mucocutânea não constitui uma doença de notificação obrigatória pelo que se pensa que está subdiagnosticada dado o geral curso benigno das lesões. A leishmaniose visceral é de notificação obrigatória desde os anos 50. 2
A leishmaniose cutânea é a forma mais comum da apresentação da doença e caracteriza-se por máculas rosadas únicas ou múltiplas que evoluem para nódulos e posteriormente úlceras bem delimitadas de bordos elevados, indolores que podem afetar qualquer zona do corpo. Cursa geralmente com adenomegalias, não dolorosas, próximas ao local de inoculação do parasita. 1,3,8
A leishmaniose mucocutânea/espúndia é a forma mais rara da manifestação da doença e é causada principalmente pela forma L. braziliensis. É quase sempre secundária à apresentação cutânea. Pode aparecer com a lesão cutânea ainda ativa, mas geralmente aparece meses ou anos após a sua resolução. Afeta principalmente a mucosa nasal, contudo com o desenvolvimento da doença mais agressiva pode acometer a mucosa da cavidade oral, faringe e laringe. A região anterior do septo nasal favorece o desenvolvimento de amastigotas. Baixas temperaturas a este nível diminuem a capacidade de fagocitose dos macrófagos e consequentemente favorecem o crescimento do parasita. 1,6,8,10
Os sintomas e sinais incluem obstrução nasal, epistáxis, rinorreia, granuloma nasal, úlceras e crostas. Com a evolução da doença, a pele do nariz torna-se espessada, com aumento do volume da pirâmide nasal (fácies leishmaniótica), e pode cursar com destruição da cartilagem septal. 1,6,8,11
O diagnóstico diferencial da leishmaniose mucocutânea inclui tumores, rinofima, perfuração septal traumática ou decorrente da utilização de drogas de abuso, vasculites, sífilis e outras doenças granulomatosas tais como paracoccidioidomicose, tuberculose e lepra. 3,6,8
A leishmaniose visceral é a forma mais grave da doença e cursa com manifestações sistémicas que incluem febre, hepatoesplenomegalia, anorexia, perda de peso e anemia. 1,8
Perante a suspeita diagnóstica deve-se proceder a uma biópsia da lesão. Os corpos de Leishman-Donovan podem ser visualizados no meio de cultura apropriados e o método de polymerase chain reaction permite a detecção molecular do DNA do protozoário. A pesquisa de anticorpos anti-leishmania spp apenas é recomendada na suspeita de leishmaniose visceral por serem pouco específicos para distinção entre exposição passada e infeção presente. 10,12,13
O risco de morbilidade (desfiguração cosmética) e mortalidade na leishmaniose mucocutânea é superior em relação à leishmaniose cutânea pelo que o tratamento nestes casos deve ser sistémico. A escolha do fármaco anti-leishmaniótico, dose e duração do tratamento deve ser individualizado. A administração pode ser feita por via oral ou parentérica. Na via oral pode optar-se pelos azóis (itraconazol 600 mg id ou cetoconazol 600 mg id durante 4 semanas, ou fluconazol 200 mg id 6 semanas) ou miltefosina (2,5 mg/kg máximo 150 mg/dia durante 4 semanas). Por via parentérica, os fármacos utilizados são os antimoniais pentavalentes compostos [20 mg/kg idI IV (intravenoso) ou IM (intramuscular) por 4 semanas] ou a anfotericina lisossómica B (3-7 mg/kg com uma dose cumulativa total entre 20-60 mg/kg). O objetivo do tratamento é a cura clínica e não parasitológica. 12,13
Os critérios de cura incluem o desaparecimento das lesões e dos sintomas nos três meses seguintes ao tratamento. É recomendada vigilância mensal até se objetivar o cumprimento dos critérios de cura e posteriormente seguimento anual dado o grande potencial de recidiva. 8,9,10
O diagnóstico e orientação do doente com leishmaniose deve envolver uma equipa multidisciplinar que inclua as valências de dermatologia, infeciologia, medicina interna, otorrinolaringologia e anatomia patológica.
A leishmaniose é uma doença com uma importante morbilidade. Quando diagnosticada a tempo tem um excelente prognóstico. Apesar de rara, em Portugal é por isso importante que o otorrinolaringologista a inclua como hipótese diagnóstica.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.