Introdução
A paralisia facial periférica (PFP) pode ser de etiologia idiopática (designada por primária ou paralisia de Bell) ou pode ser secundária a uma causa identificável. A etiologia idiopática é a mais comum, tratando-se de um diagnóstico de exclusão. Apenas cerca de ¼ dos casos são de etiologia secundária. As causas mais prevalentes de PFP incluem infeções virais (vírus Herpes Simplex, vírus Epstein-Barr, citomegalovírus…), traumatismo (fratura do osso temporal p.ex.), iatrogenia cirúrgica, infeções locais e neoplasias1. Em quadros agudos, o diagnóstico diferencial entre etiologia infeciosa e neoplasia pode não ser fácil apenas com base na história clínica, exame objetivo e tomografia computadorizada2.
Dentro das neoplasias do nervo facial, o schwannoma (SNF) é a mais comum, correspondendo a 5% das paralisias faciais3. No SNF a PFP pode ser súbita, intermitente ou progressiva. Pode também causar hipoacusia em cerca de 50 % dos casos, de condução ou neurossensorial. Outros sintomas possíveis incluem a otalgia e vertigem. Esta neoplasia atinge mais frequentemente os segmentos timpânico e mastoideu do nervo facial4.
Neste trabalho, apresentamos um doente com um quadro inicial de PFP, hipoacusia e otalgia que mimetizava uma otite média aguda complicada com PFP, mas que intra-operatoriamente veio a revelar a presença de um SNF do ouvido médio, o qual foi ressecado de forma subtotal com melhoria subsequente da função facial e dos limiares auditivos.
Caso clínico
Doente de 49 anos, sexo masculino, leucodérmico, sem antecedentes patológicos de relevo, que recorre ao serviço de urgência de Otorrinolaringologia (ORL) do Hospital Pedro Hispano (HPH) por quadro de parésia facial esquerda, precedido de otalgia intensa e hipoacusia ipsilateral com dois dias de evolução, sem outras queixas associadas, nomeadamente febre ou otorreia. O exame objetivo revelou uma parésia facial esquerda, grau IV de House-Brackmann (HB). A otoscopia esquerda mostrou opacificação e hiperémia de toda a membrana timpânica, sem abaulamento timpânico e sem evidência de lesões vesiculares no canal auditivo externo e concha ou outras alterações à observação. A acumetria mostrou uma prova de Rinne negativa à esquerda, com a prova de Weber a lateralizar para a esquerda.
O estudo audiológico realizado no serviço de urgência (SU) mostrou uma surdez de condução esquerda nas frequências extremas, de grau severo a profundo acima dos 4000 Hz (fig.1).
Face à suspeita de otite média aguda não supurada complicada com paralisia facial periférica, foi efetuada, no SU, miringocentese esquerda verificando-se drenagem espontânea de conteúdo seromucoso.
Após o procedimento foi efetuada tomografia computorizada (TC) de ouvidos (fig. 2) no SU que mostrou um preenchimento da mastoide e cavidade timpânica esquerdas, que envolvia a cadeia ossicular, sem provocar qualquer erosão. Canal de Falópio sem alterações evidentes.
O doente teve alta do SU medicado com antibioterapia e corticoterapia oral e terapêutica tópica no ouvido esquerdo com ofloxacina e dexametasona, tendo sido sugerido encerramento do olho esquerdo com penso oftálmico no período noturno e aplicação diária de lágrima artificial.
O doente foi reavaliado 1 semana após o início do quadro, não evidenciando sinais de melhoria clínica, apresentando persistência da otalgia esquerda e ausência de melhoria da parésia facial (grau IV HB). A otoscopia mostrava tecido de granulação a emergir na incisão da miringotomia. Na ausência de melhoria com miringocentese associada a terapêutica médica, decidiu-se internamento para timpanomastoidectomia exploradora (fig. 3).
O doente foi submetido a cirurgia 1 semana depois do início do quadro, sob anestesia geral com intubação ototraqueal. Foi utilizada uma via retroauricular. Durante o procedimento constatou-se preenchimento do ático, aditus ad antrum e antro mastoideu com tecido neoformativo de consistência mole, não pediculado, com pouca granulação envolvente. Foi efetuada remoção do tecido do antro mastoideu e da região lateral à cadeia ossicular, junto à membrana timpânica, cadeia esta que se encontrava íntegra e móvel. Foi enviada amostra do tecido neoformativo (fig. 3) que envolvia o nervo facial na sua porção horizontal para estudo anátomo-patológico.
Após o procedimento, o doente apresentou melhoria do grau de PFP, passando de um grau IV para um grau III de HB (fig.4), melhorando também os limiares auditivos (fig.5)
O exame histológico da peça operatória revelou um schwannoma do nervo facial. O estudo imunocitoquímico mostrou positividade forte e difusa para S100 e negatividade para CD34 e EMA.
A ressonância magnética (RM) de ouvido pós-operatória mostrou áreas de captação linear residual na região do segmento horizontal do nervo facial esquerdo e porção mastoideia, compatível com resíduo de schwannoma do nervo facial (fig. 6)
Face à melhoria clínica, quer a nível da função facial como auditiva, optou-se por uma atitude expectante com observação e avaliação imagiológica (RM) regulares do resíduo tumoral (a cada seis meses no primeiro ano).
Após um ano, o doente apresentou um ouvido médio esquerdo arejado, sem queixas auditivas e com uma PFP esquerda sobreponível (grau III HB). Fez RM que não documentou crescimento da lesão.
Discussão
O schwannoma do nervo facial é uma neoplasia benigna rara com origem nas células de Schwann do nervo facial, apresentando geralmente um crescimento lento. Pode surgir ao longo de todo o trajeto do nervo, desde o tronco cerebral até à glândula parótida, fazendo diagnóstico diferencial com outras causas de PFP, nomeadamente hemangioma do nervo facial, schwannoma do nervo vestibular, otite média aguda complicada, otite média crónica colesteatomatosa, paragangliomas, carcinoma adenóide quístico e neoplasias da glândula parótida. A clínica não é patognomónica e depende do tamanho e da localização da lesão5 (tab. 1).
Localização | Manifestações clínicas |
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Ângulo pontocerebeloso e canal auditivo interno | Hipoacusia neurossensorial e acufeno |
Segmento labiríntico | PFP progressiva e hipoacusia neurossensorial |
Segmento timpânico | PFP progressiva, plenitude aural e hipoacusia de condução |
Segmento mastoideu | PFP progressiva e hipoacusia de condução |
Periféricos (após o forámen estilomastoideu) | Massa parotídea associada a PFP lentamente progressiva |
No nosso caso clínico, o doente apresentou um quadro agudo, não progressivo, de PFP, associado a hipoacusia de condução e otalgia. Dada esta apresentação aguda e achados inflamatórios à otoscopia suspeitou-se inicialmente de uma OMA complicada com PFP e não de uma lesão neoformativa, o que explica a cirurgia de urgência e a não realização de RMN pré-operatória.
A imagiologia é fundamental na avaliação das caraterísticas e localização da lesão. A RM com gadolínio é o exame complementar de diagnóstico mais sensível, devendo ser complementada pela TC, que permite uma melhor avaliação do atingimento ósseo (erosão do canal do facial) (6. Achados consistentes com SNF incluem um alargamento do canal do facial na TC e uma lesão com hipersinal em T2 na RM6. A conjugação da clínica com os achados imagiológicos pode aumentar o grau de suspeição. No caso apresentado apenas foi realizada TC de ouvidos no SU, o que limitou a investigação do quadro clínico.
As opções terapêuticas do SNF incluem a cirurgia, a radioterapia ou a vigilância clínico-imagiológica7 e é um tema alvo de controvérsia. Em termos cirúrgicos, podem ser consideradas a descompressão do nervo facial, a ressecção total ou sub-total da lesão. A via de abordagem (fossa média, translabiríntica, transmastoideia ou parotídea) deve ser eleita em função da localização tumoral, extensão da lesão, nível de audição e experiência do cirurgião8 (tab. 2).
Via de abordagem preferencial | Características clínicas e lesão |
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Fossa média | Lesões intracanalares e bom nível de audição |
Trans-labiríntica | Lesões no canal auditivo interno e perda auditiva |
Trans-mastoideia | Lesões do segmento timpânico ou mastoideu do nervo facial |
A ressecção total da lesão implica na grande maioria das vezes o compromisso da função do nervo facial, estando preconizada a sua reconstrução. Várias técnicas de reconstrução do nervo facial podem ser utilizadas: anastomose topo a topo, enxerto nervoso ou anastomose entre o nervo hipoglosso e o facial9. A interposição de um enxerto nervoso autológo é a técnica mais frequentemente utilizada, com a interposição de nervos sensitivos, como o nervo grande auricular ou o nervo sural do membro inferior. A não resolução da PFP, inclusivamente com eventual agravamento funcional, o agravamento da hipoacusia e a formação de fístula de LCR são complicações cirúrgicas possíveis numa ressecção total do SNF.
A ressecção subtotal tem sido uma opção cirúrgica crescente nos últimos 20 anos7. Em contraposição à total, permite uma maior preservação da integridade e consequente função do nervo facial. Os estudos atuais são insuficientes para avaliar os resultados a longo prazo após ressecção subtotal, porém mostram que os SNF estabilizam e geralmente não voltam a crescer: após resseção subtotal apenas 1 em cada 6 volta a crescer, segundo um estudo recente9. Alguns autores7 referem que a resseção subtotal ab initio pode ser equacionada em doentes com boa função pré-operatória (≤ grau III HB).
O melhor momento para cirurgia é uma questão controversa. Alguns autores7 defendem a resseção total e reconstrução do nervo facial apenas se à apresentação existir uma PFP ( grau IV de HB, sugerindo uma atitude expectante até ser atingido esse grau de paralisia facial.
A radiocirurgia estereotáxica é outra opção terapêutica no tratamento do SNF. A maioria dos estudos sobre esta modalidade foram realizados em lesões pontocerebelosas, havendo pouca informação sobre a sua utilização em lesões intratemporais10. Resultados de uma meta-análise11 mostraram uma taxa de controlo tumoral de 93,3% dois anos após tratamento, no entanto, 12,8% dos casos apresentaram deterioração da função do nervo facial e 36,7% dos casos apresentaram agravamento da função auditiva. Em suma, esta modalidade terapêutica apresenta riscos importantes no tratamento de lesões intratemporais, não sendo considerada uma opção de primeira linha.
Um estudo12 recente comparou a taxa de crescimento de SNF de pequenas dimensões (< 10 mm) e de grandes dimensões (≥ 10 mm) após um período de acompanhamento de 6,4 anos. O crescimento foi observado em 72,7% dos pacientes com “lesão grande” e apenas 10% com “lesão pequena”. Deste modo, uma atitude expectante inicial parece ser consensual em SNF pequenos (<10 mm) e sem PFP, preconizando-se a monitorização da taxa de crescimento tumoral com observação e avaliação regular por RMN. Contudo, em doentes com SNF de dimensões ≥ 10 mm, os autores sugerem que a atitude expectante deverá ser reconsiderada, mesmo que mantenham um nervo facial funcionante.
Outros autores advogam uma atitude expectante inicial até que se observe uma PFP ≥ IV de HB, independentemente das dimensões da lesão tumoral, considerando que se trata de uma lesão benigna que apresenta geralmente um crescimento lento, frequentemente sem grau de PFP significativa.
As modalidades terapêuticas foram evoluindo ao longo do tempo e, por se tratar de uma neoplasia rara, não existem diretivas definidas sobre as melhores opões terapêuticas pelo que a terapêutica continua a ser alvo de controvérsia. Uma revisão sistemática7 recente propôs um algoritmo terapêutico que simplifica a abordagem terapêutica dos doentes com SNF intratemporal (fig. 7).
As estratégias são primeiro divididas de acordo com a presença/ausência de compressão do tronco cerebral:
- Se houver compressão do tronco cerebral ou se o tumor tiver um crescimento contínuo (avaliação anual por RM), está indicado tratamento cirúrgico com: 1) ressecção subtotal, se o grau de PFP for I-II de HB; 2) ressecação total, se o grau de PFP for III-VI.
- Se não houver compressão do tronco cerebral ou crescimento tumoral, sugere-se vigilância. No followup destes doentes, se ocorrer paralisia facial aguda, deve-se proceder à descompressão do nervo facial associada a corticoterapia.
No caso clínico apresentado, foi assumida inicialmente uma otite média aguda complicada com PFP, com base na história clínica, exame objetivo e achados na TC de urgência. Só após a abordagem cirúrgica com ressecção subtotal do tecido de granulação que envolvia o segmento horizontal e mastoideu do nervo facial, se obteve o diagnóstico final de schwannoma do nervo facial. Uma vez que se observou uma melhoria clínica pós-operatória, tanto do grau de PFP como dos limiares auditivos, e a lesão remanescente era de pequenas dimensões, optou-se por uma atitude expectante, com avaliação clínica e imagiológica regular por RMN. A radiocirurgia estereotáxica foi preterida, uma vez que apresenta risco importante de dano coclear e de agravamento da função do nervo facial em lesões intratemporais.
Conclusão
Os SNF intratemporais são lesões raras que normalmente cursam com parésia facial e perda auditiva. Um índice de suspeição elevado é importante, com base na clínica e imagiologia, para um diagnóstico e tratamento precoces. Nas lesões intra-temporais o tratamento é essencialmente cirúrgico ou expectante, uma vez que a radiocirurgia estereotáxica está associada a um importante risco de lesão facial e coclear.
Conflito de interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Protecção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.