Introdução
Em 2018, o cancro da cabeça e pescoço, foi mundialmente classificado como o sétimo mais prevalente. Na cavidade oral, a maior parte representa tumores de células escamosas e pode afetar todas as áreas, nomeadamente: língua, lábios, crista alveolar, mucosa oral e pavimento da boca.1,2 O prognóstico depende, entre outros, desta localização. O tratamento do cancro oral inclui a ressecção cirúrgica com reconstrução, radioterapia ou quimioterapia 2
As Células Claras (CC) podem resultar de diferentes processos, incluindo degeneração de organelos celulares ou acumulação de substâncias intracelulares, mais frequente a presença de glicogénio, mas por vezes mucopolissacarídeos, mucinas, lípidos ou corpos estranhos 3. (Figura 1) As CC podem ser observadas em qualquer tumor benigno ou maligno de origem epitelial, mesenquimal melanocítica e hematopoiética, mas são raras na região de cabeça e pescoço. 4
Na região da cabeça e pescoço, as CC são encontradas maioritariamente nos tumores das glândulas salivares, mas também podem ser vistos em tumores escamosos ou de origem epitelial odontogénica, carcinoma metastático ou primário, lesões melanóticas malignas ou benignas, tumores mesenquimatosos malignos ou benignos 3,4 (Figura 2).
Este trabalho tem como objetivo demonstrar a variabilidade clínica de apresentação associada à sobreposição imuno-histoquímica de dois tipos de tumores de células claras da cabeça e pescoço.
Descrição dos Casos Clínicos
Caso clínico 1
Doente sexo feminino, 74 anos e raça caucasiana, com antecedentes de AIT em 2019, sem sequelas, dislipidemia, HTA e síndrome depressivo, controlados farmacologicamente.
Para estudo de síndrome vertiginoso, realizou TAC-CE que revelou um nódulo no palato mole, pelo que foi referenciada à consulta de Cirurgia de Cabeça e Pescoço.
À observação, apresentava nódulo no palato mole à esquerda, submucoso, com cerca de 3 cm de maior diâmetro.
A biópsia incisional da lesão foi compatível com Carcinoma Hialinizante de Células Claras (CHCC).
Para caracterização da lesão foi solicitada TAC-MF, onde se observou uma lesão expansiva, bem delimitada, na vertente esquerda do palato mole, com 32 x 27mm nos maiores eixos crânio-caudal e transversal, respectivamente, estendendo-se desde a margem inferior do orifício externo da trompa de Eustáquio até ao pólo superior da amígdala. A lesão reduzia o calibre da coluna aérea da orofaringe e obliterava parcialmente a gordura parafaríngea, sem sinais de invasão do espaço dos mastigadores, sem invasão óssea e sem sinais de disseminação perineural. (Imagem 1) Sem gânglios cervicais com dimensões ou características patológicas.
Foi também realizada PET, onde se descartaram outras alterações hipermetabólicas de suspeição.
Sob anestesia geral e intubação orotraqueal, foi submetida a excisão de lesão da região do palato mole à esquerda e amigdalectomia ipsilateral. A análise anatomopatológica da peça operatória confirmou o resultado de Carcinoma Hialinizante de Células Claras (CHCC), sem invasão linfovascular ou perineural, associado a alterações inflamatórias e reparativas relacionáveis com a biópsia prévia, com alteração do gene EWSR (22q12) e com um estadiamento patológico pT2. (Imagem 2) Focalmente, a lesão foi coincidente com uma das margens cirúrgicas.
Cerca de 6 semanas do pós-operatório, a doente apresentava-se assintomática, sem sinais clínicos de persistência. Dada a lesão residual estar adjacente à artéria carótida, o alargamento de margens não seria exequível sem mutilação significativa, pelo que a reintervenção cirúrgica não foi indicada nem realizada, optando-se por vigilância clínica.
Caso clínico 2
Doente sexo masculino, 63 anos, caucasiano, com antecedentes de HTA e dislipidemia medicadas. Referenciado por história de nódulo mentoniano com 3 meses de evolução, imagiologicamente compatível com lesão expansiva na região mentoniana sem invasão do nervo alveolar inferior. À observação, apresentava nódulo de consistência pétrea na região incisiva inferior, sem adenopatias cervicais palpáveis.
Foi realizada biópsia incisional que revelou as hipóteses diagnósticas de carcinoma intra-ósseo vs metástase. Foi solicitada PET, onde foi observada lesão mandibular, a nível mentoniano, com padrão metabólico sugestivo de malignidade e gânglios latero-cervicais esquerdos, no nível II, com captação ligeira. A TAC-MF relatou lesão lítica na crista alveolar da região da sínfise e parassínfise mandibular, com envolvimento das raízes dentárias, erosão da cortical lingual da crista alveolar desde o 3.4 ao 4.3, numa extensão aproximada de 20 mm e erosões da sua cortical vestibular desde o 3.3 ao 4.3, estando associada a ligeiro componente de partes moles, captante na região do rebordo lingual adjacente. (Imagem 3) Sem envolvimento do pavimento oral, dos músculos da língua nem da sua face ventral. Sem compromisso dos buracos mentonianos nem dos canais alveolares inferiores nem sinais de disseminação perineural ao longo do V3. Sem documentação de adenopatias latero-cervicais nem retrofaríngeas.
Sob anestesia geral e intubação naso-traqueal, foi submetido a lip split com mandibulectomia marginal de 35 a 45, com sacrifício dos nervos alveolares inferiores bilateralmente e cervicotomia esquerda, com esvaziamento ganglionar cervical esquerdo níveis I-III e V com sacrifício dos vasos faciais e veia jugular anterior.
O exame anatomopatológico da peça operatória revelou Carcinoma Odontogénico de Células Claras (COCC), infiltrativo de baixo grau, sem invasão linfovascular e perineural e margens negativas. Os gânglios linfáticos latero-cervicais esquerdos, níveis I-III e V, não apresentavam metástases (imagem 4)
Em reavaliação de 6 meses de pós-operatório, não foram observados sinais clínicos ou imagiológicos de recidiva local.
Discussão
Os tumores de células claras constituem cerca de 1% a 2% de todas as neoplasias da cabeça e pescoço. Na cavidade oral, derivam do epitélio odontogénico/não odontogénico, do mesênquima ou podem ser metastáticos e são diagnosticados em diversas regiões anatómicas.
O diagnóstico dos tumores de células claras da cabeça e pescoço pode ser um desafio, sendo o diagnóstico diferencial bastante amplo. 5
As células claras são observadas com bastante frequência dentro de uma grande variedade de neoplasias primárias das glândulas salivares, incluindo adenoma pleomórfico (AP), carcinoma mioepitelial (MC), oncocitoma, carcinoma mucoepidermoide (CME), carcinoma acínico celular, carcinoma epitelial-mioepitelial (CEM), e carcinoma adenoide cístico (CAC). 6,7
Na maioria dos casos, as células claras constituem uma componente de menor população celular destas neoplasias. No entanto, em alguns tumores, as células claras constituem a principal componente celular, e é nesta situação que o diagnóstico é mais difícil. As células claras são geralmente o principal diagnóstico em duas destas neoplasias das glândulas salivares, o Carcinoma epitelial-mioepitelial (CEM) e o Carcinoma hialinizante de células claras (CHCC). (3,7
Neste trabalho, apresentamos um caso clínico de CHCC do palato e um caso de COCC mandibular.
O CHCC foi pela primeira vez bem descrito como uma entidade única em 1994 por Milchgrub et al. É mais comumente diagnosticado entre a quinta e sexta década de vida, com leve predominância do sexo feminino. A apresentação clínica varia de acordo com a localização do tumor primário. Na maioria das vezes manifesta-se como uma massa submucosa indolor, embora também se possa apresentar com hemorragia, ulceração e disfagia. 6,7,8
O local mais frequente de ocorrência de CHCC, reportado em 238 casos, foi o palato (23,1%), seguido da língua (21,0%) e cavidade nasal (10,5%). O tamanho da massa na apresentação clínica foi especificado num estudo em 197 doentes (77,6%), com uma média de 2,49 cm. 6,9
No caso apresentado, a lesão apresentava-se como uma tumefação indolor no palato mole.
Uma vez que o CHCC apresenta características escamosas pela imuno-histoquímica, o diagnóstico diferencial mais provável será o Carcinoma escamoso celular e o CME. Embora o CHCC não apresente diferenciação mioepitelial quando corado com actinas e calponina, os tumores mioepiteliais, como CEM, também entram no diagnóstico diferencial. Os tumores de origem odontogénica que podem apresentar alterações celulares claras são vários. Existem dois em particular que se sobrepõem ao CHCC: COCC e o tumor odontogénico epitelial calcificante de células claras (TOEC), também conhecido como tumor de Pindborg. Essas neoplasias odontogénicas podem ser confundidas com o CHCC mucoso, que apresenta invasão óssea, presente em cerca de 17% dos casos. Finalmente, o carcinoma de células renais (CCR) metastático é sempre incluído no diagnóstico diferencial em todas as publicações que abordam o diagnóstico diferencial salivar de células claras. No entanto, a semelhança com o CHCC é mínima e o CCR nunca expressa p63. 10
Bilodeau et al. examinaram o COCC e o CHCC para a translocação do gene EWSR1, tendo já sido concluído anteriormente que esses dois tumores tinham extensa sobreposição morfológica e imuno-histoquímica. A evidência mais recente sugere que o CHCC pode ser homólogo ósseo do COCC. 10,11,12
Em geral, o CHCC é caracterizado por ninhos ou cordões de células poligonais ou redondas com citoplasma claro ou rosa claro. Imuno-histoquimicamente, o CHCC geralmente pode ser diferenciado de forma confiável de outras etiologias pela presença de expressão de citoqueratinas de alto peso molecular, p63, positividade na Coloração de Schiff- ácido periódico (PAS) e sensibilidade à diástase. A ausência de coloração para a proteína S-100, actina de músculo liso, proteína glial fibrilar ácida e vimentina são características. 9
Os doentes com CHCC têm um bom prognóstico quando a ressecção cirúrgica é adequada e com margens cirúrgicas livres. 10 Embora no caso clínico apresentado a lesão excisada atinja uma das margens cirúrgicas, uma eventual reintervenção cirúrgica apresentaria mais riscos do que benefícios para a doente, pelo que se optou por vigilância clínica estreita. A doença locorregional é incomum. Caso haja adenopatias, o esvaziamento ganglionar cervical está indicado. 9
O Carcinoma Odontogénico de Células Claras (COCC), antes conhecido como tumor odontogénico de células claras ou ameloblastoma de células claras, é um tumor ósseo, raro, dos maxilares. 13
Este tumor foi descrito pela primeira vez em 1985 por Hansen et. al 14 e foi classificado como um tumor odontogénico benigno. Porém, devido à sua capacidade de malignização, por ter um comportamento agressivo com capacidade para recidivar, de metastatizar nos nódulos linfáticos mais próximos e metastização à distância, foi classificado como um tumor maligno. 15).
A maioria dos casos ocorre entre a 5ª e 6ª década de vida, com predomínio no sexo feminino. A mandíbula é mais afetada do que a maxila. As características clínicas variam de assintomática a dor inespecífica, mobilidade dentária aumentada ou deslocamento dentário e destruição cortical. (16,17,19) Radiograficamente apresentam-se como radioluscências mal definidas, reabsorção radicular e, às vezes, extensão a tecidos moles. Aproximadamente 84% dos COCC expressam translocação do gene EWSR1-ATF1. A metastização locoregional ocorre em 20 a 25% dos casos. 17
O diagnóstico deste tumor é complexo. É um tumor raro, com limitada informação clínica, o que leva a um subdiagnóstico. A contribuição da biologia molecular e da anatomia histopatológica é significativa para um diagnóstico correto. 18
A característica histopatológica predominante é a presença de ilhas de células com citoplasma claro ou eosinofílico, de contornos bem definidos e núcleos em posição central. No entanto, o COCC não é a única lesão que apresenta células claras, devendo ser considerado no diagnóstico diferencial em neoplasias dos maxilares com CC. 19
Neste caso, o doente não apresentava sintomatologia dolorosa, o que provavelmente contribuiu para a progressão da lesão. Radiograficamente, a lesão era unilocular, com margens irregulares e mal definidas, evidenciando destruição óssea. O diagnóstico foi compatível com COCC. Devido à raridade da lesão, não existem protocolos de tratamento, estando indicada a mandibulectomia, associada ao esvaziamento ganglionar cervical. No caso apresentado, foi realizada mandibulectomia marginal anterior e esvaziamento ganglionar cervical seletivo.
Na literatura, a taxa geral de recidiva após ressecção mandibular é de 29,8%, sendo que 17% das recidivas apresentaram metástases à distância. Nestes tumores, o seguimento a longo prazo é aconselhado para avaliar o aparecimento de metástases. (19
O tumor de células claras permanece pouco estudado, em grande parte devido à sua raridade. Apenas relatos de casos, séries de casos e revisões da literatura dessas séries de casos foram publicados na literatura. O carcinoma hialinizante de células claras é uma neoplasia maligna rara, localmente agressiva, da cabeça e pescoço que ocorre mais frequentemente em mulheres e na cavidade oral, glândulas salivares minor e orofaringe. Os resultados são geralmente favoráveis após tratamentos cirúrgicos. 20
Neste trabalho apresentamos dois casos de carcinomas de células claras da cavidade oral, com sobreposição morfológica, imuno-histoquímica e expressão da translocação do gene EWSR1.
Os casos relatados ainda não tiveram tempo de acompanhamento adequado para comentar sobre o prognóstico e sobrevida a longo prazo destes doentes. No entanto, a excisão cirúrgica das lesões decorreu sem intercorrências e não foram documentadas recidivas até à data.
Conclusão
Embora sejam entidades raras, os tumores de células claras da cabeça e pescoço, nomeadamente o CHCC e o COCC são tumores malignos, morfologicamente e geneticamente semelhantes, com impacto funcional, psicológico, social e estético nestes doentes. Os exames histopatológicos e imuno-histoquímicos são fundamentais para distinguir as lesões de CC de outros diagnósticos diferenciais. O tratamento mais adequado para este tipo de lesões tumorais, onde células claras ocupam o maior volume, é a excisão cirúrgica com margens cirúrgicas de segurança devido ao seu elevado potencial para recidivar. Em todos estes casos, é sempre necessário um seguimento de longa duração.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.