Introdução
No ano de 2020, foi estimado para Portugal um total de 529 novos casos de tumor maligno da laringe e 412 da hipofaringe 1. Apesar do desenvolvimento de modalidades terapêuticas de preservação de órgão, a laringectomia total (LT) continua a ser a terapêutica de eleição quer no tratamento primário ou de resgate em tumores em estádio avançado da laringe e da hipofaringe. Mais ainda, a LT continua a ser uma opção que restaura quer a fala quer a deglutição em doentes livres de doença, mas com uma laringe não funcionante.
Com o contínuo uso da laringectomia total no tratamento actual dos tumores da laringe e hipofaringe, a optimização da função pós laringectomia torna-se essencial. Desde a primeira laringectomia realizada em 1873, embora os resultados peri-operativos tenham melhorado substancialmente com os avanços na antibioterapia e na assepsia, os aspetos ablativos do procedimento pouco se alteraram2. A laringectomia total não tem apenas como consequência a perda de função vocal, mas também a perda da função nasal, tosse ineficaz, dificuldade na deglutição, alterações na função pulmonar, complicações da traqueostomia e não menos importantes, as complicações funcionais e psicológicas inerentes. (3 De todas as perdas associadas ao procedimento, é a reabilitação vocal que tem apresentado maior progresso nas últimas décadas, melhorando consideravelmente a qualidade de vida dos reabilitados3.
Com a introdução da técnica da punção traqueoesofágica e inserção de prótese fonatória por Singer e Blom em 1979, ficou estabelecida a terceira alternativa de reabilitação vocal, após a voz esofágica e laringe artificial (eletrolaringe). As vantagens da voz traqueoesofágica são a fonação imediata, de treino simples, maior tempo de fonação, maior volume e melhor inteligibilidade. (4 Rapidamente este método de reabilitação vocal se tornou aceite e difundido globalmente e é, nos dias de hoje, o método Gold Standard.
O objetivo do estudo foi reportar a experiência recente do Serviço de Otorrinolaringologia do IPO-LFG na reabilitação vocal com prótese fonatória e analisar, retrospetivamente, as variáveis que influenciaram o sucesso ou a falha neste tipo de reabilitação.
Material e Métodos
Foram analisados os processos clínicos dos doentes submetidos a LT por tumor maligno da laringe com inserção de prótese fonatória no IPO-LFG durante os 5 anos compreendidos entre 2016 e 2020. Foram excluídos os casos com tumor primário na hipofaringe submetidos a faringectomia combinada. A punção traqueoesofágica com inserção de PF foi realizada de forma primária, no mesmo tempo operatório da LT, sob apropriadas condições oncológicas locais e comorbilidades físicas. Por forma a prevenir a hipertonicidade do segmento faringoesofágico, foi realizada uma miotomia do cricofaríngeo prévia à inserção. Foram recolhidos os dados demográficos e clínicos dos doentes e dados específicos da doença incluindo sexo, idade, localização do tumor primário, tipo histológico e estadiamento clínico tumoral (pelo sistema TNM da 8ª edição do AJCC). Os doentes foram divididos em grupos para as principais variáveis em estudo. Para a variável idade foram divididos entre <70 ou ≥70 anos no momento da cirurgia. Para a variável indicação cirúrgica foram divididos entre LT primária ou de resgate. Para a variável status de radioterapia (RT) foram agrupados em doentes com e sem RT adjuvante. Os principais resultados avaliados foram as complicações cirúrgicas, complicações relacionadas com a prótese, tempo (meses) até à primeira troca e número de próteses por ano. A análise estatística foi realizada com o teste t-student quando o grupo apresentava distribuição normal e com o teste Mann-Whitney quando o grupo não apresentava distribuição normal. A significância estatística foi considerada para valores de P <0,05. Fundamentou-se a análise com revisão da literatura.
Resultados
Entre Janeiro de 2016 e Dezembro de 2022 foram submetidos a laringectomia total com inserção de PTE por tumor da laringe 108 doentes, dos quais 98 homens e 10 mulheres. A idade média foi de 64,6 ±9,1 anos, 66,7% com idade inferior <70 anos. O diagnóstico histológico foi carcinoma pavimentocelular em 95,4% dos doentes. 93 doentes foram submetidos a LT com terapêutica primária e 15 como LT de resgate. 14 doentes sem RT prévia ou adjuvante e 80 foram submetidos a RT adjuvante. O resumo das características demográficas e clínicas dos doentes pode ser encontrado nas tabelas 1 e 2.
A taxa de complicações pós laringectomia foi de 15,2%, sendo a fístula faringocutânea a mais comum, em 11,5% (75% de todas as complicações). A média de tempo até à primeira troca de PF foi de 13±10,1 meses e a média de PF por ano foi de 1,9±1,2. Foi constatado que a primeira prótese, a colocada intra-operatoriamente, tem uma duração sistematicamente superior, tornando mais frequente a troca das seguintes próteses, maioritariamente por incontinência. A taxa de complicações relacionadas com a PF foi de 32,3%, sendo o granuloma a mais frequente em 5 doentes e levando em 19,2% ao encerramento da PTE. Do total dos 108 doentes incluídos no estudo, em apenas 105 foi possível obter dados sobre a existência (ou não) de complicações cirúrgicas e em apenas 99 foi possível obter dados sobre eventuais complicações relacionadas com as próteses fonatórias. O resumo das complicações cirúrgicas pode ser encontrado na tabela 3, a caracterização da troca de prótese na tabela 4 e as complicações de prótese que levaram ao insucesso da reabilitação vocal na tabela 5.
No que diz respeito ao estudo comparativo entre grupos, nos que grupos que variavam entre idade (<70 e ≥70 anos), os resultados revelam que não se observam diferenças significativas de complicações cirúrgicas (p=1,000), complicações relacionadas com a prótese (p=0,366), de primeira troca (p=0,366) nem de número de próteses por ano (p=0,199). O resumo da caracterização segundo a variável idade pode ser encontrado nas tabelas 6,7 e 8. (4, 5 e 6.)
Para a variável indicação terapêutica, não se observaram diferenças significativas no número de complicações cirúrgicas (p=0,492), no tempo médio para a primeira troca (p=0,934), número de próteses por ano (p=0,275) nem complicações futuras da prótese (p=1,000). O resumo da caracterização segundo a variável indicação terapêutica pode ser encontrado nas tabelas 9, 10 e 11.
Para a variável RT, foram comparados 3 grupos em função do status de RT: Sem RRT prévia ou adjuvante (n=14), RT adjuvante (n=80) e RT prévia (n=12). Ficaram excluídos do estudo comparativo o grupo que realizou RT prévia e adjuvante (n=2). Neste estudo não existem diferenças na taxa de complicações cirúrgicas (p=0,738), no tempo de primeira troca (p=0,267), nem no número de próteses por ano (p=0,119). No que diz respeito às complicações relacionadas com a prótese, os resultados revelam que existe uma associação estatisticamente significativa entre o tipo de radioterapia e a presença de complicações de prótese (p=0,036), havendo evidências
de que os casos sem RT tendem mais frequentemente a apresentar complicações futuras (ResAjust =2,3) face aos que realizaram RT. E ainda que os casos que fizeram RT adjuvante tendem mais frequentemente a não apresentar complicações de prótese (ResAjust=2,4), face aos que realizaram RT prévia ou sem RT. O resumo da caracterização segundo a variável status de RT pode ser encontrado nas tabelas 12, 13 e 14.
Discussão
Este estudo apresenta uma visão global sobre os doentes submetidos a laringectomia total com inserção de prótese fonatória por tumor maligno da laringe e hipofaringe num centro oncológico português. No que diz respeito à complicação cirúrgica mais prevalente, e assim o foi em todos os grupos comparativos, a fístula faringocutânea aumenta consideravelmente a morbilidade, tempo de hospitalização, retardando o início da RT adjuvante e predispondo à lesão de grandes vasos cervicais e considerável desconforto. A incidência observada neste estudo está entre os valores encontrados na literatura sendo entre 3 a 65%. O seu principal factor prognóstico é o estadiamento avançado do tumor. 5
No que diz respeito à colocação primária (no mesmo tempo cirúrgico da laringectomia) ou secundária (num segundo tempo cirúrgico), é protocolado neste centro oncológico a inserção primária uma vez que se tem em conta as seguintes vantagens: evicção de um segundo procedimento, o doente tem uma imediata restauração da função vocal (o que lhe confere um ganho psicológico importante) e tem a mesma taxa de sucesso, segundo a literatura. 6,7) Pelas mesmas razões, o número de próteses secundárias foi apenas 4 em 108, e por isso a variável em questão não foi comparada. Em relação ao acompanhamento clínico do doente e ao longo da aprendizagem do doente na sua reabilitação, a frequência de visitas hospitalares tende a aumentar, tendo como principal factor a variação das características do segmento faringo-esofágico, sendo influenciado pelas variações de peso do doente. As variações da conformação deste segmento fazem com que invariavelmente a prótese fique incontinente e tenha de ser trocada pelo médico assistente.
Para a variável idade, e também de acordo com a literatura 8, foi bem estabelecida a capacidade de doentes com idade superior a 70 anos, de não apresentarem diferenças significativas em todos os outcomes analisados. Para os grupos analisados de acordo com a indicação cirúrgica, os doentes com LT de resgate não apresentaram nenhuma diferença estatística em todas as variáveis analisadas.
O efeito da RT na reabilitação vocal com prótese fonatória mantem-se globalmente controverso. A radioterapia pode causar atraso na cicatrização da ferida cirúrgica e consequentemente na cicatrização da punção traqueo-esofágica devido a necrose tecidular, formação de cicatriz e dano vascular que poderão deteriorar a mucosa do segmento faringo-esofágico. (9) No estudo apresentado, houve uma ausência de diferença significativa na taxa de complicações cirúrgicas, de tempo até a primeira troca e de número de próteses por ano. No entanto, e paradoxalmente, o grupo não sujeito a RT revelou uma menor taxa de complicações relacionadas com a prótese e por isso maior sucesso na reabilitação vocal. De acordo com a literatura10 e com os resultados obtidos, os autores acreditam que a RT em doses superiores a 60Gy, poderá danificar quer o segmento mucoso quer, especificamente, o material de silicone protésico. No que ao resultado paradoxal diz respeito, poderão outros importantes factores justifica-lo, entre os quais a influência cada vez mais relatada do refluxo gastro-esofágico11. É descrito que os doentes sujeitos a radioterapia adjuvante, tornam-se particularmente sensíveis ao efeito direto do refluxo, e por isso, tendem-se a trata-lo mais precocemente. No estudo em questão11, os autores observaram uma maior taxa de insucesso em doentes com RGE, independentemente do status de radioterapia.
O sucesso da reabilitação vocal pode ser comprometido pelas inúmeras razões cirúrgicas e relacionadas com a prótese, mas também com a fraca motivação do doente. Pela mesma razão, se o doente não usa a voz traqueo-esofágica, tem indicação para encerramento da punção. A taxa de sucesso desta série foi de 76,9%. As limitações do estudo são inerentes a um estudo retrospectivo, à falta de variáveis analisadas e à mensuração da qualidade vocal de entre os doentes estudados.
Conclusão
O tratamento dos tumores malignos da laringe não deve apenas considerar o outcome oncológico, mas também a qualidade de vida do doente, nomeadamente a sua integração social e comunicação. A restauração da função fonatória é, actualmente, o maior objectivo da reabilitação pós laringectomia total. A voz traqueo-esofágica através de prótese fonatória veio revolucionar a reabilitação vocal, desde a sua instauração. Este trabalho demonstra a experiência de um centro oncológico e como um protocolo terapêutico pode beneficiar e maximizar a taxa de sucesso da reabilitação vocal. Os resultados demonstram que a idade avançada, a cirurgia de resgate e a RT adjuvante não devem ser factores de restrição para este tipo de protocolo de reabilitação
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.