Introdução
A amigdalectomia é um dos procedimentos cirúrgicos mais realizados na especialidade de Otorrinolaringologia e, apesar de estar amplamente estudada na população pediátrica, a literatura relativa às indicações e complicações do procedimento no adulto é limitada. As indicações cirúrgicas para amigdalectomia variam entre a população pediátrica e adulta, sendo a indicação mais comum nos adultos a infecciosa (amigdalite crónica) e, nas crianças, a hipertrofia amigdalina obstrutiva.1 Outras indicações para amigdalectomia no adulto incluem a síndrome de apneia obstrutiva do sono, a amigdalite caseosa e a necessidade de avaliação anatomopatológica. (2 Apesar de ser considerada uma cirurgia de ambulatório, estão descritas potenciais complicações associadas a este procedimento, contudo, a literatura é escassa no que diz respeito aos fatores de risco. (2-3 A necessidade de recurso ao serviço de urgência (SU) no pós-operatório pode ocorrer em cerca de 11% dos casos, nomeadamente por descontrolo álgico, náuseas, vómitos ou desidratação. (3 A hemorragia pós-operatória é uma das complicações potencialmente mais graves e pode ocorrer mesmo após a realização de uma hemostase cuidada, estando descrita na literatura uma incidência de 14.5%, bastante superior ao observado na população pediátrica (3 a 5%).3 A hemorragia pós-amigdalectomia pode ser classificada como primária (primeiras 24 horas) ou secundária (após 24 horas), apresentando no adulto uma incidência estimada em 0.2-2.2% e 0.1-4.0%, respetivamente. (3-5 Os objetivos do presente trabalho foram: (1) caracterizar a população adulta submetida a amigdalectomia total num centro terciário; (2) analisar as indicações cirúrgicas para amigdalectomia; (3) identificar fatores preditores de complicações pós-operatórias nos adultos.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo observacional retrospetivo incluindo todos os doentes adultos submetidos a amigdalectomia total no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, entre Janeiro de 2016 e Dezembro de 2021. Foram consultados os processos clínicos para obtenção de dados demográficos e clínicos. A colheita de dados incluiu: idade, género e antecedentes pessoais (incluindo coagulopatias e tabagismo); indicação cirúrgica; técnica cirúrgica; recurso ao SU no período pós-operatório, nomeadamente por descontrolo álgico ou hemorragia; necessidade de revisão de hemostase sob anestesia geral. Os antecedentes pessoais foram estratificados de acordo com o score ACE-27 (Adult Comorbidity Evaluation index), um instrumento validado que permite obter uma pontuação entre 0 e 3, baseada no número e severidade de comorbilidades médicas: 0 - sem comorbilidades; 1 - comorbilidades ligeiras; 2 - comorbilidades moderadas; 3 - comorbilidades graves. (7-8 As indicações cirúrgicas foram categorizadas em etiologia infecciosa, síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS), amigdalite caseosa e avaliação anatomopatológica (AVAP), por suspeita de neoplasia, em caso de assimetria ou lesões amigdalinas. Todos os doentes foram submetidos a amigdalectomia total, cuja técnica cirúrgica variou entre disseção a quente com recurso a eletrocautério ou coblation e disseção a frio, de acordo com a preferência e experiência do cirurgião. Foram definidos como outcomes primários: hemorragia pós-amigdalectomia; necessidade de revisão de hemostase no bloco operatório; e recurso ao SU (por descontrolo álgico ou outros). A HPA foi dividida em primária (< 24 horas) ou secundária (> 24 horas). A análise estatística foi efetuada através de análise descritiva e testes não-paramétricos: teste Chi-quadrado ou Fisher’s Exact Test, correlação de Spearman e análise MANOVA. Para os parâmetros estatisticamente significativos, na análise MANOVA, foi efetuada uma análise between subject-effects, assim como aplicados testes post-hoc. Os testes estatísticos foram realizados com recurso ao software IBM SPSS Statistics v.29. Os resultados foram considerados estatisticamente significativos para valores de p ≤0.05.
Resultados
Foram incluídos 539 adultos submetidos a amigdalectomia total. A média de idades foi de 32 anos (18-84 anos), sendo a maioria do género feminino (58.8%). Grande parte dos doentes (79.8%) não apresentava comorbilidades, ou tinha um grau ligeiro, e 19 indivíduos (4.1%) apresentavam um grau moderado a severo. Apenas 2 doentes tinham coagulopatias (défice de fator VII e doença de Von Willebrand) e 28.0% dos indivíduos eram fumadores ativos (Tabela 1).
Características da Amostra | Número | Percentagem (%) |
---|---|---|
Idade | ||
Média | 32 | |
Intervalo | 18-84 | |
Género | ||
Feminino | 317 | 58.8% |
Masculino | 222 | 41.2% |
Comorbilidades (Score ACE-27) | ||
Nenhuma ou Ligeiro (0-1) | 430 | 79.8% |
Severo (2-3) | 19 | 4.1% |
Coagulopatias | 2 | 0.4% |
Tabagismo | 150 | 28.0% |
A indicação cirúrgica mais comum foi a infecciosa (72.5%), seguida de SAOS (15.8%), amigdalite caseosa (6.5%) e AVAP (5.2%) (Figura 1).
Relativamente à técnica cirúrgica realizada, os registos clínicos estavam omissos em parte dos casos, sendo que, nos restantes, a técnica mais utilizada foi a disseção a quente com eletrocautério (51.9%), seguida da disseção a frio (27.1%) e, por fim, a disseção a quente com coblation (20.9%). No que diz respeito aos outcomes, verificámos uma taxa de afluência ao SU por descontrolo álgico de 13.5% e de 7.4% por outros motivos (náuseas, vómitos e perda de via oral). A incidência global de HPA foi de 16.6%, dos quais 1.9% correspondeu a hemorragia primária e 14.7% a hemorragia secundária. Do total de doentes submetidos a amigdalectomia, houve necessidade de revisão da hemostase no bloco operatório em 24 casos (4.5%), correspondendo a 27.1% dos doentes com HPA (Figura 2). Não se registaram outras complicações pós-operatórias.
O teste de Chi-quadrado revelou uma associação estatisticamente significativa entre o género e a afluência ao SU: as mulheres recorreram mais ao SU, tanto por dor (p<0.001), como por outros motivos (p=0.046). Verificou-se, ainda, uma associação entre o tipo de HPA e a experiência do cirurgião: a hemorragia primária foi mais frequente em procedimentos realizados por Internos comparativamente a Especialistas (3.2% versus 1.3%) e a hemorragia secundária foi mais frequente naqueles realizados por Especialistas, comparativamente a Internos (17.2% versus 8.4%) (p=0.008) (Tabela 2).
Variável dependente | Pearson Chi-Qd / Fisher Exact Test | p-value | |||||||||
Variável independente | SU por dor | SU por outros motivos | HPA | ||||||||
Não | Sim | Não | Sim | Não | P | S | |||||
Género | M | Obs | 205 | 17 | 11.168 | <0.001 | |||||
Exp | 192 | 30 | |||||||||
F | Obs | 261 | 56 | ||||||||
Exp | 274 | 43 | |||||||||
M | Obs | 211 | 11 | 3.342 | 0.046 | ||||||
Exp | 206 | 17 | |||||||||
F | Obs | 288 | 29 | ||||||||
Exp | 294 | 23 | |||||||||
Experiência do cirurgião | Esp | Obs | 313 | 5 | 66 | 9.017 | 0.008 | ||||
Exp | 230 | 7 | 56 | ||||||||
Int | Obs | 137 | 5 | 13 | |||||||
Exp | 129 | 2 | 23 |
Os valores apresentados representam o valor observado e o valor calculado expectável para os casos de afluência ao SU e hemorragia pós-amigdalectomia. São apresentados os resultados do teste Pearson Chi-Quadrado (ou Fisher Exact Test quando os valores expectáveis são <5), com o respetivo p-value. Legenda: M: Masculino; F: Feminino; Esp: Especialista; Int: Interno; Obs: Casos observados; Exp: Casos expectáveis calculados; P: Hemorragia primária; S: Hemorragia secundária
O teste de correlação de Spearman ρ permitiu identificar variáveis que se relacionam entre si de forma estatisticamente significativa, reforçando a relação entre a HPA e a experiência cirúrgica (p=0.039) e entre a afluência ao SU por dor e o género (p<0.001). Adicionalmente, verificou-se nesta amostra que a idade se correlacionou com o grau de comorbilidades (p<0.001), indicação cirúrgica (p=0.008) e tabagismo (p=0.003). A análise MANOVA permitiu identificar que a indicação cirúrgica (p=0.02) e a idade (p=0.038) influenciam de forma independente os outcomes do estudo. O teste de efeitos entre sujeitos demonstrou que a indicação cirúrgica teve maior significância estatística na afluência ao SU por dor (p=0.007), enquanto a idade teve maior significância na ocorrência de HPA (p=0.047) (Tabela 3).
Variável | Teste MANOVA | Valor | p-value | Between subject-effects | p-value |
Indicação cirúrgica | Roy’s Largest Root | 1.938 | 0.02 | HPA | 0.316 |
SU_dor | 0.007 | ||||
SU_outros | 1.0 | ||||
Revisão_hemostase | 1.0 | ||||
Idade | Wilks’ Lambda | 0.206 | 0.038 | HPA | 0.047 |
SU_dor | 0.273 | ||||
SU_outros | 0.927 | ||||
Revisão_hemostase | 1.0 |
São apresentados apenas os testes que se adequam à correta interpretação, tendo em conta as limitações e requisitos de cada teste. Legenda: HPA: Hemorragia pós-amigdalectomia; SU_dor: Recurso ao Serviço de Urgência por dor; SU_outro: Recurso ao Serviço de Urgência por outros motivos; Revisão_hemostase: Necessidade de revisão da hemostase no bloco operatório
Indicação cirúrgica | Fator diferença média | p-value | Intervalo de confiança (95%) | |
---|---|---|---|---|
Caseosa | Infeciosa | 0.620 | 0.004 | [0.247; 0.994] |
SAOS | 0.833 | <0.001 | [0.419;1.248] | |
Infeciosa | Caseosa | -0.620 | 0.004 | [-0.994;-0.247] |
SAOS | 0.213 | 0.072 | [-0.022; 0.448] | |
SAOS | Caseosa | -0.833 | <0.001 | [-1.248;-0.419] |
Infeciosa | -0.213 | 0.072 | [-0.448; 0.022] |
Por fim, uma análise post-hoc à influência da indicação cirúrgica na dor pós-operatória deu maior relevância à amigdalite caseosa (p=0.004), seguida da infeciosa (p<0.001) e, finalmente, a SAOS (p<0.001) (Tabela 4). Quando aplicada à influência da idade na HPA, a análise post-hoc não permitiu identificar qual o grupo de idades mais afetado. Contudo, verificou-se uma tendência para complicações hemorrágicas em idade mais jovem, apesar de não ter significância estatística.
Discussão
Neste estudo, a etiologia infecciosa foi a indicação mais comum para a amigdalectomia na população adulta, o que está de acordo com o descrito na literatura. (9-13 Os resultados obtidos destacam a associação entre a amigdalite caseosa e a infeção crónica e o recurso ao SU por descontrolo álgico após a cirurgia. Como possível justificação, sabe-se que as amigdalites recorrentes têm um risco mais elevado de HPA (associação não encontrada neste estudo) e dor pós-operatória, relacionados com a fibrose aumentada resultante da inflamação crónica. (12,18 Além disso, pode especular-se que doentes propostos para amigdalectomia por amigdalite caseosa e sem história de amigdalites de repetição possam ser menos tolerantes à dor e, assim, serem mais propensos a recorrer ao SU. Neste estudo, o recurso ao SU correlacionou-se de forma positiva com o género feminino, sendo este resultado concordante com a literatura: Bhattacharyya descreve uma associação entre o género feminino e a necessidade de recurso ao SU por descontrolo álgico14 e Patel et al. identifica uma forte associação entre o género feminino e os episódios de urgência pós-amigdalectomia. (3 A incidência global de hemorragia pós-amigdalectomia neste estudo foi de 16.6% (ligeiramente acima do amplo intervalo reportado na literatura, entre 1.5% e 15%3), sendo que a maioria destes doentes (14.7%) apresentou hemorragia secundária. Foi necessária revisão da hemostase sob anestesia geral em apenas 4.5% dos casos, sendo esta percentagem muito inferior ao reportado noutros estudos, nomeadamente 22.2% segundo Gonçalves et al. e 59.5% segundo Patel et al. (3,10 A idade influenciou de forma independente os outcomes HPA e recurso ao SU por descontrolo álgico, tal como já reportado na literatura. (4,9,11 O teste de efeitos entre sujeitos demonstrou que a idade teve maior significância estatística na ocorrência de HPA, contudo, a análise post-hoc não permitiu identificar qual o grupo de idades mais afetado. Ainda assim, verificou-se uma tendência para complicações hemorrágicas em idade mais jovem, apesar de não ter significância estatística. Desta forma, podemos deduzir que a idade poderá ser um fator influenciador da ocorrência de HPA, nomeadamente a faixa etária mais jovem. Relativamente a outros fatores predisponentes de hemorragia, Seyhun et al. descreve uma associação positiva entre o tabagismo e a hemorragia pós-amigdalectomia, (19 mas os resultados deste estudo não favorecem esta associação. Contudo, foi possível identificar uma correlação estatisticamente significativa entre a idade e outras variáveis, nomeadamente: tabagismo, grau de comorbilidades e indicação cirúrgica. Poderá especular-se que este resultado esteja relacionado com o tipo de patologias mais frequentes em cada faixa etária, nomeadamente maior incidência de comorbilidades ou necessidade de avaliação anatomopatológica em idades mais avançadas, mas este facto requer mais investigação. A relação entre a experiência do cirurgião e a HPA é pouco consensual na literatura. Alguns estudos sugerem que o risco de HPA aumenta com a inexperiência do cirurgião15 enquanto outros revelam não existir associação entre ambas as variáveis. (16 Neste estudo destacamos a existência de uma associação significativa entre a experiência cirúrgica e o tipo de HPA, sublinhando a relação entre a ocorrência de hemorragia primária e a inexperiência do cirurgião, assim como a maior associação de hemorragia secundária com a cirurgia realizada por cirurgiões mais experientes. Estes achados são concordantes com alguns estudos realizados na população pediátrica, (17 embora outros reportem taxas de incidência de hemorragia secundária mais elevadas em cirurgias realizadas por Internos, comparativamente a Especialistas (10% versus 3.3%).20) A hemorragia primária correlaciona-se, geralmente, com a execução da técnica cirúrgica, enquanto a secundária resulta habitualmente do processo de cicatrização da ferida operatória. Neste contexto, os resultados encontrados permitem reforçar a importância do treino cirúrgico e supervisão dos internos em formação. Estes resultados assumem extrema importância na identificação de fatores preditores de complicações cirúrgicas, permitindo uma ação preventiva quando identificados. O presente estudo destaca-se por incluir uma amostra grande e representativa de adultos, o que permitiu realizar análises multifatoriais e aplicar testes não-paramétricos, que nem sempre são possíveis em estudos observacionais equivalentes. Contudo, salientam-se algumas limitações inerentes à metodologia, nomeadamente o facto de se tratar de um estudo retrospetivo realizado num único centro médico e de não ter sido possível avaliar a influência da técnica cirúrgica na ocorrência de complicações, devido à limitação dos registos disponíveis. Adicionalmente, destaca-se que a heterogeneidade das indicações cirúrgicas, a variedade de técnicas cirúrgicas utilizadas e o facto de terem sido executadas por diferentes cirurgiões podem introduzir viés nos resultados deste estudo. Desta forma, esta investigação deverá ser ampliada através da realização de estudo prospetivos com grupos mais homogéneos, que permitam confirmar as associações encontradas e identificar outros fatores preditores de complicações.
Conclusão
Neste estudo, o descontrolo álgico correlacionou-se com o género feminino e associou-se de forma independente com a indicação cirúrgica. A inexperiência do cirurgião influenciou a ocorrência de hemorragia primária, enquanto a hemorragia secundária foi mais frequente em cirurgias realizadas por cirurgiões experientes. Estes fatores deverão merecer um maior grau de atenção na prevenção de complicações, de modo a contribuir para um período pós-operatório sem intercorrências.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.