Introdução
A atrésia das coanas (AC) é uma malformação congénita rara, devida à persistência da membrana bucofaríngea, sendo que a sua incidência varia entre 1:5.000 e 1:8.000 nados-vivos.1,2 É mais frequentemente unilateral do que bilateral (60% vs 40%) e afeta mais o sexo feminino que o masculino (proporção 2:1). 2 Quando unilateral, afeta mais o lado direito e não é diagnosticada no período neonatal, podendo persistir mesmo até à idade adulta, muitas vezes sem diagnóstico. 2,3 A necessidade da resolução cirúrgica deste tipo de atrésia depende em grande parte da gravidade dos sintomas como a rinorreia unilateral persistente, que resulta da impossibilidade da realização do percurso normal da clearance muco-ciliar nasal em direção à naso-faringe. 3 Quando bilateral coloca em risco a vida do recém-nascido, que tem a respiração nasal como exclusiva e uma vez diagnosticada impõe uma atuação emergente por parte do cirurgião. 3,4
O diagnóstico de AC pode ser confirmado clinicamente pela impossibilidade da passagem dum cateter de plástico 6F pelo nariz até à nasofaringe (uma distância de aproximadamente 32mm). A endoscopia nasal é importante na visualização direta e na distinção entre atresia e estenose. A estenose das coanas é definida como uma coana estreita, porém patente, medindo menos de 6 mm de diâmetro. 5
As placas atrésicas podem ser abertas por várias técnicas, mas a melhor técnica ainda não está totalmente estabelecida na literatura, dependendo frequentemente da preferência do cirurgião. 2-4
O objetivo deste trabalho é descrever a experiência do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Dr. Nélio Mendonça com a AC.
Material e métodos
Através dum estudo retrospetivo observacional, analisaram-se os dados dos processos cínicos de todos os doentes diagnosticados com AC e seguidos entre 2003 e 2020 no Hospital Central do Funchal, com um período de seguimento mínimo de um ano. O Funchal é a capital da Ilha da Madeira, que tem uma população de cerca 250.700 habitantes. 6
Resultados
Um grupo de onze doentes pediátricos com o diagnóstico de atrésia das coanas e submetido a tratamento cirúrgico pelo mesmo cirurgião foi analisado. Dentro desta amostra, 64% eram do sexo feminino e 36% eram do sexo masculino. Para fins analíticos, a amostra foi dividida em dois grupos: atresia unilateral (64%; n=7) e atresia bilateral (36%; n=4).
Em relação ao grupo da AC unilateral, 57,4% dos doentes apresentavam tipo misto ósteo-membranosa, que segundo a literatura é o tipo mais comum. 2 Enquanto 29% apresentavam atresia puramente membranosa, em 14% dos casos, a atresia era puramente óssea. Um doente apresentava malformação cardíaca associada (persistência do canal arterial). Todos os outros não apresentavam malformações associadas. Na maioria dos casos (85,71%, n=6), a correção endoscópica transnasal foi realizada, mas num caso dum adulto de 26 anos com atresia de tipo misto, uma abordagem transpalatal foi preferida.
A idade mediana do procedimento cirúrgico, neste grupo, foi de 15 anos (IQR 25 anos), variando de 1 mês a 42 anos. A mediana de procedimentos cirúrgicos necessários foi de 1,29 (σ=0,49) e os stents foram utilizados em 71,4% (n=5) dos doentes com atresia unilateral que ficaram de 6 a 8 semanas. Em 80% dos casos foram utilizadas sondas de Nelaton ( como stents e em 20% casos (n=1) foi utilizada uma sonda de Foley ( de silicone num doente de 42 anos. Neste grupo, a reintervenção cirúrgica sob anestesia geral no bloco operatório foi necessária apenas num doente para a remoção do stent de forma segura e confortável pela pouca colaboração do doente pediátrico. (Tabela 1))
No grupo da atresia bilateral, três doentes (75%) apresentavam atresia do tipo misto e 1 (25%) doente apresentava tipo puramente ósseo.
Foram observadas malformações associadas em 50% dos doentes (1 caso de comunicação interventricular e 1 caso de síndrome CHARGE).( Diagrama 1)
Todos os doentes foram submetidos a abordagem endoscópica transnasal e a idade média para o primeiro procedimento cirúrgico foi de 8 dias (IQR 4,5 anos), tendo o doente mais novo 3 dias e o mais velho 20 dias de idade. (Tabela 2)
Relativamente às técnicas cirúrgicas, todos os doentes foram submetidos à abordagem endoscópica transnasal. A parte óssea da placa atrésica foi removida com o uso de micropunch de Kerrison, exceto num doente em que foi utilizada broca diamantada e foi realizada excisão da parte posterior do vómer. Foram utilizados stents de Nelaton ( em todos os doentes, que ficaram in situ por 6 a 8 semanas. Todos os doentes necessitaram reintervenção cirúrgica - o número médio de intervenções cirúrgicas necessárias em cada doente foi de 3 (2 a 5). Assim, O número de reintervenções cirúrgicas necessárias foi maior no grupo bilateral quando comparado ao grupo da atresia unilateral (1,29 vs 3, p-value=0,024). Este facto deveu-se à necessidade de revisão cirúrgica e troca do stent para um maior ou para remover o stent definitivamente.
Além disso, num caso de revisão de atresia bilateral, foi realizada dilatação por balão das neocoanas, após a remoção dos stents. Nenhuma recidiva foi observada durante o seguimento.
Discussão
Uma grande limitação do nosso estudo é a pequena amostra que obtivemos (11 casos clínicos), mas é necessário ter em conta que foi realizado numa pequena ilha com uma população de 250.000 habitantes. 6 No entanto, os nossos resultados são sobreponíveis aos de outros estudos.
Os nossos resultados são idênticos aos dos estudos alemão de Van Schaik et al e ao estudo multicêntrico canadiano de Paradis J et al, que tem a maior amostra estudada até agora (215 doentes). 2,3 O sexo feminino foi também o mais afetado (63.6% vs 59.6%-65.6%) e a percentagem de AC unilateral do nosso estudo foi sobreponível ao estudo alemão (63,54% vs 58%).3 Comparativamente ao estudo canadiano, registou-se uma percentagem ligeiramente menor de AC mista (63,6% vs 73,22%) e por outro lado uma relativamente maior proporção de doentes com AC puramente membranosa (18% vs 10,5%).
Em contraste, na nossa amostra, 91% dos doentes foram submetidos a cirurgia endoscópica transnasal, enquanto que no estudo multicêntrico do Canadá, essa percentagem diminui para 32%.2 Até à data, não existe nenhum tratamento cirúrgico considerado como gold standard, havendo várias técnicas descritas possíveis. 4,7 A cirurgia transnasal foi preferida à abordagem transpalatina devido ao menor risco de lesão iatrogénica que leva a fibrose pós-operatória e re-estenose. 4 Outros fatores são aos avanços na instrumentação endoscópica, ao menor risco de alterações dentárias e de crescimento facial relatados na literatura. 8
A utilização de stent também teve distribuição semelhante entre o nosso estudo e a literatura supracitada (81% vs 70%).2,3 A utilização destes dispositivos é ainda controversa, visto que é conhecida por minimizar o risco de reestenose, mas pode também levar a infeção, alterações cicatriciais (especialmente septo, cartilagens alares e columela) e granulação com a possibilidade de re-estenose. 4
Há assim maior risco nas crianças, principalmente nos recém-nascidos e nos casos de AC bilateral. 4 No nosso estudo, apesar de ter havido uma maior proporção de uso de stents em relação ao estudo de Paradis et al, houve uma menor necessidade de reintervenções cirúrgicas (45% vs 49%).2 Apesar de já estar provado que os stents são adequados na AC bilateral, houve alguns estudos que mostraram que nos casos de AC unilateral os melhores resultados foram obtidos através da abordagem transnasal sem recuso a estes dispositivos pelo menor trauma e pela maior facilidade nos cuidados pós-operatórios. 9-12 No entanto, utilizou-se os mesmos em 71% dos casos de AC unilateral no nosso estudo com bons resultados.
Não há um tipo específico de stent que seja o melhor e na verdade estes acabam por ser personalizados e medidos intraoperatoriamente. 4 O material usado deve ser delicado e mantido in situ por um pequeno período de tempo. 13 Os materiais conhecidos e utilizados frequentemente são:
Policloreto de vinil (Portex () - o tipo de stent mais comum, recomendado pelos cirurgiões devido aos seus bons resultados e baixa taxa de complicações. 14,15 A maior desvantagem é a possibilidade de ceder à temperatura nasal interna e pode não permanecer patente sob a pressão ambiente, levando a re-estenose; 16
Tubo endotraqueal demonstrou diminuir risco de reestenose ao permitir a re-epitilização da nova choana; 16
Tubo traqueal de polietileno que não teve diferenças significativas entre atrésia uni ou bilateral; 17
Materiais de silicone podem ser mantidos durante períodos mais curtos na atrésia unilateral e mais longos na atrésia óssea. No caso bilateral o stent pode ser mantido perfurado em forma de “U” na parte posterior nasal. 18 Os cateteres de Foley ( são um exemplo que podem ser usados com melhor tolerância e com maior facilidade na introdução, fixação e remoção. Além destas vantagens podem ter uma menor taxa de complicações como infeção ou necrose septal e/ou columelar. Usada confortavelmente nos casos unilaterais com menor taxa de reestenose e complicações; 19
Tubos de Silastic ( podem ser mantidos 12 a 16 semanas no pós-operatório, no entanto mostraram ter uma taxa de 36% de re-estenose; 20
Stent de Teflon ( parece não afetar a clearance mucociliar; 21
Tubo de borracha de silicone reforçado com metal na parede do stent (descrito num caso); 22
Catéter de Nelaton ( descrito pela ampla disponibilidade e baixo custo. 23
Alguns autores acreditam que fazer esta cirurgia sem o uso de stents reduz o risco de complicações relacionadas com os mesmos, no entanto a sua utilização apropriada com a correta educação do doente e dos seus familiares sobre o tratamento e limpeza das secreções pode evitar o risco de complicações e re-estenose. 4
Há autores que recomendam a exérese da parte posterior do vómer nos casos de atrésia bilateral. Até El-Ahl MA et al e El-Anwar MW et al demonstraram que esta ressecção pode dispensar a utilização de stents. 24,25
Neste estudo, uma maior prevalência de malformações associadas, uma idade mais jovem na primeira intervenção cirúrgica e um maior número de procedimentos cirúrgicos, sugerindo maiores taxas de reestenose), foram associados ao grupo bilateral. Estes dados seguem a tendência da literatura. 2-4 Tal como no nosso estudo, um estudo alemão também verificou que o número de intervenções era maior no grupo bilateral. 2
Conclusão
De forma geral, a AC foi diagnosticada com maior frequência no sexo feminino. Nesta série, uma maior prevalência de malformações associadas, idade mais jovem na primeira intervenção cirúrgica e maior número de procedimentos cirúrgicos, sugerindo maiores taxas de reestenose, foram associados ao grupo bilateral.
Os stents foram utilizados com bons resultados, tendo sempre a atenção para a educação do doente e dos seus familiares sobre os cuidados a ter com estes dispositivos.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de doentes.