Introdução
A prevalência de asma em atletas é particularmente elevada, atingindo valores de 54.8% em desportos de inverno, natação e maratonistas.1) Estima-se ainda que entre 14.8% e 41.0% dos atletas sofram de rinite alérgica. (2,3 Os atletas são considerados como indivíduos de risco aumentado para doenças alérgicas e hiperreatividade brônquica. De facto, quando a atopia e a atividade física foram combinadas num modelo de regressão logística, o risco de asma foi 25 vezes maior em atletas atópicos praticantes de desportos de potência, 42 vezes maior em maratonistas atópicos e 97 vezes maior em nadadores atópicos, por comparação com indivíduos de controle saudáveis e não atópicos. (4
Apesar da elevada e crescente prevalência de doenças alérgicas em atletas, o seu diagnóstico é frequentemente negligenciado na medicina desportiva. O diagnóstico de alergia deve ter um papel importante na avaliação clínica dos atletas porque a doença alérgica pode ter consequências graves no estado geral de saúde e na qualidade de vida, bem como no desempenho físico. Além disso, um diagnóstico preciso de alergia e asma é necessário para desenvolver um plano ideal para o atleta, ou seja, um plano que leve em consideração as questões de segurança e efeitos potenciais no desempenho dos fármacos e que siga as recomendações para substâncias proibidas listadas pela Agência Mundial Antidopagem. (5
O Allergy Questionnaire for Athletes (AQUA) foi o primeiro questionário validado para rastreio de alergias em atletas.1 Este questionário reúne também informações sobre a modalidade praticada, intensidade do treino e hábitos relevantes. O questionário é uma ferramenta simples, fácil de usar e auto-aplicável que permite a identificação, com alto valor preditivo positivo (0.94), de atletas que necessitam de testes adicionais de alergia. (1
A formulação inicial do questionário encontrava-se validado e traduzido para português europeu por dois tradutores independentes apenas para atletas com idade superior a 16 anos. (1
Este trabalho tem como objetivo a adaptação do questionário AQUA para população pediátrica de atletas portugueses a partir dos 12 anos.
Material e Métodos
Este trabalho foi desenvolvido num hospital terciário pediátrico português, sediado em Lisboa, entre setembro e dezembro de 2023. Foi solicitado e obtido o consentimento da comissão de ética da instituição, bem como o consentimento formal da equipa que desenvolveu a versão original do instrumento para a sua tradução e aplicação, através do endereço de email. Os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.
O processo de adaptação foi baseado nas etapas recomendadas por Beaton et al.6 A sequência metodológica utilizada foi a seguinte: análise da versão original (em inglês) do AQUA e da tradução definida para português europeu pelo grupo de trabalho original, discussão em grupos focais, adaptação da tradução para português europeu, aprovação por um grupo de peritos e validação pela equipa responsável pelo instrumento original. Foram realizados quatro grupos focais para avaliar a preservação do constructo e a correta compreensão de frases e expressões. O consentimento informado por escrito foi obtido antes do início dos grupos focais. Estes foram constituídos: (1) por pais/cuidadores de atletas de competição; (2) atletas de competição; (3) professores a lecionar às faixas etárias associadas e (4) grupo de peritos nas áreas de otorrinolaringologia, imunoalergologia e medicina desportiva. Participaram nos grupos focais, 8 atletas, 11 cuidadores, 2 professores (um de português e outro de ciências naturais) e 5 peritos. Os critérios de exclusão estabelecidos passaram pela não inclusão no estudo dos pais/cuidadores e dos atletas sem domínio oral e escrito do português europeu ou sem compreensão dos objetivos do estudo ou do questionário apresentado.
Os atletas apresentaram idades compreendidas entre os 12 e 15 anos, maioritariamente do sexo masculino e praticavam diferentes desportos (nomeadamente, polo aquático, rugby e futebol).
A versão original do instrumento possui 25 questões (Apêndice 1), a serem respondidas pelo próprio atleta, a partir dos 16 anos de idade, sem necessidade de apoio de um cuidador. Para esta adaptação cultural definimos a idade mínima dos participantes como 12 anos. Esta decisão teve em conta o facto de esta ser a idade a partir da qual os atletas mais frequentemente começam a praticar desporto competitivo/federado e também o facto de o nível de escolaridade associado permitir o preenchimento do questionário sem auxílio de um professor/cuidador. A pontuação no AQUA igual ou superior a 5 foi definida pelos autores como tendo o maior valor preditivo para alergia.
Resultados
Os elementos da equipa de investigação (constituída por 3 médicos da especialidade de Otorrinolaringologia, 2 de imunoalergologia e 1 de medicina desportiva) reviram conjuntamente o questionário AQUA original (Apêndice 1) e a adaptação para português, realizada pelo grupo de trabalho original (Apêndice 2). A partir deste primeiro grupo focal foi criada uma primeira versão inicial em portugês europeu do questionário AQUA, adaptado a atletas entre os 12 e 16 anos. Esta versão foi analisada num segundo grupo focal com professores, tendo-se estabelecido um consenso quanto às alterações propostas. A nova versão foi discutida no grupo de peritos criando-se a versão do questionário a ser apresentada no grupo focal de cuidadores e no grupo focal de atletas.
Os participantes dos grupos focais pré-teste (cuidadores e atletas) foram questionados relativamente à compreensão dos itens do questionário, aspetos duvidosos ou ambivalentes, e se apresentariam alguma observação e/ou sugestão de alteração. A discussão nos grupos foi conduzida até que nenhuma nova informação fosse apresentada. A equipa responsável pela adaptação chegou a consenso tendo em conta as alterações discutidas nos grupos focais, com o objetivo de conseguir uma equivalência semântica, idiomática, experimental e conceptual, que garantisse uma tradução precisa e uma adaptação cultural adequada. Deste modo, surgiu a versão de consenso pré-final do instrumento, em português europeu.
Relativamente ao texto introdutório à versão original, o painel de especialistas decidiu por alterações estruturais. Este texto é longo, de muito difícil compressão pela população estudada e não apresenta de forma clara os objetivos do questionário e as suas instruções de preenchimento. Desta forma, na versão final foi criado um novo texto a partir do anterior em que se esclarece a problemática das doenças alérgicas no século XXI, se define o objetivo do questionário, as vantagens de participar no mesmo, se assegura o cumprimento da privacidade e se dá as instruções de preenchimento das questões.
Na primeira página da versão original, o atleta é incumbido a fornecer, entre outras informações, o seu nome próprio, apelido, local de nascimento, data de nascimento e equipa. O grupo de peritos considerou que estas informações não apresentavam um ganho diagnóstico e levantam questões éticas significativas, sendo assim suprimidas na versão final. O atleta é agora questionado sobre local de residência, tendo importância pelo tipo de exposição ambiental associado, idade (e não pela data de nascimento), peso, altura e desporto/modalidade (e não a equipa que frequenta). A importância da inclusão da opção modalidade deve-se ao facto de existirem desportos com várias modalidades diferentes, que implicam tipos de treino distintos. O exemplo clássico é o atletismo (desporto), que incluí modalidades tão diversas como salto em altura ou marcha atlética.
Face à versão em português europeu originalmente criada pelos autores (Apêndice 2), o corpo de texto foi inteiramente alterado, na sua construção verbal, da terceira pessoa do singular para a segunda pessoa do singular. A expressão “sessão de treino” foi alterada ao longo do questionário por “treino”, para se obter maior objetividade. Nas perguntas onde é possível selecionar mais do que uma opção (4, 7, 13, 14 e 25), tal foi mencionado no corpo da pergunta, ao contrário do encontrado no Apêndice 2. Na questão 7, optou-se por alterar as formulações conjuntivas “mãe e pai” e “mãe ou pai”, para a definição “mãe”e “pai”, separadamente. Na questão 8, a expressão “lacrimejo” foi alterada por “com lágrimas”. A expressão “erupções cutâneas com comichão”, na questão 11, foi substituída por “manchas vermelhas na pele com comichão”. Na pergunta 14 da versão original há menção a “alguma das situações acima”, sendo que na versão final foi alterada pela inclusão dos termos referidos “acima”, ou seja, na questão anterior “falta de ar, tosse e/ou comichão na garganta após o exercício”. O termo “antidopagem” surge 2 vezes referido na versão original (questões 17 e 18). Nos grupos focais, a opinião foi a do desconhecimento do termo por parte das faixas etárias estudadas. Assim, foi substituído na questão 18 por “anti-doping”, termo de conhecimento mais amplo, porém, na questão 17, manteve-se a designação “Agência Mundial Anti-dopagem” já que é este o nome oficial da organização em Portugal, definido em decreto de lei. Ademais, foi removida a sigla (AMAD) da questão, já que esta não volta a surgir no questionário e, portanto, não apresenta uma utilidade prática e, depois, porque não é a sigla oficial da agência, sendo esta AMA. As restantes alterações minor encontram-se expressas no Apêndice 3.
A versão final (Apêndice 3), com as alterações quer do corpo do questionário, quer das instruções ao mesmo, foi aprovada por consenso no grupo de peritos e enviadas à equipa responsável pelo instrumento original para revisão e aprovação formal.
Discussão
A prevalência relatada em estudos epidemiológicos de doenças alérgicas em atletas, embora elevada, pode estar subestimada devido à falta de rastreio por rotina na prática atual da medicina desportiva. (1 O questionário AQUA, desenvolvido a partir do European Community Respiratory Health Survey Questionnaire, visou colmatar esta omissão nas consultas de medicina desportiva. Com base em entrevistas com médicos, treinadores e atletas, o questionário foi adaptado à população-alvo (indivíduos com idade igual ou superior a 16 anos) e foram acrescentadas perguntas com o objetivo de definir o tipo, duração e intensidade do treino, identificar os sintomas alérgicos e infecciosos relacionados ao exercício e descrever os hábitos sociais do atleta (principalmente o tabagismo) e a ingestão de fármacos (aspetos relacionados à regulamentação antidopagem). As perguntas do AQUA com valor preditivo para doenças alérgicas, encontram-se da questão 4 à questão 16 (Apêndice 1 e 2). Apesar da elevada especificidade (97.1%) e valor preditivo positivo (94%) do AQUA para a presença de alergia, a sensibilidade do questionário é de apenas 58.3%. Dependendo dos objetivos específicos para os quais o questionário é utilizado, um limite inferior de AQUA pode ser adotado, o que aumentaria a sua sensibilidade, mas reduziria a sua especificidade sobre alergia mediada por IgE. Por exemplo, um limiar de pontuação AQUA ≥ 3 aumentaria a sensibilidade do questionário para 70.0%, ao mesmo tempo que reduziria a sua especificidade para 83.8%.
O questionário AQUA está disponível em nove idiomas e tem-se estabelecido como uma ferramenta padronizada de avaliação de atletas e de comparação de bases de dados de diferentes estudos populacionais. Este questionário tem permitido chamar a atenção para a alta prevalência de alergia em atletas e para a importância do tratamento de alergias no âmbito da medicina esportiva. (7-9) Contudo, cada vez mais cedo, os jovens praticam desporto de competição, tornando-se importante estender o questionário a idades mais precoces do que aquelas para o qual foi inicialmente pensado.
A adaptação cultural do AQUA teve como objetivo a manutenção das propriedades psicométricas do instrumento original. A simples tradução de um questionário pode levar a interpretações erradas devido a diferenças culturais e idiomáticas. (6 O comité de especialistas decidiu por alterações quer no texto introdutório ao questionário, quer nas 25 perguntas nele incluído.
É importante a avaliação da validade (capacidade discriminativa), da fiabilidade (correlações item/escala e consistência interna, e confiança teste-reteste) e da resposta à alteração clínica, o que constitui uma limitação deste estudo. Esta limitação será retificada após avaliação da validade do instrumento e será possível utilizar o instrumento na prática clínica ou em atividade de investigação. Este questionário tem importância na prática clínica devido à elevada prevalência de sintomas alérgicos em idade pediátrica, bem como o número crescente de atletas nessa mesma faixa etária. A utilização clínica de instrumentos internacionais já validados e com adaptação cultural a Portugal permite a comparação de resultados quando os instrumentos são aplicados em países com diferentes contextos socio-culturais.
Conclusões
A versão original do questionário AQUA (“Allergy Questionnaire for Athletes”) encontra-se traduzida e adaptada para uso na população pediátrica de atletas a partir dos 12 anos.
Agradecimentos
Ao professor doutor Luis Delgado, co-autor da versão original do questionário AQUA e da versão em português europeu, pela sua disponibilidade para com este projeto.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.