1.Introdução
Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), nos anos 90, o Brasil sofreu fortes mudanças na área da saúde, com a incorporação de princípios e diretrizes contra hegemônicos estabelecidos na política de saúde (Vendrusculo et al., 2016). A substituição por um sistema universal e equânime, com a valorização da integralidade e cuidado humanizado, demandou necessidade de mudança no perfil de formação e da prática dos profissionais de saúde (Ogata et al., 2021). Considerando estas necessidades, no início dos anos 90 surge o Programa UNI - Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde -, criado pela Fundação Kellogg, com a proposta de se constituir parceria entre a universidade, serviços de saúde e comunidade (Almeida et al., 1999). Um dos eixos estruturantes do Projeto UNI ancorava-se na integração ensino-serviço, que consiste no trabalho coletivo pactuado, articulado e integrado de estudantes e professores, dos cursos de formação na área da saúde, com trabalhadores que compõem as equipes dos serviços, incluindo-se os gestores, cuja finalidade é a qualidade de atenção à saúde individual e coletiva, a excelência da formação profissional e o desenvolvimento dos trabalhadores dos serviços (Albuquerque, 2008). Em função das necessidades e mudanças no cenário da prática profissional e as relações sociais estabelecidas, ou seja, no mundo do trabalho, pode-se observar a transformação da qualificação para o termo competência devido a novas demandas do setor produtivo e da falência dos métodos destinados a adaptar as pessoas ao mercado de trabalho (Valle, 2003). O termo competência é apresentado como coleção de atributos pessoais, vinculado a resultados observados e a noção de competência dialógica que trabalha com o desenvolvimento combinado das capacidades cognitivas, psicomotoras e afetivas, as quais conformam diferentes maneiras de realizar tarefas essenciais e características de determinada prática profissional em vários contextos (Lima, 2005). Na abordagem dialógica de competência os parâmetros de desempenho são construídos ao longo da formação profissional, buscando proporcionar ao estudante o desenvolvimento da autonomia e do domínio das ações (Chirelli & Nassif, 2019). Nesse sentido, destaca-se que, na perpectiva da integração ensino-serviço e no currículo integrado e na abordagem dialógica de competência, é essencial a formação no mundo do trabalho, sendo decisiva essa articulação com os serviços de saúde. Carvalho et al. (2015) destacam que isso exige mediações complexas, considerando que há desigualdades e contradições na relação academia, serviço e comunidade, pressupondo construção de projetos coletivos, com corresponsabilização, diálogo solidário e, acima de tudo, a negociação para que esses projetos possam se constituir realmente em produção compartilhada (Chirelli & Nassif, 2017). Diante das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação na área da saúde e transição do currículo mínimo para a formação em um currículo integrado e orientado por competência na matriz dialógica, discute-se como formar o futuro profissional da saúde no mundo do trabalho. Tem- se em vista uma educação integrada, capaz de promover sujeitos compromissados e, por conseguinte, constituir mudanças na área da saúde (Schott, 2018). A análise da formação de enfermeiros e médicos com organização curricular integrada e por competência dialógica permitiu identificar que os docentes evidenciaram as potencialidades da aprendizagem no contexto real que pode promover a aprendizagem significativa, apreensão do mundo do trabalho e das necessidades de saúde das pessoas. No entanto, apontaram as dificuldades enfrentadas pelo docente que assume sozinho os estudantes dos dois cursos no cenário de prática profissional e as incertezas que a metodologia de aprendizagem ativa mobiliza em estudantes e docentes (Ghezzi et al., 2018). A inserção dos estudantes nos anos iniciais dos cursos de enfermagem e medicina nos cenários da Estratégia Saúde da Família (ESF) proporcionou alcançar o propósito das DCN. Todavia, as dificuldades dessa experiência foram atribuídas ao processo de aprendizagem, ao considerar a forma inovadora e problematizadora para a qual nem todos os docentes possuem formação. Neste sentido, a equipe de trabalho e docentes facilitadores devem ser instrumentalizados para essa nova metodologia (Silva et al., 2019). Desta forma, várias têm sido as tentativas das instituições no sentido de implementar as mudanças propostas nas DCN. Uma das que se destacam é a formação a partir da realidade vivida nos cenários de prática profissional, e para que isto ocorra, uma das condições é a de que se estabeleça a integração ensino-serviço com a intenção de se pactuar e negociar as diversas situações. Em estudos que analisaram essa parceria, demonstrou-se que sua efetividade está ligada a mudanças estruturais e funcionais significativas, da construção conjunta entre gestores, trabalhadores, docentes e estudantes, com aproximação de sujeitos do mundo do trabalho e do ensino (Vendrusculo et al., 2018; Pinheiro et al., 2018). Frente ao exposto e tendo em vista as DCN, questionamos: como está constituída a parceria ensino- serviço e seus processos de negociação para tal implementação? O objetivo desta pesquisa é analisar a construção da parceria ensino-serviço na Atenção Primária à Saúde em um município do Estado de São Paulo nos currículos dos cursos de Enfermagem e Medicina na percepção dos gestores, preceptores e docentes.
2.Método
Realizou-se uma investigação de abordagem qualitativa, exploratória-descritiva, tendo em vista a importância entre o método e objeto da pesquisa. Esse tipo de pesquisa é capaz de incorporar o significado e a intencionalidade como inerentes aos atos, as relações e as estruturas sociais, preocupando-se com a realidade que não pode ser quantificada, trabalhando com os significados, aspirações e sentimentos, crenças e valores (Minayo, 2013). O estudo ocorreu em uma instituição de ensino, uma autarquia, localizada na região centro-oeste do Estado de São Paulo, Brasil, que oferece cursos de Graduação em Medicina e Enfermagem e pós- graduação Stricto Sensu e Lato Sensu, em parceria com a Atenção Primária à Saúde (APS) do município do interior de São Paulo (Faculdade de Medicina de Marília, 2018). Os processos de ensino-aprendizagem, de ambos os cursos, são realizados por meio da Unidade de Prática Profissional (UPP) e Unidade Educacional Sistematizada (UES) (Faculdade de Medicina de Marília, 2018). O objeto de investigação da presente pesquisa é a UPP. Utilizou-se como critério de inclusão dos gestores: ser da APS ligados à Estratégia Saúde da Família (ESF) há pelo menos seis meses, sendo estes selecionados a partir das unidades em que ocorria parceria com a faculdade; ser da contratante da ESF e ser da faculdade nos cargos de diretor de graduação, coordenador de curso de graduação e de UPP. Foram incluídos como os gestores da Academia, dois coordenadores de curso, quatro coordenadores de UPP e um diretor de graduação. Em relação ao serviço, foram selecionados um representante da contratante e três apoiadores da APS. Foram, desta forma, selecionados um total de 11 gestores. Empregou-se como critério de inclusão ser docente ou preceptor da 1ª e 2ª séries dos cursos de Enfermagem e Medicina e 4ª série de Enfermagem e Medicina, inseridos na UPP por no mínimo de 12 meses e no processo de mudança pedagógica na graduação pelo mesmo período, sendo escolhido o profissional com tempo de atuação mais recente e o mais antigo por série. Portanto, foram selecionados 17 preceptores (oito docentes e nove preceptores). A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada, a qual foi orientada por um roteiro contendo perguntas abertas, a saber, as atividades que caracterizam a parceria; a percepção dos participantes sobre como ocorre a pactuação na parceria; se existe documentos que operacionalize a parceria; quais as contribuições e dificuldades da parceria ensino-serviço. A entrevista semiestruturada obedece a um roteiro que é apropriado e utilizado pelo pesquisador. Por ter um apoio para sequência das questões, essa técnica de coleta facilita abordagem e assegura aos investigadores que suas hipóteses serão cobertas na entrevista (Minayo, 2013). Aplicou-se o piloto, o qual indicou pertinência das questões definidas. A coleta foi realizada no período de 15 de julho a 29 de dezembro de 2015. Realizou-se o tratamento dos dados por meio da análise de conteúdo, modalidade temática, a qual busca a interpretação cifrada do material de caráter qualitativo (Minayo, 2013). Segundo Minayo (2013), essa técnica possui três finalidades: estabelecer uma compreensão dos dados coletados, responder às questões formuladas ou aos pressupostos da pesquisa e ampliar o conhecimento sobre o tema em estudo, articulando-o ao contexto cultural do qual faz parte. Todas as fases da análise dos dados com a categorização e codificação dos dados foi, inicialmente, realizada por um pesquisador e apresentada aos integrantes do Grupo de Pesquisa Educação na Saúde , com experiência na temática abordada, buscando o diálogo entre as diversas ideias emanadas do material sistematizado, constituindo, no processo, os nucleos de sentido e temas. Processou-se os dados por meio da modalidade temática constituída pelas seguintes etapas: na pré- análise, realizou-se leitura compreensiva do material selecionado buscando as particularidades; identificação das categorias de análise, descrevendo as atividades que os participantes realizam considerando a parceria, descrevendo como ocorre a forma da parceria, a negociação/pactuação e o que conhece sobre a pactuação; organização das falas dos entrevistados nestas categorias, representando as unidades de registro. Braun e Clark (2019) defendem a proposta da análise temática reflexiva, na qual o enfoque do processamento dos dados não está no consenso da codificação, mas na capacidade de produzir um pensamento reflexivo, uma interação reflexiva e ponderada durante o processo analítico. A presença de vários codificadores se torna benéfica e potencializada para que ocorra verificação de ideias, exploração de suposições e interpretações dos dados. Ou seja, não se busca na análise qualitativa uma resposta única ou correta, mas as diversas nuances dos dados na perspectiva dos pesquisadores envolvidos. Numa segunda etapa, na exploração do material, realizou-se a análise do conteúdo das falas, definiu-se os núcleos de sentido que, ao se conversarem entre si, compuseram os temas, a saber, constituição do processo de parceria ensino-serviço na ESF na visão dos preceptores, docentes e gestores, e desafios e estratégias de superação a partir das vivências na parceria ensino-serviço, conforme quadro 1.
Na última etapa, elaborou-se a redação por meio da síntese interpretativa e inferências, essa permitiu o diálogo entre temas, objetivos, questões e pressupostos da pesquisa (Minayo, 2013). A investigação foi submetida a avaliação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) com Seres Humanos da faculdade e do Conselho Municipal de Avaliação em Pesquisa (COMAP), seguindo as recomendações do Conselho Nacional de Saúde (CNS), pautado na Resolução n°466/2013, sendo aprovado pelo Parecer nº 1.050.662. Cada participante da pesquisa assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para garantir o sigilo com a não identificação dos participantes, os mesmos foram nomeados por siglas, a saber, PD - Docentes, PS- Preceptores do serviço, GA- Gestores da Academia e GS- Gestores do Serviço e numerados pela sequência de cada seguimento.
3.Resultados e Discussão
3.1 Caracterização dos Participantes
Os preceptores são enfermeiras que desenvolvem ações na APS como preceptoras na ESF num período que varia de dois a 15 anos, em média 8,7 anos. Todos realizaram pós-graduação na área da Saúde da Família (SF). Apenas uma delas realizou pós-graduação na área do ensino. Os docentes são médicos e enfermeiros, docentes da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), que desenvolvem ações na APS, como facilitadores da UPP, na ESF, num período que varia de três a 13 anos, em média 11 anos. O tempo de contratação varia de cinco a 30 anos, em média 22 anos. Todos apresentam pós-graduação, sendo que apenas um participante não apresenta esta na área de ensino. Os gestores são enfermeiros e médicos que atuam como gestores da instituição de ensino e da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), com idade entre 34-61 anos, com tempo de contratação de cinco a 31 anos e atuam nos cargos de gestores no período de dois meses a oito anos. Todos apresentam pós- graduação.
3.2 Constituição do processo de parceria ensino-serviço na ESF, seus desafios e estratégias de superação: visão dos docentes, preceptores e gestores
A parceria é muito importante para a faculdade, uma vez que os cenários da APS fazem parte da proposta curricular, considerando a formação no mundo do trabalho. Desde a década de 70/80 a instituição de ensino está envolvida com o processo de integração ensino-serviço, ao realizar a gestão do Centro de Saúde Escola (CSE), que tinha como principal objetivo propiciar a Integração Docente Assistencial (IDA), promovendo a integração dos estudantes com a rede de APS (Silva, 2001). Os gestores relatam que com o Projeto UNI, houve um novo processo na tentativa de articular o ensino, a comunidade e a realidade dos serviços de saúde. Houve várias etapas dessa parceria, marcada pela presença do preceptor (professor colaborador) na UPP, constituição dos programas de residências, sendo que os profissionais inseridos no programa ficavam responsáveis pelas unidades com autonomia. “A parceria nossa vem da construção de longos anos, desde a época do projeto UNI, que era a tentativa de aproximar a instituição de ensino da comunidade, da realidade [...]”. (GA1) “Também tivemos uma parceria, que foi a atuação dos residentes na ESF. [...] eram enfermeiros e médicos, que desenvolviam atividade plenamente na Unidade [...].” (GS4) A parceria é caracterizada, na visão dos docentes, pelo acolhimento dos estudantes nas Unidades de Saúde, auxiliando a compreensão do processo saúde-doença, plano de cuidados e necessidades de saúde. Segundo os participantes da pesquisa, esta acontece apenas por meio de um convênio entre a Faculdade e a SMS que garante os cenários de prática, diferente do passado onde havia uma forte parceria com a participação dos profissionais da instituição de ensino atuando na SMS, com capacitação profissional e interesse de ambas as partes. “[...] logo no início da inserção quando começou a UPP 1 e UPP 2, foi naquela época 2001, 2002; já naquele momento existia a parceria de professor colaborador e da Faculdade utilizar o cenário da ESF[...]”(GS4). “Quando eu inicie, aqui trabalhando, essa parceria era muito forte. Então, a gente tinha profissionais da faculdade que atuavam na gestão da SMS. Então tinha uma boa participação que dava de retorno para equipe à formação profissional, então vários cursos, especialização, treinamento, a gente tinha um acesso mais fácil à informação com essa pareceria [...]”. (GS3) “Existe um convênio entre a faculdade e a SMS [...] ele é mais pra ter a garantia de campo de estágio, a garantia da aproximação e participação dos profissionais do serviço, em algumas ações como a EPS”. (GA2) A inserção dos estudantes, logo no início do curso, no cenário de prática real, proporciona o desenvolvimento dos mesmos com a comunidade gerando reflexões sobre sua prática e a construção de sua aprendizagem. Para a condução desse processo, os estudantes são acompanhados de um professor da faculdade, médico e/ou enfermeiro e um preceptor da SMS (Faculdade de Medicina de Marília, 2015). A formação no mundo do trabalho, desde o início do curso, oportuniza reflexões sobre as vivências nos cenários de prática, proporcionando aprendizagem significativa, sendo essenciais as pactuações sobre a participação dos profissionais dos serviços, bem como a formação de docentes e profissionais. De acordo com o referencial de aprendizagem significativa, o movimento do aprender é mais eficiente no momento em que uma nova informação interage com os conhecimentos prévios existentes na estrutura cognitiva do estudante e articulado com as vivências em cenários de prática profissional (Ghezzi et al., 2018). Nesse sentido, a integração entre academia e serviço favorece a aprendizagem por métodos ativos possibilitando o desenvolvimento de um olhar crítico e reflexivo dos estudantes para os problemas reais vivenciados nestes cenários de prática (Ghezzi et al., 2018; Ferreira et al., 2019; Peres et al., 2018). A integração, segundo os preceptores, acontecia também nos encontros de Educação Permanente em Saúde (EPS) entre os profissionais da faculdade e das Unidades de Saúde e dos gestores municipais da SMS, atividade interrompida há algum tempo como espaço de negociação. “[...] Nos encontros que tem nas reuniões, nas EP, que tem entre os profissionais da Famema e das unidades de saúde [...] através dos gestores municipais, pelos gestores da Secretaria mesmo". (PP1) Na parceria há necessidade de formalização conforme relatado pelos entrevistados, podendo ser feita por meio de contratos, reuniões e encontros de trabalhos. Isso gera colaboração entre as partes, aumenta a interação por meio de diálogos o que reduz impactos de julgamentos errôneos sobre os parceiros e ajuda a vencer as incertezas e desconfianças nos primeiros estágios da parceria (Andrade et al., 2015). Os participantes mencionam o desenvolvimento de um projeto entre a secretaria de saúde e as institiuições parceiras. O projeto em questão trata-se do Contrato Organizativo de Ação Pública Ensino- Saúde (COAPES), dispositivo da Política Nacional de Educação Permanente apresentado aos gestores, trabalhadores e usuários do SUS e da Educação, na área da saúde. Propõe a facilitar os processos participativos de construção, negociação e tomada de decisão na perspectiva das ações de integração ensino-serviço-comunidade (Brasil, 2015). O manual operativo da integração ensino-serviço do município da pesquisa, o COAPES, foi divulgado em 2016, com a participação em sua elaboração de representantes da Instituição de Ensino Superior (IES) e gestores da saúde, na tentativa de normatizar, regulamentar e problematizar as relações entre ensino e serviço. O documento inclui ainda uma divisão de unidades de saúde entre as regiões, em relação aos cenários de ensino-aprendizagem, por meio da lógica da responsabilidade sanitária tanto para as IES, quanto para o serviço, além de propor uma operacionalização da parceria por meio do Comitê Ensino- serviço (Marília, 2016). Em relação aos desafios é destacada a falta de aproximação entre SMS e a faculdade, a qual está relacionada a não participação dos profissionais da rede em algumas atividades com estudantes, decorrente da forma de gestão da contratante (terceira instituição, que participa do processo por ser a contratatande dos funicionários da rede). Segundo o relato, não há liberação da instituição para as atividades de integração ensino-serviço. Isto prejudica a forma de participação dos profissionais nas atividades, na formação dos participantes, inclusive no desenvolvimento das estratégias de ensino-aprendizagem. “O vínculo empregatício que a gente tem hoje [...] prejudica bastante, [...] hoje os profissionais que atuam como facilitadores da UPP 1 e 2 não podem sair das unidades de saúde para fazer algumas atividades que antes eram feitas na faculdade; [...] teve várias situações que enfraqueceram bastante essa parceria [...]”.(GS3) Mesmo sendo o SUS um cenário de formação dos profissionais de saúde e, portanto, os trabalhadores deveriam estar envolvidos neste processo, desempenhando o papel de preceptores dos estudantes. Porém, verifica-se que o contratante/empregador demonstra ainda a necessidade de compreensão sobre a função do preceptor no cenário de prática profissional e da função dos trabalhadores. Silva e Dalberto-Araújo (2019) fazem a reflexão sobre a imprescindível análise de elementos que se dão na lógica político-institucional. Analisando a construção de programas de residencia multiprofissional em saúde, que trabalham sob o vértice do ensino e serviço, propõem uma reflexão articulada aos determinantes macropolíticos, considerando a influencia da organização social em que se desenvolvem as concepções do processo saúde-doença, a estruturação das políticas públicas de saúde e os programas dela derivados. A ampliação dos cenários de prática, tendo em vista a mudança curricular voltada à realidade e as necessidades de saúde da população, faz com que a Academia volte o seu olhar para além de sua área e passa a construir parcerias em saúde, e desta forma gerando a necessidade da preceptoria do SUS (Brasil, 2012). No currículo integrado e orientado pela abordagem dialógica de competência a preceptoria se faz necessária e a parceria ensino-serviço é essencial, considerando que a formação ocorre no mundo do trabalho. Outras situações que dificultaram a construção foi a falta de preparo do preceptor com os métodos de ensino-aprendizagem e a sua não colaboração de acordo com as propostas, mas também os professores que não têm clareza sobre a sua atuação nos cenários, não desenvolvendo, assim, ações com os estudantes. “[...] muitos docentes não tem aproximação com a atenção primária e aí não veem importância naquele espaço e aí acaba não desenvolvendo [...] daí pra unidade é apenas um monte de aluno lá dentro [...]”. (GS3) Destacaram também a organização dos docentes com os preceptores, integrando os mais experientes com os que estão começando devido as possíveis dificuldades enfrentadas em relação à metodologia. "[...] a faculdade tem que rever isso, que profissional está preparado e os que não estão; de colocar uma dupla de professores; por que a gente sempre tem alguém que é da Faculdade e alguém do serviço, que tenha mais experiência; pra essa pessoa também, que está iniciando agora e que queira receber aluno, ela se desenvolva profissionalmente nesse sentido, por que fica complicado [...].” (PS9) Trabalhando a formação e o processo de trabalho em residência multiprofissional, sob a ótica de uma estratégia inovadora, Bernardo et al. (2020) nos faz refletir sobre o trabalho em equipe, com responsabilidades compartilhadas e a importância do entendimento do papel e função de cada profissional compontentes nas equipes, incluindo a tão importante figura do preceptor. O preceptor em saúde é considerado o profissional que atua dentro do ambiente da assistência. Sua prática acontece por meio de encontros formais que tem como objetivo o crescimento da prática do estudante de graduação ou residência, orientando e facilitando a construção de conhecimentos relativos a cada área de atuação e da prática diária do serviço de saúde (Botti & Rego, 2008). Assim, o preceptor atua de forma estratégica e decisiva na operacionalização das redes de saúde e educação. Isso tornar-se um desafio ao ter que exercer de forma efetiva a profissão e responder às demandas do ensino e do serviço. Porém, sua experiência pode ser valiosa, ao ser promotora de reflexão sobre o trabalho e a gestão do serviço, com a possibilidade de uma atuação mais elaborada, resolutiva, integral e humanizada, na perspectiva da formação e da atenção (Bernardo et al., 2020). Em estudo realizado sobre a percepção e conhecimentos dos profissionais de saúde de uma unidade de ensino e assistência à saúde acerca das funções de preceptorias, foi encontrado que os principais empecilhos para realização da preceptoria são capacitação profissional, relação entre preceptores e docentes e gestão (Dias et al., 2015). Os preceptores e docentes ressaltam que manter esta parceria já é um desafio e por ser muito importante para a formação do estudante deve ser consolidada por meio de formação constante dos profissionais. Nesse contexto, a EPS é capaz de favorecer e articular processos formativos, pedagógicos e assistenciais, com a melhoria dos serviços (Bernardo et al., 2020). A gestão participativa preconiza a descentralização das decisões e aproximação de todos os integrantes da equipe de trabalho, oferecendo oportunidade de participação do trabalhador na discussão, na tomada de decisão e no aperfeiçoamento constante do processo de trabalho utilizando como ferramenta a EPS (Medeiros et al., 2010). Assim, os preceptores e docentes apontam uma proposição de constituição de uma estratégia de planejamento participativo, na qual possa ter espaço de articulação, criação e inovação tanto da Academia como do serviço. Porém, o desafio está na retomada da pactuação entre os parceiros, no qual por meio do planejamento, possa pensar e reorganizar as atividades de EPS em conjunto, para que possam retomar a construção dos projetos nos cenários de prática profissional. “[...] buscar em conjunto fortalecer este movimento, de reconstrução do processo de trabalho, de colocar na mesa os problemas existentes, [...] mas todos os benefícios, e juntos buscar um novo movimento e organização do processo de trabalho, para uma resposta, frente aos princípios do SUS. [...] Montar o grupo gestor, não é gestão só de coordenação, também de representantes de quem está na prática, que eles sentem o real trabalho; [...] retomar o que tinha antigamente, onde enfermeiros ou profissionais, não são só enfermeiros da rede, pudessem novamente trabalhar a EP em conjunto com a Faculdade [...].”(PS5) “[...] está se fazendo um documento, eles estão tentando desenvolver um projeto, onde a Secretaria da Saúde seria a articuladora e iria nortear as parceiras, tanto a faculdade como a outra instituição de ensino para as necessidades dos serviços, que não ficasse apenas como campo de estágio, mas que viesse de encontro também com as necessidades também dos serviços [...].” (GS2) Com a criação de uma diretoria colegiada ou manutenção das reuniões do Comitê ensino-serviço, composta pelos participantes da parceria, gestores, facilitadores e preceptores, cria-se um arranjo institucional que facilita os processos decisórios. O método de gestão colegiada assenta-se na ideia de participação e democratização das decisões de forma que ninguém deve decidir sozinho ou no lugar dos outros (Cecílio & Merhy, 2003; Bernardes et al., 2007). Neste sentido, seriam espaços para se constituir o diálogo, esclarecer e construir projetos de trabalho entre a academia, serviço e comunidade, e pactuar as necessidades para que estes projetos se mantenham em espaço de formação e atenção à saúde tanto para os profissionais de saúde, estudantes e comunidade.
4.Considerações Finais
O processamento das entrevistas em cada segmento e entre os segmentos pesquisados (gestores, preceptores e docentes), oportunizou a compreensão dos olhares de forma articulada, sendo possível ao se estabelecer um diálogo colaborativo, exploratório e reflexivo entre os pesquisadores, destacando as diversas percepções desses durante as fases estabelecidas no processamento dos conteúdos das entrevistas por meio da análise temática. Considera-se que apesar da parceria ensino-serviço e a necessidade de pactuações ser discutida há longa data, constitui-se em um desafio que merece vasta construção. Identificou-se que a parceria está mais fortalecida nos cenários das Unidades de Saúde, junto aos profissionais que realizam as atividades com os estudantes. Evidenciou-se a necessidade de maiores investimentos nas pactuações para a participação efetiva dos preceptores nos processos de EPS, nas capacitações e na participação nas atividades com os estudantes nos diversos cenários de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, entende-se que a parceria ensino-serviço não é tarefa fácil e as dificuldades relacionadas a este processo desmotivam os profissionais, podendo interferir na formação dos estudantes, bem como no processo do cuidado e do trabalho em equipe. Assim, ressaltou-se como proposta para o fortalecimento da parceria, estratégias de retomada do planejamento em conjunto; com consolidação da parceria por meio de gestão participativa, por meio da retomada de reuniões periódicas entre os parceiros com a construção de uma pauta de discussão construída a partir da vivência do currículo integrado e orientado pela matriz dialógica e suas necessidades; retomar a forma de fazer a EPS, estando novamente em conjunto entre a academia e serviço. Nessa direção, o desafio encontra-se na construção conjunta de tal forma que as necessidades de academia e serviço sejam consideradas, com o objetivo de formar profissionais capazes de atender a demanda das pessoas que buscam um serviço de saúde.