1.Introdução
O ato de tatuar o corpo, presente em diversas sociedades, desde o Período Paleolítico, apresenta modificações relativas aos símbolos, motivações e significados, dependentes do contexto histórico e sociocultural (Sad, 2016).
O primeiro registro na história moderna data de 1769, em nativos da Polinésia (Dadalte et al., 2013). Muitas tribos indígenas, inclusive no Brasil, sempre utilizaram pinturas corporais, incluindo a tatuagem, em rituais e para se afirmarem pertencentes àqueles grupos. Na sociedade ameríndia, a tatuagem possibilita expressar a fluidez identitária corporal, em um corpo que ao longo da vida passava por diferentes processos, sendo as marcas corporais a afirmação dessa progressão. O corpo sendo configurado como uma expressão do todo cultural, as tatuagens expressavam uma semiótica plena de sentimentos, espiritualidade e histórias (Maluf, 2001).
Com o advento e expansão da revolução industrial o ambiente urbano é criado e expandido com pessoas partilhando de uma cultura diferente, individualista, que bebe de fontes como o Iluminismo. Marcar o corpo torna-se uma maneira de diferenciação reduzindo a herança espiritualizada que a prática possuía até então. Esse caráter de individualidade começa a ser definido na dependência dos microambientes histórico-existenciais, tendo símbolos e locais específicos de tatuagem, sendo esse mecanismo além de diferenciador, conformador de uma identidade de determinados subgrupos marginais na macrocultura urbana. Grafar uma tatuagem era uma prática comum entre pacientes psiquiátricos e presidiários (Lise et al., 2010).
Como consequência, a tatuagem ainda é vista com preconceito por alguns indivíduos que a relacionam com seu histórico, fazendo com que as regiões cobertas do corpo sejam as mais escolhidas, a fim de evitar julgamentos e obstáculos, como no âmbito profissional (Lise, 2007).
Com a liberação dos costumes a tatuagem tem se constituído um símbolo de identidade para toda a sociedade. A noção de identidade é dinâmica e passível de mudanças, não uma circunstância fixa (Rizzo & Suttana, 2014). Atualmente, materializar o discurso na pele é uma forma de expressar a individualidade perante uma comunidade plural e globalizada.
A pele tatuada adquire atributos de linguagens verbal e não-verbal, com signos dotados de subjetividade e múltiplas maneiras de interpretação sob o olhar do outro (Abreu, 2013). Assim sendo, não é possível determinar se haverá, pelo outro, aceitação total, valorização, tolerância, ou a expressão pública de discriminação e preconceito (Dadalte et al., 2016).
Embora a busca pela identidade e auto afirmação por meio de tatuagens seja abalada pela estigmatização, os indivíduos resistem aos padrões conformistas, expressando-as como signo de individualidade, pertencimento a um grupo ou estética (Silva & Cazarin, 2014).
Segundo Bauman, a superficialidade das relações interpessoais, o consumismo, a facilidade no acesso às informações, a autoexposição exacerbada, a busca incessante pelos espetáculos e por prazer, características da pós-modernidade, vêm fornecendo subsídios para uma crise identitária (Bauman, 2007). Diferentemente do sujeito do iluminismo e da modernidade, o indivíduo da pós-modernidade é instável e sua identidade é constituída pela confluência de inúmeras influências culturais variáveis, muitas vezes, opostas e conflituosas (Baliscei et al., 2015).
Nesse contexto marcado pelo excesso de signos e imagens, que modulam o comportamento humano, os chamados artefactos visuais, caracterizam uma extensão do eu, de forma que a identidade humana passa a ser associada à auto imagem fornecida pelos bens de consumo (Oliveira et al., 2012).
Em uma conjuntura na qual tudo é líquido, o corpo constitui o único bem duradouro para o indivíduo. As tatuagens, consideradas artefactos visuais, constituem instrumentos para a expressão da insatisfação com a instabilidade e até mesmo uma forma de afirmar-se em meio a uma sociedade líquida Bauman, 2007; Baliscei et al., 2015).
As mudanças culturais expandiram os limites interpessoais e entre categorias sociais (Sabino & Luz, 2006). A medicina tem se ocupado com o corpo tatuado como com qualquer outro desvio da norma social, registrando como insatisfação, arrependimento e ato inconsequente da juventude com a necessidade da reparação estética profissional. A mídia tem explorado, de forma ambígua, em um primeiro momento enaltecendo e estimulando a prática da tatuagem, e no momento atual dando ênfase aos riscos e consequências referidos pela medicina como reações alérgicas e infeções (Bassi et al., 2014) e aos avanços dermatológicos e cirúrgicos de supressão completa e segura, até situações de arrependimento (Khunger et al., 2015) correspondentes ao imaginário coletivo, moral, de higienização dos corpos e aptidão para o trabalho.
No entanto, com a flexibilização dos costumes, a medicina tem absorvido em seus quadros corporativos jovens tatuados ou com o desejo de tatuar o próprio corpo.
Perguntou-se então, nesta pesquisa, se os docentes e estudantes de medicina tem tatuado o corpo em identificação com a medicina e sobre as reações de preconceito ou naturalização às inscrições corporais.
A pesquisa, qualitativa, teve como objetivos analisar a tipologia e motivações para uso de tatuagens por docentes e estudantes de graduação em medicina, a relação com a identidade profissional, e os efeitos no cotidiano.
2.Metodologia
Estudo de caso, qualitativo, com triangulação de métodos de coleta de informações e análise.
Os critérios de inclusão adotados foram, discentes de graduação até o décimo período, e docentes de curso de medicina, federal, e os de exclusão, discentes não matriculados e docentes não ativos por qualquer motivo. O último ano do curso, períodos 11º e 12º, não tinha estudantes matriculados no período da coleta de dados em virtude da pandemia de COVID-19.
Para a suspensão da pesquisa adotou-se como critérios: recusa institucional em permitir a pesquisa ou de qualquer das categorias elencadas para participar.
A pesquisa foi considerada sem riscos físicos aos participantes, e risco remoto de natureza emocional, por interpretação como constrangimento ao sentir-se forçado a participar da pesquisa ou de ter as informações pessoais divulgadas. Foi garantida a autonomia para a recusa ou desistência em qualquer momento da pesquisa.
Os benefícios previstos foram: compreensão dos valores atuais na dinâmica das relações discente-docente para elaboração de estratégias humanizadoras na formação médica.
Como desfechos pretendeu-se o fortalecimento da humanização da formação médica, e o desenvolvimento discente na pesquisa qualitativa.
Foram consideradas como variáveis principais, tatuagem, motivações e atitudes frente ao uso de inscrições corporais, e como variáveis secundárias, tema da tatuagem, local no corpo, extensão, período da vida (idade) da inscrição, gênero, implicações nas relações pessoais.
O projeto foi desenvolvido entre abril de 2020 e abril de 2022, período estendido e correspondente ao isolamento decorrente da pandemia, obrigando a modificações metodológicas sem interferência nos aspetos éticos. As entrevistas presenciais foram substituídas por questionários, para resposta on-line, específicos a cada categoria, docentes e discentes, tatuados e não tatuados, elaborados no aplicativo Forms da plataforma Google, aos quais foram anexados os termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) para leitura e confirmação prévia às respostas.
O tempo previsto de resposta ao questionário foi de dez minutos, podendo ser devolvido em até 48 horas, com informação da disponibilidade permanente dos três pesquisadores para esclarecimentos.
O questionário para os discentes e docentes tatuados constou de questões versando sobre as motivações, o período na vida da inscrição corporal, o local da inscrição, e as percepções pessoais sobre as reações nos ambientes de formação. Foi solicitado que enviassem fotografias das tatuagens e solicitada a permissão para a análise do tipo, local, e relação identitária profissional.
O uso de fotografias na pesquisa qualitativa em saúde oferece benefícios conforme verificado em revisão de literatura por Alves et al. (2019, p. 159) “relacionados ao incentivo das reflexões e criatividade, rompimento com a formalidade nas entrevistas, captação de impressões subjetivas e significados, potencializa discussões, estimula o lúdico, promove bem-estar, fortalece o engajamento e o protagonismo dos participantes na pesquisa, entre outros”. Para contornar dificuldades operacionais e éticas as fotografias foram realizadas pelos próprios participantes utilizando câmera de aparelho celular. As fotografias deveriam abranger toda a tatuagem e o segmento corporal sem exposição de outros traços que permitissem a identificação do participante.
Os participantes foram solicitados a responder a Escala de Atitudes Frente a Tatuagem (EAFT-D) (Medeiros et al., 2010), uma escala de diferencial semântico do tipo Likert com cinco pontos, composta por dez pares de adjetivos bipolares que expressam avaliações atitudinais gerais acerca de “estar usando uma tatuagem” ser considerado: Positivo / Negativo, Agradável / Desagradável, Desejável / Indesejável, Bonito / Feio, Delicado / Agressivo, Certo / Errado, Responsável / Irresponsável, Adequado / Inadequado, Pacífico / Rebelde e Convencional / Anticonvencional.
Como se trata de escala Likert de cinco pontos, o número um indica o ponto mais próximo do primeiro adjetivo do par e o número cinco indica o ponto mais próximo do segundo adjetivo do par, o número três na posição de neutralidade. Dessa forma, as respostas foram classificadas em: neutros (3 pontos), completamente concordantes com o primeiro adjetivo do par (um ponto), quase completamente concordantes com o primeiro adjetivo do par (dois pontos), completamente concordantes com o segundo adjetivo do par (cinco ponto), quase completamente concordantes com o segundo adjetivo do par (quatro pontos).
Para a análise dos dados demográficos e tipos de tatuagens, foram utilizadas frequências simples e médias.
Para a análise das narrativas pessoais relativas às atitudes, motivações, e as implicações nas relações pessoais foi utilizado o programa de análise de dados qualitativos Iramuteq visando identificar núcleos de significância que pela sua presença ou frequência expressam sentidos relacionados às dimensões das falas dos sujeitos (Camargo & Justo, 2013; Loubère & Ratinaud, 2014).
Entre discentes, foram analisados 254 textos, contendo 276 segmentos de textos, dos quais 86,23% foram aproveitados do total do corpus, considerado como aproveitamento significativo (superior a 75%). Em relação aos docentes, não foi possível realizar a classificação hierárquica em virtude da análise de somente 48 textos nesse corpus, sendo realizada a análise de similitude com aproveitamento de 49 segmentos de textos.
Com os resultados foram definidas categorias de fundamentação relacionando-as aos dados obtidos com os outros métodos.
A discussão buscou aproximações com a identidade profissional tendo como referencial teórico o ensino médico, a bioética e a neurociência.
Em razão do grande tamanho amostral optou-se pela citação das falas apoiada na similaridade de sentidos das categorias definidas pelo Iramuteq, sem a identificação substitutiva dos nomes por símbolos.
O cumprimento, publicitação e destinação dos dados/materiais coletados (questionários e fotografias) na pesquisa obedece às regras das resoluções nº 466/2012 CNS e nº 510/2016 CNS, não tendo outros fins além do previsto na pesquisa, com guarda exclusiva do orientador da pesquisa por no mínimo 5 anos.
3.Resultados e Discussão
Em razão da natureza qualitativa da pesquisa, os dados demográficos, apenas subsidiam os resultados extraídos das entrevistas com o uso do software Iramuteq.
Dentre 303 participantes, 255 eram discentes (53.7% mulheres e 46.3% homens), com média de idade de 23.6 anos, e 48 eram docentes (62.5% mulheres e 37.5% homens), com média de idade de 46.8 anos.
Os discentes correspondiam a mais de 50% da própria categoria, com maior participação dos matriculados no ciclo clínico, seguida pelos do ciclo básico-clínico e internato.
Estudos demográficos da população médica brasileira (Scheffer et al., 2018), e entre discentes e docentes da FAMED-UFAL (Soares et al., 2019), revelam feminização crescente. Decorrente desse fenômeno destaca-se a necessidade de inclusão equitativa de mulheres líderes em pesquisas científicas, bem como na população investigada (Acosta et al., 2020). No campo educacional a equidade de gênero deverá possibilitar a modificação de conceitos e práticas patriarcais (Ovselko et al., 2016), integrando novos valores e mudança de atitudes nas relações desde o período de formação e nos ambientes de trabalho. As mulheres mostraram-se mais receptivas à pesquisa, com maior participação, igual tolerância, e maior frequência de uso de tatuagens.
É possível que o elevado número de discentes não cristãos ou que admitem não professar nenhuma religião (53.1%) tenha influenciado na atitude positiva ou de neutralidade para com o uso de tatuagens e a afirmação de autonomia para a gestão do próprio corpo com separação entre a identidade pessoal e a profissional. A mesma tendência pode ser observada entre os docentes tatuados.
Entre discentes, 98.4% eram favoráveis ao uso de tatuagem por estudantes de medicina e médicos (99.3 % das mulheres e 97.5% dos homens). Além disso, 96.9 % dos discentes relataram conhecer algum estudante de medicina ou médico com tatuagem, e 19.2% possuem pelo menos uma tatuagem.
Entre docentes, 83.3% foram favoráveis ao uso de tatuagens durante a formação e na profissão (80% das mulheres e 88.8% dos homens). Além disso, 93.8% relataram conhecer algum estudante de medicina ou médico com tatuagem, e 12.5% possuem pelo menos uma tatuagem.
O preconceito contra o uso de tatuagens ainda é uma realidade, como demonstrado pela afirmação da maioria (63.1% dos discentes e 68.8% dos docentes), ter presenciado atitudes preconceituosas. Além disso, 20.4% dos discentes e 33.3% dos docentes relataram ter sofrido preconceito específico. O preconceito flagrante, rude, excludente e evitativo é cada vez menos frequente na sociedade em função de leis que punem o racismo, a homofobia, a misoginia. No entanto, novas formas de preconceito, consideradas simbólicas, ambivalentes, aversivas, sutis, são denunciadas por meio de estudos sócio antropológicos relacionados a racismo e xenofobia. No Brasil, descreve-se o racismo cordial em função da história de miscigenação, do mito da democracia racial e da ideologia do branqueamento populacional (Lima & Vala, 2004). Essas formas mais difíceis de identificar tendem a ser incorporadas culturalmente, por isso é preciso ampliar estudos aplicando os conceitos e teorias a outros campos do conhecimento. Neste estudo, embora a maior parte dos participantes, docentes e discentes, seja favorável ao uso de tatuagens, algumas falas demonstram preocupação com a mensagem veiculada pela tatuagem, ou seja, o indivíduo se faz merecedor do preconceito.
“Não tendo caráter ofensivo a tatuagem somente diz respeito ao seu portador e não o define em nada”.
“Não sendo algum simbolo, frase ou qualquer tipo de representação que ofenda algo ou alguém, em nada atrapalha o profissionalismo. Tampouco significa que o profissional seja menos qualificado ou que o estudante terá algum déficit na aprendizagem devido ao gosto por tatuagens”.
Para a maioria dos discentes e docentes, as imagens expostas relacionadas à medicina foram consideradas aceitáveis: coração; bastão de Asclépio; estetoscópio; ECG. Outras imagens também foram selecionadas: animais; flores; mandala; formas geométricas; signos; tribal; desenhos animados.
Embora a maioria considere aceitável distintos tipos de inscrição corporal, os símbolos de identidade profissional predominaram nas escolhas principalmente entre os discentes. Poucos não aceitam qualquer inscrição corporal, um docente e 3.5% dos discentes.
Esta aceitabilidade majoritária por signos identitários da medicina difere da decisão de alguns por tatuar o corpo antes do ingresso na universidade com signos distanciados da semiótica médica, que apontam para um ritual de passagem da adolescência para a vida adulta com busca de afirmação de autonomia e identificação prévia a outros grupos sociais (Osório, 2006).
Em relação aos locais do corpo tidos como aceitáveis, por discentes, para a inscrição corporal por estudantes e médicos, 60.4% assinalaram indiferença, 3.5% sendo favoráveis a inscrições no rosto. Entre os docentes, 37.5% foram indiferentes ao local de inscrição e nenhum optou pelo rosto.
A média de idade discente da primeira inscrição corporal foi de 20.3 anos. Os locais de inscrição corporal mais comuns foram: braço, antebraço, punho e costas, embora outras regiões também fossem citadas (abdome, tornozelo, tórax, perna, dedos, lombar, atrás da orelha, coxa, pé). Dez discentes relataram já ter sofrido preconceito relacionado ao uso de tatuagens.
A média de idade docente da primeira inscrição corporal foi de 28.2 anos. Os locais de inscrição corporal mais citados foram, antebraço, tornozelo e costas. Outras regiões foram citadas (perna, tórax, braço, glúteo). Dois docentes afirmaram já ter sofrido preconceito relacionado ao uso de tatuagens.
Dentre os quase 20% dos discentes de medicina e 12.5% dos docentes que relataram possuir tatuagens, houve predomínio entre as mulheres. As regiões corporais preferidas por ambos os grupos para inscrição corporal, costas, braço e antebraço, punho, tornozelo, parecem afirmar uma preocupação antecipada com a profissão. Enquanto os membros podem ser mais expostos, às costas parecem ser uma escolha mais discreta, não visível em ambientes de trabalho, todas essas áreas podendo ser encobertas pelo jaleco, a vestimenta oficial de trabalho, uma segunda pele sobreposta e conformadora da identidade médica.
Por outro lado, nenhuma das fotos enviadas de tatuagens pelos discentes e docentes era representativa de simbologia relacionada diretamente à medicina ou à saúde, predominando temas denotativos de espiritualidade, e memórias afetivas, apenas os signos tribais exclusivos entre homens e flor e mandala entre mulheres.
Outros temas frequentes foram: frases, nomes, crucifixo, anjo, demônio, olho, coração, carta de baralho, família, notas musicais, animais (leão, borboleta, pata de cachorro, cobra, águia), natureza (folha, paisagem, árvore), formas geométricas, onda, surfista, roda gigante.
A afirmação da identidade, imutável, entendida como essência metafísica, própria à cultura ocidental se expressa, dentre outros aspectos, pelas tatuagens circunstanciais - em forma de frases e símbolos de espiritualidade com supostos poderes mágico-protetores (Sabino & Luz, 2006).
A idade da inscrição corporal reafirma a observação feita por Osório (2006) da popularização no Brasil, inicialmente, entre jovens. No entanto, esta pesquisa demonstra dois processos geracionais relacionados à inscrição corporal: um tradicional, prudencial, dependente da aquisição de autonomia posterior à graduação e especialização, presente entre os docentes; e outro anterior ao ingresso na universidade (Osório, 2006).
Enquanto a sociedade está mais tolerante e amplia o número de pessoas tatuadas, inclusive médicos, não há orientações oficiais do conselho federal de medicina relativas a essa prática. Questiona-se mesmo a utilidade das normas reservando-se a escolha ao espaço privado da autonomia individual. No entanto, há uma aceitação tácita do uso de temas não intimidadores ou ofensivos em áreas não visíveis ou que possam ser encobertas pelo jaleco, enfatizando-se a rejeição à tatuagem na face (Siobhan, 2019).
Segundo Cíbik (2020, p. 204), “Em geral, a estabilidade das preferências da pessoa que faz a tatuagem, conectada com o destaque é a natureza controversa da tatuagem em questão, pode servir como um guia grosseiro no julgamento da possível imoralidade das tatuagens”. Embora consideradas moralmente neutras e sem implicações éticas, o autor argumenta que a decisão de tatuar o corpo envolve riscos normativos mais do que prudenciais. A consideração de um futuro self auto acusador por uma decisão tomada no passado pode gerar constrangimento, culpa, arrependimento, ressentimento e limitar a autonomia e liberdade de consciência devido ao caráter permanente da tatuagem. Desse modo, o tamanho e o local da tatuagem estão implicados na moralidade da decisão, o que faz da face um local inadequado (Cibik, 2020).
“Tenho tatuagens, pois as fiz enquanto mais jovem. Se tivesse a mentalidade de hoje, não faria. No entanto, embora hoje seja contrário à realização de tatuagem, acredito que cada um tem o direito de escolher por si”.
“Depende do tipo de tatuagem, muitas delas possuem significados que não são aceitáveis para alguns tipos de profissões. Mas tirando isso, sem problemas caso sejam tatuagens sem significados hediondos”.
“Não gosto dessas marcas definitivas”.
A tomada de decisões é autoadaptativa e dependente da integridade e maturidade das redes neurais dos centros de recompensa e social e das redes de relações dos indivíduos em um ambiente de apoio mútuo (Earp et al., 2021). O processo seletivo autoadaptativo considera a congruência entre as expectativas individuais e as dos demais (Zhang & Gläscher, 2020; Hosevad et al., 2022).
O relativismo moral de nossa época pode facilitar a dissonância com o futuro self promovendo frustração do jovem adulto aprendiz diante dos valores e expectativas em novos ambientes desafiadores e com regras bem definidas como profissional. O relativismo moral pode ainda servir como disfarce ao preconceito expresso em formas sutis, inclusive com a indiferença e evitação adotando atitudes de conveniência inadequadas ao espírito científico e humanitário do ambiente universitário. Osório (2006) lembra que “o mercado de trabalho é uma instância reguladora cujo poder não pode ser questionado” afetando diretamente a autonomia e a decisão pelo tipo e local de inscrição corporal. Essa observação é internalizada por alguns discentes como norma tácita.
“[...] eu acho que o profissional deve ter ciência que tatuagens visíveis ao público não são permitidas em alguns ambientes de trabalho por motivos diversos e específicos de cada local”.
“A depender da sua localização e do tipo de tatuagem, pode deixar o paciente constrangido e poderá até perder a confiança no profissional”.
Nos quadros 1 e 2 são demonstrados os resultados da aplicação da escala de atitudes.
Os discentes tatuados apresentam em maioria e com mais frequência que os não tatuados, atitudes que expressam valores compatíveis com uma visão de concordância, tolerância, aceitabilidade, e os não tatuados uma posição predominante de neutralidade. Menos de 10% dos discentes não tatuados expressaram atitudes negativas perante o uso de tatuagens.
O mesmo padrão pode ser observado entre os docentes, os não tatuados adotando a posição predominante de indiferença, enquanto até 47.3% consideram o uso de tatuagem indesejável. Entre os docentes tatuados, mais de 80% apresentam posição favorável em todos os itens ao uso de tatuagens na profissão.
Gallo (2008) refletindo sobre a educação moderna, alteridade e filosofia da diferença, confronta o cogito cartesiano à fenomenologia Sartriana e conclui que a indiferença é uma espécie de autoengano como é de má-fé para Sartre. Para o autor, a tolerância necessária ao convívio democrático multicultural em nossa época é ainda uma escolha do outro para mim, mantendo em aberto a possibilidade do conflito, não sendo possível, portanto, superar o outro nem mesmo pela atitude de indiferença. Advoga por uma pedagogia anarquista, distinta dos modelos oficiais e uniformizantes reprodutores da ficção ensino-aprendizagem.
Estes resultados indicam a necessidade de atenção ao relativismo moral da maioria participante, presente como indiferença ou anestesia moral, e à possibilidade de vivência de preconceito expresso abertamente ou em formas sutis nos ambientes de formação e de trabalho em saúde. Não houve, com esta pesquisa, a intenção de observar riscos à saúde ou estabelecer relação com o desempenho cognitivo discente. A presença de docentes com tatuagens favorece o entendimento de que não há interferência negativa no desempenho cognitivo futuro dos discentes, porém essa observação não permite generalizações. Novos estudos devem considerar também a diversidade humana, presente, hoje, no curso médico.
O dendrograma obtido por meio do software Iramuteq, relativo às falas dos discentes a respeito das justificativas para a concordância ou não sobre o uso de tatuagens por estudantes de medicina e médicos, revela cinco classes com relações de proximidade entre as classes 1 e 2 e classes 3 e 4. A classe 5 demonstra relação de aproximação com o conjunto das demais classes, apresentando-se como uma síntese das ideias que conformaram as classes anteriores. Com essa conformação foi tomada a decisão de agrupar as classes 1 e 2 como - independência de valores relacionados ao profissionalismo -, bem como as classes 3 e 4 como, - signos de identidades afetivas-. A classe 5 foi mantida independente e denominada, autonomia para gestão do próprio corpo.
Em relação aos discentes tatuados, a maioria considera a opção pela inscrição corporal como definidora da identidade pessoal ligada a afetos sem relação com a identidade profissional: “Estética e lembranças afetivas”. “Vontade”. “Vaidade”.
Entre os docentes tatuados observam-se três principais tipologias associadas às inscrições corporais: afetividade, estética e afetividade associada à motivação profissional.
Gracia (2010) afirma que no ponto atual de evolução da ética profissional para um novo paradigma há um ponto invariável, a aspiração à excelência. Esta característica assumida como competência no campo educacional transparece na maioria das falas discentes: “Tatuagem não mede competência e nem capacidade do profissional, além de não interferir em nada na boa realização da função”.
Estes resultados são coerentes com o individualismo e a expressão predominante de autonomia na sociedade atual. Enquanto a maioria dos participantes, sem distinção de gênero, repete generalizando o lema, presente na mídia, “meu corpo, minhas regras”, usado para indicar a autonomia na gestão do próprio corpo pelas mulheres, alguns discentes invertem o sentido, “seu corpo, suas regras”, compatível com a indiferença demonstrada na escala de atitudes. Nas duas situações, o outro não é incluído, fato preocupante em razão da faixa etária, e da opção de formação profissional que busca se renovar com valores humanitários e responsabilidade social.
4.Considerações Finais
O uso de tatuagens no curso de medicina é uma realidade relacionada com a mudança de valores na sociedade e com variáveis como gênero, faixa etária e religião, e influenciado por valores dependentes de fatores culturais sem relação com a medicina. A identidade profissional não é o motivo principal na escolha da tatuagem, embora pareça interferir na definição da região corporal. A autonomia é determinante, com a tomada de decisão pela inscrição corporal dependente principalmente de memórias afetivas. A distância geracional parece influir na tolerância, possibilitando atitudes preconceituosas em ambientes com verticalidade predominante nas relações, as quais podem ser evitadas com políticas humanizadoras e criação de ambientes de paz, na formação e no trabalho em saúde.
A atenção ao relativismo moral, indicado pela posição de indiferença, demanda das instituições formadoras e reguladoras da profissão, a reflexão ética sobre princípios e valores relacionados à progressiva identificação com a profissão durante a formação: respeito, tolerância, autonomia do médico, autocuidado, e responsabilidade nas relações no trabalho. Adaptações metodológicas dependentes do contexto da pandemia, a inexperiência dos discentes com o método qualitativo aplicado on-line, e a gravação apenas da voz dificultaram captar sutilezas relacionadas a expressões faciais e gestuais que poderiam demonstrar com mais clareza ambiguidades e contradições no discurso. Essas dificuldades evidenciam a necessidade da expertise do pesquisador principal/orientador com a máxima isenção subjetiva possível na análise das informações para evitar uma interpretação saturada por vieses de leituras unilaterais, parciais e projetivas. A opção pela pesquisa qualitativa com triangulação de métodos e uso de software para análise de ampla gama de entrevistas foi importante para a superação dessas dificuldades e ampliação da compreensão dos aspectos morais e subjetivos implicados no uso de tatuagens na atualidade.