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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.17  Oliveira de Azeméis out. 2023  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.17.2023.e838 

Artigo Original

O Labor do Arquivo como Plataforma para a Pesquisa Qualitativa em Educação

Archival Labor as a Platform for Qualitative Research in Education

1 Universidade de São Paulo, Brasil


Resumo

O presente ensaio focaliza a noção-chave de arquivo na pesquisa educacional, reputando-a como uma plataforma teórico-procedimental fecunda para abordagens de cunho qualitativo, com base nas proposições de Michel Foucault e de alguns de seus interlocutores acerca da temática. A justificativa para tal proposição funda-se no pressuposto de que, mediante o caráter híbrido das práticas investigativas no campo educacional - condicionadas pela confluência de saberes oriundos de territórios discursivos nem sempre congruentes, redundando por vezes em inconsistência procedimental -, toca-nos dispor enquadramentos rigorosos quanto à eleição e ao manejo das fontes documentais eleitas, bem como, sobretudo, a seu processamento analítico. A título de materialização da discussão em tela, são apresentados os procedimentos de um trabalho investigativo voltado ao exame das racionalidades em circulação no campo educacional brasileiro acerca da pandemia de Covid-19, durante o biênio 2020-2021, englobando desde a interrupção do atendimento escolar, passando pela implementação do ensino remoto emergencial, até o início da retomada das atividades presenciais. Tratou-se, mais especificamente, de perspectivar uma série de temáticas emergentes em face da eclosão de um fenômeno social não antevisto, dando a ver seus principais efeitos na discursividade do referido campo. Para tanto, a fonte documental eleita foi a produção investigativa brasileira sobre o tema veiculada em 150 periódicos sob a responsabilidade dos Programas de Pós-graduação e de outros órgãos da área. As considerações finais apontam para a potencialidade do procedimento investigativo em tela, de modo a evidenciar possíveis contribuições às abordagens qualitativas na pesquisa educacional, com destaque para modalidades procedimentais circunscritas ao trabalho de edição ou de curadoria concernente à montagem dos discursos sob exame.

Palavras-Chave: Pesquisa educacional; Arquivo; Covid-19; Periódicos educacionais.

Abstract

This essay focuses on the key notion of archive in educational research, considering it as a fertile theoretical-procedural platform for qualitative approaches, based on the propositions of Michel Foucault and some of his interlocutors on this matter. The justification for such proposition assumes that, given the hybrid character of investigative practices in the educational field - conditioned by the convergence of knowledge provided by discourse territories that are not always congruent, sometimes resulting in procedural inconsistency -, it is imperative to arrange rigorous settings regarding the election and management of the chosen documental sources, as well as, above all, their analytical processing. As an embodiment of the discussion at hand, we present the procedures of a research work aimed at examining the rationalities in circulation in the Brazilian educational field about the Covid-19 pandemic during the biennium 2020-2021, encompassing from the interruption of school attendance, through the implementation of emergency remote teaching, to the beginning of the resumption of classroom activities. More specifically, the aim was to put into perspective a series of emerging themes in the wake of the outbreak of an unforeseen social phenomenon, revealing its main effects on the discourse of the educational field. To this end, the chosen documentary source was the Brazilian research production on the theme published in 150 journals under the responsibility of Post-graduation Programs and other institutions in the area. The final considerations point to the potentiality of this research procedure, in order to highlight possible contributions to qualitative approaches in educational research, with emphasis on procedural modalities circumscribed to the editing or curatorial work concerning the assembly of the discourses under Analysis.

Keywords: Educational research; Archive; Covid-19; Educational journals.

1. Introdução

Em sua jornada histórica, a pesquisa educacional brasileira parece nunca ter atingido um patamar de pacificação epistemológica. Desde as proposições inaugurais nos anos 1970, quando se formalizou a reflexão acerca da pesquisa educacional realizada no Brasil (Gouveia, 1976), um mesmo tipo de diagnóstico parece se repetir: a incerteza quanto ao que se produz nesse campo investigativo. Exemplo disso é a manifestação de Gatti (2006, p. 26) para quem “é preciso sair do nível do recolhimento de informações superficiais ou de senso comum, sair da ‘opinionatria’, e buscar, com método, uma compreensão que ultrapasse nosso entendimento imediato”.

A inconsistência e, no limite, a negligência operativa dos estudos parecem constituir dois pontos nevrálgicos da jovem pesquisa brasileira, assim como a reputou André (2006, p. 22). E, novamente, o diagnóstico se repete: “certa dispersão temática nos trabalhos, dependência excessiva de autores estrangeiros e fragilidade metodológica”.

Uma das críticas mais argutas é aquela oferecida por Azanha (1992, p. 21), ao detectar certo praticismo renitente na pesquisa educacional, assim definido: “na ausência de autênticos problemas de investigação, o único caminho que resta ao pesquisador refratário à preocupação teórica é o levantamento de dados a propósito daqueles assuntos que o debate público ou o modismo pedagógico fez aflorar como relevantes”.

Tal viés praticista seria responsável, em última instância, por enquadramentos reducionistas do presente educacional, a ecoar os mecanismos de inteligibilidade já em uso nas e pelas próprias práticas; dito de outro modo, rebatimentos daquilo já consensualizado entre os protagonistas dessas práticas. Daí o risco de a pesquisa em educação se reduzir a um approach especular, isto é, à mera reposição das informações obtidas junto às fontes empíricas eleitas - independentemente do recurso teórico ali ativado, aliás - ou, tanto pior, ocasião de justaposição de determinadas palavras de ordem morais sobre os acontecimentos em foco: o que tal realidade deveria ser, no lugar daquela que ali toma corpo.

Se, por um lado, a proliferação temática e a pluralidade teórica das pesquisas educacionais brasileiras seriam, em última instância, signos de certa vivacidade investigativa, por outro, não se pode franquear de antemão nenhum tipo de estabilidade quanto aos tipos de problema nem aos protocolos metodológicos empregados nos estudos, quando tomados em conjunto. A situação torna-se ainda mais inquietante quando entra em cena a filiação às abordagens qualitativas, as quais, aliás, são referidas pela imensa maioria dos estudos. O que tal designação significaria, além de um salvo-conduto ambíguo?

Tendo em mente o fato de que a pesquisa educacional consistiria em uma prática marcadamente híbrida - ou interdisciplinar, como preferem alguns -, condicionada que é pela confluência de saberes e procedimentos oriundos de territórios discursivos nem sempre congruentes, toca-nos operar enquadramentos rigorosos quanto às fontes documentais eleitas, bem como, sobretudo, ao processamento analítico dessas mesmas fontes.

Daí a potencialidade da ideia de arquivo como uma plataforma teórico-procedimental fecunda para a pesquisa educacional e, especialmente, para aquela de cunho qualitativo. É o que aqui advogamos.

2. A pesquisa qualitativa baseada na forja arquivística

Nomeadamente, a noção de arquivo aqui em uso radica-se nas formulações inaugurais de Foucault (1987), as quais foram atualizadas por um conjunto de pensadores e, em especial, por Farge (2009).

Nessa direção, o apego à noção de arquivo descreve uma retomada, sob outras condições, das formulações presentes inicialmente em A arqueologia do saber (Foucault, 1987). Tal orientação geral apoia-se em duas premissas. A primeira: de que a noção de arquivo ultrapassa sua circunscrição arqueológica primeira, espargindo-se por toda a obra foucaultiana, sob outros matizes. A segunda: de que, quando convertida em gesto procedimental, a lida com o arquivo faculta a indistinção entre os âmbitos teórico e empírico do ato de pesquisar.

Adentremos a circunscrição da noção de arquivo, escalonando-a de acordo com três estratos articulados, cujas fronteiras são meramente fictícias, já que eles são inexoravelmente interdependentes.

Na batuta de A arqueologia do saber, o primeiro estrato do arquivo é aquele que descreve os contornos da racionalidade cambiante dos homens em relação a seu próprio tempo, incluídas as disputas em torno do monopólio de determinados nexos veridictivos no presente da narração. Dito de outro modo, o arquivo remete à dramaturgia ético-política que suporta o conjunto de disposições discursivas delimitadoras da experiência em dado quadrante espaciotemporal. Na pena do autor: “a lei do que pode ser dito” (Foucault, 1987, p. 149).

Trata-se da definição foucaultiana basal, segundo a qual o arquivo consistiria no sistema de regras moventes que conformam as condições de possibilidade igualmente moventes de emergência e circulação de determinadas racionalidades em dada duração histórica. Foucault (2014b, p. 52) assim o sumarizou: “O ‘arquivo’ aparece, então, como uma espécie de grande prática dos discursos, prática que tem suas regras, suas condições, seu funcionamento e seus efeitos”.

A essa formulação geral do arquivo coaduna-se um segundo estrato, usualmente associado ao (é facilmente confundido com o) arquivo histórico: o registro das marcas concretas da “massa das coisas ditas em uma cultura, conservadas, valorizadas, reutilizadas, repetidas e transformadas” (Foucault, 2014b, p. 52). Trata-se do conjunto de resquícios despossuídos de qualquer significação prévia quando tomados em e por si mesmos. Isto é, tais marcas consistem em grandezas fragmentárias dispostas de modo nem suficiente, nem necessário nos aparatos documentais disponíveis: acervos, bibliotecas, museus e, mais recentemente, a própria Internet.

Trata-se, em suma, apenas de coisas sobreviventes (Didi-Huberman, 2012). Haveríamos de assentir, pois, que o enlace investigativo que ganham tais coisas é sempre circunstancial e provisório, podendo converter-se em algo deveras cambiante, ao toque daquele que o manuseia.

Emerge, assim, um terceiro estrato intimamente conectado aos dois anteriores: o arquivo como um labor, ou seja, o trabalho propriamente de construção e reconstrução discursivas como saldo da manipulação de um conjunto de fontes documentais selecionadas para esse fim. Uma vez que, nesse sentido, não há arquivos dados de antemão, trata-se de constituí-los ponto a ponto, embrenhando-se por estratos documentais conexos à problemática sob exame.

A composição do arquivo investigativo impõe-se, assim, como um exercício “fragmentário, repetitivo e descontínuo” (Foucault, 2014a, p. 282), uma vez que implica um périplo sinuoso por um conjunto variável - porque não discernível de antemão - de dados concretos, sem os quais não será possível desentranhar as racionalidades que contornam o objeto em questão, computadas tanto as regularidades quanto as descontinuidades discursivas que lhe dizem respeito. É preciso inventariá-las pari passu e, com isso, fazê-las ganhar organicidade e movimento.

De modo distinto das formulações usuais da arquivologia, o status de arquivo, nessa acepção, ultrapassa o de coleção, o de compilação ou mesmo o de série documental, uma vez sua constituição exigirá um resoluto trabalho de edição que “supõe o arquivista; uma mão que coleciona e classifica” (Farge, 2009, p. 11). Decerto o arquivo contém um viés colecionista, outras vezes compilatório, e é constituído fundamentalmente por séries, mas ele ultrapassa essas instâncias, englobando-as. Ou melhor, o arquivo catapulta-as em outra direção. Assim, a tarefa arquivística impõe-se como uma operação de seleção, de metabolização e de um sequenciamento deliberadamente outro das frações constitutivas da materialidade discursiva em pauta.

Em sentido contrário ao do desígnio de formular um retrato representacional (ilustrativo, elucidativo, exemplar etc.) da problemática sob análise, via o mero espelhamento das fontes reunidas segundo uma espécie de exemplaridade substitutiva do fenômeno sob exame, trata-se de compor uma mirada em movimento das racionalidades operando ali de modo transversal. O relevo, aqui, passa a residir no saldo movente dos enunciados, sempre por combinação, e não em uma acumulação estática deles.

Nessas bases, a ação de arquivamento de um conjunto (sempre) heterodoxo de dados jamais se pautará por um procedimento único, estável e generalizável. Daí a exigência de uma inelutável disposição criadora quando se está a operar no domínio investigativo de inspiração arquivística.

Quando imbuído de tal intencionalidade, o olhar investigativo voltar-se-á inevitavelmente ao horizonte da montagem (Didi-Huberman, 2016) e ao das taxonomias (Maciel, 2009). Enciclopédias, dicionários, inventários, catálogos, listas, abecedários, breviários, bestiários, antologias, compilações, glossários, compêndios, almanaques e, por fim, os atlas: eis algumas das tantas modalidades taxonômicas possíveis de serem ativadas no que diz respeito ao processamento dos dados investigativos.

Há de se destacar, nessa perspectiva, o interesse em um tipo de literatura inventarial, se se pode dizê-lo assim, tal como aquela praticada, por exemplo, por Georges Perec, autor de experiências textuais tão inusitadas quanto empolgantes, como A vida: modo de usar (Perec, 1991) ou Tentativa de esgotamento de um local parisiense (Perec, 2016), entre tantas outras.

Também o contemporâneo Gonçalo M. Tavares é pródigo ao mobilizar horizontes escriturais análogos àqueles aqui em tela. Em sua vasta obra, três iniciativas ganham destaque: Biblioteca (Tavares, 2009), composta por 306 verbetes, dispostos em ordem alfabética e referentes, cada qual, a um pensador específico (mormente, escritores), para quem Tavares oferece alguns breves parágrafos com base em uma proposição que lhe havia sido oferecida antes por ele; ao modo de retribuição afetivo-intelectiva, portanto.

Mais de uma década depois, Tavares publicou Dicionário de Artistas (Tavares, 2021), cujas características coincidem com o livro de 2009. Nele, o modus operandi é semelhante: escritos sumários disparados pela obra de 75 diferentes artistas contemporâneos, redundando um mosaico indeterminado de efeitos literários advindo com o contato com as obras de arte.

Por fim, desponta o livro que talvez tenha condensado, de modo mais evidente, as ideias do autor sobre esse tipo de empreitada: Breves Notas sobre Literatura-Bloom: Dicionário Literário. Nele, o escritor inventaria um conjunto de noções caras ao seu procedimento, assim definido: “O que interessa à literatura-Bloom é tudo o que é assim, mas poderá ainda ser de outra maneira. [...] A literatura-Bloom conhece bem o processo de calcular as médias, porém, o que tenta retirar de cada palavra são as suas hipóteses marginais, os seus valores extremos, raros” (Tavares, 2018, p. 27).

Outras referências literárias de monta poderiam ser lembradas, tais como aquelas que notabilizaram autores tão diferentes em estilo e em gênero escritural, como Fragmentos de um discurso amoroso (Barthes, 1985), As cidades invisíveis (Calvino, 1990) ou mesmo A vertigem das listas (Eco, 2010). O que une tais produções são procedimentos que poderiam se dizer catalográficos, embora, claro está, sem nenhum acento classificatório hierarquizador. Longe disso, tratou-se, nos três casos, de dar vazão à profusão e à descontinuidade dos acontecimentos sob exame, por meio de modalidades expressivas largas o bastante para não os reduzir a nenhum esquema descritivo totalizador. Ao contrário, os acontecimentos ali dispostos operam de modo a produzir sentidos insuspeitos e, com isso, fazer oportunizar um modo propriamente literário de conhecer/pensar o mundo.

3. As racionalidades educacionais (pós-)pandêmicas: um atlas discursivo

A título de materialização da discussão levada a cabo até ao momento, são apresentados, a seguir, os procedimentos de um trabalho investigativo voltado ao exame das racionalidades em circulação no campo educacional brasileiro acerca dos múltiplos efeitos da pandemia de Covid-19, durante o biênio 2020-2021. Ambos os estudos, na forma de livros, foram publicados no Portal de Livros Abertos da Universidade de São Paulo (Aquino, 2022, 2023).

Tratou-se, mais especificamente, de perspectivar uma série de temáticas emergentes em face da irrupção de um fenômeno social não antevisto - desde a interrupção do atendimento escolar, passando pela implementação do ensino remoto emergencial, até o início da retomada das atividades presenciais -, dando a ver seus principais efeitos na discursividade do referido campo.

Mediante as múltiplas inflexões impingidas pela crise sanitária da COVID-19 à esfera educacional, o estudo incumbiu-se de rastrear seus efeitos mediatos sobre as racionalidades ali em voga, voltando-se menos para iniciativas pedagógicas x ou y e mais para as reverberações do acontecimento sobre o éthos pedagógico como um todo, estas consubstanciadas em uma série de impasses - ora mais, ora menos inéditos - no que se refere ao presente educacional. Tratou-se, assim, de escrutinar as tematizações que despontaram ou ganharam força quando o campo pedagógico-escolar teve de se haver com um acontecimento sócio histórico sem precedentes, cujos efeitos ainda estão por ser compreendidos em sua magnitude.

Para tanto, optou-se pela composição de um atlas discursivo no que se refere ao processamento dos dados, entendido como suporte fático da geografia veridictiva em operação nas práticas educacionais durante o período analisado. Mais precisamente: um atlas voltado menos aos consensos discursivos de superfície, e mais às circunvoluções dos enunciados que, na esteira do fenômeno da pandemia, foram se espraiando pelo campo, mediante a novidade do fenômeno da pandemia.

Tratou-se, assim, do esforço de criação de mirada em movimento capaz porventura de dar a ver cenários discursivos dispersivos, ambíguos, dissonantes etc., de modo distinto ao de um mapa composto por superfícies lisas e estanques, posto que já assentadas no pensamento. Em suma, um atlas composto não por imagens fracionadas, mas por uma sucessão de frames discursivos enredados.

A noção de atlas aqui em uso quer-se, genericamente, em sintonia com aquela presente em Atlas ou o gaio saber inquieto, último componente da trilogia O olho da história, por Didi-Huberman (2018), em que o pensador se debruça sobre a antológica experiência do Atlas Mnemosyne levada a cabo por Aby Warburg no começo do século XX.

Impossível não mencionar também a experiência entabulada por Jorge Luís Borges com Maria Kodama intitulada Atlas, na qual, à moda de Tavares, o escritor cego apresenta 45 textos forjados, agora, com base em fotografias, feitas por Kodama, das viagens do casal.

Outra referência balizadora do trabalho é a obra Atlas do corpo e da imaginação, da autoria, novamente, de Gonçalo M. Tavares. Dela advém um norte geral para o ato de pesquisar que aqui se subscreve sem pestanejar: “Todo o investigador investiga porque está perdido e será sensato não ter a ilusão de que deixará de o estar. Deve, sim, no final da sua investigação, estar mais forte. Continua perdido, mas está perdido com mais armas, com mais argumentos” (Tavares, 2013, p. 38).

Com um ensejo procedimental análogo, a pesquisa aqui relatada debruçou-se sobre a produção acadêmica brasileira da área de educação que se reportou à pandemia de Covid-19. A escolha dos periódicos acadêmicos como fonte exclusiva do estudo ancora-se no pressuposto de que se trata de um suporte documental tão caudaloso quanto estratégico, na medida em que opera como caixa de ressonância do que o campo vem fomentando no plano das ideias; espaço de rebatimentos e dissensos, diga-se de passagem. Ao mesmo tempo, dada sua circulação aberta, os periódicos firmam-se como vetor de indução de determinadas pautas discursivas no interior do mesmo campo. Eis sua dupla ascendência, por assim dizer.

Por meio da imersão nos periódicos da área, faz-se patente a vocação transversal e heteróclita que caracteriza a educação como campo de conhecimento, desde que este seja concebido segundo um enquadramento epistemológico não redutível ao escopo imediatamente didático-metodológico.

A fim de recobrir o vasto espectro da produção investigativa em tela, e tendo em mente que a pesquisa educacional brasileira é produzida, em sua maioria, na esfera da pós-graduação, foram focalizados os periódicos ligados aos 135 Programas stricto sensu em Educação atualmente reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), abarcando cursos acadêmicos de Mestrado e Doutorado ou apenas de Mestrado, oferecidos de modo exclusivo ou concomitante; em alguns casos, há instituições responsáveis por mais de um. Não foram contemplados os cursos de Mestrado e/ou Doutorado Profissionais, uma vez que a maioria deles já é conexa a Programas acadêmicos. Do mesmo modo, não o foram os Programas da área de Ensino, apesar de algumas vezes contíguos aos da área de Educação.

Ressalte-se, no entanto, que vários Programas acadêmicos - 18 dos 135 - não contam com revistas próprias ou ligadas às instituições-sede, ao passo que outros, mais estabelecidos, podem contar com várias. Do total dos 150 periódicos selecionados, 133 deles pertencem a essa modalidade; os 17 restantes estão sob a responsabilidade de associações, fundações, institutos e assemelhados.

Todos os volumes e números dos periódicos publicados em 2020 e 2021 foram rastreados em busca de artigos que contivessem, em seu título e/ou em seu resumo, termos-chave de interesse ao estudo: COVID-19, pandemia, ensino remoto, etc. Foram preteridos os textos de outra natureza, como entrevistas, apresentações, editoriais, resenhas etc. Tampouco foram contemplados os artigos assinados por autores brasileiros ligados a instituições estrangeiras. De outra parte, foram incluídos os autores estrangeiros radicados em universidades nacionais. Quanto aos textos a cargo de duplas de autores brasileiros e estrangeiros, optou-se por incluí-los apenas quando se referiam à conjuntura brasileira.

O resultado da sondagem referente a 2020 foi o de 231 textos; quanto a 2021, tratou-se de 506 artigos - um aumento mais que considerável, decorrente, certamente, do interesse crescente pelo fenômeno em pauta.

Do ponto de vista formal, a organização do arquivo empírico do estudo redundou na criação de um plano analítico estruturado em 100 diferentes verbetes, cada qual contendo 15 excertos (no caso de 2020) e 20 (no caso de 2021) pinçados do material bruto. O resultado: 3.500 excertos. Assim é que o arquivo composto pelos 737 artigos foi revisitado de ponta a ponta e incontáveis vezes, sempre à cata de focos argumentativos ao redor dos quais determinado verbete orbitava, exigindo apenas que os termos de interesse figurassem como elementos nucleares do enunciado em destaque.

Vale ponderar que nenhum tipo de software de análise de dados foi empregado, fosse na seleção, fosse no ordenamento semântico dos enunciados, uma vez que, segundo nosso julgamento, tais operações circunscrevem-se à esfera propriamente decisória do pesquisador. Abdicar disso significaria renunciar à própria autonomia investigativa e, por consequência, à própria capacidade de criar.

Todos os 1.500 excertos referentes a 2020 e os 2.000 de 2021, bem como as respectivas referências informadas pelos autores - 654 de 2020 e 1.331 de 2021 -, foram preservados do modo como figuravam nos textos originais. No caso das referências, seu conjunto constitui um capítulo à parte: trata-se de uma amostra fidedigna das obras e dos autores em circulação entre os pesquisadores do campo.

Os verbetes são os seguintes (em ordem alfabética): aula; avaliação; capitalismo; celular; cibercultura; cidadania; ciência; computador; conhecimento; corpo; cotidiano escolar; crenças; crianças; crise; cuidado; cultura; currículo; democracia; desigualdade; digital; direito à educação; docência; educação básica; educação especial; educação infantil; educação/ensino a distância; educação/ensino on-line; educação/ensino superior; educação/ensino tradicional; educar; ensinar; ensino-aprendizagem; ensino híbrido; ensino presencial; ensino remoto; escola; escola privada; escola pública; especialistas; esperança; Estado; ética; evasão escolar; exclusão; experiência; fake news; famílias; formação; futuro; gerações; Humanidade; ideologia; inclusão; indígenas; informação; inovação; internet; jovens; liberdade; medo; mercado; metodologias ativas; mídia; mudanças; mulheres; negros/pretos; neoliberalismo; novidade; novo normal; pais; pedagogias; Paulo Freire; pessoas com deficiência; política educacional; pós-pandemia; precarização; privatização; profissão docente; protagonismo; qualidade da educação/ensino; racismo; realidade; redes sociais; resistência; responsabilidade; risco; saúde; sistema educacional; sociedade brasileira; sofrimento; TDIC; tecnologia; tempo presente/atual; trabalho docente; universidade; urgente; verdade; violência; virtual.

A escolha dos verbetes pautou-se, por óbvio, em sua recorrência no conjunto dos textos originais. Já o critério de seleção dos excertos obedeceu ao que é desenvolvido de modo irretocável por Compagnon (1996) em O trabalho da citação; irretocável porque, ali, o autor esmera-se em decalcar um tipo de exterioridade pura em relação à experiência da leitura, valendo-se da premissa de que esta “não é monótona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o” (Compagnon, 1996, p. 13). Desta feita, toda a potência do acontecimento escrita-leitura residiria nas vicissitudes do texto primeiro decretadas pelo leitor (no caso, o pesquisador), abarcando os quatro gestos consecutivos subsumidos na prática da citação: solicitação, acomodação, grifo e ablação. Para Compagnon, tudo se resumiria ao exercício tão compulsório quanto interminável de recortar e colar. Foi o que fizemos.

Registre-se que, deslocados os enunciados de seu contexto original de aparição, o que ganha vulto é o efeito combinatório entre eles, de modo a facultar uma mirada em rede da discursividade educacional em curso - o que, desde o ponto de vista teórico aqui em foco, dispensaria qualquer investida interpretativa sobre o material bruto. Ou melhor, o escopo analítico do trabalho arquivístico limita-se à montagem dos enunciados em conjunto. O que passa a contar é, portanto, o esforço propriamente de edição, ou seja, de reordenamento seletivo do material disponível segundo a intencionalidade descritiva do próprio pesquisador. Em nosso caso, tratou-se apenas de dispor blocos enunciativos com base em sua aparição documental.

4. Considerações Finais

O estudo cujos procedimentos foram aqui relatados não contou com nenhuma intervenção interpretativa de nossa parte. Tal gesto é solidário ao firme propósito de entabular uma lida com o arquivo que se restringisse ao procedimento de edição ou, em outra chave semântica, de curadoria quanto à montagem dos discursos sob exame. Daí ser possível concluir que as ações por parte daquele que se devota à pesquisa qualitativa na modalidade aqui advogada bem poderiam ser subsumidas às de um copista da discursividade do seu próprio tempo.

Tal desígnio justifica-se na medida em que o grande complicador que se apresenta em investidas que se propõem a escrutinar as racionalidades que sustentam as práticas contemporâneas - em nosso caso, as educacionais - é o fato de que o presente, quando tomado como lócus analítico, impõe-se como uma instância opaca, indócil e, em grande medida, refratária ao trabalho do pensamento. É certo que os viventes estão simbioticamente conectados a um presente comum, que vivem no interior de suas fronteiras, que reagem de pronto a ele, que o respiram, enfim. Mas é certo também que ignoram tais fronteiras, que não têm domínio sobre as respostas que lhe oferecem, que apenas vivem sua cota do tempo histórico de maneira algo irrefletida. Daí o intervalo necessário para a decantação do tempo investigativo, só ele capaz de olhar com outros olhos para aquilo que se julgava ter visto em definitivo antes. Haver-se-ia de mirar os acontecimentos sempre em perspectiva, pois. Eis uma exigência incontornável para a pesquisa de base qualitativa, em nosso entendimento.

Operar dessa maneira não é óbvio nem sem dificuldades várias, uma vez que a lida investigativa baseada na perspectiva da forja arquivística circunscreve-se a um horizonte ético-político e epistêmico bastante preciso: dar a ver as coisas em sua copiosidade em vez de falar sumariamente em nome delas; no segundo caso, atenuando ou extinguindo seu fulgor acontecimental.

No que concerne à pesquisa qualitativa, trafegar por esse viés teórico-procedimental requerer uma espécie de abstenção hermenêutica resoluta, ou seja, compete enveredar pelas fontes documentais sem realizar interpretações dos textos selecionados, sem vasculhar por detrás ou além delas em busca de um sentido latente ou figurado, enfim, sem tentar legitimá-las ou, ao contrário, as invalidar, uma vez que elas, em seu conjunto, compõem a materialidade fática do próprio presente. Basta desentranhá-las de seu encapsulamento especular e fazê-las circular mais uma vez, desde que de outro modo, claro está. Nessa direção, atua-se com o objetivo de dispor os mecanismos veridictivos em voga na própria superfície do discurso, oferecendo-lhes uma visibilidade imprevista, capaz de evidenciar a circunvolução dos arranjos compositivos - e muitas vezes, erráticos - das forças que ali se ganharam expressão.

Ao fim e ao cabo, trata-se tão somente de se posicionar com curiosidade diante do próprio tempo, por meio da forja de arquivos talhados como suportes analíticos da dramaturgia cognitiva que margeia e, ao mesmo tempo, suporta aquilo que temos dito de nós.

5. Referências

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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