1. Introdução
O conhecimento qualitativo no ensino em saúde, têm sido cada vez mais fundamental para a formação crítica, reflexiva e interdisciplinar para egressos do campo da saúde, bem como, é necessário o uso dos elementos da investigação qualitativa alicerçados nos conceitos das ciências humanas e sociais.
A consciência metodológica aplicada ao ensino e a prática com base na investigação qualitativa envolve um compromisso de mostrar ao público participante o máximo possível sobre os procedimentos, elementos e evidências diversificadas e múltiplas que levaram à construção de conclusões e resoluções de problemas. Permanecendo sempre aberta a possibilidade de que estas podem ser revisadas à luz de novas investigações, inseridas em diversos contextos, e com o compromisso das ciências humanas e sociais de olhar o outro a partir das suas subjetividades, significados e sentidos (Bosi, 2021; Poupart et al., 2014).
No contexto Amazônico, a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), foi criada em um cenário político e educacional direcionado pelo estreitamento das políticas de expansão e organização do ensino superior com as diretrizes internacionais da Unesco (1998) e contidas na Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: visão e ação, entre as quais estava o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que tinha como objetivo ampliar o acesso e a permanência do maior número de estudantes na educação superior, primando pela qualidade dos cursos e pelo melhor aproveitamento das estruturas físicas e dos recursos humanos já disponíveis.
A criação da universidade instalada no interior da Amazônia foi motivada por vários fatores, entre eles a relevância do acesso ao ensino superior, a inclusão social e o aumento dos investimentos em ciência, tecnologia e inovações. Fatores necessários para garantir a formação de recursos humanos de alto nível, profissionais qualificados e capazes de contribuir para a solução dos grandes desafios colocados ao Brasil em relação à Amazônia, em defesa da diversidade étnico-racial e dos seus recursos naturais.
O Instituto de Saúde Coletiva (ISCO) é a subunidade mais nova da UFOPA e foi criado através da Resolução nº 46 de 20 de novembro de 2013, apresentando como missão a formação de profissionais capacitados para promover, proteger e recuperar a saúde da população na região amazônica.
Cabe destacar, que dentro do contexto formativo brasileiro, o ISCO se insere no âmbito do surgimento de novas universidades públicas federais no país, muitas oriundas do REUNI. O REUNI foi um programa que, ao planejar a interiorização da formação em nível superior, entre outras ações desenvolvidas, criou novas universidades, algumas entre as tais novas instituições de ensino superior se estruturaram em torno de modelos educativos que valorizavam um perfil formativo que ultrapassasse o terreno conservador de cursos tecnicistas. Surgiram assim, cursos interdisciplinares, como proposta de primeiro ciclo formativo que serviria de base para um segundo ciclo, este sim, profissionalizante. É na esteira destes fatos que surge o ISCO e, por conseguinte, o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS).
Atualmente, o ISCO conta com três cursos de graduação (Bacharelado Interdisciplinar em Saúde - BIS; Bacharelado em Saúde Coletiva - BSC e o Bacharelado em Ciências Farmacêuticas - BCF). O BIS compreende os três primeiros anos de formação do BSC e do BCF, ou seja, todos os alunos do ISCO cursam os componentes curriculares do BIS em um primeiro momento. O BIS tem ênfase em um perfil de egresso cujo o profissional seja generalista crítico, que, a partir da compreensão do processo saúde-doença e do cuidado como resultante da conjugação de fatores biológicos, ambientais, psicológicos, éticos, sociais, econômicos, políticos e culturais, desenvolve atividades sanitárias em diferentes contextos para promoção e prevenção da saúde, além de atividades específicas de epidemiologia, e no desenvolvimento científico e tecnológico em saúde.
A base comum a todos os cursos (BIS) visa a formação de farmacêuticos, sanitaristas e, futuramente, médicos, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas e etc., com uma visão ampliada das questões que envolvem os processos de saúde-doença-cura. A intenção é que estes futuros profissionais em saúde saibam que as doenças não são meras determinações biológicas, mas antes, resultado de marcadores sociais, a exemplo de: situação socioeconômica; inserção geográfica, etnia e classe, dentre outros.
No BIS, os alunos são motivados sobre a importância do conhecimento qualitativo em saúde em diversos componentes curriculares durante o percurso acadêmico nesse curso de formação. Nesse momento o método qualitativo de ensino é pautado nas definições de Minayo (2013) “compreendido como aquele que se ocupa com um nível de realidade que é tratado por meio da história, da biografia, das relações, do universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes”.
Dentre os componentes curriculares do BIS, o denominado Interação na Base Real (IBR), vem sendo trabalhado de modo a inserir o ensino e prática da metodologia de investigação qualitativa voltada para o campo da saúde. O IBR é um componente que proporciona ao discente da saúde o contato com as comunidades durante quatro semestres do BIS. Nesse momento, o ensino e prática da metodologia de investigação qualitativa, bem como o uso dos seus elementos no IBR tem se tornado fundamental, na importância da busca investigativa de dar respostas a problemas sociais, ambientais, políticos e econômicos inerentes à realidade local investigada. Entende-se que os discentes do campo da saúde, trabalham com seres humanos, cuja subjetividade se expressam no funcionamento do corpo, na saúde e na doença, e nas contradições existentes.
A partir do contexto apresentado, há algumas indagações a respeito do uso do conhecimento e dos elementos metodológicos da investigação qualitativa para o ensino e prática na formação em saúde: por que a metodologia da investigação qualitativa é por vezes encapsulada em uma única disciplina no processo formativo em saúde? É possível produzir experiências e significados ao longo de todo o processo formativo em saúde, inserindo-se na base real através do ensino e da prática da metodologia da investigação qualitativa?
Com o presente artigo, temos o objetivo de expor sobre a importância do conhecimento e do uso dos elementos metodológicos da investigação qualitativa no ensino e na prática da formação em saúde, em um cenário Amazônico brasileiro a partir de um componente curricular de interação na base real.
2. Metodologia
Este artigo é um relato de experiência com o uso da metodologia da investigação qualitativa, que tomou como referência o componente curricular de Interação na Base Real (IBR), dos três cursos de graduação na área da saúde, ministrado durante os quatro primeiros semestres, há cerca de sete anos, pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISCO) da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), na região da Amazônia brasileira. Sendo ofertado em quatro módulos, um em cada semestre: IBR I; IBR II; IBR III e IBR IV, nos cursos Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS), Bacharelado em Saúde Coletiva (BSC) e Bacharelado em Ciências Farmacêuticas (BCF) .
A experiência produzida através do uso da metodologia da investigação qualitativa neste componente currrilar, ocorreu em atividades desenvolvidas no espaço da sala de aula e no campo de prática (comunidades amazônicas). Dentre os elementos metodológicos da investigação qualitativa utilizados estão: observação, entrevista e o uso da etnografia para produção de escuta, formação de vínculo com as pessoas da comunidade investigada, o reconhecimento da cultura e identidade, a diversidade étnica e linguística em cenários de desigualdade socioeconômica que coabitam nesses territórios, espaços urbanos e rurais, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. A amostra foi intencional e participaram das experiências docentes e discentes da UFOPA, bem como, atores sociais das comunidades escolhidas para IBR. Cenário de co-produção dos dados: ensino e prática de campo.
2.1 Componente Curricular IBR I
O componente curricular IBR I busca desenvolver atividades que partem da análise da realidade local e sua problematização através de discussões sobre a determinação social da saúde no Oeste do Pará. Este módulo tem como finalidade central possibilitar aos discentes visitas às comunidades, com suas lideranças e as famílias, com o objetivo de desenvolver a escuta e o vínculo através de uma prática comum aos diversos profissionais da saúde. Parte-se do pressuposto de que, no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior empregador dos trabalhadores em saúde, daí a importância de formar o futuro profissional de cuidado para atender ao público que procura este sistema. Dessa maneira, o IBR é a ferramenta utilizada para que tais profissionais, ao ingressarem no serviço, conheçam em profundidade a realidade socioambiental dos usuários do SUS.
O cenário da região Amazônica possibilita levar os discentes às comunidades ribeirinhas, quilombolas, campesinas, etc., tornando-se imprescindível para a formação daqueles futuros profissionais. Desde 2015, ano em que o ISCO instituiu o BIS como percurso comum aos cursos, já passaram várias turmas, por diversas comunidades na região metropolitana de Santarém-PA.
Desde populações urbanas, à comunidades quilombolas dentro da cidade, passando por populações rurais afastadas do centro da cidade.
Inicia-se o IBR I com alguns encontros em sala com as turmas devidamente matriculadas, que geralmente costumam ser duas, uma no turno integral e outra no período noturno. Neste primeiro contato participam apenas docentes e discentes. A ideia é apresentar às turmas qual a proposta do componente curricular em tela, e demonstrar que nele as turmas irão a campo conhecer comunidades da região. O momento é sempre marcado por grande euforia, uma vez que o IBR é praticamente o único componente nos primeiros semestres de formação que possibilita que saiam dos limites internos da universidade e entrem em contato com o restante da sociedade.
É ainda nesse momento que o docente responsável pela turma, geralmente abre espaço para que a turma debata sobre qual território querem desenvolver as quatro etapas do componente IBR. Isto porque, cabe destacar, via de regra, há discentes provenientes de territórios socialmente vulneráveis e, muitas vezes, manifestam interesse que as atividades sejam desenvolvidas em seus respectivos territórios.
Ainda nos primeiros encontros, com conteúdo "teórico", intenciona-se disponibilizar elementos da metodologia da investigação qualitativa para que cada futuro profissional de saúde esteja apto a ir a campo bem instruído a conseguir estabelecer vínculos com os comunitários da área escolhida.
2.2 Componente Curricular IBR II
No componente curricular IBR II, os discentes têm por objetivo central a aprendizagem de elementos da metodologia da investigação qualitativa para realizar um diagnóstico local, utilizando-se de marcadores sociais do processo saúde-doença, bem como indicadores demográficos, sociais e de saúde. São realizadas visitas de campo com intuito de mapear o território das comunidades, como por exemplo, os espaços sociais existentes na comunidade (escolas, igrejas, unidades de saúde, associações etc). Todo este processo tem como ponto central a continuidade do trabalho desenvolvido no componente do IBR I. São utilizados elementos da investigação qualitativa, como observação, construção de roteiros, entrevistas, e o método etnográfico para registros de informação e escuta qualificada com a co-produção de dados sobre a comunidade.
2.3 Componente Curricular IBR III
Durante o componente curricular IBR III, utiliza-se como suporte as perspectivas de introdução a noções do campo da política pública em saúde, do planejamento normativo, e momentos do planejamento estratégico situacional, além de elementos da metodologia da investigação qualitativa para a construção de noções de território e local de atuação.
Neste componente, os estudantes retornam a comunidade e realizam junto às famílias e lideranças das comunidades: um planejamento participativo para uma possível intervenção social em saúde. Todo este processo tem como ponto central a continuidade do trabalho desenvolvido no componente do IBR II.
2.4 Componente Curricular IBR IV
E por fim, no componente curricular IBR IV, com o intuito de finalizar o ciclo do componente interdisciplinar de interação na base real, o processo de ensino-aprendizagem segue para a efetivação dos projetos de intervenção na comunidade desenvolvidos em IBR III, unindo o ensino do conhecimento sobre a metodologia da investigação qualitativa e a prática de campo, tendo este como finalidade, a diminuição das iniquidades sociais e a promoção da saúde. A execução das propostas de interação na base real envolve atores sociais diversos das comunidades e retrata as necessidades que foram identificadas e priorizadas de forma compartilhada por todos. Os espaços de intervenção são aqueles presentes na própria comunidade, como por exemplo, centro comunitários, quadras de esportes, sedes de associações de bairro, escolas, unidades básicas de saúde e etc.
Desde 2016, as disciplinas de IBR vem sendo desenvolvidas na universidade, abrindo um leque de experiências em comunidades de áreas urbanas, rurais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, agregando aprendizados que ultrapassam o campo conceitual para alcançar o escopo da realidade dos territórios do contexto Amazônico, que vivenciam o acesso a serviços de saúde e educação de forma distinta em decorrência de barreiras geográficas, tecnológicas e de comunicação.
O componente curricular IBR, em seus quatro módulos, ganha importância, pois é a ferramenta que possibilita que os educandos entrem em contato direto com a realidade social à sua volta, principalmente visando a conhecer as pessoas que habitam territórios específicos, pois são os principais demandantes dos serviços do SUS.
Para esse trabalho será feito o detalhamento do uso da metodologia da investigação qualitava para formação em saúde, exposto nos resultados através de quatro pontos: (I) Caminhos possíveis para estimular o conhecimento da metodologia da investigação qualitativa e o uso de seus elementos no ensino e na prática de campo em saúde a partir da interação na base real, considerando as particularidades socioculturais do cenário Amazônico do Oeste do Pará;
(II) Práticas de ensino e extensão em comunidades tradicionais da Amazônia brasileira, no Oeste do Pará; (III) “O olhar, o ouvir e o escrever” enquanto elementos da metodologia da investigação qualitativa para aproximação de temáticas na área da formação em saúde na Amazônia brasileira: tarefa de compreensão da realidade social e reflexão das problemáticas inerentes ao campo de atuação; e (IV) O uso do planejamento participativo na compreensão do território: o levantamento das demandas da comunidade junto às famílias e demais atores sociais (profissionais da saúde e lideranças comunitárias) para desenvolvimento de uma atividade de intervenção social.
3. Resultados e Discussão
3.1 Caminhos possíveis para estimular o conhecimento da metodologia da investigação qualitava e o uso de seus elementos no ensino e na prática de campo em saúde
As atividades desenvolvidas no componente curricular IBR possibilitaram aos discentes e docentes, uma aproximação com a dimensão prática da formação em saúde, através do uso de ferramentas conceituais e contextuais, como: a observação, a escuta qualificada, a formação de vínculo, a humanização, a identificação de fatores condicionantes e determinantes em saúde, o reconhecimento de aspectos culturais, como a diversidade étnico e linguística, em cenários de desigualdade socioeconômica que coabitam nesses territórios, espaços urbanos e rurais, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. As referidas ferramentas foram possibilitadas na interação dos educandos nas comunidades visitadas durante a implementação do componente IBR.
No primeiro ano, desenvolveu-se as habilidades de observação e escrita e no segundo ano aquelas voltadas para contato com a realidade, momento em que os estudantes e a comunidade constroem juntos um plano de identificação de necessidades, priorização de demandas e estratégias para intervenções. As experiências vivenciadas nessas comunidades da Amazônia brasileira, descortinam a multiplicidade de formas de se viver de forma saudável e de se fazer saúde e permite um campo amplo para o ensino qualitativo em saúde.
As atividades desenvolvidas em todos os módulos de IBR demonstram a necessidade de inserção dos diversos atores sociais como protagonistas nas estratégias de promoção e prevenção da saúde para pensar nos mecanismos de desenvolver práticas pedagógicas e de se fazer saúde e educação com esses territórios e não para esses territórios, requerendo estratégias de inserção, resgate de autonomia e de identidade, para propor atividades que possam ser incorporadas no cotidiano dos moradores e façam sentido para os alunos.
Dessa maneira, o componente curricular IBR permitiu que os discentes consigam articular com a prática (na realidade social) a necessidade das políticas públicas enquanto ferramenta de organização social e econômica.
As políticas públicas compreendem os instrumentos legais para a garantia de direitos, entretanto, entre a estruturação das políticas em âmbito nacional e a implementação na esfera local, requer para a consolidação a inserção em diversos territórios quilombolas, periféricos, ribeirinho e até mesmo urbano, para que os educandos percebam que o SUS precisa se adequar às diversas realidades sociais que diferem de região para região, por exemplo.
As atividades desenvolvidas em IBR possibilitaram o desenvolvimento de um diagnóstico sobre a realidade local, sendo o resultado produzido ao longo das visitas às comunidades durante a implementação do IBR. Em cotejo com as demais disciplinas que focam na saúde coletiva, teve-se um panorama da realidade na qual está envolvida as comunidades, observando-se quais determinantes sociais estão implicados no contexto de cada um dos grupos e de posse de tal diagnóstico situacional, passou-se à elaboração de um Plano de Atuação/Intervenção.
O resultado do diagnóstico situacional local foi elaborado conjuntamente com gestores públicos e a comunidade implicada, protagonizada pelos discentes, na condição de facilitadores, na organização das ações de intervenção visando à solucionar o problema diagnosticado localmente durante o IBR. Dessa maneira, os gestores municipais e estaduais foram chamados a atuarem na resolução da problemática da comunidade visitada.
3.2 As práticas de ensino e extensão em comunidades tradicionais da Amazônia brasileira, no Oeste do Pará
A cidade de Santarém situada no Oeste do Pará, é rica em história, cultura, biodiversidade e diversidade de populações que permanecem em áreas ribeirinhas, quilombolas, rurais e indígenas, com acesso muitas vezes difícil a essas localidades, o que dificulta as atividades de ensino e de extensão, gerando uma carência de informações sobre áreas com realidades tão distinta. No entanto, buscando romper com essas barreiras geográficas presentes, a prática de ensino conjunta com a extensão busca na interação com a base real, no contexto Amazônico, chegar até essas comunidades por meio da universidade.
Compreender os diversos aspectos relacionados às práticas de ensino e extensão, implicou na abertura para o diálogo entre a universidade, as famílias e as comunidades, para se criar redes de enfrentamento das desigualdades e vulnerabilidades sociais e, sobretudo, manter um canal de comunicação para a troca de informação, experiências e estabelecimento de vínculos entre a universidade e a sociedade (Castanho, 2002). Já que o distanciamento entre a realidade vivenciada pelas comunidades com os conteúdos e informações ministrados nas instituições formadoras, pode dificultar o processo de aprendizagem (Bogdan e Biklen, 1997).
Ainda que a informação não seja salvadora, existe a necessidade de compreender a forma de viver de grupos específicos e nesse sentido, o espaço de formação da universidade e seus atores, assim como a família, colocam-se como estratégicos para uma educação que possa ser incorporada no dia a dia de comunidades tradicionais da Amazônia brasileira (Almeida et al., 2019).
No processo de ensino-aprendizagem há a necessidade de reconhecer que por vezes existe uma limitação na compreensão dos aspectos individuais e sociais dos estudantes, implicando em negligenciar as experiências desses sujeitos, abordando conteúdos puramente de forma fragmentada, sem considerar o contexto de inserção, os significados para os indivíduos e propondo metodologias e ou atividades alheias às percepções e necessidades do público-alvo a que se destina (Cavalcante et al., 2011).
Há a necessidade transversal de formação em saúde, para o uso da metodologia da investigação qualitativa, de modo que qualifique o conhecimento e prática desenvolvidas em todo o processo formativo universitário.
Nesse sentido, o ensino e a extensão com estudantes de comunidades tradicionais, precisou reconhecer o conhecimento da metodologia da investigação qualitativa, partindo também das experiências vivenciadas pelos sujeitos, visto que uma das expectativas de quem vivencia o processo de aprendizagem é de se reconhecer de alguma forma naquele espaço, seja nas falas, imagens ou exemplos, necessitando para isso de uma abordagem para além dos conteúdos curriculares e das informações contidas em artigos ou Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), passando pela oportunidade em esclarecer as dúvidas mais gerais e de ouvir experiências vivenciadas por outras pessoas que não seus pares.
Essas ferramentas, possibilitaram a ampliação do diálogo das estratégias de ensino em contextos de desigualdades e diversidade sociocultural, partindo como ponto preliminar, olhar para além dos parâmetros avaliativos já estabelecidos, questionando como as práticas educativas estão ocorrendo, para que estas possam deixar de ser estruturada para o público e possam a ser construída com o público, uma vez que o contexto educacional contemporâneo exige o desenvolvimento de experiências pedagógicas diversificadas a conjuntura social que se está inserido.
Os processos educativos com abordagens da metodologia da investigação qualitativa estimulam a integração e participação, buscando contribuir para que os sujeitos se reconheçam como agentes do processo, podendo ser incorporados por diferentes níveis da sociedade com articulação interdisciplinar, com conteúdo a ser aprendido se relacionando com a vida do aprendiz de maneira que faça sentido para ele, com propostas de ensino que reconheça o estudante com suas particularidades locais, sociais, a partir de seus processos intelectuais, afetivos e culturais, já que o entendimento sobre cada conteúdo, dependerá das representações que os sujeitos fazem a partir da sua vivência social (DaRosa et al., 2011).
Assim, uma variedade de condições, foram desenvolvidas ao longo dos anos, desde ações em espaços sociais como escolas, igrejas, centros comunitários, conselhos de saúde, fóruns, até ações em territórios quilombolas e áreas ribeirinhas, algumas vezes por intermédio da embarcação fluvial móvel Abaré, revelando a necessidade de rever as formas tradicionais de fazer educação.
A rede de relações estruturada através de IBR, fomenta parcerias no campo da educação, saúde, assistência social, direito, entre outras e visibiliza discussões sobre a necessidade de conhecimento dos territórios, do processo de adoecimento e cura de comunidades tradicionais e da relevância de disponibilizar materiais educativos e de informação que não são como receitas prontas que irão trazer instruções de como viver, mas, podem ser ferramentas para impulsionar o pensamento crítico e reflexivo e diminuir abismos sociais potencializados por fragilidades de localização geográfica, de comunicação e tecnologia.
O ensino com o uso dos elementos da metodologia da investigação qualitativa considerou as particularidades regionais, reconheceu as diferenças, permitiu a valorização do saber popular e da escrita da própria narrativa, da capacidade de decidir, respeitando a identidade de cada discentes e das comunidades, fazendo com que o conteúdo tenha significado, uma vez que, passa a ser reconstruído a partir de sua visão de mundo, com uma construção compartilhada entre sujeitos, aproximando de uma educação significativa, autônoma e reflexiva e se afastando de um ensino verticalizado e centrados na transmissão de informação.
3.3 “O olhar, o ouvir e o escrever” enquanto elementos da metodologia da investigação qualitativa para aproximação de temáticas na área da formação em saúde na Amazônia brasileira: tarefa de compreensão da realidade social e reflexão das problemáticas inerentes ao campo de atuação
No que tange aos elementos da metodologia da investigação qualitativa utilizadas no ensino em saúde, destacam-se aquelas proporcionadas pelas ciências humanas e sociais, destacadamente a antropologia, a sociologia, a economia e o direito. Referimo-nos a elementos como a observação in loco da realidade social, usando, principalmente os sentidos, tais como a visão e a audição, no que ficou consagrado como ferramentas próprias do “trabalho do antropólogo” (Oliveira, 1996), “o olhar, o ouvir e o escrever”. Dessa maneira, os elementos em questão estão dentro de duas categorias: à objetiva que faz parte o olhar e o ouvir e a subjetiva que contempla o escrever. Esses elementos foram usados como ferramentas para obter informações sobre a realidade a qual se reflete, percorrendo um caminho do método etnográfico que é capaz de descrever e caracterizar cenários, cenas, hábitos, identidades, culturas e religiosidades, modos de produzir e viver no mundo a partir de diversas cosmovisões (Mauss, 2017; Malinowski, 2018; Geertz, 1989).
O uso do elemento observacional “olhar” foi o ponto de partida para a vivência e observação em campo da realidade, buscando a caracterização das problemáticas em saúde experimentadas pelos diversos. Certamente, apesar de muito valiosa, apenas a observação visual limita a aquisição de informações sobre a realidade observada, sendo necessário além de olhar, agregar outros elementos que contribuem no processo de observação da realidade, como o ouvir, ferramenta observacional imprescindível no processo de reflexão sobre a realidade, sobre a história da comunidade e os múltiplos autores que formam esses espaços, aproximando os discentes da diversidade de perspectivas dos comunitários.
E por fim, o escrever, enquanto elemento teorizador, reflexivo e prático, foi a ferramenta que sistematizou os achados organizando-os para destacar as necessidades apontadas pelos comunitários e não somente as percepções de estudantes e docentes.
3.4 O uso do planejamento participativo na compreensão do território: o levantamento das demandas da comunidade junto às famílias e demais atores sociais (profissionais da saúde e lideranças comunitárias) para desenvolvimento de uma atividade de intervenção social
O Planejamento Estratégico Situacional (PES) é uma metodologia desenvolvida pelo economista chileno Carlos Matus, na década de 70. No PES quatro momentos se configuram como etapas importantes: 1. Explicativo em que se identifica e seleciona os problemas, explicando se cada um deles; 2. Normativo onde se faz um plano para enfrentar os problemas identificados na fase anterior; 3. Estratégico em que se analisa o que pode ser feito para a viabilidade política e os caminhos estratégicos a serem tomados e 4. Tático-Operacional momento que se coloca em prática os planos, monitorando cada ação, com proposições às mudanças (Matus, 1993).
O componente curricular IBR desenvolvido em comunidades de Santarém, região da Amazônia brasileira, apresenta como um de seus objetivos, propiciar aos estudantes a realização de um projeto de intervenção social capaz de elucidar as problemáticas e contradições presentes no cotidiano da sociedade. Para isso, são realizadas oficinas com o objetivo de se levantar os problemas e as demandas a partir da ótica dos comunitários fundamentado na metodologia da investigação qualitativa e do PES. É importante ressaltar que a participação da população para identificação dos problemas é elemento essencial para o sucesso de todo planejamento, para isso são realizadas mobilizações próximas ao evento a fim de escolher uma data comum aos moradores e acadêmicos para realização das oficinas que normalmente acontecem na sede das associações de moradores ou outros espaços comunitários.
As oficinas para PES, em geral, são realizadas pelos discentes do BIS conjuntamente com os docentes. Em um primeiro momento de contato com os comunitários, explica-se sobre os objetivos propostos e após verifica-se se ainda existem obstáculos de comunicação entre os discentes/docentes e os moradores das comunidades. Normalmente, a equipe de IBR, utiliza uma dinâmica para promover a descontração e aproximar os participantes presentes na oficina, como por exemplo, atividades de alongamento corporal e uma reflexão sobre a dinâmica, como o “O Poder da Palavra” (é colocado uma música e uma caixinha passa de mão em mão e quando a música para a pessoa que está com a caixa nas mãos faz o uso da palavra e dessa forma inicia-se a discussão).
Em momento posterior, os discentes e docentes do IBR ao perceberem que os participantes encontram-se confortáveis para o momento da oficina, inicia-se a metodologia do PES para evidenciar o “problema” de maior relevância sob a ótica dos comunitários. Para isso, pede-se que os comunitários listem os problemas na comunidade ao qual faz parte e que interferem na sua qualidade de vida e saúde. Os problemas listados pelos moradores são anotados em uma cartolina (ou outro painel) pelos discentes. Logo em seguida, a equipe explica aos moradores a necessidade de priorizar um problema, seguindo os critérios da magnitude, transcendência, vulnerabilidade, urgência e factibilidade.
A partir do problema levantado, realiza-se a construção do Diagrama de Ishikawa, buscando, sob o ponto de vista dos comunitários, as principais causas e consequências que levam àquele problema elencado a acontecer. Após encontrar essas informações, para tentar minimizar ou solucionar o problema priorizado é então trabalhado um plano operacional. Como exemplo, podemos citar o plano operacional realizado pelos discentes e os docentes em uma comunidade de Santarém, Estado do Pará (interior da Amazônia brasileira) para o problema elencado de “Falta de segurança pública”, “Violência”, “Falta de Acesso aos Serviços de Saúde” foram realizadas ações educativas com palestras e oficinas abordando os principais problemas e vulnerabilidades que afetam a vida diária dos moradores, enfocando-se na construção de caminhos para o enfrentamento e resolução coletiva dos problemas identificados.
4. Considerações Finais
Existe uma desarticulação entre ensino e a prática, quando está em cena o uso da metodologia da investigação qualitativa e sua aplicabilidade nos territórios, principalmente em cenários desafiadores, como o Amazônico, por apresentar diversas características territoriais, culturais, sociais, de distribuição desigual de renda e hábitos de consumo que diferenciam das demais regiões brasileiras. Por vezes, a formação em saúde apoia-se somente nas questões de gestão, avaliação e análises epidemiológicas que estão ancoradas nas tentativas de corresponder às políticas públicas da área e por vezes não conseguem abarcar as demandas complexas e as contradições presentes nos diferentes cenários regionais. Além de não pôr em prática a compreensão dos seus limites, e expandir o campo de ensino, pesquisa e extensão para as ciências humanas e sociais, com o uso da metodologia da investigação qualitativa para compreensão e resolução dos problemas sociais.
O uso do conhecimento e dos elementos de prática da metodologia da investigação qualitativa no ensino e na extensão, para o levantamento de informações de comunidades da Amazónia Brasileira, é uma forma de tornar evidente a identidade dessas comunidades, sendo uma forma para visibilizar o acesso a bens e serviços essenciais, como: saúde, educação, saneamento básico, moradia, alimentação, renda, lazer, transporte, comunicação em contexto de desigualdade socioeconômica. Assim, apesar de termos a consciência metodológica das limitações de alguns processos desenvolvidos, acredita-se que a consolidação do uso dessa metodologia da investigação qualitativa pode potencializar a discussão sobre as vulnerabilidades em saúde, que muitas vezes são vivenciadas de forma cumulativa.
O uso da metodologia da investigação qualitativa para as práticas de ensino em saúde em cenários de múltiplas vulnerabilidades, como o cenário Amazônico, é capaz de enfrentar paradigmas que estão além do acesso a informação, é a possibilidade de discutir as condições de viver dessas populações e a forma que a universidade precisa preparar as pessoas para fazer saúde para a realidade desses territórios.
Dessa forma, pensar a formação em saúde na Amazônia, requer a consideração de todas as suas particularidades. O conhecimento da metodologia da investigação qualitativa pode subsidiar o processo de ensino-aprendizagem articulado à prática de campo, visando a construção de novos caminhos que ultrapassam as fronteiras disciplinares do campo da saúde coletiva.