1. Introdução
As lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho (LMELT) constituem um dos principais problemas de Saúde Ocupacional, sendo a Enfermagem o grupo profissional com maior incidência e prevalência de lesões ocorridas ligadas ao trabalho (Serranheira & Uva, 2015; Thinkhamrop et al., 2017).
O aparecimento e/ou agravamento das LMELT deve-se ao fato de os enfermeiros, na sua prática clínica estarem expostos a diversos fatores de risco, designadamente: o manuseamento e movimentação de cargas; mobilização, transferência e transporte de utentes; a aplicação de força em sobrecarga; a adoção e manutenção de posturas inadequadas por longos períodos; posições estáticas ou repetidas no limite articular; movimentos e gestos repetitivos (Luan et al., 2018; Presado et al., 2021; Thinkhamrop et al., 2017).
Os Enfermeiros Obstetras, pela especificidade da sua atividade profissional, nomeadamente em Bloco de Partos, estão sujeitos a riscos adicionais: associados aos equipamentos e materiais (características ergonómicas, manutenção do equipamento funcional e ausência de equipamentos e materiais); fatores de risco associados à parturiente (o comportamento da parturiente e o seu posicionamento em função do tipo de parto) e fatores associados à especificidade da tarefa (mobilizações; cuidados à mãe; cuidados ao recém-nascido e o trabalho em equipa (Baixinho et al., 2016a, 2016b; Okuyucu et al., 2019; Presado et al., 2015). A prática dos Enfermeiros Obstetras, no Bloco de Partos, é complexa, principalmente na assistência ao parto em posições horizontal ou verticais: têm em simultâneo vários focos de atenção, envolvendo posturas que requerem alinhamentos não naturais do corpo e uma frequente instabilidade postural na posição de trabalho, com movimentos rápidos que impõem a passagem de uma posição estática para uma posição dinâmica, a aplicar força e muitas vezes em sobrecarga, além das suas capacidades individuais. O desconforto músculo-esquelético destes profissionais está associado à adoção de posturas incorretas e movimentos inadequados, aumentando o stress mecânico local, nos músculos, ligamentos e articulações, o estado de fadiga, os erros, os acidentes e o risco de LMELT, com repercussões na sua saúde e qualidade de vida (Mineiro, Presado & Cardoso, 2019; Sousa et al., 2019; Sousa & Presado, 2018; Sousa & Presado, 2020).
O impacto da LMELT na prática dos Enfermeiros é evidente, demonstrado pelo presenteísmo, percebido como o exercício de funções no local de trabalho em condições de saúde precárias e com um desempenho abaixo do esperado, resultando em diminuição da produtividade e da qualidade dos cuidados prestados e também com elevado impacto económico no tratamento das lesões e no aumento do absentismo laboral (Aysun & Bayram, 2017; Luan et al., 2018; Rainbow & Steege, 2017).
Considerando os estudantes do segundo ciclo de formação do ensino superior, enfermeiros a frequentar o Curso de Mestrado em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (CMESMO), as lesões músculo-esqueléticas assumem uma dupla importância. Se, por um lado, como enfermeiros, as LMELT têm um forte impacto na sua vida profissional, por outro, como estudantes, nesta área específica em enfermagem, acresce-se o risco nas novas funções e intervenções que irão realizar.
Neste contexto, a formação em enfermagem apresenta-se como um momento privilegiado para a aquisição de conhecimentos e reflexão sobre alguns comportamentos dos estudantes, no âmbito de educação para a saúde.
O ensino e treino em ambiente controlado de conteúdos relacionados com as LMELT constituem estratégias de intervenção de enfermagem importantes para a prevenção das LMELT (Sousa et al., 2023). É possível intervir, com recurso a sessões de prática simulada, sobre as posturas que os estudantes adotam, em segurança e em ambiente controlado bem como, sobre os fatores que dificultam a adoção dos princípios da biomecânica (Presado et al., 2018). É importante a aquisição de equipamento e material com características ergonómicas para a prática simulada; trabalhar com os estudantes o planeamento da atividade com a organização do espaço de trabalho e os movimentos e posturas durante as diferentes tarefas, de forma a reduzir as exigências biomecânicas, promovendo a adoção de posturas adequadas (Sousa et al., 2023). A utilização dos princípios da biomecânica protege o sistema músculo-esquelético, previne a adoção de posturas incorretas e movimentos inadequados, reduz o stress mecânico local, nos músculos, ligamentos e articulações, o estado de fadiga, os erros, os acidentes e o risco de LMELT (Baixinho et al., 2016a, 2016b; Sousa et al., 2023). É também importante a realização de autoscopias, com a visualização das filmagens das práticas, para a consciencialização das posturas adotadas e dos vários fatores de risco intervenientes (Baixinho et al., 2016a; Presado et al., 2017).
Ao se analisar a forma de antecipar os problemas/consequências que advêm das práticas que configuram um risco acrescido de LMELT, assim como a aprendizagem de gestos profissionais ou ações para diminuir os riscos de LMELT, estar-se-á a contribuir para a prevenção de LMELT nos futuros Enfermeiros Especialistas de Saúde Materna e Obstetrícia (EESMO) (Okuyucu et al., 2021). A consciencialização e a capacitação dos estudantes para a problemática das LMELT são a melhor forma de as prevenir e evitar custos individuais, profissionais, organizacionais e sociais, no futuro.
Embora exista investigação sobre as lesões músculo-esqueléticas nos enfermeiros, na formação de enfermagem são ainda parcos os estudos que abordam esta temática (Abeldu & Offei, 2015; Cardoso et al. 2020; Nunes, Cruz & Queirós, 2016; Presado et al., 2017, 2019). A preocupação com a saúde, segurança e a formação dos estudantes do CMESMO e dos futuros EESMO faz com que as LMELT sejam um problema de saúde pública que necessita de ser estudado, investigado e analisado.
Esta investigação tem como objetivos: analisar a perceção dos estudantes do CMESMO sobre o contributo da formação para a prevenção do risco de LMELT na sua prática clínica e identificar as estratégias de prevenção de LMELT adotadas, decorrente formação inserida no CMESMO da Unidade Curricular (UC) de Opção: Biomecânica no Cuidar do Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstetrícia (UC-BCEESMO).
2. Método
A procura do fruto das experiências de ensino e de aprendizagem que permitam estar em consonância com a realidade do contexto clínico e fomentar o pensamento crítico dos estudantes, conduziu à realização deste estudo de abordagem qualitativa, descritivo e exploratório sendo a recolha de dados através de um Focus Group (FG). No conhecimento compreensivo, a interpretação assume um elemento fulcral na investigação (Gonçalves et al., 2021).
Esta estratégia de investigação de ação participativa é cada vez mais valorizada na área da saúde e na formação em enfermagem, pelo desenvolvimento de competências de comunicação e de intervenção. Deste modo, emergiu a nossa questão de investigação: Qual a perceção dos estudantes sobre os contributos da formação na prevenção do risco de LMELT na sua prática clínica? Foi solicitado ao grupo de estudantes que refletissem na realidade vivenciada na sua prática clínica em contexto de estágio no Bloco de Partos, relativamente aos contributos da formação na UC Biomecânica na prevenção do risco de LMELT. Nesta análise, é impossível distinguir opiniões, perceções e significados individuais desagregados do seu contexto (Baixinho, Presado & Ribeiro, 2019).
A opção pelo FG deveu-se à sua aplicabilidade em investigação qualitativa e por permitir obter um conhecimento mais profundo da experiência dos participantes (Tran et al., 2021). A interação entre os participantes e a produção de uma riqueza de informação (Oliveira et al., 2022), foi outro dos aspetos tidos em conta na seleção. O uso de métodos virtuais, também um recurso utilizado em investigação qualitativa, efetiva a inclusão de participantes cuja participação poderia de outra forma ser restrita pela distância, tempo ou barreiras sociais (Tran et al., 2021), motivo que nos levou à modalidade online para aceder à participação de intervenientes de regiões geográficas dispersas e para melhorar a variação da amostra (Daniels et al., 2019).
Relativamente ao software utilizado na concretização do FG, atendemos a um que fornecesse uma comunicação áudio e visual fiável, apresentasse segurança adequada para a realização dos grupos, fosse seguro em tempo real e sem encargos financeiros para os participantes (Daniel et al., 2019), tendo sido escolhido software Microsoft Teams©, por ser uma plataforma disponível na escola. O FG foi realizado de forma síncrona possibilitando a interação em tempo real, bem como a avaliação da linguagem corporal, os tons de voz e as expressões faciais para uma avaliação mais rica dos dados (Richard et al., 2021).
A amostra, de conveniência, foi constituída inicialmente por 12 estudantes convidados do CMESMO que após explicação e esclarecimento de dúvidas sobre o estudo, concordaram em participar. Destes, quatro estudantes participaram no FG online, em novembro de 2022, sendo a principal razão de recusa na restante amostra, a indisponibilidade de tempo. Ao considerar as características metodológicas relacionadas com recrutamento de participantes, estudos mostram a utilização de grupos mais pequenos para todos os tipos de estudos de FG virtuais (Tran et al., 2021), em vez de seis até doze participante, na modalidade presencial (Krueger & Casey, 2014). Facto que subsidiou a realização deste FG composto por quatro participantes de modo a possibilitar compreender profundamente as experiências dos estudantes da formação pós-graduada (Cheon & You, 2022).
Os critérios de seleção dos estudantes foram: a) terem frequentado a UC BCEESMO e, b) terem concluído o estágio em Bloco de Partos. Todos os participantes eram do sexo feminino e a idade variou entre os 28 anos e 38 anos com uma média de 31,75 anos. O tempo profissional como enfermeiro variou entre seis anos e dez anos (média de oito anos) e pertenciam às regiões de Faro, Horta, Lisboa e Setúbal.
O FG foi conduzido por dois moderadores, investigadores do projeto e docentes da UC BCEESMO, de modo a gerir as questões e a encorajar os participantes a elaborar respostas, bem como monitorizando o grupo (Tran et al., 2021). A sessão teve uma duração de cinquenta minutos e foi gravada em áudio e vídeo, através da plataforma Microsoft Teams ©. Foi também usada outra gravação de áudio como garantia de recolha de todas as informações produzidas (Barbour, 2018).
Houve lugar à transcrição integral das gravações com a validação dos dois moderadores de modo assegurar a tradução fiel do que foi dito pelos participantes. Os discursos foram transcritos para o software WebQDA®, posteriormente codificados, categorizados e interpretados mediante um raciocínio indutivo e comparações constantes dos discursos, de acordo com a técnica de análise de conteúdo (Minayo, 2014).
Depois de transcritos os discursos, procedeu-se à análise que envolveu a organização sistematizada dos discursos dos participantes em que os dados foram agregados em unidades temáticas proporcionando uma descrição exata das caraterísticas pertinentes do conteúdo (Bardin, 2016). A constituição de um corpus implicou atender à representatividade, exaustividade, homogeneidade e relevância dos documentos disponíveis em relação ao objeto de estudo (Bardin, 2016). Os dados foram submetidos a análise de conteúdo (Bardin, 2016), suportada pelo software WebQDA® (Costa & Amado, 2018), por possibilitar a partilha de informação entre investigadores. Este software permite também a análise de dados não estruturados, como a gravação fílmica (Freitas et al., 2017), a visualização repetitiva (possibilidade de rever ou congelar a imagem) e o distanciamento emotivo para a análise reflexiva do material (Garcez, Duarte & Eisenberg, 2011).
Apesar dos programas de análise qualitativa serem uma ferramenta facilitadora no processo de tratamento e análise de dados, não substituem a codificação humana (Fornari & Fonseca, 2020). Neste sentido, dois investigadores asseguraram a atribuição dos códigos aos discursos, sendo validada pela restante equipa de investigadores, atendendo ao carácter colaborativo do webQDA® (Costa & Amado, 2018).
A Comissão de Ética da ESEL aprovou previamente a investigação e foi solicitado aos estudantes o consentimento informado. A confidencialidade foi assegurada tendo sido garantido o anonimato dos participantes, os nomes dos estudantes foram codificados e identificados com um código (A). Apenas a equipa de investigadores teve acesso aos dados.
3. Resultados
Dos textos produzidos pelos participantes com base nos registos do FG, foi realizada a análise qualitativa recorrendo ao software WebQDA®. Numa metodologia de análise de conteúdo, congregaram-se as categorias e subcategorias conforme a Tabela 1.
Os resultados permitiram a definição de quatro categorias fundamentais: os contributos para a consciencialização dos fatores de risco, as dificuldades na adoção dos princípios da biomecânica, as estratégias implementas em estágio e finalmente os desafios e/ou sugestões. Abaixo discriminam-se as subcategorias em cada uma das categorias, exemplificando textualmente a relevância da análise.
3.1 Categoria contributos para a consciencialização dos fatores de risco
Nesta categoria foram acomodadas subcategorias em que fosse patente o impacto da consciencialização no contexto laboral para aqueles que são os vários fatores de risco inerentes à prática de cuidados por parte do EESMO. Desta forma, a organização do pensamento (segunda subcategoria com maior expressão, n=26) tornou-se uma vertente importante na sistematização da prática do Enfermeiro: “Ajudou me operacionalizar e organizar (…) a minha posição em relação à utente e em relação ao material” (A1). Sendo aqui também evidente o contributo da formação avançada para esta consciencialização e o impacto das atividades formativas e discussão de casos: em que a preocupação com os fatores de risco seria “(…) a última coisa em que eu iria pensar se não tivesse sido desperta previamente no contexto académico para esta questão.” (A2). Seguidamente enquadra-se a equipa multidisciplinar como fator relevante para esta consciencialização especialmente com os Enfermeiros Orientadores “(…) em que houve necessidade também de comentar muitas vezes com ele, de organizar melhor o espaço físico para eu me sentir melhor também no final do meu turno de estágio (…) (A2).
A questão relacionada com a postura, e aqui enquadra-se especificamente a aplicação dos princípios da biomecânica, teve um impacto positivo para o ajuste no decorrer do parto bem como da gestão de todo o ambiente envolvente em que um dos participantes refere que no “(…) início no estágio da sala de partos eu dava por mim toda tensa, tinha o meu corpo todo rígido, os meus nervos e sentia no final de parte daquela interação que fosse, sair de lá, super exausta com as dores, as lombalgias (…)” (A3) bem como “(…) ter consciência do meu corpo de respirar fundo sem se aperceber e relaxar naquele momento e também relaxar-me a mim própria” (A3). Finalmente a última subcategoria desta dimensão enquadra-se no ambiente, ou seja, toda envolvência de recursos e de condições de trabalho que condicionam a execução dos procedimentos bem como a prevenção das LMELT sendo o garante da segurança do enfermeiro e da parturiente em que os participantes reforçaram a importância de “(…) tentar trazer para o pé de nós todo o material que estamos a prever que que vai ser necessário para também não estar a fazer muitas deslocações para dentro e fora da unidade da utente (…)” (A1) e “(…) passei a organizar a mesa, não só pela necessidade que tinha relativamente aos instrumentos que iria utilizar (…).” (A4).
3.2 Categoria dificuldades na adoção dos princípios da biomecânica
Esta categoria enquadrada as questões relacionadas com os princípios que podem condicionar a execução com segurança dos cuidados prestados. No que concerne às parturientes em posições verticalizadas, esta foi uma condicionante na prestação de cuidados sendo que foi difícil aplicar estes princípios dado que “(…) não foi possível, que era para dar liberdade de movimento à mulher e tudo mais.” (A2) bem como um dos participantes relata que “(…) acabei por ter muito em linha de conta na atuação em si, mais direcionada com a parturiente.” (A4). A posição do EESMO é o item mais referido (n=38) elencando em muitos momentos a preocupação em manter a segurança do utente em detrimento do enfermeiro, ou seja, “(…) fica sempre em segunda linha e nós acabamos por chegar assim ao fim do turno, muitas vezes com algumas mazelas ou um cansaço nos ombros ou nas costas (…)” (A4) e “(…) a tentar dar a liberdade de movimentos à mulher. Não conseguia proteger-me.” (A2). Finalmente nesta categoria, surge a subcategoria relativamente ao equipamento, tendo em conta o equipamento utilizado, as características e disponibilidade, e.g. bancos, escadotes, cujo enquadramento por “(…) inexistência de certos recursos nos une nos locais onde exercemos a nossa prestação de cuidados também pode ser limitativa.” (A3) bem como a dificuldade em garantir a perceção completa do ambiente dado que “não dá para ter consciência de todo o ambiente.” (A1).
3.3 Categoria Estratégias implementadas em estágio
Nesta categoria foram elencadas várias questões que levaram ao ajuste de práticas no decorrer da prática clínica, sendo a reflexão em contexto de equipa multidisciplinar uma das mais importantes, na medida em que permitiu “(…) conversar sobre o assunto, refletir sobre o assunto e haver uma consciencialização também nas equipas.” (A3) e “(…) não só [com] a equipa de enfermagem, mas também a própria equipa médica.” (A3) Já a adequação da postura foi também importante para a mudança de comportamentos, em que os participantes referiam que “(...) essa sensibilização, e eu notava a diferença nos dias em que eu tinha mais essa consciência, e mudava alguns comportamentos daqueles em que eu já me esquecia da minha postura de organizar o espaço ou não havia tempo e essa organização e eu no final do dia senti essa diferença.” (A3) Havia também lugar a uma tentativa de manter e sistematizar estes procedimentos em que “(…) sempre que possível nós aplicávamos as estratégias. Sempre que possível. Não, não ficava esquecida em nenhum momento!” (A2). Relativamente à adequação de materiais e equipamentos, foi reforçada a importância de ter estruturas, e infraestruturas, em boas condições para garantir a segurança dos procedimentos sendo que por vezes nem sempre havia esta adequação dado existirem “(…) hospitais muito envelhecidos, com infraestruturas completamente desadequadas (…)” (A1). No contexto de prestação direta existiram fatores importantes para o desempenho da função como por exemplo “(…) a parte da iluminação também. Eu acho que é importante e que também comecei logo a aprender a ajustar e a não me esquecer.” (A2) ou por exemplo material de apoio como bancos, em que um dos participantes referia que “(…) no meu turno ninguém pode tirar aquele banquinho dali porque eu preciso.” (A3).
3.4 Categoria Desafios/Sugestões
Os resultados permitiram a definição de quatro categorias fundamentais: os contributos para a consciencialização dos fatores de risco, as dificuldades na adoção dos princípios da biomecânica, as estratégias implementas em estágio e finalmente os desafios e/ou sugestões. Abaixo discriminam-se as subcategorias em cada uma das categorias, exemplificando textualmente a relevância da análise.
A última categoria elenca subcategorias vocacionadas para a melhoria contínua da qualidade e para aqueles que são os padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem que se esperam de um enfermeiro especialista, alicerçados em padrões formativos e de gestão dos cuidados, e que sejam promotores de boas práticas. A primeira subcategoria centra-se na importância da investigação, mas com a referência também à importância de esta ser disseminada e entendível pelos gestores nos vários contextos de saúde, ou seja, “(…) investigação sobre a incidência das LMELT nos profissionais, porque nós sabemos que os administradores, as chefias, eles funcionam e com números e (…) estudar a incidência destas lesões e quais as suas implicações na vida dos profissionais.” (A1) Contribuiu também como desafio a necessidade de investir na formação em serviço, para disseminar o conhecimento e garantir transversalidade nas boas práticas, valorizado pelos participantes em que referem que “(…) devemos estar realmente mais sensibilizados (…)” (A4) colocando também o ónus na sua própria responsabilidade levantada por outro participante em que sugere “(…) eu próprio abordar o assunto, talvez numa formação de serviço. Quem sabe. Enfim, acho que é um sítio onde podemos começar para já a ajudar.” (A4) com implicações conexas na dinâmica do serviço “(…) para além de aproveitar nas LMELT também iria ajudar muito na questão da comunicação entre equipa e na satisfação das pessoas.” (A3).
Ainda na questão da formação, mas agora mais direcionada para a formação do CMESMO, surge a necessidade da supervisão para garantir a continuidade nas boas práticas, sendo lançado o desafio de “(…) termos um perito que nos observasse nas posições que nós iremos adotar não é, em princípio, e que nos pudesse corrigir.” (A1) com um enquadramento vocacionado para a prática, ou seja, “(…) que posições concretas, ou esta questão da gestão do espaço, concretamente nas posições verticalizadas, por exemplo. Eu acho que seria importante abordar mais especificamente algo mais palpável.” (A3) A última subcategoria reforça também os desafios para a gestão e a necessidade de encarar as LMELT como um fator que pode ter um impacto não só para a saúde dos colaboradores pois “(…) as lesões podem ser até para a vida, não é? E a percentagem é grande, é que nos acaba por anular enquanto profissionais em algumas áreas (…)” (A4) mas também impacto financeiro para as organizações em que se coloca a questão de “não é só ver a apresentação dos números de incidência de elementos que isso muitas vezes se traduzem em absentismo, não é? Acho que poderá sensibilizar as administrações, não é?” (A1).
4. Discussão
Os achados deste estudo qualitativo reforçam o que a literatura descreve, no que concerne à incidência, prevalência, fatores de risco e dificuldades na adoção das medidas preventivas de lesões músculo-esqueléticas (Cardoso et al., 2020; Fernandes et al., 2018; Kanaskie & Snyder, 2018). Os participantes observam ainda que a especificidade da posição da parturiente durante a realização dos partos verticalizados introduz uma dificuldade acrescida na adoção dos princípios da biomecânica, que é pouco explorada na investigação internacional, que não se centra tanto na natureza da atividade destes especialistas, mas nos cuidados a pessoas idosas e dependentes (Fernandes et al., 2018; Sousa & Presado, 2018).
No que concerne ao equipamento, referem as suas características e até a sua disponibilidade como um fator de risco, o que corrobora os resultados de outros estudos na área da saúde, que constatam que, para além, da escassez de material para apoio na mobilização e transferência dos doentes, existe uma padronização dos mesmos, o que não permite atender às características antropométricas dos diferentes profissionais (Yang et al., 2021) e, por vezes, até da natureza da tarefa (Cardoso et al., 2020), contribuindo para execução de atividades em posições que implicam dorsiflexão e torção da coluna vertebral, com elevação de pesos acima do recomendado para as características físicas do profissional (Fernandes et al., 2018), com aumento do desconforto e da tensão muscular (Presado et al., 2015).
Na investigação realizada por Kanaskie e Snyder (2018) a análise qualitativa, de dois grupos focais, permitiu a identificação de três temas centrais: as barreiras ao uso de equipamentos para a mobilização das pessoas dependentes, o risco percebido e a coordenação dos cuidados. Neste estudo emerge, na análise de conteúdo, a importância da consciencialização dos fatores de risco, com a organização do pensamento e o suporte da equipa multidisciplinar a serem descritos como medidas majores para que o especialista integre no seu dia-a-dia medidas preventivas, que o permitam trabalhar em segurança, o que se cruza com o risco percebido e o desenvolvimento de estratégias para o controlar.
De salientar, que estes achados fornecem novo conhecimento sobre a complexidade da tomada de decisão dos profissionais e alerta para a importância de programas de prevenção com o envolvimento da equipa interprofissional (Kanaskie & Snyder, 2018; Cardoso et al., 2020; Vaismanadi et al., 2020). Como advogam Yang et al. (2021) os programas preventivos das LMELT, devem assentar na multidimensionalidade e no diagnóstico das necessidades especificas da população alvo, tais como: as caraterísticas laborais, o tipo de equipamentos ergonómicos existentes, o ambiente e a cultura organizacional implementada.
Apesar da evidência reforçar a necessidade de medidas múltiplas implementadas em simultâneo para o controlo deste problema, o que se verifica é que a maioria dos programas assentam em intervenções para a manipulação e mobilização de doentes (Sousa et al., 2013), ações de índole ergonómica (Marshall, Villeneuve, & Grenier, 2018), orientação psicossocial sobre a relação do trabalho (Becker, Angerer, & Mueller, 2017), intervenções de promoção e prevenção da saúde (Carr et al., 2016), exercícios (Ghadyani et al., 2017) e fisioterapia após o aparecimento de sintomatologia dorsolombar como as ciatalgias, tendinites, contracturas musculares, desconforto lombar (Sousa et al., 2023), entre outras. No entanto os autores advertem que a evidência sobre programas com intervenções isoladas é limitada (Sousa et al., 2023).
Conscientes que a melhoria da qualidade dos cuidados e a prevenção de erros práticos dependem da adesão dos enfermeiros aos princípios da segurança biomecânica recomendamos que estudos futuros explorem a relação entre a consciencialização, risco percebido e adoção de medidas preventivas individuais. Esta recomendação estende-se à compreensão de como a equipa e a cultura organizacional podem influenciar a tomada de decisão sobre os princípios da biomecânica.
Este estudo tem limitações relacionadas com o método e número de participantes, que não possibilitou a saturação das categorias na análise dos dados. A escolha intencional dos participantes e a experiência concreta em contexto clínico, bem como a interação entre moderadores e participantes pode ter influenciado a resposta para o que é socialmente aceite. Apesar das limitações este estudo exploratório responde ao objetivo proposto e abre possibilidade para o aprofundamento dos achados, com a realização de entrevistas semiestruturadas para uma maior compreensão do fenómeno em estudo. Apesar das limitações apresentadas, consideramos importante para o avanço do estado da arte na pesquisa qualitativa.
5. Considerações Finais
A especificidade da atividade profissional dos Enfermeiros Obstetras na sua prática clínica nomeadamente em Bloco de Partos, estão submetidos a fatores riscos adicionais que contribuem para o aparecimento e/ou agravamento das LMELT.
A realização deste estudo de abordagem qualitativa, descritivo e exploratório com recurso ao Focus Group, permitiu a compreensão das experiências de ensino e de aprendizagem incrementadas no pensamento crítico dos estudantes relativamente aos contributos da formação para a prevenção das LMELT na realidade dos contextos clínicos no exercício profissional dos EESMOS.
Dos resultados emergiram quatro categorias: contributos para a consciencialização dos fatores de risco; dificuldades na adoção dos princípios da biomecânica; as estratégias implementas em estágio e finalmente os desafios e/ou sugestões. Sobressaem as capacidades desenvolvidas na organização do pensamento e do ambiente facilitadores da adoção dos princípios da biomecânica, bem como a necessidade de formação ao longo da vida como estratégia de prevenção das LMELT e de gestão.
Este é um estudo que apresenta algumas limitações, no entanto, consideramos os resultados obtidos, como uma ferramenta relevante com implicações na formação e capacitação dos profissionais de saúde na adoção dos princípios da biomecânica para melhorar a qualidade de vida de quem cuida, pois temos de cuidar de quem cuida. Não obstante, parece imprescindível o alargamento desta investigação a mais participantes que não privilegiaram deste tipo de formação, preferencialmente nos próprios contextos de trabalho pois consideramos que poderiam trazer contributos relevantes.
Neste sentido, assinalamos os desafios que este estudo apresenta para a prática clínica, para a formação e para a investigação, especialmente para o incremento e desenvolvimento da investigação qualitativa cujo recurso suportado pelo software webQDA®, foi fundamental na compreensão e visualização da problemática em estudo.