1.Introdução
As ciências de caráter social e humanístico, tem se debruçado fortemente em compreender os aspectos da vida em sociedade e todas as nuances que essas relações ocasionam. Com a comunicação esse processo não é diferente, tendo em vista que a comunicação como a conhecemos na atualidade, ocupa espaço privilegiado na construção de relações equilibradas e saudáveis entre pessoas. Apesar de muitas vezes essa mesma comunicação ser utilizada de modo equivocado e inadequado, como por exemplo, a publicação de Fake News, que demonstra como a comunicação pode servir a diferentes interesses.
A propósito, Freire (1980, 1983) argumenta que o mundo humano é comunicação e a comunicação é comunicar-se em torno do significado, de modo que comunicação é diálogo, tornando o conceito de dialogidade (Marková, 2006; Buber, 2007), nomeadamente na educação, em uma referência mundial na construção do conhecimento.
Dito isso, nunca foi tão importante compreender o mundo social, para que seja possível dialogar, opinar, defender e construir a vida em todos os sentidos. Arriscamos dizer que nunca foi tão importante colaborar com a construção da cidadania. Ou seja, cabe à pesquisa empírica esse papel, que de modo organizado pode revelar aspectos importantes da existência humana e das coisas do mundo.
Assim, este ensaio teórico-metodológico não pretende aprofundar as caraterísticas de uma ou outra nem advogar qualquer tipo de incompatibilidade entre as duas metodologias, mas tem por objetivo refletir sobre até que ponto as metodologias qualitativas são exclusivamente qualitativas e, sobretudo, as quantitativas são exclusivamente quantitativas.
Para isso, pretende refletir sobre as seguintes questões epistemológicas: Qual a importância da análise qualitativa no âmbito das pesquisas, sobretudo empíricas, e de que forma podem, e devem assumir um caráter dialógico com as ações de pesquisa quantitativa? O que há de qualitativo na pesquisa quantitativa?
Com base nos estudos do processo de triangulação da pesquisa qualitativa desenvolvido por Tuzzo e Braga (2016, 2022); na análise sobre a epistemologia da pesquisa em comunicação (Becker, 2014, 2022); nos estudos desenvolvidos pelo GT - Grupo de Trabalho em Epistemologia da Comunicação da Compós - Associação Nacional (Brasileira) dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação; e na dialogicidade (Marková, 2006; Buber, 2007), propomos a compreensão do caráter epistemológico da pesquisa qualitativa a partir do desenho da pesquisa em todas as suas fases.
A reflexão teórico-metodológica, que se reflete neste artigo, pretende responder à inquietação sobre a relação imbricada das pesquisas qualitativas e quantitativas. Ainda que na pesquisa quantitativa os resultados numéricos sejam a principal base de sustentação, sobretudo no que se refere aos fenómenos sociais, é evidente a importância da compreensão dos dados de forma contextualizada sobre as experiências socioculturais e os processos de construção do tecido social, o que implica por um lado, um diálogo entre um sujeito (capaz de reflexão e interpretação) e um objeto de estudo (refletido nos resultados); e, por outro, entre metodologias qualitativa e quantitativa.
Como resultado este artigo oferece mais inquietações do que respostas, como é próprio das reflexões epistemológicas, mas abre também caminhos para que possamos refletir sobre o caráter epistemológico da pesquisa qualitativa sob o prisma das construções qualitativas dos achados das investigações.
A conclusão remete para uma necessidade de pensar que a dialogicidade da pesquisa é pensar todos os diálogos que a pesquisa realiza para se realizar. Ou seja, o diálogo que ocorre em todas as etapas do planejamento da pesquisa fazendo com que a pesquisa qualitativa seja então inspiradora e de certo modo libertadora, pois como a educação (Freire, 1980, 1983), também ela (a pesquisa qualitativa) oferece ao pesquisador a possibilidade de se reinventar e de dialogar com os resultados, bem como com todas as fases da pesquisa, seja ela qualitativa, seja ela quantitativa.
2.Qualitativo Versus Quantitativo
Se a pesquisa qualitativa se adequa a aprofundar o conhecimento relativo à complexidade e pluridimensionalidade dos fatos e dos processos sociais (a partir de grupos mais delimitados em termos de extensão), a metodologia quantitativa pretende chegar a dados, indicadores e tendências observáveis. Compila, frequentemente, grandes aglomerados de informações e/ou amostras particularmente extensas.
Ainda que Minayo e Sanches (1993) salientem a natureza diferenciada de ambas as metodologias, sublinham que, do ponto de vista metodológico, não há contradição, entre investigação qualitativa e quantitativa, pois o conhecimento científico é sempre uma busca de articulação entre uma teoria e a realidade empírica; o método é o fio condutor para se formular esta articulação.
Apesar das diferenças, Becker (2014) questiona a suposta dicotomia entre as pesquisas qualitativa e quantitativa, afirmando que as semelhanças são mais relevantes do que essas diferenças, uma vez que os dois métodos buscam descrever a realidade social e possuem a mesma base epistemológica, mesmo possuindo ênfases em questões diferentes. Sobre a pretensa oposição entre pesquisas realizadas com métodos quantitativos e qualitativos, Becker (2022) afirma que:
Na verdade, é a mesma velha história: protagonistas quantitativos tentam aplacar as queixas de seus críticos qualitativos e sugerem o trabalho útil que eles poderiam estar fazendo e vice'versa. [...] É tolice dizer que "nós" estamos estudando como as pessoas "realmente vivem", enquanto "vocês" estão analisando meros artefatos estatísticos. Ou, ao contrário, que "nós" estamos medindo coisas cientificamente enquanto "vocês" estão apenas escrevendo ficção de segunda categoria. A divisão de trabalho é mais interessante do que isso. Os diferentes trabalhos se interpenetram, e o pesquisador inteligente faz o que precisa ser feito no momento adequado. (Becker, 2022, p. 104-105)
Também no que refere à generalização, esta é possível em ambos os tipos de metodologia ainda que assuma caraterísticas distintas (Brannen, 2005).
Uma generalização baseada na inferência estatística para a população (na metodologia quantitativa) face a uma generalização para outros contextos ou uma generalização teórica em que os resultados são extrapolados em relação à sua aplicação teórica (na qualitativa).
Mesmo considerando o importante papel de outras formas de pesquisa, como a quantitativa, por exemplo; é no discurso da pesquisa qualitativa que os resultados se mostram dialógicos com o mundo real, com outros resultados e consigo mesmo, como na teoria do Self de que fala Trinca (2007) em sua obra “O ser interior na Psicanalise”. Assim, é no discurso que a pesquisa quantitativa também se torna real. É no qualitativo da pesquisa quantitativa (construção das teorias, contextualização e linguagem, interpretação, processo de escrita, isso para citar apenas alguns pontos) que o intangível se torna tangível.
3.O que há de qualitativo na análise quantitativa? Como se pode estabelecer o diálogo?
As dificuldades de afirmação e valoração das metodologias qualitativas são hoje reconhecidas fazendo, até certo ponto, lembrar as dificuldades encontradas pelas Ciências Sociais e Humanas para se afirmarem num período dominado por um modelo de cientificidade decorrente das ciências exatas e naturais (Piaget, 1991).
A pesquisa qualitativa tende a preocupar-se com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais. Assim, a pesquisa qualitativa é dinâmica, multifacetada e, sobretudo, colaboradora. Em outros termos, é na pesquisa qualitativa que os fenômenos sociais se revelam na sua profundidade.
Em termos de procedimentos, Duarte (2009) sublinha que num modelo de investigação quantitativa, a teoria antecede o objeto uma vez que o investigador parte do conhecimento teórico de resultados empíricos anteriores. Como tal, as hipóteses são formuladas a partir da teoria e operacionalizadas e testadas face a determinadas, e bem definidas, condições empíricas. A amostra é representativa e os instrumentos de recolha de dados são definidos em função dos objetivos da investigação. Da observação dos fenómenos e da sua apreciação em termos de frequência e distribuição, resulta a sua classificação, análise e interpretação com vista à corroboração ou infirmação das hipóteses previamente definidas e finalmente à generalização dos resultados à população.
No modelo qualitativa, e apesar de se manter a importância do suporte teórico, vários pressupostos vão sendo (re)defenidos à medida que se avança no trabalho de campo e se vão coletando os dados exigindo um diálogo constante entre e objeto. A mesma autora salienta a propósito que, mais do que testar teorias, procura-se descobrir novas teorias empiricamente evidenciadas.
Na sequência do processo, a pesquisa se debruça sobre os resultados e novamente dialoga com os dados e suas referências teóricas, que servem para atribuir sentidos, significados.
Aqui a dialogicidade (Marková, 2006; Buber, 2007) se concretiza na interação referencial teórica e se mostra frutífera, pois revela novas informações, em um processo de gestação do conhecimento. É ao que Flick (2009) se refere quando afirma que os métodos qualitativos, ao contrário dos quantitativos tem em consideração a interação do investigador com o campo.
Igualmente dialógica é a elaboração do instrumento de coleta, que nada mais é do que um roteiro para facilitar o diálogo entre o pesquisador e o objeto. É no roteiro de coleta que o objeto é instigado a falar; a se mostrar, a se revelar na sua essência enquanto fenômeno.
A representatividade ultrapassa a visão estatística do termo para considerar também a pertinência e a relevância de cada elemento em função dos objetivos (definidos pelo próprio sujeito), do nível de complexidade e heterogeneidade do contexto. As hipóteses vão sendo (re)formuladas ao longo do processo de construção do conhecimento. Compreende-se por isso, que o nível de apriorismo é, na metodologia qualitativa radicalmente diferente do que acontece na quantitativa. Ao mesmo tempo, a generalização assume aqui um perfil distinto. Brannen (2005) refere, por exemplo, o que se passa com os estudos de caso. Aqui, frequentemente, o objetivo passa por avaliar se, e até que ponto, os resultados obtidos podem ser extrapolados para a teoria em análise.
Mas, a pesquisa qualitativa, que no seu bojo se preocupa com o universo de significados, de motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes (Minayo, 2012), também tem colaborado com a pesquisa quantitativa à medida que a partir de resultados quantificáveis, traduzem as significações, motivações, crenças e valores desses resultados. E não apenas nesse sentido. Falamos sobre a capacidade da pesquisa qualitativa de dialogar com a proposta quantitativa de pesquisa desde sua elaboração inicial, como por exemplo, o instrumento de coleta; até as explicações teóricas que envolvem os resultados. Desde a escolha do objeto de pesquisa, passando pelo locus de coleta, até a definição da amostra.
4.Proposta teórico-metodológica de diálogo entre métodos
Um estudo teórico-metodológico firmado na epistemologia da comunicação e no caráter da dialogicidade é por si complexo, na própria estrutura de complexidade proposta por Edgard Morin (2005) que reflete que nas pesquisas a densidade das perguntas não está em sua composição linguística, mas na multiplicidade de agentes sociais que estão envolvidos para se pensar em suas respostas. Morin (2005) em seu paradigma da complexidade compreende que a complexidade não está no objeto, mas no olhar do pesquisador, na forma que ele estuda seu objeto e na maneira como ele aborda os fenômenos dentro de uma sociedade. E o pensador vai além, explicando que:
precisamos aprender a contextualizar e a globalizar os conhecimentos. Devemos saber que a revolução atual não se dá no terreno do combate mortal das boas e verdadeiras ideias contra as más e falsas, mas no campo da complexidade do modo de organização das ideias. Assim, pensar implica recusar de modo permanente o avanço das simplificações. [...] O menor conhecimento comporta elementos biológicos, cerebrais, culturais, sociais, históricos.
Quer dizer, sobretudo, que a ideia mais simples necessita conjuntamente de uma formidável complexidade bioantropológica e de uma hipercomplexidade sociocultural. Falar em complexidade é falar em relação simultaneamente complementar, concorrente, antagônica, recursiva e hologramática entre essas instâncias co-geradoras do conhecimento. (Morin, 2005, p. 9 e 23)
A complexidade está também nas reflexões sobre a própria epistemologia da comunicação e das pesquisas qualitativas da área, reconhecendo-a como área de conhecimento e de pesquisa a partir de características do objeto e das diferentes perspectivas para a investigação. Segundo os pesquisadores da linha de Epistemologia da Comunicação da Compós, é também necessário se pensar nas distintas correntes teóricas em circulação a fim de que seja possível um pensamento sobre as propostas epistemológicas e teóricas na área da comunicação; os estudos dos diferentes regimes de interação, como fatores comunicacionais que caracterizam a experiência sociocultural e os processos de construção do tecido social.
Também importante, é destacar o salutar debate de questões epistemológicas relativas ao desenho das pesquisas e à metodologia de investigações e as inferências derivadas de pesquisas empíricas.
As reflexões levam a novas reflexões sobre o próprio campo e objeto de uma determinada ciência que se pretende investigar, as relações com as práticas sociais e profissionais e suas relações com a sociedade e seus modos de interação.
Neste contexto, esta reflexão teórico-metodológica segue a proposta multimétodos inicialmente elaborada pelos autores e se concretiza a partir da definição do objeto, do sujeito e do fenômeno, sugerindo, no estudo originalmente desenvolvido, que os vértices da triangulação são na verdade novos níveis de investigação. (Tuzzo & Braga, 2016, 2022)
A proposta de reflexão que agora se apresenta parte de dois pressupostos fundamentais: por um lado, o conhecimento obtido pela pesquisa é necessariamente resultado de um contexto, de um conjunto de critérios de escolha (objeto, objetivos, hipóteses, instrumentos, amostra, metodologia) e de uma posterior interpretação de dados. Por outro, o conhecimento científico é sempre uma construção de um sujeito que estabelece uma relação dialógica com um objeto que procura conhecer rompendo com pré-conceitos e conceções do senso comum.
A título de ilustração, pensemos em algumas metodologias, como a triangulação sistemática que pode ser compreendida em Flick (2009), a partir da combinação de perspectivas e de métodos de pesquisa adequados, que sejam apropriados para levar em conta o máximo possível de aspectos distintos de um mesmo problema, sendo determinantes quatro aspectos: definição do tipo de pesquisa, dos instrumentos de coleta adequados; da população-alvo para construção da amostragem; e dos métodos de análise.
Na pesquisa bibliográfica, autores como Minayo (2000), Marconi e Lakatos (2007); Flick (2009), defendem sua importância com relação ao suporte para realização das pesquisas empíricas.
No que se refere às pesquisas de Campo ou Empírica são elas responsáveis pela transformação social. O material de pesquisa está na sociedade e o coloquial é um grande laboratório.
Hohlfeldt (2011) afirma que optar pela pesquisa empírica obriga-nos a sair da tranquilidade da cátedra ou de nossa casa. Dispormo-nos a ir a campo, ver e ouvir os outros. Mas ainda autores como Braga e Campos (2012); Havelais (2011); Triviños (1987) ou Denker e Viá (2001) complementam dizendo que a principal finalidade da pesquisa empírica é responder às perguntas colocadas acerca de fenômenos sociais.
Tuzzo e Braga (2022) asseveram que o acesso ao campo foi alterado e permitiu novas visibilidades. Todavia, se tornou muito mais complexo, ao ponto de compreenderem que a ida ao campo também pode ser uma ida ao computador.
Sobre os instrumentos de coleta de dados, os pesquisadores Souza (2011); Minayo (2000); Flick (2009) e Triviños (1987) dão as pistas para a produção de roteiro estruturado ou semiestruturado que permite uma pesquisa com base em entrevistas ou grupo focal; estudo de caso; experiência pessoal; introspecção; storytelling; artefatos; textos e produções culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais; observação etnográficae mais recentemente netEtnográficas ou participante, que tem por objetivo entender os processos sociais de concepção de um fenômeno pela própria perspectiva do pesquisador e não somente pelo relato de um participante externo.
É nesse ponto que a metodologia deste artigo se firma, ou seja, nas reflexões apresentadas com base nos autores acima, que em comum pensam a sociedade, o caráter social e a transformação da sociedade. Mas avança, desenvolvendo uma reflexão teórico-metodológica que nos remete a pensar na epistemologia da pesquisa qualitativa em Becker (2014, 2022), Fonseca Junior (2015) e também nos alargados estudos desenvolvidos por pesquisadores do GT de Epistemologia da Comunicação ligados à Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasil.
Ao analisar os métodos qualitativos e quantitativos, podemos perceber que entre as diferentes etapas das pesquisas quantitativas, cujos resultados numéricos são a principal base de sustentação, também encontramos textos descritivos, analíticos e explicativos dos dados da mesma forma balizar das pesquisas qualitativas, sobretudo no que se refere à análise da sociedade, ao enquadramento de compreensão dos dados de forma contextualizada, próprio do olhar do pesquisador e daquele capaz de traduzir em textos reflexivos e interpretativo, ou os números que nem sempre falam por si.
Independentemente da metodologia, no domínio das Ciências Sociais, os investigadores debruçam-se sobre fenómenos reais, fatos sociais, e, em última análise, ambos (quantitativos e qualitativos) pretendem atribuir sentido aos seus dados.
Este facto, por si só, justifica que nos interroguemos sobre a presença do qualitativo também nas metodologias quantitativas. Por um lado, ao delinear o objeto de pesquisa, torna-se imprescindível conhecer e dar a conhecer do que exatamente falamos; do lugar de fala que falamos e para quem falamos; e mais: nos apropriarmos desse conhecimento particular e vislumbrarmos, na medida do possível suas relações e suas inter-relações. Por outro, ao falarmos do objeto falamos em última instância do locus desse objeto, que pela simples característica de existir, altera o mundo das coisas, pois dela participa. E nesse cenário o diálogo se concretiza e oficializa a existência da pesquisa e do objeto.
Tão importante quanto todo esse arcabouço, é a presença determinante do pesquisador e daqueles que coletarão os dados para a pesquisa, podendo não ser exatamente o pesquisador, mas pessoas contratadas, coletores nem sempre ligados à ciência ou à pesquisa que está sendo realizada, como voluntários, alunos de diferentes graus científicos, assistentes, enfim, pessoas que estarão desenvolvendo trabalhos nem sempre centrais, mas periféricos da pesquisa, contudo determinantes para o resultado final.
Becker (2022) alerta para a os erros que uma pesquisa pode apresentar simplesmente porque a coleta apresenta dados errados.
Por sua vez, Johnson e Onwuegbuzie (2004) salientam que o responsável pela coleta de dados nem sempre é garantia de uma correspondência direta à realidade na medida em que o sujeito, que observa/coleta dados, pode ser condicionado (mesmo que de forma inconsciente) pelos seus conhecimentos e experiências prévias. Além da coleta de dados e da natureza não imparcial do investigador, os mesmos autores vão ainda mais longe ao questionar até que ponto as hipóteses podem ser testadas em completo isolamento dada a natureza humana e social do próprio investigador.
Sobre isso, Becker (2022) busca problematizar o modo pelo qual os cientistas sociais relacionam o universo abstrato de seus esquemas teóricos e conceituais à concretude dos processos sociais que suas pesquisas investigam. A preocupação de Becker se firma nas condições sociais de produção dos dados, e inclui a mediação realizada pela organização de dados que possam servir como evidência de uma ideia geral, geralmente chamada teoria ou conceito; quanto diz respeito às condições sociais de obtenção desses dados.
Mesmo categorias consagradas e aparentemente inequívocas como 'classe social', 'gênero', 'grupo étnico', 'religião', 'local de residência' ou 'profissão' existentes em uma proposta de coleta de dados podem se mostrar muito problemáticas quando o mundo real se manifesta nas respostas dadas às entrevistas ou questionários feitos em campo (Becker, 2022).
Assim temos que o conhecimento é sempre uma construção e resulta necessariamente de escolhas do sujeito (objeto, objetivos, hipóteses, instrumentos, amostra, metodologia) que pretende aprofundar o conhecimento sobre um determinado objeto. Nada é simples (Becker, 2022), posto ser complexo (Morin, 2005).
Por fim, se a pesquisa for dialógica, ela será por natureza, democrática, e em sendo democrática, se traduzir-se-á na expressão das possibilidades de dialogar com diferentes tipos de pesquisa e com sua própria essência, seu modo de existir e de funcionar. Do ponto de vista prático, é a pesquisa qualitativa que organiza o diálogo entre os resultados e a teoria de referência; é a mesma modalidade de pesquisa que de modo dialógico identifica no mundo social referências práticas para explicar o mundo do conhecimento e em um sentido invertido, constrói o conhecimento tendo como referência o mundo social e seus atores.
5.Considerações Finais
Este ensaio teórico-metodológico teve por objetivo refletir sobre até que ponto as metodologias qualitativas são exclusivamente qualitativas e, sobretudo, as quantitativas são exclusivamente quantitativas.
Baseando-se nas reflexões teórico-metodológicas e epistemológicas compiladas na literatura referenciadas ao longo do artigo, considera-se a imbricação como sendo mais relevante do que as distinções ou as exclusividades.
A partir da revisão de literatura firmada em pesquisas qualitativas e quantitativas, os pesquisadores conseguem compreender não existir limites rígidos e impeditivos de uma imbricação entre os métodos. Não se refere a pensarmos em uma combinação de métodos, como na triangulação clássica, mas sim, compreender que nas pesquisas qualitativas também existe a quantificação de dados (BARDIN, 1977) e na pesquisa quantitativas, as diferentes etapas são feitas muito mais à luz dos processos qualitativos do que dos processos unicamente quantitativos.
No caso deste artigo, essa reflexão parte da concepção construtivista do conhecimento, a partir da qual extrai alguns elementos para reflexão sobre a primeira questão: Qual a importância da análise qualitativa no âmbito das pesquisas, sobretudo empíricas, e de que forma podem, e devem assumir um caráter dialógico com as ações de pesquisa quantitativa?
Na construção de um processo, a pesquisa se debruça sobre os resultados e novamente dialoga com os dados e suas referências teóricas, que servem para atribuir sentidos, significados. Aqui a dialogicidade se concretiza na interação referencial teórica e se mostra frutífera, pois revela novas informações, em um processo de gestação do conhecimento.
Desta forna, os resultados voltam a dialogar com o mundo do conhecimento, se posicionando em relação às demais teorias; buscando um espaço próprio de existência e de sentidos.
Em um processo dialético, os resultados - já analisados, retornam ao locus original para se mostrar e ao mesmo tempo colaborar com o novo ciclo.
Em outras palavras, podemos afirmar que a dialogicidade é um ciclo virtuoso de construção do conhecimento, que colabora com a pesquisa no sentido de dar-lhe vigor e energia para se reinventar. Nesses termos, a pesquisa qualitativa se enriquece e se mantém atualizada, não apenas pela sua capacidade de pesquisar novos objetos, mas, sobretudo pela sua capacidade de se reinventar em si mesma.
Já no que se refere à segunda questão: O que há de qualitativo na pesquisa quantitativa? A resposta é: existe muito, com reflexo na construção de teorias e levantamento de hipóteses; na contextualização da linguagem; na descrição e interpretação dos dados, dos fenômenos; na interpretação dos números e dos resultados da coleta no campo; na contextualização social, tendo em conta que um mesmo dado pode ser visto sob diferentes prismas a partir da contextualização da cultura ou época de análise; por fim, a escolha da forma de apresentação e das construções do texto, sabendo que o processo de escrita é simbólico e se reforça na interpretação, podendo o texto ser, em si, um complexo composto qualitativo de toda pesquisa.
Face ao exposto, podemos afirmar que a pesquisa qualitativa reflete sobre o caráter epistemológico da pesquisa quantitativa a partir do desenho da pesquisa em todas as suas fases e assim pensar que a dialogicidade da pesquisa implica pensar todos os diálogos que a pesquisa realiza para se realizar. Ou seja, (re)pensar o diálogo que ocorre em todas as etapas do planejamento da pesquisa até a interpretação do receptor.