1.Introdução
A Mutilação Genital Feminina (MGF) é uma prática enraizada em aproximadamente 30 países de África, Médio Oriente e Ásia (World Health Organizaton, 2024). Esta prática constitui uma grave violação dos direitos humanos e um ato de violência contra as meninas, raparigas e mulheres, sendo a sua erradicação uma prioridade (Comissão Europeia, 2021; World Health Organizaton, 2024). A MGF refere-se a qualquer dano provocado nos órgãos genitais femininos externos, incluindo a sua remoção parcial ou total por questões culturais e não clínicas. É um ato ilegal na União Europeia e um crime punível em Portugal, com pena de prisão. Esta pena inclui também, atos preparatórios para a realização de MGF, como viajar com a menina, rapariga ou mulher para o seu país de origem, para realizar essa prática (Associação portuguesa de apoio à vítima, n.d.; Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, 2020; Portugal, 2015).
Em Portugal, a Orientação 8/2021, da DGS sobre a MGF impulsionou a relevância da prevenção desta prática tradicional nefasta. Aí explanado, o Enfermeiro Obstetra, enquanto profissional de saúde, desempenha um papel fulcral no que respeita à identificação, orientação e prevenção de práticas de MGF. Pois, sendo uma temática muito impactante, na vida destas meninas, raparigas e mulheres, com consequências gravíssimas para a sua vida (Parlamento europeu, 2020), compete-lhe cuidar a mulher inserida na família e comunidade ao longo do ciclo vital, com igual enfoque no grupo-alvo no qual se preveem casos de MGF (Nené et al., 2016), oferecendo cuidados de qualidade, culturalmente sensíveis face às necessidades das pessoas.
Enquanto cuidador, esta realidade social coloca algumas vivências constrangedoras a nível pessoal e profissional, motivo pelo que se adotou uma abordagem de investigação qualitativa, na vertente fenomenológica para responder à questão de investigação: “Que vivências tem o enfermeiro obstetra, no cuidar mulheres, com mutilação genital feminina?” e ao objetivo do estudo que é “Compreender as vivencias, do Enfermeiro Obstetra, face aos desafios que se lhe colocam ao cuidar mulheres com Mutilação Genital Feminina”.
2.Participantes e Métodos
Neste capítulo serão explanadas as diferentes etapas metodológicas desta investigação, tipo de estudo adotado à luz dos pressupostos de Max Van Manen, a apresentação dos participantes do estudo, o método utilizado para a recolha e análise dos dados e por fim, uma abordagem às questões éticas e rigor científico.
2.1Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo qualitativo, fenomenológico hermenêutico sob os pressupostos de Max van Manen.
A investigativa qualitativa permite uma compreensão mais rica e mais profunda das experiências vividas pelo ser humano, ao fornecer uma visão holística dos aspetos humanos, sociais e culturais relacionados à saúde e ao cuidado sendo fundamentais para a definição e avanço em enfermagem, e, capacita os profissionais a fornecerem cuidados mais eficazes, centrados na pessoa e culturalmente sensíveis (Egy, 2020). É inegável o valor que a fenomenologia tem para a ciência de enfermagem pois é através desta abordagem que o investigador procura a compreensão do ser e das suas vivências, nomeadamente dos clientes e dos profissionais de saúde. O cuidar em enfermagem envolve a relação com o outro, influenciada pelo modo de ser e pelo modo de fazer, colecionando um vasto número de experiências vividas pelo enfermeiro.
A fenomenologia, como método de investigação utilizada no cuidado de enfermagem, concentra-se na experiência consciente e subjetiva do enfermeiro ou do cliente alvo do seu cuidado, e tenta compreender as experiências vividas para compreender a realidade e o mundo. Entender e interpretar as experiências humanas é crucial na prática de enfermagem pois promove o crescimento profissional e um cuidar mais humanizado (Guerrero-Castañeda & González Soto, 2022; Henriques et al., 2021).
A fenomenologia é, portanto, “a análise da experiência vivida ou do modo como as coisas se mostram ou se dão na experiência ou na consciência humana. Os textos são usados no esforço fenomenológico para retornar à experiência vivida” (van Manen, 2017a, p. 6). Segundo Husserl (2006), é necessário tornar os eventos da consciência o mais claros e completos possível, para depois analisar e capturar, intuitivamente, a sua essência, sendo a consciência responsável por dar sentido às coisas. Van Manen (2023) acrescenta, ainda, que a fenomenologia não se resume a uma abordagem filosófica, mas é também uma fonte para questionar o sentido da vida tal como a vivemos e que impulsiona um desejo profundo em compreender o significado e a origem da experiência humana. Por outro lado, a hermenêutica, cujos principais expoentes incluem Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, concentra-se na interpretação e compreensão dos textos, contextos e tradições culturais (Husserl, 2006).
Embora a metodologia possa variar dependendo do contexto e do objetivo da pesquisa, van Manen (1997) delineou seis passos flexíveis, de ordenação dinâmica, que auxiliam na compreensão profunda do significado das experiências vividas, os quais foram utilizadas para a presente investigação.
Estes consistem em: 1) Voltar-se para a natureza da experiência vivida, em que o investigador identifica um fenómeno de interesse e compromete-se a explorar e compreender como esse fenómeno é vivenciado na vida cotidiana; 2) Investigar a experiência tal como é vivida, em vez de a conceptualizar. Não basta uma simples observação do fenómeno, mas uma investigação profunda do mesmo com a finalidade de entender a essência da experiência; 3) Refletir pela fenomenologia hermenêutica, ou seja, refletir sobre os temas essenciais que caracterizam o fenómeno em estudo e interpretar o significado da experiência vivida; 4) Descrever a experiência fenomenológica através da escrita.
O investigador descreve em detalhe a experiência vivida de tal forma que o fenómeno é claramente iluminado; 5) Manter uma relação forte e orientada com o fenómeno, ou seja, o investigador manter um foco constante no seu fenómeno de interesse; 6) Equilibrar o contexto da investigação tendo em conta as suas partes e o seu todo. Isto refere-se à ideia de que o fenómeno é para ser considerado como um todo, e que o todo é constituído pelas partes individuais que o constituem (Molleyet al., 2018; Rodriguez & Smith, 2018; Salbego & Charréu, 2011; van Manen, 2016).
2.2Seleção dos Participantes
O número de participantes, para o estudo qualitativo, não está definido à priori, dependendo da riqueza e profundidade das descrições, cessando quando por inclusão progressiva se obtém a saturação do tema, ou, como refere Deslandes (2009), quando as ideias apresentadas pelos participantes se começam a repetir.
Assumiram-se como participantes do presente estudo, 12 Enfermeiros Obstetras, selecionados por critérios que garantissem uma relação próxima com o fenómeno, que tivessem vivenciado na primeira pessoa, e que fossem capazes de descrever essa experiência. Constituíram-se como critérios de inclusão, ser Enfermeiro Obstetra que preste, ou tenha prestado, cuidados preventivos e realizado notificação ou referenciação de casos de MGF. Foram contactados em função do processo de amostragem, por bola de neve, em que o primeiro participante refere alguém que conheça e se encontre nas mesmas condições de inclusão face ao fenómeno em estudo.
2.3Recolha de Dados
Nos estudos qualitativos é importante ganhar uma compreensão da experiência e utilizar diversos métodos. Entre eles, a entrevista fenomenológica, que permite a recolha de relatos das experiências vividas, analisadas para posteriormente desenvolver uma profunda compreensão do fenómeno em questão. Segundo van Manen, é crucial estar perto da experiência vivida ao longo da entrevista, e para tal, poderá ser necessário realizar mais questões, além da questão inicial, para se obter uma reposta concreta sobre a experiência do entrevistado. Acrescenta ainda que o crucial é fazer uso da paciência e do silêncio para levar a que a pessoa prossiga com o seu relato, não sendo necessário realizar muitas perguntas (Loureiro, 2006; Pereira, 2015; Ribeiro Mota et al., 2021; van Manen, 1984).
Recorreu-se à entrevista fenomenológica incluindo um guião com duas partes: na primeira recolheram-se dados sumários, relativos à caracterização sociodemográfica dos participantes e a segunda inclui oito questões abertas relativas ao fenómeno em estudo, que permitiram desocultar a riqueza das experiências vividas dando controlo ao entrevistador, mas, simultaneamente, dando margem ao entrevistado para fornecer respostas livres e espontâneas (Minayo & Costa, 2018).
A recolha de dados foi realizada entre julho de 2023 e janeiro de 2024, por uma das investigadoras, sendo que cada entrevista foi agendada consoante a disponibilidade da investigadora e dos participantes. As entrevistas foram realizadas através de videoconferência com recurso à plataforma de reuniões, Zoom, cada uma foi gravada, sob consentimento prévio da participante, seguida da transcrição literal e integral do verbatim, mantendo a fiabilidade dos discursos.
2.4Análise dos Dados
A análise foi realizada por duas investigadoras, tendo sido necessário uma emersão profunda nos dados para desocultar o significado atribuído à experiência vivida pelos participantes. Como refere van Manen (2017a, p. 8), ao refletir sobre a descrição de qualquer experiência vivida, a questão não é que significado posso atribuir a este texto, mas que significado é inerente à experiência vivida que esta descrição expressa”. Após a descrição das experiências vividas, é possível realizar a exploração de temáticas, mas que não correspondem aos resultados da pesquisa, como esclarece van Manen (van Manen, 2017a). Os temas são as ferramentas para a análise fenomenológica, ou seja, realizar a escrita reflexiva levando o leitor a reconhecer o significado de experiências humanas (Adams & Van Manen, 2017).
Esta análise baseou-se na proposta de van Manen que pretende isolar aspetos temáticos fenomenológicos, ou estruturas de significado, que apontam para o significado das experiências. Para tal, são necessárias três abordagens para elevar os aspetos temáticos que estão ocultados que se resumem: à visão holística, no qual o significado do todo é traduzido por uma frase; à abordagem seletiva onde são selecionados os trechos ou expressões que melhor traduzem o fenómeno; aproximação detalhada linha a linha em que se questiona em que medida o trecho permite compreender o fenómeno (Van Manen, 2017a, 2017b).
Foram identificadas unidades de significado, unidades de registo (UR), ou frases, que permitiram revelar o significado da experiência vivida e que serviram para identificar temas. O que se entende do fenómeno em estudo é transformado em categorias concetuais que vão constituir a verdadeira essência da experiência vivida (Guerrero-Castañeda & González Soto, 2022; Morgado et al., 2013).
Para alcançar as temáticas finais foi realizado um refinamento dos dados, com uma terceira investigadora, a fim de se conseguir obter a resposta à questão de investigação de uma forma organizada e eficiente.
2.5Questões Éticas e Rigor Científico
A autonomia e a liberdade de escolha da pessoa em participar, ou não, no estudo bem como a garantia do seu anonimato foram respeitados.
Antes da entrevista foi apresentado o estudo nas suas diferentes componentes, esclarecidas as dúvidas e fornecida a declaração de consentimento informado. Foi salientado o caracter confidencial da informação bem como o facto de a investigadora estar obrigada ao sigilo profissional. O nome de cada participante foi substituído por um código, E(x), em que a letra E se refere a dados recolhidos por entrevista e a letra x representa o número da entrevista. Todos os dados colhidos foram guardados no computador pessoal da investigadora, protegido com palavra-passe. Depois de concluída a investigação, todos os dados serão destruídos, no prazo de um mês.
Como procedimento prévio à realização do estudo, foi obtido o parecer favorável por parte da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Viseu.
O rigor científico foi tido em conta para garantir a confiabilidade e a validade dos resultados. Neste estudo, foi incluído o critério de credibilidade que se refere ao compromisso do investigador em garantir a veracidade dos resultados através da interpretação fiel do ponto de vista dos participantes. A revisão por pares foi a estratégia utilizada para dar credibilidade à presente investigação através da análise do processo de pesquisa. A verificação pelos participantes também foi utilizada como método de credibilidade ao resumir, ou reformular, a resposta dos participantes ao longo da entrevista, solicitando-lhes a confirmação desse resumo para garantir a exatidão e integridade dos textos, como recomendado por Moreira (2018).
Outro critério utilizado foi a dependabilidade que se refere à consistência dos resultados. O verbatim foi analisado por outro investigador e confirmados os resultados pelos três investigadores, através de uma documentação cuidadosa dos processos e decisões metodológicas como sugerido por Moreira (2018).
Recorreu-se ao programa MAXQDA22, e MAXQDA24, para o suporte à análise dos dados, na organização e codificação dos diversos segmentos das entrevistas.
3.Resultados
Apresenta-se uma sumária caracterização dos participantes seguida das categorias emergentes.
3.1Caracterização dos Participantes
Foram entrevistados 12 enfermeiros obstetras, todos do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 29 e os 46 anos, cuja média de idades foi de 35,58 anos com um desvio padrão de 6,05.
Dois dos participantes exercem funções em hospitais na região centro do país e 10 exercem funções em hospitais na região sul.
3.2Categorias Emergentes
Das vivências experienciadas apresentam-se duas categorias, Constrangimentos vivenciados pelo Enfermeiro Obstetra no cuidado a mulheres mutiladas genitalmente; e Propostas a implementar pelo Enfermeiro Obstetra na prevenção, notificação e intervenção na Mutilação Genital Feminina.
Os Constrangimentos vivenciados pelo Enfermeiro Obstetra no cuidado a mulheres mutiladas genitalmente são diversos (cf. tabela 1), sendo as dificuldades das mulheres em falar do assunto, falta de alerta por parte de profissionais de saúde, para a MGF, comunicação linguística e cultural comprometida, desinteresse de profissionais de saúde, conhecimento escasso entre profissionais de saúde e pouco tempo de cuidados específicos, os que apresentaram mais unidades de registo (UR).
Apresentam-se algumas das UR expressivas destas subcategorias:
No bloco de partos é mais difícil abordar a mulher por se encontrar numa situação frágil (E10)
Os profissionais de saúde não estão despertos naturalmente para estas práticas (E11)
É um constrangimento não conseguir abordar as mulheres sobre esta temática devido à barreira linguística ou barreira cultural (E12)
Os constrangimentos... como não sabermos comunicar com a mulher, não saber bem lidar com a mulher, não saber como perguntar (E6)
Que na realidade agora nem acontece [o seguimento das mulheres com MGF] porque não há médicos, não há enfermeiros (E4)
Quanto à categoria Propostas a implementar pelo Enfermeiro Obstetra na prevenção, notificação e intervenção na Mutilação Genital Feminina, destacam-se formar profissionais de saúde, intervir na comunidade, envolver equipa multidisciplinar; empoderar as mulheres mutiladas; identificar precocemente o risco/existência de MGF nos Cuidados de Saúde Primários (CSP); divulgar resultados da notificação e encaminhamento; envolver todas as instituições de saúde nacionais; criar equipas nas instituições de saúde com elementos de referência em MGF; integrar a temática nos planos de estudo escolares; e atualizar a plataforma de notificação.
Apresentam-se algumas UR expressivas desta categoria:
Tem de se formar os profissionais para eles saberem distinguir os tipos de mutilação (E9)
É preciso que haja também intervenção na Comunidade e por isso também fazemos formação da Comunidade [para mudar o seu comportamento sobre a MGF (E11)
Era mesmo importante criar algum documento, tipo checklist para ser aplicado na triagem, e essa checklist era utilizada em situações que nos fizessem suspeitar que a mulher fosse oriunda de países onde se pratica a MGF (E7)
Deveria haver mais estudos deste tipo e sobre esta temática abordada(E6)
4.Discussão
Discute-se primeiro a categoria constrangimentos vivenciados pelo Enfermeiro Obstetra no cuidado a mulheres mutiladas genitalmente, seguida da categoria relativa às Propostas a implementar pelo Enfermeiro Obstetra para a prevenção, notificação e intervenção na mutilação genital feminina, emergentes da questão de investigação “Que vivências tem o enfermeiro obstetra, no cuidar mulheres, com mutilação genital feminina?”.
Os participantes neste estudo vivenciaram diversos constrangimentos em que as “Dificuldades das mulheres em falar do assunto” foi o mais enfatizado. Segundo Evans et al. (2019) as mulheres inibem-se de falar sobre a sua sexualidade e sobre a MGF porque sentem que não vão conseguir explicar a sua situação fazendo-as sentir ansiosas e constrangidas. Tal implica que a abordagem pelos Enfermeiros Obstetras tenha sido dificultada, não só na comunicação, como também na observação e na prestação de cuidados diretos à mulher.
O tempo escasso que as mulheres têm com os profissionais de saúde, limita uma abordagem ao tema, o que é referido pelos participantes, como um constrangimento “Pouco tempo de cuidados específicos”, perspetiva esta corroborada por Evans et al. (2019). Esta situação origina a que muitas mulheres não confirmem a presença de mutilação quando questionadas.
A “Comunicação linguística e cultural comprometida”, tanto por parte das mulheres, como por parte dos profissionais emergiu também como constrangimento. Este facto está também presente na literatura, em Cappon et al. (2015) e Ugarte-Gurrutxaga et al. (2023), ao referirem que alguns enfermeiros evitaram abordar o assunto com a mulher.
A “Falta de alerta por parte de profissionais de saúde para a MGF” está igualmente descrita por Evans et al. (2019) como sendo um constrangimento experienciado pelos profissionais de saúde. O mesmo autor caracteriza o cuidado como “hit and miss”, ou seja, por falta de sensibilização dos profissionais para a temática, estes não vão ser capazes de procurar e detetar casos de MGF. Poderá haver a situação em que os profissionais já se confrontaram com uma mulher mutilada, mas não identificaram porque não estavam despertos para a possível presença de MGF.
Este constrangimento está muito interligado com o “Desinteresse de profissionais de saúde” já que os Enfermeiros Obstetras referiram que há profissionais na sua equipa que não têm interesse em saber mais sobre esta prática tradicional nefasta e que, inclusivamente, desvalorizam a necessidade da sua prevenção. Este facto está muito associado à falta de conhecimento, confirmado na subcategoria “Conhecimento escasso entre profissionais de saúde”.
Em consequência, estes profissionais não compreendem a importância de erradicar a MGF e subestimam o impacto prejudicial de não contribuir para o alcance do bem-estar saudável e completo de todas as mulheres e meninas. Estes resultados são corroborados por Capponet al (2015) e Tarr-Attia et al. (2019), em que a lacuna no conhecimento sobre a MGF interfere com a prestação de cuidados adequados e preventivos da MGF.
Houve constrangimentos vivenciados e verbalizados pelos Enfermeiros Obstetras que se referem à notificação e ao seguimento da mulher mutilada genitalmente. Referem que a notificação no sistema do Registo de Saúde Eletrónico (RSE) não permite que haja um seguimento da mulher notificada, pois esta plataforma tem como objetivo apenas reunir o número de casos de mulheres mutiladas num determinado limite de tempo (Portugal, Orientação n.º 8/2021). Os participantes descrevem que, não havendo seguimento da mulher, após a notificação, sentem que se perde o rasto a estas mulheres não lhes sendo possível verificar se, o apoio e a segurança do recém-nascido, do género feminino, estão garantidos. Em estreita ligação está a “Ausência de deteção precoce” porque se os Enfermeiros Obstetras não tiverem informação prévia de que a mulher está mutilada, não vão conseguir antever e preparar cuidados personalizados. Confrontando Evans et al. (2019) revelam que também foram encontradas lacunas em relação à notificação associados aos mecanismos protocolares ou por desconhecimento dos profissionais acerca do assunto. Os mesmos autores assumem a necessidade de referenciação pré-natal.
Em relação às propostas a implementar, “Formar profissionais de saúde” foi a subcategoria mais enfatizada. Esta, decorre de um dos principais problemas para a identificação de casos de MGF que é a falta de conhecimento sobre a temática. Como diversos autores sugerem, a solução passa por formar os profissionais de saúde tornando-os informados e capazes para implementarem ações preventivas e interventivas no âmbito da MGF (Correa-Ventura et al., 2023; Khalesi et al., 2017; Turkmani et al., 2018). Esta abordagem recomenda incluir os restantes profissionais de saúde, não só a nível de formação, mas também fomentar a sua participação e intervenção para as mulheres mutiladas e meninas em risco. “Envolver a equipa multidisciplinar”, foi referenciada para “Envolver todas as instituições de saúde nacionais” e “Referenciar para psicólogos” focaram-se na premissa de que é importante a participação de diferentes profissionais de saúde, como por exemplo médicos e psicólogos, envolver diversas áreas da saúde, como sejam, obstetrícia, cirurgia ou CSP. Qualquer momento de interação com a mulher mutilada, é o ideal para intervir, no sentido de a notificar e de lhe prestar cuidados, como está delineado na Orientação n.º 8/2021 (Clarke, 2015; Correa Ventura, 2020).
Este estudo fomenta a necessidade de “Realizar formação à população”, não só às comunidades onde se pratica a MGF, mas também naquelas aonde supostamente não se pratica. Pois, face à globalização também na população portuguesa pode existir MGF, como é corroborado por Evans et al. (2019) e Perdigão et al. (2016), que realçam essa necessidade do envolvimento da comunidade onde se pratica a MGF e das famílias para começar uma mudança de mentalidades no interior das mesmas. “Realizar visitas domiciliares” para uma maior aproximação à família, “Estabelecer parcerias com líderes” são atuações fulcrais como uma estratégia eficaz. O envolvimento de líderes e de pessoas de referência simbólica são fundamentais para transformar mentalidades, não só no seio familiar, mas também nos países de origem, no sentido de erradicar a MGF.
A mudança eficaz e duradoura, está na comunidade. É importante destacar a relevância de que os líderes comunitários contrariem a prática de MGF pois, caso contrário, a intervenção ficará comprometida (Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, 2020).
Quer “Empoderar as mulheres mutiladas” quanto “Integrar a temática nos planos de estudo escolares” revelaram-se estratégias importantes no presente estudo, tendo em conta a proliferação do conhecimento. A educação e a consciencialização são ferramentas poderosas para mudar atitudes e práticas prejudiciais. Tal inclui a educação das comunidades sobre os danos causados pela MGF e a promoção dos direitos das mulheres (United Nations International Children's Emergency Fund, 2019).
As restantes recomendações sugeridas pelos participantes passam por “Divulgar resultados da notificação e encaminhamento”, ou seja, ir além da divulgação dos dados estatísticos relativo ao número de mulheres mutiladas, referenciar, também, o número de crianças a quem foi possível impedir que esta prática se concretizasse. Ainda se inclui “Atualizar a Plataforma de notificação no RSE” no sentido de criar alertas que acompanhem o processo clínico da mulher quando observada noutra instituição. Os sistemas de informação em enfermagem, como o SClínico onde está inserida a plataforma de notificação da MGF, é crucial na uniformização dos registos de saúde e na visibilidade dos cuidados prestados. São, deste modo, essenciais para a tomada de decisão baseada em evidências científicas e para a melhoria contínua da qualidade dos cuidados prestados (Nascimento et al., 2021; Ordem dos enfermeiros, 2020).
A sugestão de “Criar equipas nas instituições de saúde com elementos de referência em MGF”, pode ser uma estratégia viável, pois estas equipas são constituídas por profissionais com conhecimentos específicos, numa determinada área, que procuram intervir sobre o mesmo problema de saúde. Estas equipas interdisciplinares, podem ser constituídas por enfermeiros no sentido de elaborar um cuidado personalizado a clientes, e neste caso em particular, à mulher mutilada (Campos & Domitti, 2007).
A produção de evidência cientifica também foi identificada ao longo das entrevistas como estratégia de melhoria, como evidencia Cardoso(2019).
5.Considerações Finais
Foi possível compreender as vivencias, do Enfermeiro Obstetra, face aos desafios no cuidar mulheres com Mutilação Genital Feminina, no âmbito da prevenção, notificação e referenciação de meninas, raparigas e mulheres com MGF. Destacam-se constrangimentos e propostas de melhoria para os ultrapassar ou atenuar. As dificuldades comunicacionais entre o enfermeiro e a mulher, a falta de alerta, conhecimento e desinteresse por partes dos profissionais de saúde nesta temática comprometem a prevenção, notificação e referenciação. É necessário intensificar a formação especifica destes profissionais para ultrapassar constrangimentos, levar ao envolvimento na capacitação das comunidades, mudança de mentalidades, e responsabilizar para erradicar a MGF.
A realização das entrevistas em formato não presencial poderá ter sido uma limitação deste estudo ao maior aprofundamento do fenómeno. Recomendam-se outros estudos qualitativos que considerem a realização da entrevista fenomenológica em formato presencial e possam aprofundar as temáticas a desenvolver na formação especifica sugerida pelos participantes.
Como implicações deste estudo, sugere-se a formação específica em modelos de competência cultural que permita aos enfermeiros, nos contextos da prática clínica. compreender as dificuldades das mulheres em falar do assunto e os capacite no desenvolvimento de habilidades, conhecimentos, desejo e consciência cultural que sejam significativos e promovam encontros culturais para o empoderamento de meninas, raparigas e mulheres, em risco ou alvo de MGF.