1. Introdução
Os conselhos de classe normatizam em seus códigos o exercício profissional, incorporando as reflexões atuais sobre os limites de atuação frente aos desafios morais e éticos impostos pela ciência, em sua diversidade de áreas de conhecimento, pela tecnologia, e pelos modos de convivência social contemporâneos, incluindo aí a contribuição política, religiosa e cultural. Um novo Código de Ética Médica (CEM) foi aprovado em 2018, oito anos após a última versão de 2010 (Conselho Federal de Medicina [CFM], 2018). No entanto, essa normatização que guia o exercício profissional médico tem sido alvo de críticas por diferentes setores sociais. (Komparic, Garon‐Sayegh, Bensimon, 2023)
Os códigos de conduta e os códigos de ética médica sempre tiveram forte grau de influência da medicina hipocrática e da religiosidade cristã, mantida até a primeira metade do século XX. A benignidade ou beneficência de forte teor paternalista e a virtude prevaleceram, à medida que outros valores eram incorporados, dependentes da evolução tecno científica, dando lugar à competência, e do aparecimento da bioética no final do século XX impondo novos valores para a relação médico- paciente, com ênfase na saúde pública, na justiça e no direito público sobre o privado (Garrafa, 2012; Gracia,2010, p.314).
Beauchamp and Childress (2019) afirmam que “infelizmente alguns códigos profissionais simplificam demasiadamente as exigências morais ou reclamam mais perfeição e autoridade do que teriam direito” e que “desde a época de Hipócrates, os médicos geraram códigos sem um exame e sem aceitação por parte dos pacientes e do público” (p.8). Além disso, as críticas relativas à maximização do princípio da autonomia sobre os demais, impuseram a necessidade de revisão e ampliação da bioética principialista, resultando na criação de outros documentos de alcance mais universal como a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 2005).
Esse estudo pretendeu verificar se o modelo normativo-deontológico do CEM brasileiro versão 2018, de forte orientação bioética principialista, tem sido atualizado em correspondência com a Declaração de Bioética e Direitos Humanos da Unesco.
2.Metodologia
Estudo qualitativo fundamentado na análise documental. A pesquisa visou identificar e analisar os conteúdos relativos à DUBDH presentes no Código de Ética Médica brasileiro em vigor desde 2019. Por se tratar de análise de documentos de domínio público, o projeto de pesquisa não necessitou da autorização de comitê de ética em pesquisa.
O Código de Ética Médica representa um corpo de:
[...] normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive no exercício de atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços de saúde, bem como no exercício de quaisquer outras atividades em que se utilize o conhecimento advindo do estudo da medicina. (CFM, 2019, p.13)
Para análise do CEM foram considerados: capítulos, seções, artigos, parágrafos e incisos.
Neste estudo foi analisado não apenas aquilo que o CEM representa como documento, mas o que dele pode-se extrair de informações concordantes com um documento de referência para a bioética. Foi utilizado como parâmetro para análise de conteúdos e correspondência interdocumental a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco. Foram obedecidas as seguintes etapas cronológicas para a análise documental: (1) Definição de categorias de análise, (2) definição de unidades de registro, (3) exploração documental em busca por unidades de contexto que codifiquem unidades de registro, (4) tratamento dos resultados e interpretação. Definem-se como “categorias de análise” agrupamentos de conteúdos de interesse (neste trabalho, princípios da DUBDH) que se relacionam. “Unidades de registro” referem-se aos conteúdos de interesse propriamente ditos, previamente identificados a partir da leitura dos textos correspondentes a cada princípio constante na DUBDH. “Unidades de contexto” são definidas como trechos dos documentos em análise que permitam codificar as “unidades de registro”, ou seja, que permitam verificar que as unidades de registro (conteúdos de interesse) são contempladas pelo texto analisado.
A definição consensual prévia das categorias de análise e unidades de registro pelos pesquisadores permitiu que os textos dos CEM fossem explorados adequadamente, com posterior tratamento dos resultados e interpretação. Além disso, as citações textuais específicas a cada princípio da DUBDH identificadas em cada código de ética (unidades de contexto) foram utilizadas para exemplificar e aprofundar qualitativamente a interpretação dos resultados quantitativos.
As relações entre as unidades de registro e de contexto nos documentos, CEM e DUBDH, foram consideradas parcial ou total. Não sendo encontradas “unidades de contexto” que pudessem decodificar as “unidades de registro”, foi considerado que o conteúdo não era previsto no documento analisado. Foram consideradas unidades de registro de abordagem parcial quando não foi encontrada correspondência textual no CEM a pelo menos um dos termos rastreadores específicos a cada unidade de registro e/ou permitiam interpretação equivocada do conceito de cada princípio.
3.Resultados e discussão
O novo código de ética possui 26 princípios fundamentais do exercício da medicina, 11 normas diceológicas, 117 normas deontológicas e quatro disposições gerais, mantendo forte similaridade estrutural e de conteúdo com a versão anterior.
O quadro 1 demonstra a distribuição absoluta e percentual dos artigos, constitutivos da versão do CEM 2019 (unidades de contexto), relacionados às “categorias de análise” formuladas na pesquisa a partir da leitura e análise da DUBDH.
Os princípios que aparecem com maior frequência são dignidade, e autonomia e responsabilidade individual, com 30 (19.4%) e 28 (18.2%) artigos, respectivamente. Este resultado era esperado visto que a dignidade é o conceito fundante da DUBDH, além de influenciar todas as convenções e códigos de direitos humanos internacionais e locais (Unesco, 2005).
Para a DUBDH, a dignidade limita o escopo de princípios como (1) Autonomia e (2) Respeito à diversidade cultural e o pluralismo, na medida em que garante respeito às pessoas que não podem consentir, e abomina as práticas culturais que ofendem a dignidade humana. Ademais, influencia diretamente os princípios de (1) Privacidade e confidencialidade e (2) Não discriminação e não estigmatização, ao proteger a intimidade dos indivíduos e condenar qualquer forma de categorização ofensiva. Além disso, está indiretamente envolvido em todos os demais princípios, visto que estes não devem ferir a dignidade humana (Unesco, 2005; Adorno, 2014).
O princípio da Dignidade tem um papel central na orientação do CEM. O CEM aborda, concordante com a DUBDH, dois tipos de dignidade em seus artigos, a dignidade inerente à pessoa humana, que transcende sexo, etnia, idade, nacionalidade, e a dignidade moral, que é sinônimo de honra, e está relacionada à conduta moral de cada indivíduo. A dignidade é abordada em alguns artigos que versam sobre crimes de lesa-humanidade, não comercialização do corpo, não comercialização da medicina, sendo estendida desde o gene até ao cadáver.
Mas, a aproximação aos demais princípios da DUBDH, ampliam direitos e proteção aos mais vulneráveis, e reconhecem a saúde pública como prioridade?
Apesar da autonomia ter uma projeção significativa (18.2%) no CEM, adota-se como influência a teoria principialista, liberal, de natureza contratual. De modo distinto, a DUBDH rejeita a noção de que o respeito à autonomia deve continuar sendo o principal princípio norteador da bioética, oferecendo uma visão ampliada e ancorada na autenticidade, e no respeito pelas pessoas (Unesco, 2005; Snead & Mulder-Westrate, 2014). Enquanto o artigo 26 do CEM considera a história de vida, e contexto, os artigos 27 e 28, ao restringir as pessoas a pacientes, limita a atuação do médico a certos procedimentos técnicos e atitudinais, com possibilidade de limitação da autonomia da pessoa sob cuidado na tomada de decisão.
Daí, o risco de paternalismo, justificado ou não, estar sempre presente na relação médico-paciente. (Borysowski, Ehni, Górski, 2021)
Segundo Dubet (2020), na concepção de autonomia vinculada à de modernidade e de sistema de desigualdade de classes o indivíduo conciliava paixões e interesses, internalizando papéis e moralidades sociais, “universais”. Na atualidade, no sistema de desigualdades múltiplas, o indivíduo mais livre e mais igual, reivindica autenticidade e singularidade, vivenciando interesses e paixões, em contradição, subordinados à divisão entre o mercado e a cultura. Como consequência observa-se o “declínio ou crise endêmica das instituições de socialização”, em que o cidadão virtuoso agora é ensinado a ter sucesso e competir, aliado à nostalgia do modelo anterior, justificando e reforçando o autoritarismo de instituições e do Estado.
Dentre as unidades de registro, confirmadas, relacionadas a autonomia, a ênfase está na capacidade de autodeterminação (18.5%) e liberdade das interferências paternalistas (25.9%). Ainda assim, o paternalismo aparece parcialmente justificado quando o médico subordina a autonomia a outros bens, como exemplificado nos artigos 75 e 76 do capítulo IX (Sigilo Profissional) do CEM atual:
É vedado ao médico:
Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou imagens que os tornem reconhecíveis em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente. (CFM, 2019, p.35)
Art. 76. Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade. (CFM, 2019, p.35)
As contribuições de diversas áreas (filosofia, direito, sociologia, psicanálise, bioética), na reflexão sobre a autonomia, confluíram para uma ética do desejo e da vontade individual, suprema, impulsionada e mantida sob o controle das artimanhas de marketing de um mercado de bens de consumo, que oferece de forma sedutora experiências para o desfrute e o prazer instantâneos, inclusive promessas de saúde, beleza, juventude prolongadas, em difícil equilíbrio com a responsabilidade e o laço social (Bauman, 2013). Já não há fronteiras para a venda de inúmeros medicamentos, entre as farmácias e os supermercados, onde se pode comprar livremente, analgésicos, vermífugos, anti-hipertensivos, testes de gravidez, aparelhos para medir a pressão e a saturação de oxigênio etc. Os indivíduos também estão mais informados, com acesso a uma multiplicidade de fontes, adequadas ou não, muitas vezes, o médico servindo apenas como último agente, com a confiança abalada, vivenciando a prática com o sentimento de impotência e raiva, sendo usado para a solicitação de exames e condução do tratamento, que passa a ser descontínuo, ao sabor do humor e da vontade do paciente. Com a confiança e a identidade atingidas, a categoria dispõe ainda de uma lei do Ato Médico (Brasil, 2013), que a põe em litígio permanente com as demais áreas da saúde que pressionam para abocanhar fatias do mercado de procedimentos técnicos e de prescrição.
Afirma Garrafa (2014, p.745) que a “fragilidade da utilização maximalista da autonomia está na possibilidade de esta ser direcionada a um individualismo extremado, que sufoca qualquer direcionamento inverso, coletivo, indispensável para o enfrentamento dos grandes problemas sociais, constatados especialmente nos países do hemisfério Sul”.
Outros artigos no CEM conferem ao princípio da autonomia o caráter de defesa prudencial, parcial, da autonomia do médico diante da tomada de decisão, respeitando a vontade do paciente, ou seus representantes, bem como diante dos demais profissionais das equipes de saúde.
No capítulo IV, que versa sobre os direitos humanos, base para a resolução dos problemas éticos e jurídicos existentes no domínio da biomedicina (Patuzzo, Goracci, Rosagemma, 2018), as questões relacionadas a autonomia, limitam a autoridade médica mais do que conferem autonomia aos pacientes. Além disso, as unidades de registro (1) Autonomia como direito e responsabilidade e (2) Respeito pelas pessoas/seres humanos/vida humana do paciente, não foram contempladas no CEM.
Quando se consideram as pessoas sem a capacidade de consentir (Unesco, 2005; Gefenas & Tuzaite, 2014), uma preocupação fundamental na DUBDH, as Diretivas Antecipadas de Vontade, ainda não são contempladas no CEM, embora haja resolução à parte do Conselho Federal de Medicina. Talvez isso decorra do fato de os cuidados paliativos terem sido introduzidos, recentemente, na prática médica brasileira. Apenas a unidade de registro Respeito ao bem-estar e interesse da pessoa para neutralizar tendências de uso de bens da pessoa para beneficiar outras partes foi contemplada no CEM.
Em seguida aparece em destaque o princípio do respeito à vulnerabilidade humana e a integridade pessoal com 22 artigos (14.2%). Embora os conceitos de vulnerabilidade e integridade muitas vezes se confundam, no artigo 8 da DUBDH estabelece-se a distinção e considera-se como obrigação nacional e internacional proteger aqueles que estão em uma posição social frágil como resultado de características pessoais, fatores socioeconômicos ou qualquer outro indicador de desvantagem:
Art. 8. A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada. (Unesco, 2005, p.8)
Observa-se no CEM maior preocupação na proteção aos vulneráveis no contexto clínico da relação médico-paciente. Os demais contextos, tecnológico, social são menos contemplados e dissociados das preocupações expressas na DUBDH (Unesco, 2005; McLean, 2014).
O princípio benefício e efeitos nocivos abrange 11% dos artigos do CEM. Essa categoria de análise foi subdividida em 3 grandes unidades de registros: prestação de assistência sanitária, benefícios individuais, e efeitos nocivos, com subunidades derivadas. Destas, apenas à prestação de assistência sanitária não foram relacionadas unidades de contexto correspondentes. Uma possível explicação para isso é devido a esta unidade propor ações que vão além da relação médico-paciente com ampliação das responsabilidades da categoria na relação com a sociedade.
Esta subunidade adquire alguma importância se relacionada a outras unidades: responsabilidade social, solidariedade, autonomia (Unesco, 2005; Evans, 2014). No entanto, o conteúdo presente no CEM, restrito à relação médico-paciente, não possibilita a compreensão da saúde como direito humano, e não confere a importância necessária à saúde pública, aspectos importantes em um país dividido por injustiças, e desigualdades históricas.
A ausência de unidades de contexto no CEM relativas à prestação de assistência sanitária, relacionada na DUBDH à defesa e garantia de acesso universal a uma saúde pública com qualidade, demonstra a opção do CFM de defesa do modelo tradicional de medicina liberal.
A unidade de registro efeitos nocivos supera a de benefícios, correspondendo a 52,9% dos artigos. O predomínio da intenção de primeiro não causar dano (primum non nocere) dá continuidade aos preceitos do juramento hipocrático, e em acordo também com as práticas éticas atuais de considerar o equilíbrio entre risco e benefício nas tomadas de decisões.
Percebe-se nos resultados a preocupação principal do CEM com a relação médico-paciente, ainda que estenda isso aos benefícios da sociedade, de forma parcial, em outros artigos, considerando pessoas em situação de vulnerabilidade.
Com menor relevância, aparecem os princípios da privacidade e confidencialidade (7.8%), solidariedade (7.1%), e não discriminação e não estigmatização (5.8%).
No que tange à categoria privacidade e confidencialidade, o CEM explicita reiteradas vezes o direito do paciente à privacidade e confidencialidade no contexto clínico, na pesquisa, em relações profissionais e até mesmo após a morte. Aborda também critérios de renúncia à confidencialidade. Contudo, não descreve, portanto não orienta os médicos sobre o respeito ao direito do paciente de não saber, exigência ética presente na DUBDH (Unesco, 2005; Martin, 2014).
A solidariedade implica em uma relação entre indivíduos ou grupos mutuamente responsáveis e beneficiários de uma cooperação, e que se antagoniza ao individualismo. Dentre as unidades de registro abordadas no CEM relacionadas à solidariedade destacam-se a solidariedade interprofissional e com o paciente, correspondendo a 82% dos artigos contidos nessa categoria de análise. Percebe-se na categoria de análise solidariedade, que o CEM se preocupa com a solidariedade para com o paciente, visto que ele regulamenta a relação médico-paciente, bem como com os profissionais da mesma categoria. Além disso, reforça a proteção aos mais vulneráveis e a preocupação com a pesquisa, porém as preocupações de alcance humanitário maior (Prestação de assistência sanitária à população em geral como um fim, Promoção da disseminação e cooperação científica, Promoção da capacidade de pesquisa de países em desenvolvimento, Promover solidariedade entre estados, indivíduos, famílias, grupos e comunidades) não são contempladas, mantendo-se distante da principal preocupação da DUBDH em ampliar direitos e a solidariedade para além da relação médico-paciente (Unesco, 2005; Garrafa, 2014).
Quanto à categoria não-discriminação e não-estigmatização, o CEM se preocupa com as diversas formas de discriminação (por cor, sexo, gênero, religião) no contexto clínico, e em menor proporção na pesquisa, no contexto social e com as possíveis desvantagens advindas de avanços tecnológicos, inclusive a discriminação genética.
No entanto, não menciona ações de discriminação reversa, tampouco medidas mais amplas que visem a proteção da saúde pública, enfatizadas na DUBDH (Unesco, 2005; Guessous, 2014).
Nessa categoria, os artigos 1 e 11 do capítulo II (Direito dos Médicos) do CEM contemplados na unidade de registro “não discriminação”, abordam a proteção ao direito e autonomia do médico, sendo o artigo 11 considerado pelo CFM como um dos avanços principais na versão atual:
É direito do médico:
I - Exercer a medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, cor, sexo, orientação sexual, nacionalidade, idade, condição social, opinião política, deficiência ou de qualquer outra natureza. (CFM, 2019, p.19)
XI - É direito do médico com deficiência ou com doença, nos limites de suas capacidades e da segurança dos pacientes, exercer a profissão sem ser discriminado. (Conselho Federal de Medicina (CFM, 2019, p.20)
Enquanto o artigo 47 do capítulo VII (Relação entre médicos), corresponde a não discriminação na relação entre médicos conferindo benefícios de execução difícil e conflituosa na proteção aos grupos mais vulneráveis na sociedade, o artigo 23 do capítulo IV (Direitos Humanos) admite a reflexão sobre a proteção associada à não discriminação:
É vedado ao médico:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. (CFM, 2019, p.25)
Art. 47. Usar de sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer outro que não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos no exercício da profissão, particularmente se forem os únicos existentes no local. (CFM, 2019, p.31)
O código pouco contempla as categorias de análise relacionadas a responsabilidade social (2.6%), pessoas sem capacidade para consentir (2.6%), proteção das gerações futuras e do meio ambiente (1.3%). Preocupação fundamental na DUBDH, referida às pessoas sem capacidade de consentir, as diretivas antecipadas de vontade, não foram incluídas na versão atual do CEM, embora exista resolução específica do CFM contemplando essa preocupação.
A proteção a pessoas sem capacidade para dar consentimento é uma das faces da vulnerabilidade descritas na DUBDH (Unesco, 2005; Gefenas & Tuzaite, 2014). No CEM, apenas duas unidades são contempladas: (1) Preocupação com públicos cativos e (2) usar a informação para tomar decisões realistas e razoáveis. A primeira leva em conta os tipos de contextos, enquanto que a segunda considera a definição de critérios para dar consentimento. São expressas, respectivamente, nos seguintes artigos do CEM:
É vedado ao médico:
Art. 105. Realizar pesquisa médica em sujeitos que sejam direta ou indiretamente dependentes ou subordinados ao pesquisador. (CFM, 2019, p.42)
Art. 74. Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. (CFM, 2019, p.35)
Quanto à responsabilidade social, o CEM é um código de responsabilidades orientadas principalmente para a relação médico-paciente e estendida em suas subdivisões para a relação interprofissional, a pesquisa e a perícia médica. No entanto, a responsabilidade sobre a qual a Unesco se preocupa, por meio da DUBDH (Unesco, 2005; Semplici, 2014), é a responsabilidade social orientada que está de acordo com as seguintes unidades de contexto: Proteção aos vulneráveis, Sinergia entre a saúde e outros aspectos do desenvolvimento, Proteção do direito fundamental ao nível máximo possível de saúde, Acesso aos medicamentos e serviços sanitários básicos, A pobreza e as pandemias. Há correspondência com o CEM, de forma parcial, com três dessas unidades (Proteção aos vulneráveis, Sinergia entre a saúde e outros aspectos do desenvolvimento, Proteção do direito fundamental ao nível máximo possível de saúde). Essa característica do CEM ajuda a compreender a posição ambígua do CFM diante da implementação de programas ampliados de proteção à saúde dos mais vulneráveis, como o Programa Mais Médicos, e da gestão da saúde no contexto atual de enfrentamento à pandemia Sars-CoV-2.
Nota-se também que o código de ético médico não contempla em nenhum dos artigos os princípios de “compartilhamento de benefícios”, “igualdade, justiça e equidade”, e “respeito à diversidade cultural e ao pluralismo”, senão de forma indireta, dificultando aos médicos a reflexão e a aplicação dos mesmos.
A Declaração de Helsinque, elaborada pela World Medical Association, modelo para a normatividade expressa no CEM, advoga por uma espécie de retribuição para aqueles que ajudaram no progresso científico: “A pesquisa médica envolvendo uma população ou comunidade desfavorecida ou vulnerável é apenas justificada se . . . existe uma probabilidade razoável de que essa população ou comunidade possa se beneficiar dos resultados da pesquisa”. (World Medical Association [WMA], 2013, para. 17)
Embora no CEM haja alguma preocupação com os vulneráveis no acesso à pesquisa, e nos mecanismos legais de proteção, não há menção ao compartilhamento de benefícios - que seria, de fato, a maior garantia aos grupos vulneráveis. (Unesco, 2005; Schroeder, 2014)
Os artigos XXIII, XXV, e sobretudo o XXIV, contidos nos Princípios Fundamentais do CEM, estão de acordo com a Declaração de Helsinque (especificamente com o parágrafo 17) na medida em que os benefícios adquiridos com o resultado da pesquisa ficam restritos aos sujeitos da pesquisa.
No que se refere às categorias de análise (1) Respeito pela diversidade cultural e pluralismo e (2) Igualdade, justiça e equidade, não há correspondência direta no Código a esses princípios, os quais são abordados indiretamente, em artigos que tratam diretamente sobre dignidade, não-discriminação, vulnerabilidade e integridade pessoal, sem a relevância exigida na DUBDH (Unesco, 2005), diante dos movimentos migratórios, conflitos étnicos, regimes autoritários, a globalização, as ameaças pandêmicas, e os agravos ambientais.
Quanto à categoria de análise proteção das gerações futuras e do meio ambiente, o CEM adota que a deterioração do ecossistema pode ser prejudicial à saúde e à vida, bem como ressalta que o avanço tecnológico não deve promover nenhum tipo de discriminação ou dano aos indivíduos (Unesco, 2005).
Contudo, não discorre sobre desenvolvimento sustentável, tampouco sobre formas de precaução e prevenção de danos ao meio ambiente e às gerações futuras.
A versão atual do CEM, apesar de sua ainda forte influência da doutrina principialista, apresenta evolução na tentativa de assegurar direitos e proteção aos médicos, prezando pela manutenção de uma autonomia prudencial na relação com os pacientes e profissionais da saúde. Isto é evidenciado pela maior frequência das categorias de análise “dignidade”, “autonomia e responsabilidade individual”, “respeito à vulnerabilidade humana e integridade pessoal”, que conjuntamente formam mais de 50% do CEM.
Embora as questões relacionadas a autonomia tentem corresponder à ética dos direitos humanos, o documento acaba se limitando a autoridade médica mais do que reconhecendo, de fato, autonomia ao paciente.
Em relação aos benefícios e efeitos nocivos nota-se grande preocupação do CFM com a relação médico-paciente, embora estenda os benefícios à sociedade, de forma parcial, em outros artigos, considerando pessoas em situação de vulnerabilidade.
As categorias de análise “compartilhamento de benefícios”, “igualdade, justiça e equidade”, “respeito à diversidade cultural e ao pluralismo”, não são contempladas no código e com isso percebe-se que a inclusão de preocupações sociais mais amplas é realizada de forma fragmentária e insuficiente, não conferindo ao CEM um caráter documental assegurador da defesa da saúde pública, e da ampliação e garantia dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, situadas historicamente em posição de desigualdade em decorrência de injustiças e negação de direitos fundamentais, como o acesso à saúde e outros bens que confiram dignidade e qualidade a todas as vidas.
Soares, Shimizu & Garrafa, (2016, p.13), escrevendo sobre a evolução dos códigos de ética profissional, apontam a necessidade de revisão destes tendo como eixo a DUBDH:
Essa é a reflexão necessária para superar interesses corporativistas e entender que nossos atos não são destituídos de valores ou reféns de uma ética que nos determina e nos ultrapassa, mas que pode e deve ser reparada, e absorver contribuições das distintas áreas do conhecimento, para inseri-las no debate ético, plural, para a construção das novas realidades.
Gracia (2010) sugere o método deliberativo, coletivo, para a tomada de decisões prudentes e razoáveis, a moralização das profissões e ressurgimento das éticas profissionais.
A ética médica é filosofia moral quando examina todas as questões delicadas que são direta ou indiretamente levantadas pela medicina a partir de seu núcleo focal: o
4.Considerações Finais
A medicina que conhecemos tem origem no século XVIII coincidente com a organização do Estado, e segue em sua própria organização jurídico-legal e de desdobramentos em especialidades, em conformidade com os modelos político-econômicos que sustentaram o processo de industrialização, e a divisão do trabalho e de classes. Os códigos de ética profissionais surgiram em meio a essa divisão conferindo poderes, estabelecendo fronteiras, identidades, e um padrão normativo ético de conduta profissional baseado na virtude, na autonomia do médico e na técnica, em conformidade com o desenvolvimento social e industrial, e a divisão em classes. No momento atual de acelerado desenvolvimento tecnológico e da ciência, com impacto no trabalho em saúde, o modelo normativo dos códigos de ética profissionais ainda faz sentido?
Embora o propósito deste estudo fosse observar os avanços do CEM em relação aos direitos humanos, presentes nele como capítulo a parte, é possível reconhecer e afirmar que o conteúdo e redação dos artigos mantém uma posição de informação técnica (44,9%) e de virtude do médico (10,3%), predominante, orientadora e vigilante das boas ações, e punitiva quando necessário. Esta característica limita a compreensão de reconhecimento da saúde como direito, sendo o CEM restrito à excelência de procedimentos técnicos e condutas exemplares, a face atual da virtude aristotélica. Por outro lado, aspectos deontológicos, virtuosos, e principialistas, são ordenados aparentemente sem conflitos, guiando os médicos na tarefa complexa, cotidiana, da atenção à saúde individual, sem a reflexão fortalecedora da saúde pública. Sugere-se o método deliberativo, coletivo, para a tomada de decisões prudentes e razoáveis para a moralização das profissões e ressurgimento das éticas profissionais, um desafio para a reconstrução permanente das práticas profissionais em saúde baseada na cooperação e responsabilidade compartilhada entre as profissões. O desafio de revisão dos códigos foi posto à prova diante do enfrentamento a uma pandemia que exigiu o reconhecimento da pluralidade de vozes na cooperação, em equilíbrio com a salvaguarda dos direitos fundamentais de autonomia profissional.
Os dados que sustentam os achados deste estudo estão disponíveis: QUADRO2 -BIOETICA-CEM2019.docx - Documentos Google ou mediante solicitação a francisco_passos01@hotmail.com