1.Introdução
Para que as organizações públicas possam prestar serviços de excelência, elas precisam de pessoas com perfil adequado e que estejam comprometidas com o serviço público. Em função disto, as áreas de gestão de pessoas precisam estabelecer e adotar práticas que viabilizem a disponibilidade de pessoas em quantidade e perfil necessário, fornecer condições adequadas ao trabalho, além de acompanhar o desempenho dos profissionais e recompensar e valorizar pelo trabalho realizado. Estudos sobre práticas de gestão de pessoas no setor público vem crescendo e se tornando cada vez mais necessários (Demo, Costa, & Coura, 2024). Isto decorre do fato de que o sucesso de uma organização vai depender em grande parte das pessoas que trabalham nela, e as organizações públicas precisam adotar práticas de gestão de pessoas que garantam a disponibilidade de profissionais comprometidos, qualificados e engajados, uma vez que estas práticas são um aspecto que influencia na retenção do servidor público (Fahim, 2018).
Bandeira et al. (2017) evidenciam a relevância de pesquisas sobre gestão de pessoas no setor público ao realizar uma revisão da literatura e constatam que a maioria dos estudos adotaram abordagem qualitativa, e que tratam de práticas de gestão de pessoas. Os autores afirmam que os estudos sobre o tema relatam sobre aspectos da dificuldade de adequação da legislação como barreira à adoção de práticas inovadoras de gestão de pessoas. Demo et al. (2024) definiram um conjunto de quatro dimensões de práticas de gestão de pessoas para o contexto de organizações públicas, considerando as suas particularidades que as diferem de organizações privadas, sendo elas: relacionamento; treinamento, desenvolvimento e educação; condições de trabalho; e competências e avaliação de desempenho.
Já Montezano e França (2024) propuseram um modelo para avaliar a maturidade das práticas de gestão de pessoas no setor público, tendo em vista considerar relevante ter uma ferramenta de diagnóstico que permita identificar oportunidades de aperfeiçoamento nas práticas organizacionais para gerir as pessoas. O modelo é composto por uma lista de 91 práticas agrupadas em 9 dimensões: diagóstico e prognóstico de competências, provimento de pessoal, desenvolvimento de pessoal, desempenho de pesssoal, condições de trabalho, envolvimento e relacionamento, governança de gesão de pessoas, e monitoramento de gestão de pessoas. Côrtes e Meneses (2018) identificaram condições necessárias para implementação da gestão estatégica de pessoas em uma organização pública brasileira, relacionadas a 21 aspectos que influenciam nesta adoção, os quais foram agrupados em quatro categorias: institucional (ex: aspectos normativos), política (ex: apoio da alta administração), organizacional (ex: características culturais), setoriail (ex: reputação da unidade de gestão de pessoas, recursos da unidade). Camões (2019) descreveu desafios para gestão de pessoas no setor público brasileiro, tais como: limitações nas estratégias de recrutamento e seleção que consideram apenas o aspecto do conhecimento mensurado em uma prova de concurso; limitações nos critérios de ascenção profissional na carreira; limitações nos critérios de ocupação de cargos de função, falta de critérios objetivos para mensuração da força de trabalho; desequilíbrio salarial entre servidores que ocupam a mesma função e atuam em diferentes órgãos públicos, limitações para adoção efetiva do modelo de gestão por competências, além de aspectos de variáveis de comportamento organizacional como liderança, clima, cultura organizacional, engajamento e bem-estar que deveriam ser mais discutidos e efetivamente implementados. Para a autora, existem aspectos estuturais que precisam ser revistos no serviço público para melhorar as condições de adoção das práticas de gestão de pessoas.
Rahn e Weber (2019) sistematizaram oito categorias de boas práticas a serem adotadas na gestão de pessoas de organizações públicas, e constaram algumas dificuldades que são enfrentadas pelas organizações, tais como: restrições de recursos financeiros, aspectos culturais, rotatividade de gestores, impossibilidade de demissão de pessoal, interferências políticas, imposições legais. Como a gestão por competências no setor público é um modelo de gestão de pessoas estratégico, Montezano et al. (2019) realizaram uma revisão da literatura específica sobre a temática, e ao analisar 82 artigos, identificaram baixa produção sobre práticas de avaliação de desempenho e recompensa por competências. Os autores constataram que a maioria dos estudos utilizaram abordagem qualitativa (63,9%), indicando a preocupação de aprofundar o tema com este tipo de abordagem. Por fim, consolidaram 45 dificuldades enfrentadas pelas organizações públicas para implantar a gestão por competências, agrupadas em seis categorias: comportamento organizacional (ex: cultura organizacional), dificuldades dos gestores e equipe de implantação (ex: falta de equipe capacitada); particularidades do contexto da gestão pública (ex: aspectos legais e normativos); dificuldades metodológicas e conceituais da gestão por competências (ex: complexidade para descrever as competências); suporte organizacional (ex: falta de apoio da alta administração); características da organização (ex: tamanho da organização, limitações geográficas).
Montezano (2023) identificou desafios que os gestores de organizações públicas enfrentam para gerir as pessoas das suas equipes de trabalho, constatando inclusive aspectos de falta de suporte organizacional, falta de valorização do gestor, problemas de comportamento organizacional vinculados a falta de motivação, engajamento e comprometimento das pessoas, além da própria limitação do perfil do gestor no que tange ao preparo adequado para desempenhar tal função. A partir desta pesquisa, a autora recomenda que sejam realizadas investigações para identificar desafios na gestão de pessoas das organizações públicas. A literatura recomenda estudos com a percepção de diferentes organizações sobre adoção de práticas de gestão de pessoas no setor público, com ótica tanto de profissionais da área de gestão de pessoas como de outras áreas (Rahn & Weber, 2019), além da necessidade de se avançar em estudos na área de gestão com uso da abordagem qualitativa (Lanka et al. 2021).
Dada a relevância de se adotar práticas de gestão de pessoas no setor público, e a existência de estudos que evidenciam dificuldades e condicionantes para a implementação de modelos de gestão de pessoas, tem-se a seguinte pergunta de pesquisa: qual a percepção dos profissionais que atuam em organizações públicas quanto aos desafios que enfrentam para implementar as melhores práticas de gestão de pessoas em suas organizações?
Sendo assim, este artigo teve como objetivo de identificar os desafios para adoção das práticas de gestão de pessoas no setor público, com o uso de uma abordagem qualitativa de pesquisa.
2.Método
A pesquisa é caracterizada como descritiva, com recorte transversal, e uso de abordagem qualitativa. A pesquisa foi aplicada no contexto de uma disciplina de gestão de pessoas no setor público do mestrado em administração pública de uma instituição de ensino superior sediada no Distrito Federal do Brasil, composta por 46 alunos. Dentro deste contexto, a pesquisa foi motivada tanto para levantar as informações alinhadas ao alcance do objetivo estabelecido, como também para subsidiar as discussões com os alunos de aspectos que identificam como desafios nas organizações públicas para direcionar a preparação das aulas mais focadas ao que vivenciam em seus contextos de trabalho.
Para tanto, foi aplicado um questionário eletrônico no google forms estruturado em 3 partes: (i) apresentação da pesquisa e pergunta de consentimento para participação voluntária; (ii) perguntas abertas sobre o desafios para adotar práticas de gestão de pessoas e de sugestão de ações para superar os desafios; (iii) perguntas do perfil do participante. Ressalta-se que o foco desta pesquisa foi apenas da pergunta referente aos desafios enfrentados.
A escolha por realizar uma pergunta aberta com um questionário deve-se ao fato de permitir maior número de participantes em menor tempo de coleta, e ainda manter o benefício de que a pessoa pudesse descrever sua percepção sobre a questão norteadora de forma mais livre, e deixando o participante mais a vontade para indicar o que pensa sobre o assunto, permitindo maior riqueza de descrição do que se tivesse indicado diretamente um questionário com perguntas fechadas. Com isso, permite entender de forma mais abrangente o fenômeno estudado (Proetti, 2017). Além disso, a pesquisa qualitiativa permite gerar valor ao conseguir identificar categorias para além das existentes na literatura, tendo em vista buscar informações nos contextos que podem enriquecer e avançar no conhecimento (Eakin & Gladstone, 2020). A partir de uma amostragem não probabística por conveniência, obteve-se uma amostra de 34 respondentes, representando 73,9% da população da pesquisa. Os dados coletados foram exportados para uma planilha do Excel, tendo os dados de perfil do participante consolidados com estatística descritiva de frequência, média e desvio padrão.
A amostra, conforme Tabela 1, é caracterizada principalmente como do sexo feminino, com faixa etária de 40 a 44 anos, com especialização, e que residem no Distrito Federal. Quanto ao vínculo institucional, a maioria é de organização do poder executivo, da esfera de governo estadual/distrital. A maioria possui experiência em gestão, com média de 11,8 (DP=8,7) anos, e mais especificamente experiência com gestão de pessoas no setor público, com média de 7,7 (DP=7,4) anos, além de terem em média 19,44 (DP=6,5) anos de experiência como servidores públicos. Sendo assim, o perfil da amostra contemplou a recomendação de Rahn e Weber (2019) para estudar adoção de práticas de gestão de pessoas com profissionais de diferentes organizações do setor público, como foi descrito serem de diferentes esferas de poder e de governo, além de serem profissionais com e sem experiência profissional atuando na área de gestão de pessoas.
Os dados da pergunta aberta geraram um corpus de 998 palavras. Para realizar a análise de dados, inicialmente foi gerada uma nuvem de palavras com o uso de um site gratuito (https://www.wordclouds.com/) de modo a permitir a visualização geral das palavras mais recorrentes, e contribuir com a definição prévia de algumas categorias.
Em seguida, foi criado um código para cada respondente, de modo a permitir o uso de exemplos de relatos, sem identificar o sujeito. A codificação foi Q”n”, em que a letra Q representa a origem da informação pela fonte de coleta do questionário, e a letra “n” representa o número do respondente na ordem de preenchimento do questionário eletrônico. Posteriormente foi realizada a análise categorial temática de Bardin (2016), por meio de uma leitura geral de todo o corpus para exploração inicial dos dados. Com esta leitura, foi possível verificar a necessidade de se estabelecer dois níveis - tanto de definição de categorias como subcategorias para gerar maior entendimento sobre o resultado.
Em um segundo momento, foi realizada uma leitura mais detalhada, dividindo as respostas dos participantes em 92 relatos de núcleos de sentido, os quais foram agrupados nas subcategorias, ou seja, esta definição emergiu dos dados, sendo uma análise a posteriori em que os nomes partiram dos relatos, exceto no caso das limitações das práticas em si, em que se buscou agrupar os núcleos de sentido considerando terminologias das práticas de gestão de pessoas da literatura, mais especificamente do modelo consolidado por Montezano e França (2024). Estas subcategorias foram agupadas em categorias temáticas, alinhando a conteúdos identificados na literatura, quando possível. Para o agrupamento nas categorias e subcategorias foram utilizados os critérios propostos por Bardin (2016) no que tange à homogeneidade, pertiência e exclusão dos núcleos de sentido para as subcategorias e categorias.
3.Análise de resultados
Em uma análise preliminar dos dados coletados, a nuvem de palavras da Figura 1 permitiu identificar a recorrência de palavras quanto às práticas de gestão de pessoas, como seleção, recrutamento, engajamento, avaliação de competências, o que acarretou na necessidade de se criar uma categoria temática específica quanto aos desafios existentes nas práticas em si, e não no contexto para adoção das práticas, conforme havia sido questionado na pergunta aberta, como foco e objetivo da pesquisa. Isto evidenciou a geração de valor da pesquisa qualitativa em receber mais dados, além dos esperados na pesquisa. A nuvem também demostra a recorrência de aspectos inerentes a modelos de gestão do próprio contexto público.
A análise de conteúdo categorial temática, seguindo as diretrizes de Bardin (2016), permitiu identificar cinco categorias temáticas, sendo quatro de aspectos contextuais que podem prejudicar a adoção das práticas de gestão de pessoas, e uma categoria das limitações nas práticas em si que são adotadas pelas organizações públicas.
A Tabela 2 apresenta a consolidação das categorias, subcategorias, quantidade e exemplo de relatos que deram origem a respectiva subcategoria.
Na categoria de barreiras do comportamento organizacional, os desafios dizem respeito a padrões de comportamento adotados pelas pessoas na organização, como o coorporativismo e a resistência a mudança, além da própria cultura organizacional que estabelece os valores para direcionar os comportamentos dos indivíduos. Esta categoria está alinhada ao que também foi identificado por Montezano et al. (2019) e Rahn e Marques (2019). O principal desafio desta categoria diz respeito a aspectos da cultura organizacional que foi apontado por Cortês e Meneses (2018) como um fator condicionante para implementar a gestão de pessoas em organização pública, ou seja, no caso da pesquisa este condicionante tem influenciado de forma negativa para adotar as melhores práticas de gestão de pessoas nas organizações.
A categoria da “Falta de preparo para adoção de práticas de gestão de pessoas” evidencia que as pessoas que atuam na área de gestão de pessoas de organizações públicas precisam ter preparo adequado para realizar suas atividades, conforme também foi apontado por Loureiro et al. (2017) e Montezano et al. (2019), além de que os gestores precisam ser preparados para gerir suas equipes de forma eficiente, conforme também foi descrito por Montezano (2023).
A falta de suporte organizacional também foi identificada no estudo de Montezano (2023) no contexto de um desafio para o gestor realizar seu trabalho de gerir pessoas. Nesta categoria, o aspecto mais mencionado que pode ser um limitador para adoção das práticas de gestão de pessoas foi a falta de apoio da alta administração, conforme também constado por Montezano et al. (2019), sendo que a existência deste tipo de apoio foi um condicionante apontado por Cortês e Meneses (2018) como necessário par implementar gestão de pessoas em organização pública.
A categoria de Limitações inerentes ao contexto do setor público é composta pelos desafios decorrentes de modelos de gestão burocráticos e de possíveis “amarras” que os aspectos normativos e legais acabam limitando a adoção de determinadas práticas de gestão de pessoas, assim como foi evidenciado nos estudos de Bandeira et al. (2017), Côrtez e Meneses (2018) e Montezano et al. (2019).
Por fim, a limitação nas práticas em si de gestão de pessoas foi a categoria com maior quantidade de relatos e de subcategorias, e identificada para além do que se esperava para o escopo da pesquisa. Os participantes evidenciaram quais as que possuem mais desafios para serem praticadas pelas organizações públicas, sendo que das 9 dimensões do modelo de práticas proposto por Montezano e França (2024), foram identificados desafios em sete delas (envolvimento e engajamento; desenvolvimento de competências; recrutamento e seleção; recompensa e valorização; condições de trabalho, avaliação de desempenho, e da adoção da gestão por competências de modo geral). Já as quatro dimensões de práticas do modelo de Demo et al. (2024) foram identificadas nesta pesquisa como dificuldades que as organizações possuem para colocá-las em prática. Esta pesquisa corrobora com os achados de Camões (2019) no que diz respeito a dificuldades enfrentadas no processo de recrutamento e seleção pela forma que são feitos os concursos públicos, dificuldades relacionadas a avaliação de desempenho, implementação da gestão por competências e de estabelecer mecanismos para engajar, recompensar e valorizar o servidor público.
Além disso, foi possível também constatar desafios relacionados a preocupação com a demonstração de resultados de gestão de pessoas, e com a fiscalização do cumprimento das práticas, o que tem alguma relação com a proposta de governança de gestão de pessoas no setor público, conforme diretrizes do TCU (2020). E ainda, os participantes evidenciaram o desafio da adoção de aspectos de diversidade, inclusão e equidade que é um tema que vem sendo recomendado para ser discutido e adotado nas organizações públicas brasileiras (Timóteo, 2022).
4.Considerações Finais
A pesquisa alcançou o objetivo proposto de identificar aspectos contextuais que representam um desafio para a gestão de pessoas nas organizações públicas, inclusive de quais práticas possuem maiores limitações. O uso do método qualitativo permitiu identificar informações que não estavam previstas inicialmente para serem coletadas, como a dificuldade nas práticas em si, mas emergiram das respostas dos participantes como pontos que precisam também ser tratados, ou seja, não apenas aspectos contextuais, mas como as práticas em si ocorrem nas organizações, e que acabam sendo influenciadas pelo contexto. Um exemplo disto é uma limitação legal, subcategoria dentro de uma categoria do contexto específico do setor público, que estabelece a necessidade de realizar concurso público com prova de conhecimento, acaba prejudicando na prática em si de recrutamento e seleção de pessoal, ou seja, no como fazer esta prática.
O estudo sobre estes desafios pode contribuir com avanços de compreensão do contexto das organizações públicas que pode justificar a influência destes aspectos inclusive na maturidade da gestão de pessoas destas organizações. Do ponto de vista metodológico, a abordagem qualitativa contribuiu para corroborar aspectos indicados pela literatura como desafios, inclusive com diferentes óticas de profissionais que atuam em diferentes organizações públicas, tanto em áreas de gestão de pessoas ou não. Também permitiu gerar novas categorias das práticas em si, inclusive de preocupações quanto à necessidade de fiscalizar o uso correto das práticas e avaliar resultados relacionados à adoção delas, alinhados à diretrizes de governança para área de gestão de pessoas, e ainda identificar a necessidade de se pensar em práticas de temas que tem sido considerado como tendência em gestão de pessoas, como a questão de adotar efetivamente a gestão por competências e tratar de questões de diversidade, equidade e inclusão nas organizações públicas.
O estudo também evidencia a relevância do uso de uma pesquisa com abordagem qualitativa para coletar informações com alunos de mestrado, de modo a direcionar os conteúdos a serem abordados na disciplina de gestão de pessoas no setor público, considerando os desafios específicos dos alunos.
Como limitação da pesquisa, tem-se o aspecto contextual de ser aplicada apenas com alunos de uma disciplina, e com 34 pessoas que não permite a generalização dos dados, mas permite ter uma visão da percepção dos participantes para compreensão do fenômeno.
Como agenda de pesquisas futuras, recomenda-se realizar associação dos desafios enfrentados para adoção de cada uma das práticas, tanto com estudos qualitativos como quantitativos para verificar o grau de influência; realizar mais investigações sobre os desafios para implantação de melhores práticas de gestão de pessoas, sob diferentes perspectivas, inclusive de como estas práticas são operacionalizadas pela área de gestão de pessoas e pelos gestores; investigar os desafios associados ao grau de maturidade da gestão de pessoas das organizações públicas; identificar práticas e ações adotadas pelas organizações que possuem maior grau de maturidade de gestão de pessoas, inclusive que foram realizadas para superar os desafios, de modo a compartilhar experiências para contribuir com a aprendizagem de outras organizações.