1.Introdução: do nível de alcance ao sumário metodológico
Este trabalho, embora se insira no âmbito do debate sobre Metodologias Qualitativas na perspetiva Comparada, visa igualmente configurá-lo como uma recensão crítica do estudo de caso que consideramos exemplar.
Assim, tomamos o livro intitulado “O Estado-Providência na sociedade capitalista”, publicado em 1995, para revisão e análise dos modelos (empíricos e teóricos), com objetivo de responder à pergunta de pesquisa proposta neste artigo: de que forma, nas pesquisas qualitativas, as escolhas das unidades de comparação facilitam ou limitam a compreensão das políticas sociais?
As metodologias comparativas no âmbito das políticas sociais e como um campo de estudo, embora não sendo recentes, podendo ser situadas no corredor temporal do século XX, através dos estudos de Richard Titmuss, Harold Wilensky e Charles Lebeaux (Lijphart, 1971; Ragin, 1987; Alber, 1988; Collier, 1993), assumem-se como ferramentas de dois gumes ao serviço do investigador: por um lado, reside o facto de serem amplamente discutidas e reconhecidas as motivações, as utilidades e as finalidades dos estudos comparados (Esping-Andersen, 1990; Mishra, 1995; Taylor-Gooby, 2004) e, por outro, localizam-se os aspetos menos explorados nas produções científicas, que é o “lado obscuro” das pesquisas comparativas: uma discussão acerca dos limites das abordagens comparativas para o estudo das políticas sociais em diferentes países, com diferentes situações socioeconómicas à escala global.
Assim, a abordagem comparativa das políticas sociais, sobretudo em pesquisas qualitativas, é potencialmente capaz de equivocar ou esvaziar as possibilidades de interpretação e compreensão das diferentes respostas dos regimes e sistemas políticos face às crises sociais ou económicas, se considerada a gama mais ampla de métodos para lidar com aquilo a que alguns autores designam por “complexidade inerente às políticas sociais” (Peters & Fontaine, 2020) ou se negligenciada a sua funcionalidade como conceito de “acordos nacionais” (Clasen, 2007).
Ao meu ver, talvez seja por esta razão que analisar, precisar e estudá-las sejam tarefas difíceis, considerando que tendem a receber, em contextos particulares, significados por conveniência ou por convenção. Aliás, à semelhança do que dizem Walker & Wong (2013), a política social comparativa “permanece relativamente subdesenvolvida”.
Apesar do reconhecimento de que o crescimento, o amadurecimento e a expansão de um Estado, dentre vários fatores e influências, ocorre também na sua teia de relações - bilaterais e multilaterais - e por exposição às tendências globais, todavia as mudanças e o progresso multifacetado dos Estados dificultam a criação de padrões únicos, uniformes ou compartilhados, quer em termos de impactes políticos, quer socioculturais.
Estas limitações, prescrevendo o lado desértico das metodologias comparativas, são reforçadas quando os investigadores, procurando apenas espelhar as semelhanças e diferenças entre os países, regimes ou sistemas políticos, negligenciam ou rasamente apontam os aspetos subjacentes à comparação e que facilitam ou dificultam a compreensão e concretização das políticas sociais em diferentes contextos.
A temática das políticas sociais, podendo ser vistas como principais ferramentas de aplicação, gestão e avaliação dos Estados-Providência, é, como diriam Walker & Wong (2013) e Lalioti (2018), uma das mais difíceis de se analisar e comparar, uma vez que, para além do aspeto concreto enquanto variável explicativa do estado socioeconómico (Welfare State), as políticas sociais também apresentam um maior grau de sensibilidade crítica e de variação territorial, ligadas tanto à especificidade dos regimes e dos sistemas políticos vigentes em cada país, quanto à tendência local para lidar com a crise de forma diferenciada, cumulativa e histórica (Ferrera et al., 2000; Albuquerque, 2016).
Nestes termos, este trabalho é realizado visando alcançar dois objetivos fundamentais:
- Contribuir para o debate sobre as metodologias comparativas em políticas sociais, inspirando a construção de desenhos de pesquisas de natureza qualitativa tendentes a comparar a forma como os Estados-Providência reagem aos problemas sociais ou à forma como são fortemente afetados por estes;
- Identificar, no quadro de referências do campo da metodologia comparativas em políticas públicas, isto a partir da obra de Mishra, eventuais gaps sobre as opções metodológicas e/ou teóricas que se julguem pouco recomendadas, atendendo a natureza do caso de estudo deste artigo.
Em relação aos procedimentos metodológicos deste artigo, estabeleceu-se uma lógica de sistematização e de análise assentes em quadros teóricos e empíricos, com vista a favorecer a análise crítica sobre os fatores facilitadores ou limitadores da metodologia de comparação em políticas sociais. Assumiu-se, a partir deste constructo lógico, dois modelos de análise para, por um lado, encaixar as diferentes e dispersas dimensões e indicadores de análise referentes aos casos comparados por Mishra e, por outro, para tentar captar os fundamentos de razão para tipificação dos mesmos casos - ver anexos.
Nas dimensões de análise, o autor apresenta e destaca o capital e o trabalho. Porém, estas dimensões são desenvolvidas na lógica dos dois regimes dominantes e nas múltiplas formas como estes governos procuraram responder às crises do capitalismo assistencialista. Em termos práticos, afirma o autor (Mishra, 1995, p.2), estes regimes (neoconservador para a direita e o social-democrata para a esquerda) representavam os limites ideológicos dentro dos quais se desenrolou (e continua) o drama contemporâneo da segurança social.
Na sequência, são agrupados e distribuídos indicadores em função das dimensões de análise e/ou de variação e as suas respetivas bases de fundamentação - ver modelo empírico. São referenciados os seguintes indicadores empíricos: saldo do Orçamento Geral do Estado, crescimento económico, indicadores económicos, preços do consumidor, receitas fiscais, contribuições para a segurança social, taxas marginais de impostos sobre os salários médios, imposto sobre rendimentos pessoais, taxa de desemprego, taxas médias de desemprego, diferenças salariais homens-mulheres, rendimento disponível das famílias e percentagem da população em situação da pobreza.
Estas dimensões de análise configuram-se nas construções teóricas do autor, e são definidas pelo próprio investigador, visando responder aos modos como se sistematizaram as estratégias e as exigências do Estado-Providência nos casos em estudo (Ibidem, p.7-8).
Por fim, este artigo, pela sua natureza e estrutura, contempla “dados de observação secundários” (Campenhoudt, Marquet & Quivy, 2023) e adere aos princípios do exercício científico e do respeito pelo pluralismo epistemológico, quer a nível da recolha de informações (análise documental) e das referências às fontes, quer a nível da discussão e tratamento destas informações - aportadas e consideradas públicas e credíveis. Além disso, a pesquisa buscou minimizar qualquer conflito de interesse, garantindo a transparência e a objetividade em todas as diferentes partes que compõem a estrutura deste artigo.
2. Políticas sociais: não sendo tudo comparável, por que comparar?
Assume-se neste capítulo, que todos os países designados não desenvolvidos, em desenvolvimento ou emergentes, localizados na base e no meio do sistema económico global, distinguem-se não apenas por suas fracas ou insignificativas capacidades de influenciar as alterações das normas, agendas, práticas e políticas institucionais, configuradas a partir de um thinking model das grandes economias, bem como por serem também “clientes” dos negócios geridos pelos operadores do desenvolvimento e pelas agências multilaterais.
Não se pode negar o facto de que as políticas sociais traduzem a vontade e a visão de mundo dos governos na busca de melhores respostas para os problemas e as necessidades das suas populações, que são extensivas ao próprio Estado. Por isso, a sua compreensão e análise são providas de sentidos e significados atribuídos pelos atores no quadro das suas filosofias, crenças e convicções, na medida em que, conforme Löwy (1987), as políticas apontam para as perspetivas políticas e as visões sociais de mundo.
De acordo com Marshall (1975), as políticas e as assistências sociais tendem a reabilitar circunstâncias socioeconómicas, melhorar condições de vidas ou reajustar as incapacidades para que a pessoa ou a comunidade tire o máximo proveito possível.
Mais do que comparar as políticas sociais, justifica-se estudá-las, apesar das limitações apresentadas. A natureza e intenção das políticas sociais, se analisadas nos termos de referências com que o fazem as teorias das relações internacionais, das políticas públicas e do direito internacional, isto é, no âmbito das razões dos Estados aderirem aos tratados, das difusões e dos quadros cognitivos especializados (Keohane & Nye, 1977), residem o seu foco na necessidade de compartilhamento de práticas e de instituições que asseguram a estabilidade, melhoria e continuidade dos Estados.
Nestes termos, os Estados são induzidos a ratificar agendas regionais e internacionais sob o (pre)texto de interesses comuns (nomeadamente a promoção da paz, segurança, bem-estar social e universalização dos direitos sociais), de interdependência económica e de normas democráticas compartilhadas. Sendo assim, porque não estudar e comparar as políticas sociais?
A despeito disto, Collier (2007) afirma a ideia de que o conceito de “desenvolvimento”, ao qual se podem juntar o de neutralidade climática, sustentabilidade e os conceitos de territórios inclusivos e competitivos, é um negócio de agentes geoeconómica, geopolítica e geomilitarmente bem posicionados.
Estes e outros conceitos, reforçam a lógica de que os estudos comparativos são cada vez mais essenciais para criar padrões e tendências - semelhanças e diferenças ou singularidades e regularidades (Lijphart, 1971), construir quadros de difusão de políticas, definir o escopo de inovação e/ou melhoria de políticas sociais, estabelecer as lógicas causais ou explicativas dos casos tipificados como exemplos de sucessos, fracassos ou híbridos.
Todo este custo analítico e descritivo pode justificar, quer a robustez para validação/generalização dos modelos e casos de políticas comparados (Collier, 1993; George & Bennett, 2005; Simons, 2014), quer a aceitação, algumas vezes controversa, do que é bem-sucedido ou mal-sucedido, quando são realizados esforços de isolar variáveis explicativas das realidades comparadas.
3. As “coisas” de Ramesh Mishra: o caso de estudo
Nesta secção, procura-se apresentar os procedimentos adotados por Ramesh Mishra como exemplares, na medida em que permitem evidenciar a natureza, a trajetória e o pensamento dominante nas investigações e metodologias comparativas. A expressão “as coisas de Ramesh Mishra” é utilizada para designar esses elementos críticos recuperados para análise e compreensão. Tal como Durkheim (1980) concebia os factos sociais como “coisas” a serem analisadas, Mishra segue uma linha semelhante no estudo das políticas sociais.
A investigação de Mishra parte de uma pergunta com relevância científica e atualidade: quais as implicações da crise capitalista nas políticas sociais dos Estados-Providência, num contexto em que se questionava até a continuidade desse modelo de Estado? Mishra concentra-se nos regimes predominantes dos anos 70, nomeadamente os corporativismos neoconservador e social-democrata, formulando a pergunta: as distinções entre estes regimes na resposta às crises são meramente ideológicas e retóricas, ou existem diferenças substanciais nas políticas e nos seus efeitos?
Mishra (1995) observa que, durante este período, a opinião pública nos países ocidentais continuava a pressionar pela manutenção de serviços sociais universais. Para o autor, isso sugeria que o Estado-Providência se tornara um “dado irreversível”. Partindo do pressuposto de que o capitalismo é um fenómeno transnacional, Mishra argumenta que a crise capitalista afeta os Estados-nação em momentos distintos da sua história e desenvolvimento. Esta crise é assim entendida como um sistema de problemas globais, incluindo desemprego, diminuição da taxa de lucro, altas taxas de juro e inflação (Mishra, 1995, p. 10). Estes indicadores formam a grelha de análise usada por Mishra em toda a sua investigação, reconhecendo que os fenómenos sociais devem ser estudados em relação a outros fenómenos.
Mishra analisa a incapacidade das economias mistas e dos Estados-Providência em lidar com a crise prolongada de inflação e recessão económica, que afectou particularmente os Estados Unidos (EUA) e o Reino Unido (UK). Estes países, até então guiados pelas fórmulas keynesianas, viram-se forçados a adotar novas ideias neoconservadoras, enfrentando assim o fenómeno da estagflação - a combinação de inflação e recessão económica (Mishra, 1995, p. 5-6). Este fenómeno motivou Mishra a explorar a erosão da economia mista e do Estado-Providência, sem que uma nova ortodoxia se tivesse estabelecido como substituta da doutrina neokeynesiana.
O autor agrupa as unidades de análise pela similaridade das respostas aos problemas da crise, identificando três grupos de casos comparáveis que manifestam singularidades nas respostas dos regimes à estagflação. Por exemplo, no domínio da assistência social, os Estados-Providência reagiram de formas distintas: alguns optaram por estratégias de retração (EUA e UK), enquanto outros avançaram com estratégias de manutenção (Suécia e Áustria). Esta polarização influenciou as posições e medidas adotadas pelos restantes Estados-Providência da época.
Mishra introduz um elemento central na discussão das lógicas de polarização e posicionamento dos Estados-Providência: o “efeito de demonstração” e a captação de lições a partir das políticas adotadas. Esta abordagem é relevante no contexto da governança multinível e da transposição de quadros normativos e cognitivos (Börzel & Risse, 2014; Coêlho, 2016).
Ao rastrear a história da assistência social, Mishra identifica influências anteriores à Segunda Guerra Mundial, como o “efeito de demonstração” das políticas bismarkianas na Europa e nos EUA, destacando as reformas do Great Society e a noção liberal rawlsiana. No período pós-guerra, o autor aponta para o advento do Estado-Providência de Keynes-Beveridge no UK e a difusão imperialista destas políticas para o resto do mundo, referenciando, por exemplo, a Carta Marsh no Canadá (Mishra, 1995, p. 5, 9-12).
Em suma, o estudo de Mishra evidencia as complexidades e limitações das metodologias comparativas nas políticas sociais. A sua análise sublinha a importância de considerar as singularidades de cada regime e as suas respostas às crises, evitando generalizações excessivas e reconhecendo a diversidade de trajetórias políticas e sociais.
O modelo teórico1 definido para análise e interpretação do problema, ficou assente nas abordagens dos sistemas sociais e do funcionamento das estruturas de classes sociais e de integração institucional.
3.1 Retrato empírico: as unidades de análise
O autor realizou uma análise abrangente na definição dos indicadores, evitando ou minimizando os fatores limitativos que Bachelard (2005, p.17), denominou "obstáculos epistemológicos". Esses obstáculos poderiam ser criticamente refletidos na tentativa do autor de criar padrões sobre como os regimes reagem e são afetados por crises. Além disso, o estudo demonstra uma preocupação com as condições de escopo, destacando que nem tudo é comparável (Mair, 2008; Schmitter, 2008).
Os regimes políticos analisados foram estudados através de um modelo que incorporou dimensões e indicadores estatísticos, extraídos principalmente da base de dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), cobrindo o período de 1970 a 1989. O autor comparou os regimes em seis países, organizados em três grupos de resposta às crises: estratégias de retração do Estado-Providência (Estados Unidos e Inglaterra), estratégias de manutenção (Suécia e Áustria), e um terceiro grupo que atua como controlo entre os efeitos dos dois primeiros grupos (nova direita e corporativismo social), representado por Canadá e Austrália.
A pesquisa de Ramesh Mishra insere-se numa abordagem metodológica mista, com predominância qualitativa. O tratamento extensivo dos dados incluiu análise documental e tabulação de informações estatísticas. No entanto, os dados não foram analisados com base na lógica do impacto, grau de correlação ou associação das variáveis. O autor limitou-se a refletir e extrair dados de bases estatísticas oficiais de instituições internacionais, como a OCDE, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), garantindo assim a fiabilidade, verificabilidade e qualidade dos dados.
Sem a intenção de reduzir a exaustividade com que Mishra discute os estudos de caso, procuramos identificar e descrever os aspetos mais relevantes, conforme a natureza da investigação proposta. O exercício sintético focou-se na análise dos três capítulos dedicados à comparação entre as unidades de análise e os constructos lógicos do autor, considerando o comportamento das crises e as respostas dos governos:
- Os casos da nova direita: US e UK
Considerando a crise do capitalismo assistencialista, o autor procurou centrar a análise empírica nos modos como os governos dos US e UK definiram as suas políticas de retração em contraposição aos princípios do Estado-Providência e que resultados foram captados. Este primeiro estudo comparativo é desenvolvido a partir da leitura que se pode fazer da doutrina social da ideologia da Nova Direita, considerando, de igual modo, o princípio geral por trás do Estado-Providência, segundo o qual os governos deviam assumir a responsabilidade de manterem um mínimo decente de condições de vida de todos os cidadãos (Ibidem, p.21).
Há uma série de achados empíricos que mobilizou o engajamento analítico do autor e teceu as bases das variações deste primeiro grupo de casos comparáveis, designadamente a subida vertiginosa do desemprego na UK, de 1 e 2% nos anos 50/60 para 4 e 6% no fim dos anos 70. Nos US, o pleno emprego nunca foi responsabilidade do governo e, à semelhança da UK para o mesmo período, houve uma subida da taxa de desemprego (4 e 5% para 7,6 e 9,7%), com um pico da pobreza na cifra dos 15,2% (Ibidem, p.23-25, 31-41). Em termos de universalização dos serviços sociais, apesar das reservas dos neoconservadores nos US e UK, não foi suspensa (Ibidem, p.26-30).
- Os casos do corporativismo social: Suécia e Áustria
Em relação a este segundo caso, o autor descreve-o como sendo um caso de sucesso no que as respostas face às crises do capitalismo e à manutenção dos princípios do Estado-Providência diz respeito. Assim, podemos avançar que, tal como é possível captar no texto do autor, houve uma variação do comportamento das dimensões exploradas pelo autor: capital e trabalho (Ibidem, p.91).
Em suma, em relação à eficiência do corporativismo social na manutenção do Estado-Providência, garantida sobretudo pela evidência dos indicadores económicos, o autor reconheceu algumas das suas limitações, que tenderam a levantar questões preocupantes e referentes à igualdade e à estabilidade do próprio sistema - a título de exemplo, consta o favorecimento a interesses organizados (Ibidem, p.55-65).
- Os casos dos novos modelos: Canadá e Austrália
Este terceiro grupo constitui a extensão do neoconservadorismo e do social-corporativismo. Trata-se de uma difusão das ideologias de regimes e de políticas sociais para lá dos habituais casos clássicos de neoconservadorismo (US e UK) e de corporativismo social (Suécia e Áustria). Este grupo de casos comparáveis teve variações interessantes em termos de outcomes do domestic policymaking (Mishra, 1995, p.69, 73).
Na verdade, o que Mishra procura descrever enquadra-se na abordagem da análise das políticas públicas, enquanto “shielded units”, ou seja, no campo da análise e do desenho das políticas públicas, tornou-se consensual e práxis reconhecer que as medidas de política nem sempre são desenvolvidas dentro de unidades protegidas (como países individuais ou organizações internacionais), e mesmo que assim fossem, elas não se confinam no interior destas instituições ou sistemas (Simmons, et al., 2006; Kuhlmann, 2021).
4. Considerações Finais
O livro sobre “O Estado providência na sociedade capitalista” pode ser considerado uma pesquisa exemplar no âmbito das abordagens qualitativas. De forma rigorosa, o autor construiu três narrativas empíricas, tendo deixado a perceção de que terá conduzido uma abordagem bilinear, apesar de sequencial no registo das ações/medidas de políticas. A primeira retrata o período entre 1950 e 1975, marcado pelo desenvolvimento do Estado-Providência Keynesiano (EPK). A segunda narrativa corresponde ao período entre 1975 e 1980, caraterizado como a fase em que se instala a crise do capitalismo assistencialista, tendo sido, com isto, criados os conflitos ideológicos e materiais. A terceira e última, começa na década dos anos 80 com os governos de Thatcher e Reagan, que introduzem a rutura com o modelo de EPK, dando lugar ao neoconservadorismo.
Os seis casos empíricos analisados representam variações nacionais distintas dos tipos e efeitos do Estado-Providência. São casos contrastantes e situados na Europa e fora dela, tendo sido salvaguardada aquilo que se procura denominar por “dimensão de universos menos extensos ou largos” (Schmitter, 2008, p.274-275).
Embora o autor não explore profundamente os contextos históricos e as razões para a difusão dessas políticas, ele reconhece a influência dos regimes neoconservadores dos EUA, Reino Unido e Nova Zelândia nas políticas sociais do Canadá e da Austrália. No entanto, essa conclusão pode incorrer em uma armadilha comum às metodologias comparativas: usar países bem cotados como referência para avaliar ou julgar o que é aplicado em contextos distintos. A pesquisa procura responder à questão central do próprio autor, focando-se em indicadores económicos e políticos que sustentam as comparações entre os três grupos de casos estudados, todos contrastantes e localizados em contextos europeus e não europeus.
Para estudos sobre políticas sociais e a viabilidade do Estado-Providência, a leitura do livro é indispensável. A obra destaca-se pela originalidade na abordagem dos diferentes modelos e princípios do Estado-Providência, influenciados por instabilidades económicas, complementando os contributos de Esping-Andersen (1990; 1996).
Quanto à pergunta de investigação deste artigo, a obra de Ramesh Mishra permitiu perceber que, nas pesquisas qualitativas, os casos de comparação tanto podem potenciar a compreensão das políticas sociais, como podem enfraquecer ou limitar a sua interpretação e explicação.
Em relação aos fatores facilitadores, os estudos comparativos de políticas sociais, como é o da pesquisa de Mishra (1995), podem promover a construção de quadros de difusão de políticas no âmbito das inovações ou melhorias, captar as lógicas causais ou explicativas e catalisar a identificação de padrões (singularidades e regularidades). Isto pode ajudar, caso os dados sejam robustos, a validar e a generalizar os resultados.
Assim, é limitante quando se desterra o contexto da medida, tornando-a parte de uma lógica dinamizada e dominada pelas grandes economias, considerados casos de sucessos ou bem cotados. Este campo ainda está em ascensão e enfrenta vários desafios, tais como a obtenção de dados comparáveis, a diversidade de contextos, de instituições, de atores e de culturas, bem como a dificuldade em isolar as variáveis explicativas na medida em que variações empíricas seriam explicadas pelas diferentes configurações territoriais.
4.1 Notas críticas em relação às “coisas” de Ramesh Mishra
- No tratamento do corpo empírico verifica-se um silêncio marginalizado de atores e de interesses que não encontram espaços nos modos convencionais e dominantes das políticas sociais, porém são capazes de mobilizar forças, recursos e pressão para alteração do quadro político dos regimes apresentados. Há um protagonismo excessivo nos regimes políticos e nas organizações profissionais e nos trabalhadores oficialmente cotados, tendo ficado de parte, por exemplo, uma descrição sobre o papel dos atores “sem acesso às instituições de decisão política, em movimentos sociais e ações de protesto” e que são detentores de “repertórios de ação coletiva” (Fernandes et al., 2021, p.10-11);
- Considerando que os “eventos focalizadores” (Kingdon, 2014), sobre os quais os problemas públicos são definidos e introduzidos nas agendas políticas, podem variar, apesar da predominante lógica top-down, na sua origem e produção, contanto que as influências provêm de todos os lados, talvez o autor devesse incluir os atores não convencionais das políticas sociais, pois, em termos de governance, o “poder é policêntrico” (Wälti, 2020). Portanto, não se tratou necessariamente de uma teoria de médio alcance, porém de uma insuficiência analítica ou de um descuido, quiçá intencional, do autor, na captação das causas explicativas, o qual Morin (2015) designaria por “erro de hipersimplificação”;
- Algumas variáveis, nomeadamente crescimento económico, inflação, défice orçamental e a estagflação, no quadro das tabelas comparativas e do horizonte temporal (Ibidem, p.115-121), se analisadas de modo multivariado, à semelhança das publicações de Taylor-Gooby (2004) e de Esping-Andersen (2015), permitiriam, apesar das limitações, compreender melhor o grau de significância e de explicação sobre o impacto e o efeito das respostas políticas, bem como apreender a existência de fatores e crises não económicas sobre a retração ou manutenção das políticas do Estado-Providência (Fischlowitz, 1964; Jacques & Noël, 2018; Branco, 2022). Portanto, o autor estabelece uma lógica e relação de causalidade linear entre as variáveis do estudo, tendo criado todas as condições para incorrer ao que Rosental & Frémontier-Murphy (2001, p.155) denominaram por confusão da lógica de correlação entre as variáveis e aumento (na ausência de redução) das possibilidades de enviesamento das conclusões;
- Em relação aos casos comparados, tanto os considerados duros (US e UK) como os mais bem-sucedidos (Suécia e a Áustria), não constituem fundamentos suficientes para designação taxativa e isolada sobre a retração ou a manutenção do Estado-Providência, uma vez que no período de análise, em todos os casos comparados houve eventos que sinalizavam os êxitos e fracassos dos regimes. De modo particular, a difusão de políticas sociais do regime neoconservador dos US para o Canadá, atendendo ao conceito de variação, bastante discutido pelo próprio autor, pode representar, embora não sendo potencialmente classificável, um evento de manutenção do Estado-Providência, obviamente diferente do modelo social-corporativista, pois, ao nosso ver, a retração não permite uma expansão, ou seja, o que se retrai não se expande, pelo contrário, se retém.
4.2 Outras notas: pistas e contribuições
- Limitações metodológicas induzidas
Os estudos comparativos podem expressar formas subtis de ignorar as lógicas e dinâmicas cujas expressões de poder explicativas se cruzam e se potenciam apenas nos contextos em que são concebidas. Por isso, destaco nesta recensão a importância da compreensão das escolhas metodológicas e das abordagens teóricas adotadas em estudos qualitativos comparativos. Para além da noção evidente de que nem tudo é comparável e de que a replicação pode reforçar a colonialidade do conhecimento, importa também ressaltar o cuidado a ter com a “hierarquia da credibilidade”.
Esta hierarquia refere-se ao mainstream da análise de modelos ou medidas de política que tende a assumir que é possível compreender países (unidades de análise) menos cotados a partir da realidade dos países mais bem cotados. Esta tendência, a jusante, privilegia as grandes economias ou sociedades avançadas na definição de parâmetros, referências ou critérios de comparabilidade para casos atuais ou futuros, garantindo a difusão de modelos de governação e de práticas políticas tidas como ideais.
Esta prática parece salvaguardar a necessidade de replicabilidade dos modelos, à custa de uma negligência que desconsidera o facto de que, por exemplo, nos países pobres ou em desenvolvimento, as políticas sociais podem ser localmente originais e, por isso, não devem ser reféns da comparação ou da classificação com os considerados casos de sucesso. Tal carência tem dificultado o alargamento das bases teóricas e empíricas que se fundamentem nas experiências e dinâmicas dos diferentes países ou regimes políticos. Em alternativa, talvez fosse fundamental estudar as unidades de análise sem paralelismos, como forma de evitar a marginalização das lógicas e dinâmicas operativas dos diferentes atores, bem como dar às políticas sociais o “direito” a um contexto não desterrado;
- Direções de pesquisas
Para pesquisadores, sobretudo em iniciação científica, interessados em conduzir estudos comparativos similares, este artigo pode ser uma alternativa para repensar os constructos lógicos, as estratégias e os modelos de análise e as armadilhas que subjazem nos estudos comparativos, destacando a tentação subliminar de pensar que o uso de unidades comparativas queira significar necessariamente a formação de estruturas transnacionais.
Considerando os pressupostos das metodologias comparativas, aflorados na introdução e na primeira secção deste artigo, defende-se a realização de estudos comparativos que explorem as políticas sociais dos países não desenvolvidos ou em desenvolvimento que permitem facilmente captar a sensibilidade crítica e a preocupação em relação ao sentido cumulativo do conhecimento, acerca desta problemática, e ao mainstream dos modelos de políticas sociais.
Esta inversão pode, por um lado, iluminar a zona de atuação que até agora permanece subdesenvolvida no estudo das metodologias comparativas das políticas sociais e, por outro, abrir um caminho de rutura epistemológica para o que Lalioti (2018) procurou designar por “preconceito etnocêntrico” no estudo das políticas sociais.