Introdução1
O aumento exponencial do número de mulheres presas no Brasil, assim como em outros países do mundo, tem despertado o interesse dos meios de comunicação e mobilizado esforços de pesquisas (Norris, 2019). A atuação das mulheres no crime, a ação do sistema de justiça criminal direcionado a parcelas mais vulneráveis da população, a aplicação generalizada da pena de privação de liberdade, as condições precárias dos presídios e as violações de direitos humanos básicos em ambientes prisionais são alguns dos temas centrais desse debate (Lourenço e Alvarez, 2017). Neste trabalho, propomos abordar a discussão acerca do encarceramento feminino sob a perspectiva dos seus impactos nas dinâmicas familiares das mulheres presas.
Os últimos anos foram marcados por um crescimento significativo da população prisional brasileira que, entre 1999 e 2016, teve um aumento de 274% (Depen, 2017), sendo que as taxas de aprisionamento feminino cresceram mais de 500% (Depen, 2017a). Com 44 700 mulheres privadas de liberdade em 2017, de acordo com os dados publicados pelo World Female Imprisonment List, o Brasil tem atualmente a 4.ª maior população prisional feminina do mundo e ocupa o 3.º lugar no ranking mundial em termos relativos (40 presas por 100 000 mulheres). Quando atentamos às pessoas impactadas pela pena de privação de liberdade, temos, no entanto, um número muito superior aos dados oficiais.
De acordo com Kirk e Wakefield (2018), para cada adulto privado de liberdade, estima-se que, em média, outras três pessoas irão sofrer direta ou indiretamente com a sanção penal. São eles o(a) companheiro(a) - ou qualquer pessoa com quem o(a) preso(a) tenha uma relação amorosa - descendentes (filhos e filhas) e ascendentes (especialmente a mãe). No caso do encarceramento feminino, as implicações nas dinâmicas familiares estão diretamente relacionadas com os papeis desempenhados pelas mulheres (Richie, 2003). Além de serem, tradicionalmente, responsabilizadas pelos cuidados com os filhos e filhas e pelas tarefas domésticas, as mulheres contribuem também - em diferentes medidas - para o sustento de muitas famílias (Castro Guedes e Araújo, 2013).
De acordo com dados do IBGE de 2015, as mulheres chefiavam 40,5% dos lares brasileiros, sendo que as brancas eram responsáveis por 44% dos domicílios, enquanto no caso das negras esse valor sobre para os 55%.2 Se considerarmos o imbricado cruzamento entre raça e género existente no Brasil, é possível afirmar que o encarceramento das mulheres negras e pobres produzirá efeitos deletérios nas suas organizações familiares.
Nos Estados Unidos da América, os estudos sobre esta temática destacam que o encarceramento feminino aumenta as chances de empobrecimento da família, em razão da perda do sustento principal da casa (Richie, 2003). Os(As) filhos(as) de mulheres encarceradas tendem a ter um pior rendimento educacional, a envolver-se com a criminalidade e a residirem nas ruas (Wildeman, 2014). No Brasil, as análises sobre aprisionamento feminino são recentes (Lemgruber, 1999), apesar da crescente atenção que a sociologia tem destinado ao tema nos últimos anos (Lourenço e Alvarez, 2017). Tais estudos centram-se mais nas dinâmicas internas das unidades prisionais, em detrimento do escrutínio dos efeitos do aprisionamento nas famílias que estão do lado de fora do ambiente prisional (Posada, 2015).
Assim sendo, a proposta deste artigo é contribuir para o debate nacional e internacional, destacando em que medida o aprisionamento de mulheres tem efeitos na vida daqueles que dependiam, de alguma forma, do seu trabalho dentro e fora de casa antes do encarceramento. Partimos dos dados coletados por meio do inquérito aplicado às reclusas da mais antiga penitenciária feminina do Estado de Minas Gerais/Brasil acerca de como elas cuidavam da casa e das mudanças na vida de seus familiares após a sua prisão. A partir das respostas, procuramos descrever as reconfigurações familiares, decorrentes do encarceramento, em termos de renda, moradia, relacionamentos conjugais e cuidado com os filhos e as filhas.
Notas metodológicas
Os dados analisados neste artigo foram coletados no âmbito da pesquisa desenvolvida com financiamento FAPEMIG (APQ-01648-16), intitulada “Amor bandido é chave de cadeia?” e realizada por pesquisadoras do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP/UFMG).3 Este estudo tinha por objetivo compreender as trajetórias de vida das mulheres presas na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e as suas experiências no cárcere. Neste artigo, analisamos os dados quantitativos coletados no Complexo Penitenciário Estêvão Pinto (PIEP).4
Criada em 1948, a Penitenciária Industrial Estêvão Pinto era, até 2006, o único estabelecimento penitenciário feminino do Estado de Minas Gerais. Quando da sua criação, foram estabelecidas 60 vagas destinadas a todos os regimes de cumprimento de pena - as quais, na época, eram suficientes para atender toda a demanda prisional feminina do Estado. Desde a sua inauguração, a PIEP passou por extensas reformas, visando atender à crescente procura por vagas em penitenciárias femininas.
No momento da pesquisa, a PIEP atendia cerca de 10% de toda a população de presas (provisórias e condenadas) de Minas Gerais,5 o segundo Estado brasileiro com maior população prisional do país. Localizada na área central da capital Belo Horizonte, ainda hoje é a maior instituição feminina do Estado, abrigando tanto reclusas condenadas pela justiça como aquelas que aguardam o desfecho dos seus processos penais.
A pesquisa foi realizada ao longo de seis meses sendo estruturada em duas fases. Nas primeiras visitas à unidade, foram feitas entrevistas em profundidade com quatro presas e seis profissionais6 que consentiram livremente em participar do estudo. Com base nesses depoimentos, elaborou-se um inquérito por questionário que visava responder a questões sobre a trajetória de vida, a vivência na prisão e as relações familiares das reclusas. Na segunda fase, foram aplicados 170 questionários a uma amostra representativa da população de 396 mulheres presas na unidade, o que nos garante uma margem de erro de 5,7 pontos.
Essas mulheres foram entrevistadas e inquiridas entre os meses de dezembro de 2017 e fevereiro de 2018. Para a seleção, procurámos considerar a quantidade de reclusas em cumprimento de pena nos regimes fechado, semiaberto e aberto, bem como aquelas que aguardavam o julgamento dos seus processos, denominadas de presas provisórias (Quadro 1).7 A cada visita à PIEP, anunciávamos a pesquisa nos diversos espaços da unidade e, depois, inquiríamos aquelas internas que se voluntariavam para a pesquisa até ao limite da cota estabelecida para cada estrato.
O questionário era aplicado à detenta que concordava em participar do estudo, mas em condições diferentes em cada ala do presídio. As presas do regime fechado respondiam às perguntas através das janelas, permanecendo, assim, na cela coletiva durante a conversa com as pesquisadoras que se localizavam do outro lado das grades, nessas entrevistas e naquelas com as presas provisórias, as entrevistadoras eram sempre observadas por alguma agente prisional, que se posicionava de maneira a não interferir ou constranger o diálogo. Já nos regimes semiaberto e aberto, a aplicação dos questionários ocorreu de forma mais individualizada e sigilosa, nos bancos do pátio da prisão, e sem a presença de agentes ou de outras presas.
Os dados obtidos por meio da aplicação dos questionários foram digitalizados e analisados com a ajuda do software SPSS. A partir de frequências e tabelas cruzadas procuramos compreender os relatos das mulheres acerca dos efeitos do encarceramento nas suas famílias, no que se refere às recomposições económicas, moradias, relacionamentos conjugais e cuidados com os(as) filhos(as).
Os efeitos do encarceramento na mulher presa e em sua rede de relacionamento
Dentre os estudos que procuram explicar as crescentes taxas de encarceramento nos Estados Unidos da América nas últimas décadas, para esta análise lançamos mão do conceito de “hiperencarceramento” de Loic Wacquant (2014). Tal cenário seria um desdobramento das crises económicas que levaram à substituição do Estado de Bem-Estar Social pelo Estado Penal, no qual os investimentos públicos são direcionados para segregar a parte da população menos preparada para o mercado de trabalho. O hiperencarceramento trata, pois, de uma conceção da política de aprisionamento direcionada para uma parcela específica da população, a partir de uma seletividade extrema de penalização - a qual o autor denomina de gestão punitiva da pobreza (Wacquant, 2013). Tal política é direcionada para uma categoria específica da população, cujos determinantes são classe, raça/etnia e espaço físico.
Nos Estados Unidos da América, este processo teve início nas décadas de 1970 e 1980, e os alvos do Estado penal eram os homens afro-americanos de classe baixa moradores dos guetos. Sendo assim, “[…] a expansão e a intensificação das atividades da polícia, dos tribunais e das prisões ao longo dos últimos 25 anos foram tudo, menos amplas e indiscriminadas” (Wacquant, 2010, p. 77). No Brasil, o Estado penal tem-se expandido desde os anos 2000, tendo como marco a aprovação da lei de drogas (Lei 11 343/2006), que contribuiu para o aumento de pessoas presas pelo delito de “tráfico de drogas” nos últimos 15 anos e, desta maneira, para a superlotação nos presídios brasileiros (Azevedo e Cifali, 2015).
A guerra às drogas trouxe a reboque, como destacado pelo próprio Wacquant (2008), a militarização das políticas de segurança pública adotadas no Brasil. Sob o pretexto de prender traficantes, há cada vez mais vigilância e incapacitação dos pobres - com destaque para os residentes em áreas de favela - o que faz com que o perfil dos sujeitos presos seja bastante homogéneo em termos de cor da pele e classe social, como acontece nos Estados Unidos da América.8 Em conjunto, esses fenómenos - guerra às drogas e militarização - potenciaram a seletividade da justiça criminal.
Este cenário não é, contudo, uma novidade. Já na década de 1970, Lemgruber (1999), autora pioneira nos estudos de criminalidade feminina no Brasil, chamava a atenção para o facto de que “[…] tem-se nas prisões uma representação mínima dos crimes praticados numa sociedade. Em geral, são aqueles indivíduos mais vulneráveis à ação da polícia e dos tribunais que aí se encontram, ou seja, os que pertencem às camadas sociais menos favorecidas” (p. 53). Logo, o que a lei de drogas tem viabilizado é uma reificação dessa seletividade, levando para as prisões brasileiras um número cada vez maior de pessoas pobres e negras, que portam quantidades de drogas que, em outras circunstâncias, seriam consideradas para consumo próprio em detrimento de tráfico (Azevedo e Cifali, 2015).
No caso das mulheres, essa seletividade é ainda mais perversa. No último levantamento nacional, o tráfico de drogas foi responsável por 62% dos encarceramentos femininos (enquanto, no caso dos homens, este delito representa 1/3 das prisões), “o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico” (Depen, 2017a, p. 53). Cerneka (2009) ajuda-nos a entender este padrão ao destacar que os delitos cometidos por mulheres são sobretudo de ordem económica e por falta de oportunidades, e não relacionados com a violência.
Outro dado que chama a atenção nos levantamentos sobre a situação prisional brasileira é o facto de que as mulheres negras são as mais penalizadas, representando 62% das reclusas (Depen, 2017a).9 Elas são também as maiores responsáveis pela chefia do domicílio, pelos trabalhos domésticos e cuidado com a prole. Como 71% das mulheres privadas de liberdade têm filhos (Depen, 2017a, p. 51), é possível dizer que o seu aprisionamento trará efeitos deletérios sobre a dinâmica familiar.
Diversos estudos internacionais tratam das consequências do encarceramento feminino, considerando o papel que a mulher exercia na família de origem em termos de provisão de renda, moradia, relacionamentos conjugais e cuidados com os(as) filhos(as). Tendo em vista o nosso objetivo, lançamos mão de algumas dessas análises, com vistas a identificar melhor quais são os fatores que levam a essas novas configurações familiares.
Punições para além da infratora?
Idealmente, a punição deve ser dirigida tão somente à pessoa que praticou o delito. Ocorre que quando toda uma rede de indivíduos depende - direta ou indiretamente - de quem foi privado(a) de liberdade, temos a “punição para além do infrator”. De acordo com Comfort (2007), tendo em vista as várias composições familiares, as diversas formas de rede de apoio construídas na sociedade, e as implicações da política de hiperencarceramento nas comunidades mais pobres, o encarceramento repercute-se tanto na vida dos familiares, como das pessoas próximas e vizinhas dos condenados.
Em termos de implicações para as comunidades, o encarceramento pode impulsionar a desorganização social ao retirar de circulação pessoas que são importantes para o desenvolvimento de associações ou que são vistas como lideranças para assuntos comunitários (Doob et al., 2014). Ao contrário do que se acredita, o aprisionamento de pais e mães de jovens não diminui o crime, podendo, inclusive, levar ao seu aumento (Posada, 2015). Sem o principal responsável pelo sustento do lar, os filhos e filhas de progenitores encarcerados(as) veem-se obrigados(as) a gerar renda das formas mais diversas possíveis, o que inclui o uso da delinquência (James, 2010).
A prisão dos pais e mães, ao diminuir a supervisão exercida sobre a prole, aumenta a probabilidade de filhos e filhas abandonarem a educação formal, tornando-os mais susceptíveis à mobilidade social descendente (Wildeman, 2014) e impulsionando o desenvolvimento de padrões de conduta ou sociabilidade violentos (Stemen, 2017). Em resumo, as políticas de encarceramento privam comunidades pobres de renda, deixam crianças sem comida e supervisão e geram profundo ressentimento em relação ao sistema de justiça criminal (Petit e Western, 2004).
Comfort (2007) nomeia este processo de “espiral cumulativa de desvantagens”. A família, além de deixar de contar com a renda do(a) condenado(a), precisa de sustentá-lo(a) ao longo da detenção e, especialmente, depois dela, quando a prisão se torna uma marca indelével, que além de estigmatizar, resulta na restrição aos trabalhos disponíveis e no menor nível de salários oferecidos. Ou seja, os efeitos da punição nas famílias dos condenados e das condenadas da justiça penal não se limitam ao período em que o aprisionamento é vivenciado. Questões como saúde mental, estigma (que atinge desproporcionalmente os filhos e filhas), e a queda de oportunidades económicas - consequentemente de recursos - são experimentadas por presidiários e seus familiares mesmo após a saída da prisão (Braman, 2003).
Portanto, a “espiral cumulativa de desvantagens” (Comfort, 2007) implica o reconhecimento de que os impactos do encarceramento não se restringem aos limites da prisão - nem em questão de espaço, nem em questão de tempo - alcançando os familiares e toda a comunidade durante e depois da detenção. No caso da prisão feminina, as implicações socioeconómicas e familiares devem ser analisadas levando em consideração os papeis sociais desempenhados pelas mulheres na nossa sociedade.
Os efeitos do encarceramento sob a perspectiva de género
Com um recorte de género, e atentas à especificidade da agência da mulher na sociedade, Granja, Cunha e Machado (2014) propõem uma análise sobre os impactos sociais e familiares do cumprimento de pena de privação de liberdade a partir de uma pesquisa qualitativa com reclusas em Portugal. As autoras destacam a necessidade de considerarmos a “dupla jornada de trabalho” enfrentada pelas mulheres: uma consequência da divisão sexual do trabalho que produz e reproduz desigualdades de gênero na sociedade. Sendo responsabilizadas pela execução de tarefas domésticas, pela prestação de cuidados a filhos, filhas e demais familiares dependentes - como idosos e enfermos, por exemplo - e pela contribuição com sua renda no sustento da casa, as mulheres desempenham papeis diferenciados tanto na esfera do trabalho remunerado, como na esfera do trabalho em ambientes privados.
A pluralidade de implicações da reclusão feminina é acentuada na vida das populações mais pobres, na medida em que são mais dependentes dos trabalhos por elas realizados. Por isso, como destacado por Granja, Cunha e Machado (2014), históricos de pobreza, de exclusão social, e de criminalidade se tornam fatores determinantes para análise dos efeitos do encarceramento sobre as dinâmicas familiares.
Numa proposta de revisão da bibliografia sobre os efeitos do encarceramento feminino no Brasil, Souza (2016) aponta para o “processo perverso de multiplicação de punições” como efeito da prisão de mulheres. Afinal, a privação de liberdade no caso feminino vem acompanhada da privação do convívio familiar, o que tem impactos negativos nas relações da maternidade. Richie (2003) ressalta a necessidade de se considerar os papeis de cuidados desempenhados pelas condenadas em suas redes familiares, mas considera o dano causado ao papel de mãe como uma das consequências mais significativas do encarceramento de mulheres.
No Brasil são muitos os estudos relacionados com o encarceramento de mães. Alguns abordam as vivências de gestantes e mães detidas com seus bebés (Braga e Angotti, 2015; Diuana et al., 2017), as histórias de vida - e de vulnerabilidades - de filhos e filhas de mães aprisionadas (Stella, 2009a e 2009b; Ormeño et al, 2013), e os limites do exercício da maternidade das mães encarceradas (Ferrari, 2010; Soares et al, 2016). Todos destacam que a separação entre mãe e filhos(as) é marcada por enorme angústia, e resultam em diversos problemas que incluem desde o empobrecimento da família até ao encarceramento prematuro do jovem (Posada, 2015).
É inegável, pois, a especificidade do efeito do aprisionamento na vida das mães e de sua prole e, por isso, é indispensável que as pesquisas analisem os efeitos colaterais da pena de privação de liberdade sob a perspectiva das questões de género, o que significa considerar quem assume o sustento da casa e os cuidados com os(as) filhos(as), sobretudo, os(as) menores de idade.
Norteadas pela literatura da área, a nossa proposta é compreender de que maneira o encarceramento das mulheres inquiridas na PIEP gerou efeitos sobre as suas dinâmicas familiares. Para tanto, optámos por iniciar esta análise escrutinando o perfil da mulher encarcerada, para verificar em que medida a seletividade de que nos fala Lemgruber (1999) se faz presente entre as reclusas de Belo Horizonte, o que pode suscitar a “espiral cumulativa de desvantagens” mencionada por Comfort (2007). A partir da perspectiva de género, que destaca a “dupla jornada de trabalho” (Granja, Cunha e Machado, 2014), descrevemos os percentuais relatados pelas presas sobre os efeitos da detenção na renda familiar, nas suas antigas moradias, nos seus relacionamentos afetivos e conjugais e, por fim, nas novas configurações das redes de cuidado dos filhos e filhas.
O perfil das mulheres presas
Partimos do pressuposto de que no Brasil também estamos vivenciando o hiperencarceramento (Wacquant, 2014), que tem como molas mestras a lei de drogas (Azevedo e Cifali, 2015) e a militarização das políticas de segurança pública (Wacquant, 2008). Assim, nesta secção procuramos descrever as características da população que habita a PIEP como sinais deste fenómeno.
Na pesquisa foram inquiridas 170 mulheres privadas de liberdade que estavam encarceradas no Complexo Penitenciário Estêvão Pinto, localizado na cidade de Belo Horizonte, entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2018. Tendo em vista a categorização adotada pela Organização Mundial da Saúde, que inclui os jovens propriamente ditos (18 a 24 anos) e os jovens adultos (25 a 34 anos), as mulheres inquiridas são na maioria jovens, sendo que 63% têm entre 18 e 34 anos de idade. Deste dado, aferimos que a maior parte da população feminina da PIEP pertence à faixa etária que tradicionalmente é a mais ativa economicamente no mercado de trabalho e que, por estarem na idade fértil, estariam constituindo famílias. Esses dados sinalizam a proeminência da privação da maternidade em razão do encarceramento, o que seria uma das estratégias de “multiplicação de punições” (Souza, 2016). Isso ocorre ou porque essas mulheres não conseguirão engravidar, dada a ausência de visitas íntimas disponíveis para todas elas (Angotti, 2011), ou porque serão separadas dos seus bebés à nascença (Braga e Angotti, 2015), ou porque os seus filhos(as) menores de idade ficarão sob responsabilidade de outros membros da família, que não conseguem levá-los(as) à prisão nos dias de visita (Soares et al., 2016).
De entre as mulheres privadas de liberdade na PIEP, a imensa maioria declarou-se como “não-branca”: categoria que engloba pretas, pardas, amarelas e indígenas, e que contabiliza 80% das inquiridas. 110 mulheres declararam-se pardas ou morenas, 24 pretas, 2 amarelas, 1 indígena e 33 brancas. Na população em geral, o percentual de mulheres adultas que se considerava negra (pretas e pardas) era de 51,5% (IBGE, 2018). Logo, tínhamos uma diferença de quase 30% entre o percentual de mulheres negras na população e aquele que estava aprisionado, reforçando a tese da seletividade do sistema de justiça criminal (Lemgruber, 1999).
Levando-se em consideração fatores como a distribuição etária e a estrutura de género, observamos que os negros se encontram sobrerrepresentados no encarceramento, o que poderia ser decorrente do facto de que a pobreza brasileira não está “democraticamente” distribuída entre as raças (Henriques, 2004). O hiperencarceramento (Wacquant, 2014) seria a razão pela qual a população mais pobre - que, no caso brasileiro, é predominantemente negra ou parda - é a mais presente nas prisões (Cerneka, 2009). De acordo com Hasenbalg e Silva (1990), isso ocorre porque níveis crescentes de industrialização e modernização da estrutura social não eliminaram os efeitos da raça ou cor como critério de seleção social (o que se faria presente na seletividade do sistema de justiça criminal) e geração de desigualdades sociais. Com isso, a população não-branca (preta ou parda) estaria mais exposta a fenómenos como mortalidade infantil, menor expectativa de vida ao nascer, oportunidades mais limitadas de mobilidade social, participação precária no mercado de trabalho e na distribuição de renda (Hasenbalg e Silva, 1990, p. 6).
É no processo educacional que se encontra o núcleo das desvantagens sociais que a população brasileira preta e parda sofre. Hasenbalg e Silva (1998) destacam que não só pretos e pardos obtêm níveis de escolaridade inferiores aos brancos da mesma origem social, como o retorno à escolaridade em termos de inserção ocupacional e renda tendem a ser proporcionalmente menores para não-brancos. Henriques (2001, p. 29) salienta que a intensidade da discriminação racial no Brasil se expressa em termos de escolaridade formal: numa sociedade cuja escolaridade média dos adultos é de apenas seis anos, a diferença é de 2,2 anos a mais de escolaridade da população branca em comparação com a população preta e parda.
A escolaridade possibilita-nos entender um pouco da trajetória de vida das mulheres encarceradas na PIEP no que diz respeito ao acesso às oportunidades educacionais e às possíveis ocupações no mercado de trabalho. A percentagem de mulheres que não chegou a concluir o ensino fundamental (nove anos) era de 34%, enquanto aquelas com ensino superior completo somavam 5,9%. De acordo com as estatísticas de género da população brasileira, o percentual de mulheres com mais de 25 anos com curso superior era de 16,9%. Ao considerarmos as mulheres encarceradas na PIEP, podemos dizer que elas tinham três vezes menos chances de concluir o curso superior do que a população feminina em geral. Das inquiridas, 32 (menos de 19%) disseram ter ensino médio completo (mais de 9 anos de estudo) e 12 mulheres (o que representa cerca de 7%) responderam que estudaram ou estudam na prisão.
A baixa escolaridade, combinada com a idade e a cor da pele, ajudam a explicar por que 52,4% das reclusas da PIEP estavam encarceradas pelo tráfico de drogas e 16,5% por delitos patrimoniais, como furto e roubo.10 Quase 70% das inquiridas estavam na prisão em razão de ilícitos que buscam, acima de tudo, a obtenção de renda. Logo, o aumento das taxas de encarceramento feminino - relacionados especialmente com a agência no tráfico - pode dizer muito sobre a participação económica dessas mulheres nos seus grupos familiares e, em grande medida, sobre a luta por sobrevivência de certa parte da população brasileira.
Portanto, as mulheres privadas de liberdade na PIEP eram, na sua maioria, jovens, com baixa escolaridade e não-brancas, reforçando o argumento de que as mulheres apreendidas pelo sistema de justiça seriam provenientes dos estratos mais baixos da população (Lemgruber, 1999; Cerneka, 2009). Tal perfil coaduna-se com marcadores de desigualdades de género, uma vez que a maioria dessas mulheres acumula os trabalhos domésticos e aqueles relacionados com os cuidados dos(as) filhos(as) menores de idade - sem a devida assistência do Estado -, com a necessidade de trabalho remunerado (IBGE, 2018), retroalimentando a “espiral cumulativa de desvantagens” (Comfort, 2007).
Os efeitos do encarceramento feminino na renda familiar
O primeiro ponto a ser analisado em relação aos impactos nas famílias após a prisão de mulheres diz respeito à renda. Como indicam as estatísticas de género do IBGE (2018), a proporção de famílias chefiadas por mulheres tem crescido substantivamente nas últimas décadas, especialmente entre os segmentos mais pobres da população. Considerando o perfil das encarceradas participantes do questionário, interessa-nos compreender em que medida a sua prisão pode ter afetado o orçamento da família engendrando a “multiplicação de punições” (Souza, 2016). Para isso, é necessário saber quem pagava as despesas da casa antes de a mulher ser presa (Quadro 2).
Somente uma mulher não respondeu à pergunta, o que nos permite avaliar com segurança os resultados expostos. Dentre as inquiridas, a maioria era responsável, ou corresponsável, pela economia doméstica (70,6%). O número de mulheres que assumiam, sozinhas, a chefia das famílias é levemente maior do que o número das que contribuíam para as despesas da casa (35,9% versus 34,7%, respetivamente). Os percentuais de mulheres responsáveis pelo sustento da casa na população encarcerada são muito semelhantes àqueles observados na população em geral (40% segundo dados do IBGE de 2015).
Cumpre destacar que 28% das inquiridas não contribuíam para as despesas da casa, o que não significa que elas não colaborassem com a economia doméstica. Como discutido anteriormente, o trabalho feminino em âmbito doméstico e familiar é, apesar de tendencialmente invisível, extremamente importante em termos de geração de economia e de prestação de cuidados (Castro Guedes e Araújo, 2013). O que esses dados destacam é a confirmação de que não só como responsáveis pelos(as) filhos(as) e pelas tarefas domésticas, as mulheres são, na sua grande maioria (mais de 70%), as grandes responsáveis pelo orçamento familiar.
Dito isso, um problema social que se coloca é o de saber como sobrevivem os familiares dessas mulheres após a prisão? O quadro 3 apresenta, em alguma medida, o panorama geral das configurações familiares após a prisão das mulheres inquiridas.11 Antes da prisão, 70% delas direcionavam as suas rendas para o sustento da família. Depois do encarceramento, apenas 9% continuam a colaborar em casa, o que se faz, certamente, com uma pequena quantidade de dinheiro, visto a ausência de postos de trabalho para todas as reclusas, bem como o salário reduzido que é pago nos ambientes prisionais.12
Outro dado que chama atenção no quadro 3 é a pequena quantidade de mulheres que afirmam ter subsídio do governo como fonte auxiliar na renda da família: 12 inquiridas (7%). Esse diminuto grupo leva-nos a perguntar quantas mulheres tinham acesso a algum auxílio antes da prisão, e quantas trabalhavam com carteira assinada, o que, em tese, garantiria o direito de auxílio-reclusão à família.13
Das 170 inquiridas, 43 disseram receber algum auxílio do governo antes de serem presas, o que representa cerca de 25,3% da nossa amostra. Na sua maioria, e mais especificamente, 34 delas recebiam o bolsa-família. A partir da análise mais aprofundada dos dados, verificamos que 35 mulheres recebiam auxílio do governo antes de serem presas e, quando presas, deixaram de receber - o que representa impactos consideráveis na renda familiar. Apenas 5 inquiridas recebiam algum subsídio governamental e continuaram a receber depois do advento da prisão.
Quanto ao direito de auxílio-reclusão a que as famílias de algumas presas fariam jus, o que contribuiria para o orçamento da casa, temos 43 mulheres inquiridas que disseram que trabalhavam com carteira assinada antes do aprisionamento. Mas nem todas recebem o auxílio. Como pode ser observado no quadro 4, apenas 7 famílias tinham, no momento em que a pesquisa foi realizada, acesso a esse benefício - um direito que deveria ser garantido pelo Estado a todas as 43 mulheres que trabalhavam com carteira assinada antes de serem presas.
A saber: valor do qui quadrado: 7,556 (significância: 0,023) indicando que há associação estatisticamente significativa entre as duas variáveis.
Fonte: “Amor bandido é chave de cadeia?”
Para além da redução dos recursos económicos, devido à ausência da renda advinda do trabalho dessas mulheres, são muitas as famílias que poderiam - e por direito, deveriam - ter acesso a alguns benefícios, o que certamente contribuiria para o sustento dos seus dependentes durante o cumprimento de pena.
Em suma, 70,9% das mulheres eram responsáveis direta ou indiretamente pelo sustento do lar antes da sua prisão, como ocorre na maioria das famílias pobres. Com o encarceramento, em 55,9% dos casos, outra pessoa da família passou a sustentar o lar, o que significa dizer que houve rearranjo em termos de despesas e, possivelmente, empobrecimento do núcleo familiar, o que seria uma das formas de “multiplicação de punições” a que Souza (2016) se refere. Em 5,3% das situações, as mulheres conseguiram um emprego remunerado na PIEP e continuam a enviar para as suas famílias alguns parcos recursos, o que reforça a tese de que a renda da mulher era indispensável para o sustento do lar. Já 7,1% das inquiridas conseguiram algum auxílio do governo, ou porque trabalhavam de carteira assinada (auxílio-reclusão) ou porque contavam com filhos e filhas matriculados em escola pública (bolsa família).
Os efeitos do encarceramento nas dinâmicas familiares das mulheres presas
Não há dúvidas de que o encarceramento feminino implica uma “espiral cumulativa de desvantagens” (Comfort, 2007). Com menos renda disponível, em razão da privação da liberdade da mulher que sustentava ou ajudava no sustento do lar, a família precisa de ser bastante criativa para recompor a renda. Neste quadro de mudanças, as novas configurações de moradia que envolvem as famílias e pessoas próximas de mulheres presas precisam de ser analisadas para a compreensão dos efeitos do encarceramento.
De toda a amostra, 25,9% das famílias tiveram que se reorganizar, e as pessoas que antes dividiam a casa com as mulheres inquiridas deixaram de morar juntas. Muitas vezes, isso significou um rearranjo na vida dos seus dependentes, assim como na vida daqueles que passaram a ser, em alguma medida, rede de apoio da mulher ou dos seus familiares.
É importante ainda numerar as inquiridas que afirmaram ter algum familiar, com quem moravam antes da prisão, também em situação de cárcere após o seu encarceramento. 22 mulheres tinham alguém da família a cumprir pena de privação de liberdade (13% dos casos) no momento do inquérito. Na sua maioria, eram os cônjuges das inquiridas que estavam presos - 19 no total - dado que nos leva a pensar nas dinâmicas das relações conjugais dessas mulheres, o que também pode impactar no processo de reestruturação domiciliar. Afinal, se o cônjuge também foi preso, a prole, sobretudo a menor de idade, terá de ser distribuída entre parentes mais próximos, vizinhos e, até mesmo, entre as instituições estatais.
Para entender como se dão as novas configurações da dinâmica familiar após o encarceramento, as mulheres foram perguntadas sobre relacionamentos afetivos ou conjugais antes da prisão. O quadro 5 trata, nesse sentido, dos efeitos do encarceramento feminino nos relacionamentos das inquiridas, o que nos permite identificar que 38 das 170 participantes na pesquisa afirmaram não ter companheiro(a) ou namorado(a) antes da prisão, o que consiste em 22,4% da nossa amostra. Mas a maioria das mulheres disse estar nalgum relacionamento afetivo antes da prisão: essas somaram 132, ou seja, 77,6% (Quadro 5).
A saber: valor do qui quadrado: 159,053 (significância: 0,000) indicando que há relevância estatística entre as duas variáveis, estando elas muito imbricadas.
Fonte: “Amor bandido é chave de cadeia?”
Temos, portanto, que a maioria dos relacionamentos (79 casos das 132 inquiridas que estavam em algum relacionamento antes de serem presas) termina depois da prisão da mulher. Há, conforme a tabela acima, 30 casos de manutenção desses relacionamentos fora da prisão e 15 casos em que os relacionamentos se mantém intramuros. Assim, é possível afirmar que o aprisionamento de mulheres gera grandes impactos nas suas relações afetivas ou conjugais. Reforçamos, assim, que a privação da liberdade pode ser uma experiência muito solitária para as mulheres em razão da dissolução do vínculo amoroso, algo que não acontece com os homens, posto que as suas companheiras se desdobram nos dias de visita para provar o seu amor (Duarte, 2013).
Os resultados encontrados no inquérito reforçam as conclusões das pesquisas internacionais. Ao abordar os efeitos colaterais do encarceramento, Kirk e Wakefield (2018) constataram que o aprisionamento contribui para a separação de famílias frágeis, pois provoca o fim do relacionamento amoroso e conjugal. Por outro lado, a prisão implica o aumento das famílias que passam a contar com novos membros, produzindo efeitos deletérios sob os filhos e filhas (James, 2010; Petit e Western, 2004).
Das 170 inquiridas, 128 eram mães (75,3%). Nesses casos, o encarceramento causou impactos diretos no exercício da maternidade, configurando-se em razão para o distanciamento entre mães e filhos(as), como antecipado pela bibliografia sobre o tema (Braga e Angotti, 2015). Na nossa amostra, mais de 70% das mulheres eram, quando encarceradas, separadas do convívio com a sua prole. Como esses(as) filhos(as) ficavam sob guarda de outros parentes e, até mesmo, de instituições estatais, eram pouquíssimos os casos em que as mães recebiam visitas dos seus filhos e filhas na prisão. Afinal, estamos a falar de famílias que já eram pobres antes do encarceramento da mulher e, que se tornaram ainda mais pobres quando esta já não era capaz de prover o lar, o que dificultava o pagamento, por exemplo, das passagens de autocarro para visita à mulher uma vez por semana. Logo, o empobrecimento da família tem como efeito a privação da maternidade para a mulher em situação de cárcere (Souza, 2016).
Na perspectiva dos impactos da prisão na vida dos filhos e filhas, contabilizando todos os descendentes das reclusas inquiridas, temos um total de 313 crianças, adolescentes ou jovens que sofrem, em alguma medida, os efeitos do aprisionamento.
Das 170 presas, 128 possuíam prole, sendo que 304 filhos(as) estavam vivos, uma média de 2,4 descendentes sofrendo com o encarceramento para além da pessoa privada de liberdade, número próximo ao antecipado por Kirk e Wakefield (2018). Do total de filhos(as) vivos, 70,3% eram menores de idade, ou seja, eram indivíduos que necessitavam de cuidados historicamente atribuídos às mulheres (Castro Guedes e Araújo, 2013). Destaca-se ainda que, neste caso, 46,3% eram crianças menores de 12 anos - o que daria à mãe o direito de cumprir pena em prisão domiciliar em razão de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e de outros juízes brasileiros.14
Outro dado que corrobora para o agravamento dos impactos do encarceramento na vida dos filhos(as) diz respeito à quantidade deles que moravam com a mãe antes da prisão. Dos(as) 304 filhos(as) vivos(as), 46% moravam com a mãe antes da prisão. Há, portanto, um grande número de membros da prole que possivelmente dependiam diretamente dos cuidados e/ou da renda das mulheres presas, seja porque tinham menos de 18 anos ou porque habitavam a mesma casa antes da detenção da mulher (Quadro 7).
Em linhas gerais, o aprisionamento dessas mulheres acarretou mudanças drásticas na vida de, no mínimo, 140 crianças ou adolescentes que tiveram o vínculo com suas mães interrompido.15 Para cada mulher encarcerada com filhos(as) menores, pelo menos uma criança foi deixada com outro membro do núcleo familiar, parentes, amigos ou instituições estatais. O que não é possível mensurar, por meio dos nossos dados, é o nível dessas mudanças e os danos nas vidas e nos laços afetivos dessas pessoas.
Uma pesquisa feita nos Estados Unidos sobre os efeitos colaterais que a prisão materna tem sobre os(as) filhos(as) menores constatou que as crianças de mulheres encarceradas têm uma chance 65% maior de morar na rua - o que tem como consequência, para além dos baixos ativos educacionais e alta vulnerabilidade social, o elevado risco de abusos físicos, uso de álcool e drogas, e a propensão para ser explorado sexualmente (Wildeman, 2014). Se considerarmos que os efeitos da privação da liberdade sobre os filhos e filhas das nossas inquiridas podem ser os mesmos verificados na literatura internacional, então para cada mulher encarcerada pelo menos uma criança teve a sua vida completamente remodelada, perpetuando a pobreza.
Outro elemento importante a ser destacado é que a prisão materna reforça determinados padrões de género ao imputar a outras mulheres, também pobres, o cuidado com os filhos e filhas da encarcerada (Cerneka, 2009). A análise da pesquisadora brasileira corresponde também aos resultados apresentados por Granja, Cunha e Machado (2014). A rede de apoio formada para a reorganização das responsabilidades familiares, em decorrência da reclusão feminina, recruta maioritariamente outras mulheres das famílias portuguesas que, na sua grande maioria, assumem compromissos com o cuidado dos(as) filhos(as) das mulheres presas.
De acordo com os dados apresentados no quadro 8, grande parte dos filhos e filhas das reclusas da PIEP passaram a ser responsabilidade dos avós, e aqui vale a ressalva de que eram sobretudo as avós - mulheres - que assumiam as responsabilidades e os cuidados com os netos e netas. Esse dado reforça o facto de que o aprisionamento de mulheres tem efeitos plurais e atinge uma rede muito grande de pessoas, mas evidencia que há impactos consideráveis na vida das demais mulheres da família.
O facto de os(as) filhos(as) da reclusa ficarem com as avós atualiza a perspectiva da dupla jornada de trabalho a que as mulheres são submetidas (Granja, Cunha e Machado, 2014). Não se espera que os homens assumam essas responsabilidades, pois não cabe a eles o cuidado da prole (Castro Guedes e Araújo, 2013). A “espiral cumulativa de desvantagens” (Comfort, 2007) dada pelo encarceramento é materializada nas mulheres mais velhas que estão fora da prisão. Logo, o encarceramento feminino tem como efeito, além da reprodução de vulnerabilidades sociais, a consolidação das desigualdades de género (Granja, 2015). No caso das avós que passam a cuidar dos filhos(as) das presas, possivelmente idosas, os efeitos da prisão caem como uma sobrecarga ainda maior, levando à reprodução de assimetrias nas relações de género.
Portanto, tendo em vista o estudo da população carcerária do Complexo Penitenciário Estêvão Pinto, os efeitos do encarceramento feminino devem ser pensados para além dos limites da prisão como referência de tempo e de espaço, dada a pluralidade de implicações da pena de privação de liberdade aplicada a mulheres. Seja em relação à renda e ao consequente empobrecimento familiar, em relação à desconfiguração de muitos lares, em relação aos impactos nos relacionamentos afetivos e conjugais, e em relação aos efeitos na vida dos filhos e filhas que sofrem as repercussões do aprisionamento das suas mães. Em suma, os dados coletados com o inquérito indicam que as responsabilidades - de apoio financeiro e prestação de cuidados à crianças - são assumidas por outras mulheres, configurando a transversalidade e a perpetuação das desigualdades no campo familiar (Granja, Cunha e Machado, 20140, p. 280).
Considerações finais
A proposta deste artigo foi compreender os efeitos do encarceramento feminino nas dinâmicas familiares, tendo como objeto de análise quatro dimensões específicas: a renda, a moradia, os relacionamentos amorosos e os cuidados com os(as) filhos(as). Partimos do pressuposto de que as estratégias de hiperencarceramento pensadas para os Estados Unidos da América têm sido replicadas no Brasil a partir da guerra às drogas e da militarização da segurança pública (Wacquant, 2008). Esse fenómeno ajudaria a explicar por que motivo o perfil das reclusas é bastante homogéneo em termos de idade (jovens adultas), cor da pele (não-brancas) e escolaridade (menor do que os seis anos de estudo, que é a média da população brasileira).
Em seguida, voltamos a nossa atenção para as configurações familiares antes e depois da prisão. A “dupla jornada de trabalho” (Granja, Cunha e Machado, 2014) parece ser uma categoria que se aplica à maioria das reclusas quando investigamos as suas vidas antes do encarceramento. Boa parte delas tinha um papel de destaque no provimento do lar e cuidava dos(as) filhos(as), especialmente os menores de idade. Com a privação da liberdade, os dados do inquérito indicam que há, de facto, a “multiplicação de punições” (Souza, 2016) em razão do empobrecimento da família, da privação da maternidade e, em algumas situações, do encarceramento prematuro dos(as) filhos(as) da interna.
Quando tratamos dos impactos do encarceramento, as “punições para além do infrator” envolvem as teias de parentesco e as redes sociais daqueles que são condenados à privação de liberdade (Comfort, 2007). Ao tratar do encarceramento feminino, temos um “processo perverso de multiplicação de punições” (Souza, 2016), especialmente ao considerarmos os efeitos que se estendem aos familiares das mulheres detidas pelo sistema de justiça criminal, devido à especificidade dos papeis desempenhados por elas na nossa sociedade. Outras mulheres precisam de assumir o sustento do lar e o cuidado com os(as) filhos(as), o que leva a um maior empobrecimento e sobrecarga de trabalho (especialmente o doméstico), perpetuando as desigualdades de género.
Portanto, considerando o hiperencarceramento de mulheres pobres e negras, os resultados encontrados salientam a importância de se observar as teias de sociabilidade e afetos das mulheres antes da prisão, uma vez que esse tipo de punição tem gerado uma série de efeitos deletérios sobre os filhos e filhas, as famílias e as comunidades de origem das inquiridas. A prisão, longe de contribuir para a prevenção da criminalidade, tende a potenciar os cenários de vulnerabilidade e a violência na nossa sociedade.
Os dados coletados na PIEP, por meio do inquérito realizado com mulheres privadas de liberdade, indicam que a reclusão feminina tende a agravar as posições de vulnerabilidade social e instabilidade económica, afetando aqueles que dependiam diretamente da renda e dos cuidados das reclusas. Ela altera também a rede de apoio - formada principalmente por outras mulheres - que passam a lidar com outras responsabilidades no processo reconfiguração familiar após a prisão.
Tendo em vista as especificidades deste estudo, que trata dos impactos do aprisionamento feminino a partir de uma abordagem quantitativa e sob a perspectiva da mulher presa, devemos considerar como limitações próprias da análise a falta de acesso às informações dos familiares e às histórias de vida de cada inquirida. Além disso, os dados coletados são restritos à realidade de Belo Horizonte (Minas Gerais/Brasil) o que impede a generalização dos resultados para todas as mulheres presas. Assim sendo, mais do que dizer sobre as determinantes das reconfigurações familiares, a proposta deste trabalho foi lançar luzes sobre como o encarceramento feminino afeta pelo menos outras pessoas em termos de renda, moradia e, especialmente, economia de afetos.