Introdução
Temos vindo a desenvolver, desde 2016, uma investigação sobre trabalho sexual realizado por homens no Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste do Brasil.1 Durante a realização desta investigação, desde distintas abordagens (rua, saunas, jornais, internet), começamos a perceber, a partir do contacto com alguns escorts,2 que a cidade de Campo Grande funcionava como uma espécie de rota do trabalho sexual realizado por homens, tendo como destino diferentes países europeus, sobretudo Portugal.
O trabalho com o sexo surge como um projeto que permitiria ganhos materiais mais significativos do que aqueles conseguidos no Campo Grande, para além da possibilidade de ganhos qualitativos em termos de capital cultural, isto é, acumulação de valores culturais diversos, uma vez que haveria a possibilidade de um trabalho itinerante por diversos países a partir do contacto com diferentes redes.
A investigação sobre trabalho sexual realizado por homens ainda é um campo a ser explorado. Ainda que haja algumas dezenas de trabalhos no Brasil, não há um produção consolidada (Lopes, Passamani e Rosa, 2019), sendo que o trabalho de Néstor Perlongher (1987) continua a ser a grande referência para o campo. Em Portugal, no entanto, tais investigações são ainda mais esparsas. Portanto, investigar o trabalho sexual realizado por homens é descortinar uma modalidade dos mercados do sexo e das economias sexuais que, até então, se encontrava em processo de consolidação enquanto campo. No Brasil, as investigações sobre trabalho sexual em contextos transnacionais são mais recorrentes a partir de mulheres e de travestis, conforme os trabalhos de Adriana Piscitelli (2013), Ana Paula da Silva e Thaddeus Blanchette (2017), Ana Paula da Silva (2015), Larissa Pelúcio (2009), entre outras. Já no contexto europeu, existem algumas investigações referentes ao trabalho sexual exercido por homens que, por vezes, se focam na sociabilidade e nos deslocamentos de jovens rapazes pelo continente (Ellison e Weitzer, 2018; Mai, 2014; Mai e King, 2009), ou nas especificidades do trabalho sexual de rua (Ellison e Weitzer, 2017; Kaye, 2007). Estes estudos procuram, em termos gerais, descortinar o fenómeno do trabalho sexual nas suas configurações socioculturais (Mårdh e Mehmet, 1995) ou em processos subjetivos destes indivíduos (Earls e David, 1989), mas os interesses ainda são muito pontuais em relação a esta temática.
A deslocação de brasileiros para Portugal não é um processo novo e não se resume ao exercício do trabalho sexual, embora exista um número considerável de pessoas travestis, mulheres e homens brasileiros, que trabalhem neste campo. Nesse sentido, é importante salientar que Portugal se tem tornado, nas últimas décadas, para além de uma opção turística mais barata em relação a outros países da Europa, um destino de residência frequente para brasileiros. Este movimento migratório teve um aumento considerável a partir dos anos de 1990 e, sobretudo, 2000, com o investimento nas chamadas políticas de bem-estar social que, a partir de 2016, coincidiram com os anos de retrocessos políticos, democráticos e económicos no Brasil.3
A imigração brasileira para Portugal já conta com uma prolífera investigação tanto no Brasil como em Portugal. Vejamos alguns casos: Igor José Machado, por exemplo, aborda estes movimentos a partir das relações de exotição dos brasileiros em Portugal, bem como das negociações e articulações que permitem a concretização de tais processos (2004; 2008; 2011; 2014); Paula Togni (2011; 2019) analisa os itinerários de jovens brasileiros que migram para o Cacém, na região metropolitana de Lisboa, dando destaque às negociações entre identidades, corporalidades e performances de feminilidades e masculinidades; Bela Feldman-Bianco (1992; 2007; 2009) fala sobre imigração portuguesa para o Brasil nos seus trabalhos pioneiros, os quais são uma importante contribuição para o campo e merecem aqui destaque. A ligação que se pode destacar entre Brasil e Portugal vai muito além do processo colonial (Scott, 2007), já que o constante fluxo de brasileiros e portugueses através do Atlântico ainda suscita debates não só sobre os impactos gerados nas vidas quotidianas desses sujeitos por meio de políticas de estado, mas também, e principalmente, sobre as dinâmicas das relações entre eles.
Durante a nossa investigação, apontaram-se duas questões principais para a escolha de Portugal como destino: a posição geográfica e a língua. Conversámos com alguns homens brasileiros que trabalham com sexo em Portugal, dos quais destacamos o nosso interlocutor-base, para quem Portugal funciona como uma porta de entrada para o resto da Europa. Segundo o que ele nos contou, é mais fácil chegar a Portugal dado o custo de vida e as facilidades da língua. Depois, a partir de Portugal, pode aceder-se a outros países para desempenhar o trabalho sexual em diferentes lugares, ganhando diferentes montantes, especialmente nos países mais ricos do continente. O segundo elemento destacado é a língua: os homens que contactámos só falam, basicamente, português, o que poderia ser um entrave para o acesso a outros países e, apesar de que ultrapassar este entrave não é impossível, há falta de tempo e investimentos de diferentes ordens.
A nossa ideia aqui é problematizar o trabalho sexual dos homens brasileiros em Lisboa (Portugal), pelo que propomos articular os processos migratórios com processos de “sexotização” e com usos estratégicos da diferença. O trabalho sexual dos homens brasileiros em contexto transnacional, como veremos, é parte de um movimento maior, tanto no que diz respeito à mobilidade transnacional como ao trabalho sexual no mesmo contexto. Para analisar as especificidades do trabalho sexual de escorts brasileiros, vamos debruçar--nos sobre a experiência de um interlocutor-base que nos parece concentrar em si uma diversidade de estratégias que observámos em diferentes sujeitos ao longo da investigação.
Trabalhámos a partir do percurso de um sujeito, que constitui um caso complexo e relevante, pois as suas narrativas, conhecimentos, condutas e saberes foram primordiais para conhecermos uma rede de contactos de homens brasileiros que trabalham com sexo em Portugal. Desta forma, a nossa opção epistemológica é pautada por uma conceção pós-crítica de ciência e de investigar. Segundo Marlucy Paraíso (2004), as pesquisas pós-críticas não têm pretensões de explicações universais e de totalidades, ao contrário, almejam analisar as microrrelações, o particular, e, por isso, os seus dados não devem ser generalizáveis. A autora ainda complementa argumentando que:
É preocupação dessas pesquisas expor o tipo de sujeito e de subjetividade que as diferentes práticas formam, modificam, educam, fabricam, fixam, divulgam. Reunidas, essas pesquisas mostram que o sujeito (ou a subjetividade) é produzido, montado ou fabricado em diferentes práticas discursivas que se combinam ou não para a regulação das nossas condutas. Defendem que o sujeito não existe fora da história, da linguagem, do discurso e das relações de poder. [Paraíso, 2004, p. 293]
As diferentes formas, facetas, estratégias, negociações que compõem um sujeito fazem parte de outros processos, quem sabe mais amplos, que o constróem inacabado, ou seja, a partir de um devir. Esse sujeito-processo, desde as suas microrrelações, as suas coisas miúdas, não se constitui como uma ilha afastada do todo social, mas o todo social é menos sem ele. Assim, as linhas que constituem esse sujeito que, antes de tudo, deseja, ajudam-nos a compor as relações sociais mais amplas que o constituem, pelo que, perseguir as perambulações de um interlocutor-base e, a partir delas, refletir sobre questões maiores, é um dos flancos abertos pela investigação etnográfica.
O antropólogo João Biehl, por exemplo, em “Vita: life in a zone of social abandonment” (2005), por meio da trajetória de Catarina, uma mulher tratada como louca, abandonada pela família e despejada numa instituição para pessoas indesejadas pela sociedade, despertou o olhar do antropólogo para questões como solidão, abandono, medicalização, relações familiares e processos de socialização. Biehl tentou tecer, através da história de vida da sua interlocutora, de que maneira é que tais questões eram agenciadas na sociedade brasileira. Que lugares ocupavam tais sujeitos, que margens de negociação e que enfrentamentos eram necessários? O trabalho de Bihel é muito sintomático de como a antropologia desenvolve essa capacidade de juntar fios aparentemente desconexos de linhas sociais que guardam algum sentido quando intersecionados.
É dessa forma, então, que, num primeiro momento, apresentaremos as experiências e estratégias que o nosso interlocutor-base utilizou na sua cidade de origem para controlar a aproximação e execução do trabalho sexual, momento esse em que começaremos a entender o trabalho sexual como um projeto. Logo de seguida, conta-nos os primeiros desafios do trabalho sexual em Portugal. A seguir, atentaremos, por meio do seu percurso, em como funciona o trabalho sexual dos homens brasileiros em Portugal, analisando as expectativas sobre os brasileiros, com uma suposta racialização do desejo, as particularidades dos mercados do sexo local e a circulação por outros países. A nossa ideia é pensar sobre projetos de vida, processos migratórios e circulação do desejo a partir das linhas traçadas pelo nosso interlocutor, as quais podem ensejar elos de relações mais amplas.
As perambulações de henrique: trabalho sexual e campo de possibilidades
O nosso interlocutor-base trocou a vida de estudante de geografia e instrutor de capoeira no Campo Grande pelo trabalho sexual em Lisboa e noutras cidades europeias na esteira de outros amigos que teriam feito a mesma rota um pouco antes dele. Henrique4 tinha 25 anos quando nos encontrámos, considera-se pardo, tem 1,82m e pesa 79kg. Tem um corpo que poderíamos considerar musculado, por conta da definição muscular bastante visível. O nosso primeiro encontro foi realizado em Lisboa, em dezembro de 2018, e permanecemos em contacto quase diário até ao final de janeiro de 2019. Num segundo momento, voltámos a encontrar-nos presencialmente, durante 10 dias, no mês de junho de 2019, na mesma cidade. Durante os momentos em que não mantivémos um contacto presencial, permanecemos em contacto através da internet, por chamadas de vídeo e conversas pelo WhatsApp, pelo que o nosso contacto mais efetivo já dura há mais de três anos.
Gravámos e armazenámos, ao longo destes anos, uma série de conversas, duas entrevistas mais formais - no estilo de história de vida -, muitos arquivos de conversas no WhatsApp e chamadas de vídeo nas plataformas Google Meet e Zoom. É possível que, apenas com Henrique, tenhamos mais de 20 horas de gravações, o que nos dá condições para um aprofundamento mais orgânico da sua história.
As redes que nos levaram a Henrique foram acionadas ainda na investigação de campo da tese de doutoramento de um dos investigadores, na cidade de Corumbá,5 onde conheceu Jeferson, um escort local, que se relacionava com homens mais velhos (Passamani, 2018). Jeferson, segundo Henrique, teria sido o primeiro de um grupo de amigos a ir para Lisboa para trabalhar como escort e que teria conseguido “dar-se bem”, dando início a uma espécie de rota de sul--matogrossenses para a cidade portuguesa com a mesma finalidade.
A figura do amigo que foi para Portugal prostituir-se parece ser o polo que ajuda a desenrolar um novo projeto, provocando mudanças numa trajetória já delineada e apresentando um novo campo de possibilidades que, de certa forma, provoca metamoforses na vida de Henrique. Segundo Gilberto Velho (1994), os projetos são ações relacionais, isto é, guardam uma dimensão individual e outra coletiva, e é esta relação que permite fazer com que se alcancem determinados fins vinculados a uma realidade externa ao sujeito que não era dada, imaginada, anteriormente. É assim que podemos compreender como o novo projeto vai transformando o nosso interlocutor.
Henrique nasceu e viveu até aos 23 anos no Campo Grande, é filho de pais que “não são ricos, nem são pobres” e, ao contrário de alguns dos seus amigos, sempre teve o que precisou sem ter a necessidade de começar a trabalhar desde cedo. Estudou numa escola pública e prestou o serviço militar. Quando saiu do Exército, candidatou-se ao curso de Geografia e conseguiu entrar. Aqui há uma trajetória bem traçada que enseja um campo de possibilidades.
Henrique conta que a vida no Campo Grande era tranquila, mas que sempre parecia faltar algo: não havia uma ausência de projeto, havia um projeto articulado a um determinado campo de possibilidades circunscrito a uma determinada realidade, ou seja, o curso de Geografia e as implicações desta licenciatura na sua vida pessoal e profissional. No entanto, conforme conta o interlocutor, “faltava um frio na barriga”.
Ter conhecido Jeferson foi um momento marcante no processo de mudança de Henrique, que culminou com a ida para Portugal, pois alargou o seu campo de possibilidades. A ideia de que Henrique poderia ganhar dinheiro com os homens, com os quais já se relacionava gratuitamente, foi dada por Jeferson, o que descortinou uma série de novas camadas para o projeto que Henrique já tinha tão organizado no Campo Grande. Por outras palavras, a relação entre os dois mostra-nos que os projetos são processos complexos, que podem alterar trajetórias individuais e coletivas, mas, mais do que isso, cuja pertinência vai sendo testada e definida contextualmente. Assim, as experiências de Jeferson de contacto com turistas em Corumbá,6 em longas jornadas nos barcos pelo Rio Paraguai, além do envolvimento com homens mais velhos da cidade, servia como uma espécie de prova da sua competência nesse negócio.
Os projetos são elaborados no âmago das relações de poder, pelo que há conflitos, tensão e disputas permanentes, e não foi diferente para Henrique no caso dos novos projetos que se começavam a desenhar. Do ponto de vista teórico, para Gilberto Velho (1994), a metamorfose é o resultado da alteração dos projetos: apesar de serem estruturados, algumas vezes não conseguem ser implementados e, por consequência, redefinem-se, e são estas redefinições as que reorganizam as trajetórias dos sujeitos ou dos grupos.
Assim, esta nova etapa da trajetória de Henrique, alterando o seu projeto inicial, dando corpo a outros projetos a partir dos novos campos de possibilidades, inicia-se a partir do trabalho sexual nas ruas. Conforme a literatura brasileira sobre trabalho sexual de homens na rua (Perlongher, 1987; Ribeiro, 2015; Viana, 2010; Souza Neto, 2010; Santos, 2013), esta modalidade era vista como mais barata porque mais perigosa e mais suja, uma vez que a rua, especialmente à noite, é compreendida como o lugar de ninguém, o lugar da indiferença, o lugar do anonimato. Ou seja, o lugar onde tudo é permitido e tudo pode acontecer. A rua estava associada, a partir desse imaginário, à degradação (Passamani, Rosa e Lopes, 2020a).
Para Henrique, a rua foi passageira e não exatamente lucrativa. No entanto, segundo ele, havia mais do que a necessidade de dinheiro, havia algo como a busca por novos limites para o prazer, levar o desejo até as últimas consequências. Néstor Perlongher (1987), ao falar dos tensores libidinais enquanto articulação de diferentes categorias, mostra como o prazer, a violência e o perigo se aproximam no negócio do desejo. O desafio de ganhar dinheiro no limiar entre o prazer e o perigo era a obsessão de Henrique, o que se assemelha ao conceito que Maria Filomena Gregori (2016) cunhou, oportunamente, de limites da sexualidade, aquele ponto que aproxima meticulosamente prazer e perigo nos negócios do erotismo.
Henrique também explorou o trabalho sexual em saunas. Aliás, num levantamento acerca da produção brasileira sobre trabalho sexual realizado por homens, esta parece ter sido uma tendência. Ocorreu uma espécie de migração das ruas e demais espaços públicos para as saunas e clubes de sexo, ou seja, para espaços privados. Essa privatização do desejo deveu-se, conforme apurámos no levantamento, à compreensão da sauna como um espaço mais limpo, mais seguro, de melhor qualidade, onde os clientes são “mais selecionados” (Lopes, Passamani e Rosa, 2019; Passamani, Rosa e Lopes, 2020b).
Esse dualismo entre o público e o privado é uma invenção da modernidade. Conforme Prado Filho (2018), a modernidade constrói-se a partir de campos de experiência, sendo um deles a cultura, formando valores éticos (perspetiva racionalista). Para o autor, a modernidade introduziu as suas próprias tecnologias e jogos de poder, como as técnicas de individualização, o que tem implicações na sexualidade. Segundo Prado Filho:
Todas essas questões - da sexualidade, do sujeito e da subjetividade - são estratégicas para a modernidade, demandando investimentos de saber-poder no sentido de equacioná-las. Assim, nossa cultura tem desenvolvido poderosas tecnologias de objetivação e subjetivação de indivíduos, visando a vigilância dos seus corpos e o governo das suas condutas, além de todo um conjunto de práticas e trabalhos do sujeito em relação a si mesmo que implicam em um governo ético do sujeito sobre si [Prado Filho, 2018, p. 97].
Ora, a sauna é um espaço privado, onde os corpos são vigiados, porém as técnicas de controlo da subjetividade são muitas. Para distinguir tais técnicas de vigilância, podemos citar o entendimento de que, sendo a homossexualidade percebida por alguns segmentos mais conservadores como uma prática pecaminosa, as instituições cristãs reprovam a existência de saunas destinadas aos homens que se relacionam sexualmente com outros homens. Por outro lado, os frequentadores das saunas vigiam os corpos gordos, magros, velhos e promíscuos que circulam nestes locais.
A sauna, para Henrique, teria sido “um prato cheio”, tendo, neste local, conseguido muitos clientes. Na época em que era escort nas saunas, Henrique tinha namorada, algo que era proibido naqueles estabelecimentos - mas que ocorria “por baixo dos panos” -, pelo que precisou de construir estratégias variadas para que as suas duas vidas não interferissem uma com a outra. Paralelamente às saunas, Henrique também procurava clientes na sala de chat do sítio UOL do Campo Grande, utilizando apelidos variados, sempre seguidos de $ e fazendo alusões a ser ativo e bem dotado.
Era contactado por homens de idades e perfis variados, uma vez que ser ativo e bem dotado eram signos que acenavam a uma masculinidade hegemónica e que garantiam ao interlocutor sucesso no negócio do desejo. Essas e outras estratégias são descritas como características importantes nessa modalidade de interação em linha, conforme Richard Miskolci (2009; 2013).
Uma última estratégia, antes da mudança para Portugal, foi criar perfis nas aplicações de relacionamento entre homens. O interlocutor criou perfis no Scruff, Grindr, Hornet e também no Tinder. Para ele, o mais lucrativo teria sido o Grindr. Nos últimos anos, houve uma popularização dos perfis de escorts nessas aplicações, demonstrando, quem sabe, mais um deslocamento nas mudanças que atingem o trabalho sexual realizado por homens.7
A história de Henrique enquadra-se naquilo que Gilberto Velho (1994) chamaria de curva de vida, isto é, o resultado, ao longo das múltiplas experiências do sujeito, das mudanças sofridas para que se consiga alcançar, a bom turno, os novos projetos. Isto foi feito a partir de alterações na trajetória pensada inicialmente, uma metamorfose que foi muito rápida, durando dois anos, e que o levou, segundo conta, a um cansaço do Campo Grande. Foi nesse momento que reencontrou Jeferson, que tinha ido para São Paulo em 2015 e no mesmo ano seguiu para Lisboa. O seu reencontro, em 2016, marcaria outra metamorfose na vida de Henrique. Jeferson contava “maravilhas” do trabalho sexual de homens brasileiros na Europa, o que despertou interesse em Henrique e parecia ser a possibilidade de romper os laços familiares mais estreitos, bem como o namoro.
Henrique contou que teria ido para Portugal, pelo menos isso é o que ele tinha dito à família, para ser instrutor de capoeira, tal como Jeferson. Sair do Campo Grande, ir para a Europa e poder ter mais liberdade em relação ao trabalho sexual era, naquele momento, tudo o que ele queria. No final de 2016, embarcou para Portugal, e passou os primeiros tempos na casa de Jeferson, uma espécie de porta de entrada para os garotos do Mato Grosso do Sul que iam trabalhar como escorts na Europa.
O facto de Henrique ser um capoeirista e ter escolhido Portugal como destino para trabalhar como escort não é por acaso. Esse álibi pode ser lido como uma estratégia de vivência de uma sexualidade dissidente a partir de uma zona de segurança, ou seja, ao afirmar-se como capoeirista, distancia-se do estigma de ser escort e, ao migrar para um país estrangeiro, tem a possibilidade de se manter protegido do olhar moralizante da sua rede de relações mais próxima.
Henrique não é o único brasileiro que internacionaliza a capoeira. A história do Brasil imperial, após a queda da escravatura no fim do século XIX, colocou no mesmo lugar dos crimes policiais a vadiagem, a capoeira e o trabalho sexual, segundo Harriet Santos e Juciene Apolinário (2010). Nesse sentido, Mateus Almeida (2015) complementa este entendimento ao mencionar o caráter de moralidade presente nas atividades citadas. Para o autor, que era escort e capoeirista, praticava o ócio e, com isso, tais sujeitos não produziam pela força do seu trabalho bens para a sociedade, resultando na falta de dignidade.
Conforme Celso de Brito (2007), o capoeirista era visto como astuto, alguém que não trabalhava, o que no universo do trabalho sexual de homens também é algo recorrente. O trabalho sexual também é estigmatizado através de perceções que o compreendem como violento, sujo e associado ao uso de estupefacientes. Se, na capoeira do século XIX, o capoeirista e a astúcia eram algo denotativo, hoje a última ganha outros significados que formam o sujeito capoeirista como alguém apto a praticar e/ou ensinar essa arte. No trabalho sexual, os garotos astutos sobrevivem melhor, principalmente quando o trabalho sexual é realizado na rua.
Como podemos perceber, a capoeira tem-se transformando ao longo da história, o que pode ser visto a partir de diferentes perspetivas, mas algo parece contribuir fundamentalmente para a ressignificação desta arte e principalmente para a sua internacionalização: aquilo que Bruno Andrade (2012) chama de configurações lusófonas. Para o autor, a construção de uma identidade subalterna não é um produto certo, mas as relações de poder produzidas nesse processo tensionam o colonial e a modernidade. Isso revela-se nas experiências internacionais da capoeira. Ainda segundo Bruno Andrade (2012), tal subalternidade não fixa nos capoeiristas uma identidade de subalternos, pois, como bem analisa Adriana Piscitelli (2010), existe uma relação intensa entre a capoeira e uma economia do desejo. Celso de Brito (2007) expressa que a astúcia na capoeira é uma forma de sedução, porque o poder de seduzir produz certamente uma positividade difícil de ser percebida e de ser relacionada com efeitos negativos nas relações estabelecidas.
Adriana Piscitelli (2010), na sua investigação com mulheres brasileiras que migram para a Europa, aponta que os homens capoeiristas chamam mais a atenção do que as mulheres estrangeiras, pois os seus corpos revelam virilidade e os seus efeitos são de valorização frente aos homens locais com os seus corpos comuns. Além da virilidade, a pele morena, os corpos definidos e/ou musculados seduzem. Aqui, a racialização gera uma valorização mercadológica, e é nesse contexto que Henrique se encontra, um homem moreno, musculado, sedutor, jovem e capoeirista, que, para além das mulheres de Piscitelli, encanta os homens e, com isso, mantém seu sonho europeu vivo.
Atravessamentos do desejo: trabalho sexual realizado por homens em Lisboa
As investigações académicas sobre o trabalho sexual exercido por homens em Portugal ainda estão em expensão. Prostituição Masculina em Lisboa, de António Duarte e Hermínio Clemente (1982), foi o trabalho mais antigo que conseguimos localizar. A obra é uma grande reportagem jornalística com homens afeminados e travestis que negociavam sexo no final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980 em Lisboa. De forma um pouco lateral, os homens trabalhadores sexuais aparecem numa investigação de Alexandra Oliveira (2013) quando ela investigava o trabalho sexual de apartamento na cidade de Lisboa. Era uma população que representava pouco mais de 30% da amostra da investigadora. Mariana Rosa Pinto Pereira Melo (2015) investigou o trabalho sexual dentro de locais fechados de homens no Porto. Henrique Pereira (2008) destacou a dimensão em linha do trabalho sexual de homens no país. Nestas investigações, a presença de homens brasileiros que exercem o trabalho sexual é bastante destacada.
No que diz respeito a aspetos mais gerais do trabalho sexual, especialmente questões referentes a mulheres e pessoas travestis, há uma gama de trabalhos e uma acumulação de reflexão mais significativa. Um dos trabalhos considerados pioneiros no país é o de Francisco Inácio dos Santos Cruz (1841), onde o investigador destaca a sua preocupação sanitária em relação às mulheres trabalhadoras sexuais e o tom negativo e moralizante em relação a essa atividade. O olhar estigmatizante também está presente na obra de Alfredo Amorim Pessoa (1887). Quase um século depois, José Machado Pais (1985) teoriza sobre o trabalho sexual e as suas interseções com as diversas dimensões da vida social, o que representa um avanço frente aos trabalhos do século XIX.
Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas (1982), enquanto presas políticas, conviveram com mulheres trabalhadoras sexuais no Porto e escreveram relatos e experiências dessa convivência numa obra que não tem tanto um caráter académico, mas mais de memórias e impressões acerca da vida daquelas mulheres e a perceção das autoras sobre o trabalho sexual.
Alexandra Oliveira, no entanto, é quem reúne uma série de investigações sobre trabalho sexual de mulheres na cidade do Porto. O olhar de Oliveira dirige-se às diferentes modalidades do exercício do trabalho sexual: rua, apartamentos, casas de alterne e bordéis (Manita e Oliveira, 2002). Alexandra Oliveira (2004; 2011) aproxima-se do trabalho etnográfico para desenvolver as suas investigações, nas quais se percebe uma postura ética, académica e política anti-estigmatizante, anti-abolicionista. Sobre as casas de alterne, especificamente, é de se destacar o trabalho de Lira Dolabella (2015), cuja interseção entre processos migratórios e trabalho sexual está muito presente e constitui a dinâmica do negócio.
É importante destacar aqui a investigaçãode Manuela Ribeiro et al. (2008), que traz fôlego ao trabalho sexual de mulheres na região de Trás-os-Montes e da Beira Interior. Em Lisboa, as pesquisas mais sistemáticas que conseguimos localizar foram as de Bernardo Coelho (2009; 2019) sobre trabalho sexual de luxo e em locais fechados oferecido por mulheres.
Percebemos um crescente interesse académico no trabalho sexual de pessoas trans e travestis em Portugal: Fernanda Belizário (2018), Nelson Ramalho (2019) e Francisco Luís (2015), por exemplo, problematizam diferentes aspetos do trabalho sexual de pessoas travestis, muitas delas brasileiras.8 Já Emerson Pessoa (2020), dedica-se a refletir sobre a constituição de biografias corporais de mulheres trans e travestis no trabalho sexual. Esta literatura mostra a dinâmica do trabalho sexual em Portugal, bem como a relevância de uma ideia de mobilidade, além da constante presença de pessoas brasileiras movimentando as economias sexuais locais. É nessa gama de sujeitos em movimento que Henrique, o nosso interlocutor-base, acabar por se inserir.
Segundo Henrique, os brasileiros eram bastante requisitados nos mercados do sexo local, um fator que acabou por formar uma espécie de rede que tinha em Jeferson um dos seus elos, especialmente para aqueles garotos vindos do Mato Grosso do Sul. Para estes, o caminho era, quase sempre, o mesmo: ajudavam nas rodas de capoeira, o que servia como um álibi público acerca de uma profissão “honesta”.
O nosso interlocutor avalia que a sua carreira no trabalho sexual em Lisboa teria sido impulsionada por apresentar algumas caracterísicas físicas atrativas que eram preciosas para alguns consumidores locais do sexo tarifado (Pocahy, 2012): era masculino, jovem, musculado e bem dotado, atributos associados a uma ideia de masculinidade hegemónica (Kimmel, 1998; Oliveira, 2004; Connell, 2016).
A dimensão hegemónica entendida aqui (Connell e Messerschmidt, 2013) não deve ser considerada a partir de fronteiras rígidas entre tipos de masculinidades. Como sugere Miguel Vale de Almeida (1995), associar-se a uma masculinidade hegemónica trata justamente de tensões entre vários tipos ideais, onde características como a cor da pele e o desempenho sexual podem ser definidas circunstancialmente. Em vista disso, no contexto do trabalho sexual de homens brasileiros, ser não branco, negro, moreno, mulato, torna-se também um atributo que constitui uma masculinidade hegemónica. Henrique contou que os homens com estas características, similares às dele, eram os mais requisitados.
Portanto, não nos parece rentável pensar numa masculinidade hegemónica universal, mas sim circunstancial, contingente, contextual. E aqui percebe-se a idiossincrasia nos mercados do sexo português: o homem português em contacto com o homem brasileiro ramifica especificidades onde, por exemplo, a cor morena e a “virilidade tropical quente” podem ser tidas como hegemónicas, a partir do imaginário de um lusotropicalismo (Almeida, 2002). Não se trata de um modelo fechado de masculinidade, mas sim de tipos que se constituem nos processos relacionais e dialógicos empreendidos cultural e historicamente.
O facto de Henrique apresentar tais características e ser uma novidade no mercado fez com que alguns clientes de Jeferson também se interessassem por ele. Esta partilha de clientes fez com que Henrique passasse a pagar uma taxa a Jeferson. Segundo o nosso interlocutor, “os clientes satisfeitos com o serviço sempre voltam e é possível fidelizá-los”. O que os escorts procuram é clientes fixos que possibilitam ganhos mais estáveis, que não são tão volumosos, mas são recorrentes.
Entretanto, o começo do trabalho em Lisboa contou outra vez com voltar à rua e à sauna. Ao chegar a Lisboa, circulou pela região dos hotéis do Parque Eduardo VII, no Marquês do Pombal e também pelos “points gays” do Bairro Alto e do Príncipe Real. Também utilizou as aplicações, nas quais, ao início, se anunciava mesmo como escort recém-chegado do Brasil, ativo e bem dotado. Foi rapidamente bloqueado em algumas, pois tratava-se de uma atividade proibida. Depois, passou a fazer uma propaganda mais discreta, menos ostensiva, apenas insinuando que era escort, a partir do símbolo de um diamante, algo que era recorrente entre outros garotos que trabalhavam na cidade. Mas, definitivamente, não era nas aplicações que o negócio acontecia de forma mais rentável. Conforme apurámos, o movimento mais lucrativo nas economias sexuais para os escorts dá-se a partir dos sítios de classificados e acompanhantes, aos quais os clientes portugueses e estrangeiros acedem. Há uma segmentação de sítios que comportam diferentes perfis, tanto de escorts, como de clientes, a partir dos atributos corporais de uns, por exemplo, e poder aquisitivo de outros (Alaman e Passamani, 2021).
Henrique comenta que quando chegou a Lisboa se registou no sítio viphomens.net, um sítio onde estão os perfis de muitos escorts em diversas cidades portuguesas. Define-se como um classificado em linha de anúncios de conteúdo erótico e é destinado exclusivamente ao público adulto, isto é, a maiores de 18 anos. Trata-se de um veículo de comunicação que publica anúncios, mas não faz intermediação com os anunciantes. A grande maioria dos homens que se anuncia ali é composta por brasileiros.
Henrique contou que fazia relativo sucesso nas saunas da cidade, onde não era permitido o exercício do trabalho sexual de forma explícita, mas, ainda assim, acontecia. Ele, como era habitual, insinuava-se aos homens mais afeminados, menos atraentes e mais velhos. Na visão do interlocutor, estes seriam os mais “frágeis, ninguém gosta deles. Mas eles geralmente têm grana”.
O primeiro ponto, observado por Henrique, é que a sauna tem “melhor nível”, dado que é necessário pagar uma taxa para entrar. Há um claro recorte de classe: quem não consegue pagar, não entra. Há uma seleção. Aqui, percebe-se uma associação entre classe e segurança, afinal é demasiado comum no nosso imaginário a aproximação da pobreza à violência. Outro ponto a ser destacado é a procura, mesmo na sauna, por um certo grau de anonimato. Como aponta Normando José Queiroz Viana (2010), as saunas, mesmo em regiões centrais da cidade, costumam ser pouco sinalizadas e não há qualquer elemento que ligue a construção a um espaço de sexo entre homens. O elemento da discrição, como aponta Eder da Silva Deodato (2015) é fundamental porque, assim, nesse espaço discreto, limpo e seguro (Barreto, 2012), escorts e, principalmente, clientes, estariam mais à vontade para os jogos de sedução.
Para o nosso interlocutor, o relativo sucesso dos brasileiros nos mercados do sexo local, bem como a maioritária presença dos mesmos, devia-se a uma série de fatores que constitui um imaginário sobre os brasileiros na economia sexual lisboeta e que eles utilizam nos seus jogos de sedução. “Malandragem”, “safadeza”, “sexo sem restrições” foram expressões usadas para caracterizar esse encontro, que poderia ser, inclusive, acionado como uma memória colonial. Este também faz parte do imaginário colonial português, das primeiras interações sexuais no Brasil, uma espécie de libertinagem interracial (Mbembe, 2017), que reduzia o ser humano, como disse Achille Mbembe (2017) sobre o processo em África, em relação à aparência, à pele e à cor.
A questão é que isto é frequente: há uma sexualização dos corpos dos homens brasileiros a partir de um imaginário que os constrói como mais lascivos. Elementos de uma suposta cultura popular brasileira, como a “safadeza” e a “malandragem”, são transpostos para o mundo do sexo e funcionariam como tensores libidinais que movimentariam, de forma muito particular, as economias sexuais, facilitando e não restringindo as interações. Dessa forma, como afirma Mbembe (2017) a ideia de raça, em contextos racializados, como o das economias sexuais, por exemplo, constitui a raça como parte de uma bioeconomia.
Assim, Avtar Brah (2006) esclarece que, tal como Mbembe dissocia o devir negro do mundo de uma ascendência biológica, a antropóloga compreende que as pessoas de cor não são classificadas a partir da sua cor de pele, mas, sobretudo, a partir das relações subalternas que desenvolvem. A cor, na perspetiva de Brah, é política e não biológica. Nesse sentido, o contexto racializado no qual estão inseridos os corpos dos escorts brasileiros é racializado não porque eles são negros, ou não brancos, mas também por isso, entre tantos outros marcadores que carregam e que os constituem como subalternos (mas que podem falar) numa economia mais ampla.
No caso de pessoas da América Latina, Mara Viveros Vigoya percebe que este processo é especialmente relevante a partir da categoria de mestiçagem que, na percepção dela, funciona como uma“‘ficción fundacional’ del imaginario de la nación en gran parte de la región” (2008, p. 176). Seria assim que a noção de mestiçagem presente em categorias como mulata/o, morena/o, por exemplo no Brasil, se associaria às tentativas de branqueamento da nação. Em determinados contextos, tais estratégias podem aludir a tentativas de afastamento de um repertório carregado de negatividade associado às pessoas pretas, mas esses corpos seriam tão rejeitados quanto desejados.
Há um processo histórico que é atualizado, ressignificado, mais sofisticado, mais subtil que interseta sexualização e exotização de determinados corpos, sujeitos e lugares. Ulrike Schaper et al. (2018) denominam esta interseção como sexotic, que se nutre de uma perceção de supostas diferenças inatas em relação ao impulso sexual, à sexualidade e aos comportamentos sexuais. Esse campo do erótico, digamos assim, seria representativo do sujeito como um todo, já que sexualizar o exótico o potencializaria em termos de atração, desejo e estímulos sensuais. Quando falamos nos morenos, nos mulatos, no sucesso dos negros no trabalho sexual, percebe-se o fetiche por essas pessoas “quentes” de um país tropical.
Ora, sexualização e exotização, elementos que constituem a dimensão sexotic, não são dados apriorísticos da natureza, são produzidos por desejos, relações de poder no âmbito de tensões culturais entre “nós” e “eles”. O que percebemos em campo é que se trata, efetivamente, de uma relação, pois os sujeitos “sexóticos” não são passivos e subjugados. Eles negoceiam, incrementam e potencializam a sua “sexotização”. Henrique, um sujeito percebido como “sexótico”, apropria-se do imaginário sobre si e agencia formas possíveis de maior sedução com o objetivo de progredir e conseguir mais vantagens no trabalho sexual. Trata-se de um jogo praticado por escorts e clientes, no qual as regras são alteradas à medida que as expectativas também se alteram. No entanto, nacionalidade, cor da pele, atributos corporais e performance sexual no desempenho do trabalho parecem ser uma constante e, ao que tudo indica, são controlados com mestria por Henrique e seus amigos.
Isso observa-se com muita clareza na relação entre portugueses e brasileiros, tendo em conta a relação secular de metrópole e colónia com o Brasil e todas as implicações daí advindas. No entanto, esses corpos brasileiros racializados também são requisitados noutros lugares da Europa, onde também são outros, marcados pelas suas diferenças. Continuam “sexotizados”, mas talvez com a particularidade de uma menor disposição colonial a priori, tratando-se de diferenças que, no campo do erotismo e do desejo, nos mercados do sexo, são altamente valorizadas.
A partir de Portugal, no entanto, começa um périplo por diferentes países do continente. Henrique e seus amigos passavam temporadas em diferentes cidades, especialmente capitais ou cidades importantes de outros países do continente. Regra geral, a região por onde circulavam era a União Europeia, considerando a facilidade de acesso e trânsito.
A dinâmica era mais ou menos essa: no verão estavam nas praias portuguesas do Algarve, ou na região de Barcelona, na Catalunha, Espanha. Henrique conta que “os gringos baixam todos pra lá e não economizam”. Os “gringos”, aqui, eram os europeus do norte do continente, com destaque para os ingleses, alemães e escandinavos. Nos outros períodos do ano, acompanham o calendário de grandes eventos, bem como festas nacionais, festivais musicais, ou os desfiles LGBT das diferentes capitais. A circulação era uma espécie de credencial de uma carreira de sucesso.9
A ideia de carreira de sucesso tem de ser pensada com especial atenção, parece-nos que passa, invariavelmente, pelo facto de ser brasileiro e por tudo aquilo que está associado a uma brasilidade nas economias sexuais. Estamos a falar de uma racialização do desejo, um contexto racializado é muito mais do que um paradoxo entre branco e preto, é uma escala que é exatamente a dimensão onde se produz o processo de racialização (Mbembe, 2017).
Este outro sujeito racializado não precisa, necessariamente, de ser negro, mas, obrigatoriamente, de ser parte de uma humanidade subalterna, que compõe o devir negro do mundo (Mbembe, 2017). Portanto é preciso defender-se, proteger-se e destruir esse sujeito, racializado e constituído como nosso outro, pelo menos em teoria. Na prática, em diferentes contextos, os processos são mais complexos e essa alteridade é que pode servir como um estimulante do desejo, constituído como sujeito sexotic.
Parecem-nos interessante aqui os campos onde as diferenças se confundem, as dimensões em que as fronteiras se dissipam, os espaços onde as rupturas e as permanências são constantes. Acreditamos que é aqui, nestes momentos, nestas brechas, nestas fissuras onde podemos falar de agência. Sherry Ortner (2006) reflete sobre agência a partir dos jogos sérios, ou seja, o contexto em que os atores buscam, efetivamente, cumprir os seus projetos estabelecidos. Concretizar projetos envolve estratégias, rotina, ações intencionais individuais e coletivas. Logo, a agência, dependendo do contexto, está em diálogo com uma ideia mais ampla de projeto, que se efetiva a partir de um determinado campo de possibilidades.
Segundo Ortner, “a perspectiva dos jogos sérios pressupõe atores culturalmente variáveis (e não universais) e subjetivamente complexos (e não predominantemente racionalistas e interessados em si mesmos)” (2006, p. 46). A agência age nas brechas, nas fissuras, nas tensões dos jogos sérios, pois são variáveis. A agência provoca as sobreposições, o que se aplica muito ao trabalho sexual dos escorts com os homens mais velhos.
Henrique deseja o dinheiro que pode ser o passaporte para frequentar uma Europa ainda desconhecida, mas já sedutora. Aliado ao dinheiro, pode vir segurança, presentes, agrados, ajudas, inclusive afeto, num contexto quase apenas permeado por desconhecidos. Logo, os clientes não são perdedores, porque sabem negociar com o que têm. Sem eles não há negócio. Por outro lado, Henrique também sabe usar muito bem o corpo que tem, a masculinidade que desenvolve, a juventude que tem, bem como a capacidade de se apoderar de um imaginário “sexótico” a seu favor. Portanto, Henrique também não perde porque sabe como fazer para conseguir algumas vantagens nessa delicada relação.10 É nesse sentido que concordamos com Foucault (1995) quando diz que o poder é relacional, ou seja, não pertence, ou é exercido apenas por uma das partes, clientes ou escorts, e ambos são sujeitos e permeiam as suas práticas sociais de trabalho por relações de poder.
Os clientes, quem sabe, permitem-se perder até determinado ponto, não considerando isso uma perda. O que espoleta isto é o prazer de uns e de outros que andam no limiar do que poderia colocar em risco o lugar que um e outro ocupam no negócio. Há tensões constantes, por certo, mas quem consegue garantir, de maneira tão hermética, que o termómetro do desejo sexual de escorts e clientes deve andar por uma estrada segura, reta, sem curvas, sem buracos ou sem desvios, ao invés de tentar um equilíbrio, quase impossível, no fio, tão vacilante, quanto atraente, de uma insegura corda-bamba?
Considerações finais
Ainda há muito para investigar sobre o trabalho sexual realizado por homens no Brasil e em Portugal para conseguirmos respostas mais profundas sobre muitos dos temas explorados nesse texto. Aventurámo-nos nos primeiros passos ao longo dos últimos seis anos. No entanto, as possibilidades, ainda em aberto, são consideráveis. Apenas nos aproximamos de um ponto, de uma suposta rota de migrantes brasileiros para Portugal que teria como elemento espoletador o uso tarifado do corpo em terras lusitanas. Outros pontos, quem sabe ainda encobertos, podem levar-nos a conhecer outras diferentes estratégias deste seguimento das economias sexuais em contextos transnacionais.
Aqui, por enquanto, conseguimos deter-nos nas estratégias de Henrique que partiu de Mato Grosso do Sul para Lisboa na expectativa de aprofundar experiências bastante incipientes no mercado do sexo local. Observámos, a partir dele, como o trabalho sexual foi delineando curvas de vida que resultaram na metamorfose de um projeto que parecia bastante consolidado na cidade de origem e que deu início a uma nova carreira, quem sabe de sucesso, no campo das economias sexuais em contextos transnacionais. Além de sedutor, porque repleto de novidades, o trabalho sexual, para o nosso interlocutor, aparece como desafiador diante de uma realidade morna. O trabalho sexual, como tempero e sedução, parece ter sido o novo e vasto campo de possibilidades que lhe foi apresentado, bem como aos seus conterrâneos.
O novo projeto do trabalho sexual no exterior e da sua circulação por outros países para além de Portugal, não é apenas uma constante de facilidades. Há desafios, há mudanças, há reveses. A construção de uma rede de solidariedade, talvez seja o mais emblemático, pois a distância da família, dos amigos e de tudo que confere algum grau de identificação pode até ser encantador num primeiro momento, mas, como nos contou Henrique, gera uma sensação de ausência depois de passada a euforia dos primeiros tempos.
Ainda existe um imaginário que naturaliza uma certa brasilidade como lasciva considerando os aspetos ligados à geografia, por exemplo. Nesse imaginário, “malandragem”, “safadeza”, “fogo”, “malícia” seriam características naturais dos brasileiros. Esses atributos seriam, portanto, elementos que, nas economias sexuais, precificariam os serviços prestados pelos brasileiros e seriam altamente valorizados no mercado lusitano e, quem sabe, europeu. Há, nisto que apresentamos, uma racialização do desejo dos sujeitos e dos corpos brasileiros, que são transformados em sujeitos e corpos “sexóticos”.
No entanto, tentamos afastar-nos, a partir do que mostramos no texto, de uma vitimização dos homens envolvidos nas economias sexuais como escorts. No nosso campo, a partir do que conseguimos apurar até este momento da investigação, essa não parece ser a tónica desta rede que tem Henrique como uma espécie de centro. Talvez, segundo as nossas observações, haja uma dimensão de agência por onde os nossos interlocutores se movem. Os movimentos da agência destes homens é que dinamizam e turvam um pouco as esperadas relações de poder entre quem tem dinheiro de um lado e quem tem um corpo jovem, musculado e não branco do outro.
Há, sim, até onde conseguimos ir nesta etapa da investigação, outros fatores em jogo. Uns e outros, clientes e escorts, transitam pelas suas arenas seguras e tensionam até um limite, que consideram prudente, na intenção de fazer com que o desejo fique cada vez mais aguçado. Talvez aí, a brasilidade hiperssexualizada e “safada” ganhe destaque, pois seria característico do brasileiro esse tempero “maldoso” que assombra, mas, ao mesmo tempo, hipnotiza os “gringos” tão literais. Se, por um lado, há o lúdico da fantasia do brasileiro macho e casanova, por outro, há uma dimensão também fantasiosa do gringo velho, endinheirado e ingénuo. Estes dois opostos, modelos ideais, são apenas dois polos de um gradiente que oferece muitas possibilidades. Uns e outros, entendemos, jogam com esses lugares-comuns a eles associados no sentido de potencializar o desejo e extravazar os prazeres impublicáveis e moralmente, ainda, inclassificáveis.