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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.243 Lisboa jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022243.05 

Artigos

A representação social do consumo de proteína animal e das alternativas para a sua substituição: uma análise bioética.

The social representation of animal protein consumption and alternatives for substitution: a bioethical analysis.

Marta Luciane Fischer1 
http://orcid.org/0000-0002-1885-0535

Jessica de Gang1 
http://orcid.org/0000-0003-2747-7434

Caroline Filla Rosaneli1 
http://orcid.org/0000-0003-3710-5829

1 Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Rua Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho - CEP 80215-901 Curitiba, PR, Brasil. marta.fischer@pucpr.br; jessdegang@gmail.com; caroline.rosaneli@gmail.com


Resumo

Os paradigmas éticos emergentes sobre o consumo da carne e das alternativas de substituição necessitam de reflexão bioética para compreender as relações sociais com a senciência e o bem-estar animal. Este estudo procura compreender como a sociedade brasileira representa a produção animal, o consumo de carne e as alternativas para a sua substituição. Para isso, foi realizada uma investigação em linha com 330 participantes do Brasil. Os resultados sugerem que variáveis como idade, sexo e nível de ensino influenciam a representação social da carne e as alternativas da sua substituição e demonstram que a sociedade brasileira acredita que é mais factível a redução do consumo do que a adesão a alternativas.

Palavras-chave: bioética; bem-estar animal; carne artificial; entomofagia; veganismo

Abstract

Emerging paradigms on ethical consumption of meat and replacement alternatives require a bioethical reflection to understand the social relations between sentience and animal welfare. This study seeks to understand how Brazilian society represents animal production, meat consumption, and alternatives to replace its consumption. For this, an online survey was conducted with 330 participants from Brazil. The results suggest that variables such as age, sex, and education level influence the representation of meat consumption and demonstrate that Brazilian society believes that reducing consumption is more feasible than adhering to alternatives.

Keywords: bioethics; animal welfare; artificial meat; entomophagy; veganism

Introdução

A conduta humana de confinar animais para consumo compõe tradicionalmente as pautas da bioética balizadas por duas perspetivas éticas: o utilitarismo e o abolicionismo (Fischer, Cordeiro e Librelato et al., 2016). A perspetiva da ética utilitarista, fundamentada no filósofo Petter Singer (Singer, 2008; Singer e Manson, 2007), considera imoral o sacrifício de vidas saudáveis para finalidades que não possuam justificações idóneas ou que possuam alternativas comprovadamente eficazes. Contudo, mesmo a utilização sendo legitimada, as decisões de como lidar com os animais devem ser baseadas no princípio ético da igual consideração de interesses, sendo visto como imoral causar dor e sofrimento a espécies sencientes.1

A perspetiva abolicionista, apoiada em ideias de filósofos como Francione (2013) e Joy (2014), considera imoral qualquer tipo de relação de poder do homem sobre os outros animais, ampliando a abrangência do princípio ético da igual consideração de interesses. A ética utilitarista considera que os animais têm o interesse em não sofrer, logo, aceitam o domínio, porém mediado por procedimentos que não imputem dor ou sofrimento. Enquanto a ética abolicionista defende que os animais também têm interesse em viver, logo, apenas diminuir condições que causem dor ou sofrimento não são suficientes para amenizar o custo da restrição da liberdade, da autonomia e a interrupção da vida dos animais.

A ética ambiental está constituída numa perspetiva hodierna à produção animal, uma vez que são considerados os impactos ambientais e sociais gerados por processos que visam predominantemente a lucratividade sobre a qualidade de vida das pessoas, dos animais e do ambiente (Martins e Nunes, 2020).

Mesmo perante a dissonância das perspetivas éticas, deve considerar-se que existem alternativas nutricionais comprovadamente eficazes, o que não sustentaria o sistema industrial de produção animal (Singer e Manson, 2007). Logo, o presente estudo tem como pergunta balizadora se o consumo de carne constitui um conflito ético para os brasileiros. Essa pergunta é apoiada no facto de o Brasil ser reconhecido mundialmente pela extensiva produção de carne, cujo consumo é culturalmente enraizado e balizado por múltiplas e complexas representações (Barros, Meneses e Silva, 2012; Mariani e Henkes, 2014). Contudo, a adesão às dietas alternativas como vegetarianismo e veganismo tem aumentado substancialmente na última década no país, principalmente pelas novas gerações que são impulsionadas por paradigmas éticos emergentes, bem como devido ao aumento da disponibilidade de alimentos destituídos de proteína animal no mercado (Carvalho, 2020).

Perante a diversidade de representações dos animais, condicionadas por variáveis individuais, culturais, sociais, históricas e económicas, estudiosos da temática (Joy, 2014; Michel, Hartmann e Siegrist, 2021; Possidónio et al., 2021) reiteram a necessidade de avaliar a representação social em diferentes realidades culturais. Assim, considerando que a representação do animal é uma propriedade mental que determina a realidade, o significado das coisas, o que se pensa a esse respeito e como se sente a acerca delas (Joy, 2014), torna-se necessário desenvolver meios para aceder a essa representação, que igualmente deve ser adaptada para o público a que se destina. Concomitantemente parte-se de pesquisas anteriores que demostraram que o consumo de carne é condicionado por variáveis como idade, sexo, nível de ensino, área de formação, tutoria de animais de estimação e consumo de carne (Furst et al., 1996; Jomori, Proença e Calvo, 2008; Barros, Meneses e Silva, 2012; Palodeto e Fischer, 2018; Michel, Hartmann e Siegrist, 2021). Logo, nesta investigação objetivou-se aplicar diferentes instrumentos para aceder à representação numa amostra heterogénea que contemple as variáveis condicionantes.

O acesso à informação qualificada subsidiando escolhas alimentares com autonomia e sentido crítico foi compreendida por Fischer, Cordeiro e Librelato (2016) como o principal fator para mitigar a vulnerabilidade dos consumidores perante o sistema capitalista que dita como e o que comer (Joy, 2014). A questão é como informar, sensibilizar e educar o cidadão. Enquanto posturas radicais acreditam que se deva chocar para promover mudanças, outros posicionamentos acreditam que é necessário sensibilizar pela empatia (Regan, 2011). Conhecer o público e como reage aos diferentes processos é fundamental para um processo educativo eficiente (Possidónio et al., 2021) que não determine um caminho, mas que instrumentalize o consumidor para escolher com consciência entre as inúmeras trilhas possíveis. Logo, fundamenta-se a hipótese de que a visualização de imagens chocantes e empáticas, bem como a imersão subjetiva numa situação-problema trarão diferentes perspetivas para que o participante aceda e expresse a sua representação.

A representação social demanda aceder à forma como as pessoas se veem e como veem os seus pares diante das opções de consumir animais, quanto consumir e as alternativas. O consumo de vegetais, legumes e frutas, como complementares ou substitutos, embora familiares, possuem como principal argumento contrário a dissociação com a textura, sabor e aparência de carne (Michel, Hartmann e Siegrist, 2021; Possidónio et al. 2021), o que leva a questionar como a sociedade se posiciona diante de alternativas mais vinculadas à carne, presentes em propostas tradicionais como a entomofagia ou tecnológicas, como a carne de laboratório.

Partindo da classificação dos consumidores de carne em três perfis: a) consumidores com motivação hegemónica; b) consumidores preocupados com a saúde, logo, abertos a alguma substituição; c) consumidores éticos e conscientes orientados para alternativas (Possidónio et al., 2021), o presente estudo teve como objetivo caracterizar a representação social do consumo de carne e das alternativas testando as hipóteses (H): H1) a representação do consumo de carne é condicionada pelo sexo, a idade, o nível de ensino, a área de formação, a tutela de animais e a frequência de consumo de carne; H2) conteúdos que demostram a existência de emoções em animais de produção são mais efetivos para a conscientização do que os cenários de crueldade; H3) a representação do consumo de carne envolve um contexto mais emocional do que racional; H4) a carne de laboratório é mais aceite como alternativa para a substituição da proteína animal quando comparada com a entomofagia.

Revisão de literatura

O consumo de proteína animal sempre fez parte da dieta da espécie humana. Porém, durante 95% da sua existência, de 200 mil anos, predominou a dieta paleolítica, cujo consumo da carne de grandes animais eventualmente complementava a ingestão de tubérculos, vegetais, frutas e invertebrados (Harari, 2014). Apenas há pouco mais de 10 mil anos, já na era neolítica, o domínio do fogo e o desenvolvimento da agricultura possibilitou que o homem cozinhasse e modificasse a estrutura química dos alimentos, concomitantemente impactando a sua morfologia, fisiologia, comportamento e estrutura social ( Wrangham, 2010). Nesse curto período, a humanidade desenvolveu tecnologia para o manipulação e melhoria genética de algumas poucas espécies de vertebrados (Harari, 2011). Contudo, desde os grupos dos caçadores-coletores, os alimentos foram inseridos numa perspetiva moral, servindo de identidade de grupo, sendo a abstinência do consumo da carne de determinados animais conectada a conceitos de pureza, decoro e risco (Singer e Mason, 2007). Para Perrota (2017), as nossas escolhas sobre o que comer, onde comer e quando comer, não correspondem a uma reação direta aos estímulos sensoriais, pois a alimentação se dá segundo uma maneira específica e por estímulos sociais.

Ao longo da história da civilização, o consumo de carne envolveu representações complexas de poder e status social. Foi atribuída à dieta composta por carne vermelha a potencialidade de aumentar a libido, a agressividade e a degradação moral e física, sendo, inclusive, não recomendada para as mulheres, principalmente no período Vitoriano (Thomas, 1989). Porém, com o final da Segunda Guerra Mundial, a revolução industrial e o pronunciamento do capitalismo, os processos de produção animal foram intensificados para o fornecimento de carne a preços acessíveis. Para tal, a qualidade de vida de animais, e dos trabalhadores do setor, passaram a ser prejudicadas (Singer e Mason, 2007). O comprometimento do bem-estar animal (BEA) foi identificado por Ruth Harrison (1964) e prontamente reconhecido por agências reguladoras inglesas como critério para autorização da manipulação animal, conhecido com as cinco liberdades. Assim, todo animal mantido cativo sob a tutela do homem deve estar livre de fome, sede e má nutrição; de dor, injúrias e doenças/desconforto; de medo e stress; e livre para expressar o seu comportamento natural (Webster, 2001).

Quanto consumo de proteína animal é necessário para saúde humana é uma pergunta latente. A abstinência voluntária do consumo de carne tem vindo a crescer na sociedade, demonstrando que é possível uma vida saudável com substitutos vegetais (Fischer, Cordeiro e Librelato, 2016). Para Perrota (2017), o problema da visibilidade e indivisibilidade dos animais está colocado fundamentalmente como um dilema moral e não apenas físico pelo consumo da carne. Contudo, não há uma relação direta entre o veganismo/vegetarianismo com o movimento pró-animal e a própria militância encontra-se alicerçada na perspetiva ética utilitarista de Petter Singer (2008). Para tal, tem-se em consideração o princípio ético da igual consideração de interesses.

A ética animal é apropriada pela bioética que visa intermediar o debate entre os atores de um dilema ético, identificando e mitigando vulnerabilidades. Considerando que o consumidor se constitui enquanto agente moral com poder de decisão sobre o quê, quanto e como ingerir, é fundamental conhecer a sua opinião e representação (Fischer, Cordeiro e Librelato, 2016). Para que o cidadão exerça o seu papel de agente moral com integridade, autonomia e sentido crítico, torna-se necessário o acesso a informações sobre o processo de produção de carne e das alternativas existentes (Fischer, Cordeiro e Librelato, 2016). Desta forma, minimiza a sua situação de vulnerabilidade diante de informações intermediadas por conflitos de interesses (Schramm, 2002).

Concomitante ao veganismo/vegetarianismo e às carnes vegetais, o consumo de invertebrados pode ser uma alternativa para quem acredita que a proteína animal é imprescindível (Alexander et al., 2017). Uma prática comum em muitas localidades engloba pelo menos 1900 espécies consumidas há milhares de anos, com destaque para larvas, formigas e moluscos (Shelomi, 2015). Os invertebrados representam 90% das cerca de 2 milhões de espécies de animais, com papel na manutenção do equilíbrio do ambiente por meio de serviços ecossistémicos, superando o número de espécies que causam algum dano físico ou material aos seres humanos (New, 1995). Indubitavelmente que o espaço necessário para produção de invertebrados e seu curto ciclo de vida tornaria os processos mais baratos. Acresce-se um provável menor prejuízo nas condições de bem-estar animal, tendo em vista o grau de senciência atribuído a esses animais e a qualidade nutricional (Alexander et al., 2017). Contudo, Fischer, Cordeiro e Librelato (2016) alertaram que a senciência dos invertebrados é uma preocupação lícita e que devem ser desenvolvidos protocolos rigorosos para manejo e abate, para evitar prejuízos ambientais e o bem-estar animal.

Nos últimos 10 anos, o mercado consumidor tem nutrido a expectativa da carne de laboratório, também conhecida como carne artificial, sintética, tecnológica ou cultivada. A carne artificial produzida a partir do cultivo de células-troncos dos animais, com a intenção de as transformar em tecidos por meio de impressão em estrutura 3D no formato de hambúrgueres (Slade, 2018) é uma promessa para os consumidores conhecidos como carnistas morais, que gostam da carne, porém vivenciam o conflito de não quererem compactuar com o sistema de domínio dos animais (Fischer, Cordeiro e Librelato, 2016). Embora as primeiras pesquisas e demonstrações remontem ao início da década de 2010, o meio científico tem direcionado os seus esforços para avaliar a recetividade do público, enquanto pouco se sabe sobre os processos técnicos e pouco se tem discutido sobre as questões éticas.

Paralelamente às pesquisas tecnocientíficas, a academia tem investigado ao longo da última década a adesão social à carne de laboratório, o que se projetou, automaticamente, no estudo de viabilidade de mercado de um empreendimento tão inovador. Os estudos englobam perspetivas desde reflexões teóricas (e. g. Post, 2012), levantamento da representação e opinião social por meio de escolha hipotética (Verbeke, Sans e Van Loo, 2015; Slade, 2018, Michael et al., 2020, Possidónio et al., 2021), até à avaliação da opinião de internautas (Laestadius, 2015). Tuomisto e Mattos (2011) sugeriram que essas informações devem ser mobilizadas para melhorar a aceitação e transpor obstáculos relacionados com a aversão a produtos não naturais, mesmo que utopicamente os sistemas atuais de produção de carne estejam longe do natural para qualquer animal.

Metodologia

O presente estudo2 caracteriza-se como exploratório misto, quantitativo e qualitativo, com dados obtidos através de um questionário em linha distribuído pela aplicação QuatrisXM e mantido disponível desde 28-02-2019 até 21-11-2019. A estratégia de amostragem envolveu a divulgação do questionário em diferentes grupos sociais disponibilizado por redes sociais como Facebook, Instagram e WhatsApp, visando contemplar uma amostra heterogénea e um número mínimo de 271 participantes, considerando o cálculo de amostragem populacional com um erro de 5% e uma confiança de 90% (https://comentto.com/calculadora-amostral).

O instrumento foi construído exclusivamente para essa investigação, tendo sido composto por seis questões de caracterização da amostra, referente às variáveis: sexo (feminino, masculino), idade (jovem até 25 anos, adulto, idoso/60+), nível de ensino (básico e superior), área de formação (biológicas/agrárias; saúde e outras), tutela de animais de companhia (sim/não) e consumo de carne (frequente, pouco e sem consumo).3

Os parâmetros da pesquisa foram abordados em cinco questões abertas e quatro fechadas. As quatro questões abertas corresponderam ao registo da opinião e dos sentimentos relatados pelos respondentes relativamente aos vídeos produzidos exclusivamente para essa pesquisa. No vídeo I (https://www.youtube.com/watch?v=0fPlXUuqwS8) foram apresentadas imagens de crueldade na exploração animal e informações a respeito da produção e consumo de carne, enquanto no vídeo II (https://www.youtube.com/watch?v=XuuXHZWaZTg) foram apresentadas imagens animais de produção em interação afetiva com pessoas. O enunciado da questão solicitava a opinião e sentimentos ao ver o filme, sendo alertado que no vídeo I havia cenas de sofrimento animal, caso não quisesse ver deveria indicar “Não desejo assistir” e passar para a próxima questão. Em ambos os casos, os argumentos foram categorizados a posteriori conforme a análise semântica de conteúdo de Bardin (2011) resultando nas categorias: a) posicionamento: não quis ver, condizente, desfavorável ou indiferente; b) nível do argumento: pessoal, BEA, coletivo, ético; c) tipo do argumento: pondera, justifica o consumo, emocional ou crítico; d) sentimento: revolta (indignação, frustração e raiva), angústia, aversão, indiferença, otimismo ou vergonha.

A quinta questão aberta era relativa à representação das alternativas ao consumo de proteína animal para uma pessoa que reconhece gostar da carne. A imersão na temática fez-se a partir da leitura de uma situação-problema. O participante deveria opinar a respeito da iniciativa de uma jovem, que mesmo alegando gostar de consumir carne, simpatiza com as alternativas existentes e decide experimentar a entomofagia e o consumo da carne de laboratório. A categorização dos argumentos a posteriori resultou nas categorias: a) posicionamento: incentiva, aconselha, pondera ou desaprova; b) o nível do argumento: não se envolve, pessoal, ético, ecológico, biológico e cultural; c) sugestões: alternativas, natural, ponderar, manter o consumo da carne, procurar orientação profissional; d) o posicionamento favorável ou desfavorável diante de alternativas vegetais, entomofagia ou carne de laboratório.

Das quatro questões fechadas uma era de escolha múltipla, na qual o respondente deveria sinalizar quais das justificações para o consumo de carne consideravam mais aceitáveis: económica, evolutiva, de saúde, social, cultural ou por prazer. As últimas três questões eram de pontuar, logo o respondente deveria indicar de 0 a 10 quanto concordava com as afirmações relacionadas ao consumo de proteína animal. Assim, foi possível verificar como percebe a si e à sociedade quanto à expectativa de deixar de consumir, reduzir ou substituir o consumo de carne por alternativas naturais ou tecnológicas. Especificamente com relação à carne de laboratório e à entomofagia, o respondente tinha como opções não aderir devido ao sabor e preferência por carne ou aderir condicionado à comprovação de benefícios para a saúde e para o ambiente.

Análise dos dados

Os dados categóricos foram comparados entre as variáveis por meio do teste do qui-quadrado e os de média por meio dos testes paramétricos Teste t e Anova, com posteriori de Tukey. Em ambas as situações considerou-se como hipótese nula a existência de homogeneidade entre as distribuições das frequências a um erro de 5% e confidencialidade de 95%.

Resultados e discussão

Os dados obtidos com o presente estudo, no recorte proporcionado pelos participantes, permitem lançar pistas sobre como a sociedade brasileira representa a produção animal, o consumo de carne e as alternativas para a sua substituição. A representação social do consumo de proteína animal, proporcionado pelo recorte desta pesquisa, deu-se por meio da análise das respostas de 330 brasileiros, cujo público foi constituído principalmente por mulheres, jovens, com curso superior completo ou em andamento na área da saúde e tutoras de animais de companhia. Os resultados da pesquisa permitiram confirmar as hipóteses testadas por meio da representação da produção animal, senciência e alternativas na qual o respondente foi inserido em situações reais, por meio de recursos audiovisuais, indicando a existência de condicionantes pessoais, bem como através da representação do consumo da carne e da opinião a respeito da viabilidade da carne de laboratório e da entomofagia como alternativas.

Condicionantes da representação do consumo de carne

As diferentes abordagens da pesquisa elucidaram que a representação do consumo de carne é condicionada principalmente pela idade, o sexo e o nível de ensino, comprovando parcialmente a hipótese 1 (H1; Figura 1). As diferenças da representação entre os sexos referem-se à natureza emocional e prontidão para aceitar alternativas mais atrelada ao sexo feminino, o que se opõe a um posicionamento masculino mais em defesa do consumo de carne e indiferença quanto às limitações técnicas e éticas da produção animal. Esse resultado corresponde a um padrão identificado em estudos como de Weidg e Menasche (2008), que associaram maior tendência à dieta carnívora nos homens. Igualmente, os nossos resultados encontram correspondência com a pesquisa de Michel, Hartmann e Siegrist (2021), cujos respondentes femininos relacionaram as limitações éticas do consumo de carne ao bem-estar animal, à redução e ao consumo de alternativas, enquanto os homens relacionaram a carne ao sabor e à variedade. Por outro lado, os jovens, assim como ilustrado por Boer e Aiking (2011), estão mais abertos às alternativas, principalmente as tecnológicas. O nível de ensino e a área de formação mostraram-se condicionantes importantes no acesso a informações qualificadas e, consequentemente, a maior autonomia e sentido crítico na escolha (Palodeto e Fischer, 2018). Porém, a tutoria de animais, que poderia indicar um vínculo emocional com a questão, não se mostrou significativa para o direcionamento da representação do consumo de carne, ao invés da ideologia ética e de qualidade de vida associada aos veganos/vegetarianos (Chiles, 2013). Para Perrota (2017), o que justifica a interdição do consumo de carne é a transposição do status ontológico dos animais ao destituir o papel que têm como objetos transformando-os em sujeitos.

Representação social da produção animal, senciência animal e alternativas ao consumo de proteína animal

O vídeo que apresentava as limitações da produção animal e, consequentemente, cenas de crueldade, não foi visto pela maioria dos entrevistados. Logo, automaticamente se abstiveram de opinar sobre os seus argumentos e sentimentos contrários ao sistema vigente, e possivelmente, pensar em mudanças. Assim, as argumentações resultantes foram relativas aos respondentes, provavelmente menos sensíveis ao conflito ético, tendo sido apresentadas como ponderadas, pessoais e associadas a um sentimento de tristeza. Por outro lado, as pessoas viram o vídeo com animais de produção em interações afetivas com humanos, o que proporcionou a oportunidade de refletirem sobre as limitações éticas de infringir dor, sofrimento e poder sobre animais que são capazes de demostrar emoções e sentimentos. Assim, foi demostrada a reprovação da exploração animal, utilizando argumentos pessoais e emotivos associados a um sentimento de empatia (Figura 1).

Nesse contexto, para aceder à representação social, foi possível identificar o género, a idade e o nível de ensino como condicionantes, uma vez que as mulheres foram mais resistentes do que os homens a ver ambos os vídeos e a utilizar argumentos emocionais. Enquanto os homens e os adultos se mostraram condizentes ou indiferentes à exploração animal, utilizando argumentos coletivos e com justificações para o consumo, os respondentes jovens mostraram-se mais emotivos e os idosos mais otimistas. Contrariando a expectativa de que o nível de ensino proporciona um acesso a informações qualificadas, principalmente de nível técnico e ético, os respondentes com ensino superior foram mais condizentes e munidos de argumentos pessoais, enquanto aqueles com ensino básico usaram argumentos individuais, porém com associação ética (Figura 1).

Figura 1 Representação social do consumo de proteína animal (N=305). 

As opiniões e sentimentos a respeito dos vídeos e da situação-problema confirmaram a hipótese 2 (H2). Os respondentes mostraram-se mais sensibilizados ao serem expostos a uma situação que permitiu que tomassem consciência de que os animais possuem sentimentos positivos do que quando assistem aos maus-tratos. A resistência em assistir a vídeos agressivos, principalmente pelas mulheres, provavelmente deve-se a um conhecimento prévio do conteúdo e a uma abstenção, com a intenção de evitar o próprio sofrimento, automaticamente incorrendo em negação. Joy (2014) denominou esse processo mental de entorpecimento psíquico, constituído por um complexo conjunto de defesas que convertem a empatia em apatia através do ato de negar, evitar, roteirizar, justificar, objetivar, desindividualizar, dicotomizar, racionalizar e dissociar. Para a autora, o sistema económico faz com que o processo invisível se tornasse objetivo, manipulando e escondendo os pensamentos das pessoas delas mesmas. Consequentemente, as tensões e os simbolismos são disfarçados no produto desvinculado da sua origem animal (Chiles, 2013).

A abstenção de ouvir e opinar abre espaço para o predomínio de opiniões condizentes com o sistema atual, os argumentos ponderados e as justificações para o consumo ao invés da defesa dos animais. Por outro lado, visualizar que os animais, componentes da dieta, têm emoções e sentimentos acaba por despertar empatia e ressentimento. Tal leva, assim, ao questionamento do consumo com argumentos emotivos, indicando um posicionamento desfavorável, com a exceção dos homens que continuaram condizentes e indiferentes. Regan (2011) considerou que o despertar da visão ética na sociedade é intuito tanto do movimento que legitima a produção animal condicionada ao oferecimento de condições para que os animais alcancem elevados graus de bem-estar animal, quanto dos movimentos abolicionistas. Contudo, enquanto os movimentos abolicionistas radicais acreditam que é necessário chocar para conscientizar, os mais ponderados primam pela sensibilização por meio da educação. Regan (2011) sugeriu revestir o movimento de libertação animal de uma aparência mais ténue, otimista e convidativa, uma perspetiva que encontra respaldo nos dados do presente estudo.

Diante da descrição de uma situação-problema, os participantes, predominantemente consumidores de carne, incentivaram a atitude da personagem que experimentava alternativas. Contudo, no universo estudado, uma parte dos participantes não se envolveu na questão, delegando a decisão para a personagem. Enquanto respondentes que não consomem carne usaram argumentos pessoais e éticos, sugerindo alternativas naturais vegetais, sendo obviamente contrários à entomofagia (Figura 1). Nesse contexto, o acesso a informações qualificadas demostrou ser um condicionante importante, uma vez que respondentes com ensino superior usaram argumentos ponderados e biológicos e foram favoráveis à entomofagia e à carne de laboratório. Relativamente aos portadores apenas do ensino básico, estes preferiram não se envolver com o caso, tendo aconselhado argumentos ecológicos, e foram desfavoráveis tanto à carne de laboratório quanto à entomofagia.

O posicionamento dos respondentes perante a situação-problema demostrou que estes estão abertos a acolher o consumidor de carne que decide experimentar alternativas, contudo sem demostrar envolvimento. Esse resultado, revela um acolhimento da diversidade alimentar, que é dissonante do vivenciado por Michel, Hartmann e Siegrist (2021) cujos participantes da sua pesquisa disseram aderir a alternativas mais frequentemente quando se alimentavam sozinhos do que em grupos. Segundo os autores, a aversão ao julgamento leva a uma adaptação ao comportamento alimentar dos pares.

Segundo Joy (2014), a melhor forma de se mudar um sistema é através do testemunho, uma vez que promove a conexão emocional com as experiências de outras pessoas, sendo que o testemunho coletivo preenche a lacuna na consciência social. Assim, vivenciar o relato, mesmo que hipotético, de alguém que faz diferente, como abordado na situação-problema, pode ser um incentivo à reflexão. Barros, Meneses e Silva (2012) demostraram que a teoria das representações sociais, aliada à metodologia qualitativa, permite visualizar o caráter sociocultural do consumo de carne. As representações simbólicas transpõem o papel coadjuvante no processo alimentar de consumo da carne atuando na compreensão da realidade e orienta práticas e comportamentos. A perspetiva teórica confirmou-se na maior recetividade feminina, com a proeminência dos argumentos emocionais, e na maior desaprovação pelos respondentes idosos, demostrando um vínculo mais estreito com a tradição. Logo, para quebrar esses paradigmas enraizados, é necessário um processo educativo de longo prazo em diferentes níveis de ensino (Fischer, Cordeiro e Librelato, 2016; Palodeto e Fischer, 2018), uma prerrogativa que se confirma com os resultados obtidos nas condutas dispares entre respondentes com ensino básico e superior.

Representação social do consumo da carne

A justificação para o consumo da carne traz associada uma forte componente ética, uma vez que a maioria dos participantes da pesquisa indicou hedonismo e associação com a cultura, concomitantemente fortalecendo crenças de que o consumo da carne é condicionante de saúde física (Figura 2). A perspetiva económica como condicionante foi identificada principalmente por respondentes adultos e portadores do ensino básico, sugerindo uma relação de status e de representação de sucesso associado ao poder de consumir carne.

Para os participantes do estudo, a sociedade como um todo está menos disposta a deixar de consumir carne do que a acatar alternativas, indicando que intervenções que visem a redução do consumo podem ser mais efetivas do que a proposta de eliminação total, reforçando um viés utilitarista predominante sobre o abolicionista. Contudo, ao comparar a perspetiva individual dos respondentes, evidenciou-se que se consideraram mais predispostos a deixar de consumir e aderir às alternativas do que a sociedade no geral, demostrando uma expectativa maior em si mesmo do que no grupo que pertencem (Figura 3). Contudo, a perspetiva individual não foi a mesma nos grupos analisados, uma vez que a possibilidade de deixar de consumir foi maior entre as mulheres, a redução e a substituição pelo tecnológico foi maior nos jovens e, obviamente, todas as opções foram menores nos consumidores frequentes de carne quando comparado com os carnívoros.

Figura 2 Pontuação média atribuída à justificação pela sociedade a respeito do consumo de proteína animal. Nota: As médias foram comparadas através do teste Anova (H), com posterior de Tukey, sendo que os valores significativamente diferentes (p<0,05) estão acompanhados de letras distintas, e as minúsculas relativas à comparação dentro das variáveis. 

Figura 3 Pontuação média atribuída à concordância da conduta da sociedade e à conduta pessoal a respeito do consumo de proteína animal. Nota: As médias foram comparadas através do teste Anova (H), com posterior de Tukey, sendo que os valores significativamente diferentes (p<0,05) estão acompanhados de letras distintas as letras minúsculas relativas à comparação dentro das variáveis (sociedade e individual) e as maiúsculas relativa a comparação entre as variáveis. 

Os respondentes reconheceram o vínculo sensorial e cultural com o consumo de carne sobrepondo aspetos de saúde, confirmando a hipótese 3 (H3). Esse resultado fragiliza as justificações de necessidade da ingestão de proteína animal e torna ilegítimo o uso do ponto de vista utilitarista, que considera imoral a destituição de vida de um animal se houver alternativa (Singer e Mansson, 2007). Os dados do estudo demostraram que, embora o respondente tenha identificado na sociedade uma propensão maior para reduzir o consumo do que substituí-lo, este julgou-se mais capaz de aderir a qualquer alternativa para minimizar o consumo da carne do que a sociedade como um todo. Contudo, embora no presente estudo as mulheres se tenham mostrado mais recetivas às mudanças, confirmando os achados de Boer e Aiking (2011), do que os jovens com nível de educação superior, sendo as mulheres os consumidores mais dispostos a reduzir o consumo de carne.

A tendência das pessoas para reduzir o conflito do consumo de carne vermelha e processada, diminuindo o seu consumo, também foi identificada por Slade (2018) e Laestadius (2015), ressaltando que a substituição gradativa ou combinação (Possidónio et al., 2021) pode culminar na constatação de que já não faz falta. Slade (2018) denominou esse processo de omnivorismo consciente, que tem incentivado programas mundiais como a segunda sem carne e o desenvolvimento de alternativas que imitam a carne, uma vez que o natural é comer carne (Hocqette et al., 2015). Alexander et al. (2017) ressaltaram que se deve prezar por um consumo sustentável considerando na escolha alimentar a economia de uso da terra e redução do desperdício, que inclui o consumo excessivo. Os autores sugeriram mudanças no comportamento do consumidor, como substituir a carne bovina por frango ou peixe, reduzir o desperdício de alimentos e, potencialmente, introduzir insetos na dieta.

Para Michael et al. (2020), a repulsa pelos substitutos da carne pode estar relacionada com memórias negativas pois as primeiras alternativas à base de soja ou trigo tinham sabor, textura e aparência muito distantes da carne. Essas memórias sensoriais estão tão consolidadas que impedem as pessoas de se abrirem para novidades cuja tecnologia de alimentos aprimorou substancialmente. A baixa adesão às alternativas, segundo Michel, Hartmann e Siegrist (2021), deve ser acolhida com preocupação, principalmente considerando as consequências ambientais. Chiles (2013) reiterou que os consumidores são estigmatizados pelo mercado como neofóbicos, tecnofóbicos, desinformados ou escrupulosos, mas destituem a sua liberdade de escolha alicerçando-a em ideologias, simbolismo e recursos culturais. Joy (2014) igualmente defendeu o direito de todo cidadão de tomar decisões informadas, de pensar e de ser um consumidor ativo. Desta forma, pode emancipar-se da ideologia do invisível, guiada por crenças e comportamentos, que tornou o cidadão vítima de um sistema que roubou a liberdade de pensar por si só (Chiles, 2013). Contudo, torna-se necessário o uso de dispositivos de escolhas que visem a alimentação saudável, sustentável e justa. Para Michael et al. (2020), a sociedade não está preparada para substituir o bife, porém alimentos processados como nuggets e salsichas podem ser a via para experimentação das alternativas. Para os autores, a saída estaria em internalizar no preço da carne os custos éticos e ambientais, uma vez que o valor mais elevado da carne conduziria os consumidores a aderirem às alternativas.

Representação social da viabilidade da carne de laboratório e da entomofagia

O consumo da carne de laboratório recebeu baixa adesão, principalmente por participantes do ensino básico e consumidores de carne. O posicionamento favorável foi significativo para jovens com o ensino superior, das áreas biológicas, tutores e veganos, indicando principalmente uma relação com acesso a informação qualificada. Os argumentos foram principalmente sociais, sendo o receio e o preço os mais frequentes, porém apenas 9,2% dos argumentos se refiram a questões ambientais ou de BEA. Para os respondentes, o consumo de carne de laboratório seria viável após mais pesquisas que comprovem que esta não faz mal à saúde, que não há impactos no ambiente nem no BEA e, finalmente, caso fosse mais barata do que a carne natural. Os jovens e os respondentes com o ensino básico foram os que mais condicionaram consumir a carne de laboratório caso se comprove a sua eficácia no suprimento das necessidades biológicas (Figura 4).

A entomofagia foi considerada infactível pela maioria dos respondentes, sendo os jovens, homens, tutores e portadores do ensino superior os mais recetivos. Os argumentos foram principalmente sociais, prevalecendo a aversão e os hábitos culturais, sendo a perspetiva ambiental e de BEA relativas a apenas 17,7% da amostra. Diante das afirmações condicionantes, a maioria indicou que dificilmente consumiria por ser “nojento”, preferir outros animais ou por ser indigno. Dos que foram favoráveis aos condicionantes, receberam concordância equivalente ao processamento, segurança alimentar e ambiental (Figura 5).

Figura 4 Representação social da carne de laboratório. As médias foram comparadas através do teste Anova (H), com posterior de Tukey, sendo que os valores significativamente diferentes (p<0,05) estão acompanhados por letras distintas. 

Figura 5 Representação social da Entomofagia. Nota: As médias foram comparadas através do teste Anova (H), com posterior de Tukey, sendo que os valores significativamente diferentes (p<0,05) estão acompanhados por letras distintas. 

Os respondentes mostraram-se mais recetivos a aceitar a alternativa tecnológica do que a tradicional, elucidando uma forte componente cultural e, provavelmente, maior familiaridade com os alimentos industrializados, confirmando a hipótese 4 (H4). Esses resultados confirmam os achados de Possidónio et al. (2021), que igualmente identificaram uma reação negativa à entomofagia, cuja familiaridade com os alimentos foi apontada como um fator importante. Ainda assim, a maioria dos respondentes foi desfavorável à carne de laboratório, mostrando-se receosa ou alegando que seria muito cara. Outros estudos como os de Tardido e Falcão (2006) e Mariani e Henkes (2014) têm atestado que mesmo que a carne artificial traga a promessa de oferecer um produto nutricionalmente mais qualificado, os seus componentes envolvem processos industriais, tirando o contexto de naturalidade. Desta forma, indo contra os paradigmas atuais que incentivam e valorizam produtos orgânicos, mesmo que mais caros. Nesse contexto, a familiaridade com processos tecnológicos, promovida principalmente pela educação qualificada, podem influenciar a aceitação (Boer e Aiking, 2011; Slade, 2018; Altoé e Menotti, 2020), tal como comprovado na presente pesquisa para os jovens, respondentes com nível superior e formação na área biológica.

Por outro lado, a entomofagia resultou em maior frequência de rejeição, principalmente justificada na aversão e nos aspetos culturais. Segundo Shelomi (2015), a entomofagia é associada à escassez de alimentos, hábitos bizarros ou selvagens e primitivos e na estigmatização dos insetos como seres sujos e perigosos (Costa-Neto e Rodrigues, 2006). A alternativa teve uma adesão maior de homens, jovens e com o ensino superior, corroborando as pesquisas de Slade (2018). Embora tenha de facto um contexto histórico, o conhecimento dos benefícios para a saúde e sustentabilidade ambiental são difundidos como inovadores para sociedades atuais (Shelomi, 2015). Post (2012) reiterou que os insetos possuem minerais e proteínas com alta taxa de bioconversão. Ao eliminar a quitina no processamento, o grilo chega a ter uma eficiência cinco vezes maior do que a do gado. Complementando com a orientação de Alexander et al. (2017), que incentiva também o desenvolvimento de pesquisas que direcionem a eficiência dos insetos e a sua capacidade de converter subprodutos agrícolas e resíduos alimentares em alimentos.

Ressaltamos que o presente estudo apresenta uma limitação resultante da metodologia adotada, uma vez que, embora o instrumento de recolha de dados não tenha sido direcionado para um grupo social específico, angariou uma maior participação de mulheres, portadoras de maior escolaridade, relativas à área da saúde e tutoras de animais de companhia, o que pode configurar um viés de seleção. Também se reconhece a possibilidade de viés de informação devido à autoaplicação do questionário, mas minimizada com a amostra da pesquisa correspondente a projeção estatística.

Conclusão

A representação social do consumo da carne e das alternativas de substituição, proporcionadas pelo recorte da presente pesquisa, demostram uma forte associação a componentes culturais que reforçam a legitimação da necessidade do consumo. Consequentemente, a mudança de perspetiva e abertura para reflexão não será alcançada utilizando apenas instrumentos que exponham o sofrimento animal, intencionado chocar para conscientizar. Enquanto uma parcela da sociedade poderá ser levada a repensar a sua dieta ao presenciar o sofrimento animal, as pessoas mais sensíveis podem resistir a refletir sobre a questão. Logo, aumentam as chances de conscientização com a exposição a matérias que demostrem ao consumidor que a carne que consome, sem aparência de animal, foi componente de um animal senciente. Os dados também demonstraram, em diferentes instrumentos, que o acesso ao conhecimento qualificado a respeito da senciência animal e das alternativas para reduzir o consumo é um componente determinante para a disposição de aceitar as alternativas naturais, tecnológicas ou tradicionais.

A bioética acolhe a temática do consumo de carne, pois intenciona a mitigação das vulnerabilidades, seja da natureza ou do consumidor destituído de uma instrumentalização que desenvolva a sua autonomia crítica perante informações idóneas para que tome decisões conscientes. A presente pesquisa contribui para o conhecimento da representação do consumo de carne demostrando que, apesar de a sociedade estar ciente da necessidade de mudanças na alimentação e no tratamento para com os demais seres vivos, não tem sido suficiente para alterar padrões alimentares culturalmente enraizados. Embora existam alternativas viáveis, legítimas e saudáveis, não são suficientes para transpor a crença da necessidade e a justificação do prazer, reforçando a perspetiva utilitarista. Contudo, a análise da questão sob a perspetiva da bioética reitera que as alternativas podem potencialmente gerar vulnerabilidades se não estiverem inseridas num contexto de autonomia do consumidor e da possibilidade de escolha. Tanto a limitação de acesso a produtos orgânicos ou tecnológicos devido ao valor quanto a destinação das alternativas para camadas sociais mais pobres são desfechos que devem ser considerados e prevenidos.

A bioética intermedia o diálogo entre os agentes morais de um dilema ético, vislumbrando soluções consensuais e justas para toda sociedade. Para tal, o debate deve ocorrer em diferentes setores sociais, seja através da educação formal e da não formal, no ensino superior ou no básico. Consequentemente, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a informações idóneas, orientadoras e adequadas ao seu nível de compreensão e interesse. Concomitante ao debate deve investir-se no desenvolvimento de habilidades para que o indivíduo seja protagonista no seu direito de escolha e por meio desses instrumentos reavalie os seus valores e condutas em prol de uma sociedade sustentável.

A sociedade é plural, logo espera-se uma diversidade de preferências e de escolhas, nem sempre balizadas por um conhecimento formal. O que pode colocar o consumidor numa situação de vulnerabilidade, justamente por desconhecer os processos técnicos e éticos envolvidos na produção animal, de qualquer alimento que passe por mecanismos industriais e das potencialidades e limitações das alternativas. Diante da expectativa de que nem todo o consumidor poderá realizar uma escolha consciente e legítima dos paradigmas morais da sociedade a que pertence, a sociedade deve ter ao seu dispor um mercado que ofereça produtos seguros, com qualidade e informação. Complementarmente, deve acrescentar a perspetiva ética na alimentação, vislumbrando que haja uma mobilização para que se transponham as determinações mediadas por uma estrutura capitalista que incentiva alimentos prontos e que se alcance uma nova relação com os animais, as plantas, a natureza e a sociedade, por parte desta e de futuras gerações.

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1 Agradecemos aos respondentes do questionário e aos entrevistados que dispuseram de seu tempo para enriquecer a presente pesquisa.

2 O presente estudo foi realizado de acordo com preceitos éticos no uso do participante humano na pesquisa e na integridade na pesquisa considerado a recolha, o processamento e a análise dos dados, tendo sido aprovado pelo comité de ética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (CAAE: 02428518.4.0000.0020).

3 As variáveis foram selecionadas baseando-se em estudos que demostram que a idade, o sexo, o nível de ensino, a área de formação, a tutela de animais de estimação e o consumo de carne são condicionantes da representação social e, automaticamente, da sua conduta ética (Furstet al., 1996; Jomori, Proença e Calvo, 2008; Barros, Meneses e Silva, 2012; Palodeto e Fischer, 2018; Michel, Hartmann e Siegrist, 2021).

Recebido: 03 de Março de 2021; Aceito: 04 de Janeiro de 2022

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