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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.246 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023246.03 

Artigos

O novo velho normal: o futuro da sociedade na perspectiva dos 60+ - reflexos da pandemia Covid-19 na sua inclusão social.

The new old normal: the future of society in perspective of the 60+ - reflections of the Covid-19 pandemic on their inclusion social.

Marta Luciane Fischer1 
http://orcid.org/0000-0002-1885-0535

Caroline Filla Rosaneli1 
http://orcid.org/0000-0003-3710-5829

Gerson Zafalon Martins2 
http://orcid.org/0000-0002-4619-8345

1. Programa de Pós-graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Rua Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho - CEP 80215-182 Curitiba, Paraná, Brasil. marta.fischer@pucpr.br; caroline.rosaneli@gmail.com

2. Conselho Estadual dos Direitos do Idoso. Curitiba, Paraná, Brasil. gerson@portalmedico.org.br


Resumo

O estudo avaliou a perceção da população 60+ sobre o impacto da pandemia. Por meio de um grupo focal realizado em espaços virtuais, a fala dos 16 participantes foi categorizada nos eixos “fragilidades”, “valores”, “crenças” e “potencialidades”, indicando as incertezas, as consequências da interrupção de atividades importantes nessa fase da vida, a promoção da saúde mental e, principalmente, a preocupação com familiares e com o luto coletivo. As fragilidades apontadas podem ser superadas pela tecnologia, agregando protagonismo, autoestima e autonomia no novo tempo. A metodologia proposta permitiu o acolhimento, a construção coletiva e o respaldo na confluência entre as ciências sociais e a bioética.

Palavras-chave: ciências sociais; bioética; solidão; inclusão digital.

Abstract

The study assessed the perception of the 60+ population about the impact of the pandemic. Through a focus group held in virtual spaces, the speech of the 16 participants was categorized into the axes “weaknesses”, “values”, “beliefs” and “potentialities”, indicating the uncertainties, consequences of the interruption of important activities in this stage of life, promotion of mental health and, mainly, concern for family members and collective grief. The weaknesses pointed out can be overcome by technology, adding protagonism, self-esteem, and autonomy over the new period. The proposed methodology allowed the reception, collective construction, and support in the confluence between social sciences and bioethics.

Keywords: Social Sciences; bioethics; loneliness; digital inclusion.

Introdução

A pandemia Covid-19 constitui-se enquanto fenómeno ambiental, social e ético, que uniu o mundo em torno de uma causa comum, potencializou fragilidades latentes, mas, igualmente, demostrou um potencial de superação de paradigmas atrelados ao trabalho, à mobilidade, aos relacionamentos, ao exercício da cidadania, à confiança na ciência, ao consumo consciente e à inclusão digital (Guenther, 2020).

As consequências diretas do vírus na saúde da população, bem como os impactos das estratégias de enfrentamento, fizeram transparecer as desigualdades, demostrando a importância de se pensar essa vivência como um legado ético (Rosaneli et al., 2021). Os questionamentos a respeito das condutas individuais e coletivas relacionados com os hábitos e costumes, na relação com o mundo e com o que é importante, e os resultados das ações no ambiente levaram à constatação de que as mudanças são necessárias e urgentes (Guenther, 2020). Contudo, a complexidade da situação demanda uma sinergia de esforços multidisciplinares, a fim de subsidiar o trabalho coletivo, na construção de um futuro que precisa de lidar com as causas e consequências da pandemia Covid-19 (Rosaneli et al., 2021). Como eixo norteador despontam as ciências sociais e a sua atuação académica, em confluência com as ciências naturais, que encontram na bioética a possibilidade de consolidação desse propósito. A bioética, como ferramenta dialogante e deliberativa, viabiliza a identificação de conflitos éticos emergentes em situações de crise e subsidia a procura de soluções consensuais e justas, que visam mitigar os efeitos da pandemia e prevenir novos eventos, mobilizando as experiências passadas e a criatividade atrelada à necessidade de reinvenção (Rosaneli et al., 2021).

Os idosos caracterizam-se por serem o grupo mais vulnerável da pandemia Covid-19, pois, além de serem mais susceptíveis às formas graves da doença, sofrem com as medidas de distanciamento social associadas às mudanças de hábitos, à redução do contacto com familiares e amigos e ao uso da tecnologia (Santiago et al., 2021; Velho e Herédia, 2020; Oliveira et al., 2021). As desigualdades decorrentes do processo natural do ciclo biológico são acrescidas de outras desigualdades, tais como as sociais, raciais e económicas ( Moriguchi, 2013). Assim, a apropriação académica da temática pelas ciências sociais, numa perspectiva interdisciplinar e transversal com a bioética, demostra um subsídio para a compreensão da amplitude dos efeitos futuros da pandemia e a sua aplicabilidade na mitigação das consequências e na prevenção de situações similares (Rosaneli et al., 2021). Identificar e mitigar as vulnerabilidades do idoso é uma demanda global, pois o mundo está envelhecendo, e especialmente em países em desenvolvimento, em que essa fase da vida envolve limitações e sofrimentos. Segundo Kalache et al. (2020), no Brasil as pessoas envelhecem mal e precocemente, reflexo da incipiência de políticas para o envelhecimento ativo e saudável, como preconizado pelo Estatuto do Idoso (2003), o que resulta na dependência em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) de mais de 80 % dos idosos, predominantemente “negros” e pobres.

A conceção da velhice pelos próprios idosos é associada a aspectos cronológicos, físicos, psicológicos, comportamentais, ao estado de saúde, à falta de autonomia ou à improdutividade, condicionados pela sinergia entre os fatores culturais e a experiência de vida (Faller et al., 2015; Dardengo e Mafra, 2018; Castro et al., 2020). Indubitavelmente, o facto de a população mundial estar a envelhecer tem impacto em todas as estruturas sociais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em 2050 a população idosa mundial irá triplicar. O Brasil está passando por um processo acelerado de envelhecimento, com 14,6 % de idosos e estimativa de 30% em 2030, e já é reconhecido como estruturalmente envelhecido; no entanto, a transição demográfica e epidemiológica é desigual (Ohara, 2019; Castro et al., 2020). O facto de que os idosos correspondem apenas a 9,2% da população mundial legitima um mundo construído e estruturado ainda para os jovens (Ministério da Saúde, 2006).

O gradual aumento da expectativa de vida advém do avanço científico com diagnósticos precoces e tratamentos mais efetivos, aliados às mudanças de hábitos da sociedade e às políticas de amparo à população idosa, que permitem envelhecer com saúde e qualidade de vida (Ministério da Saúde, 2006). Contudo, esse não é um privilégio de todos os cidadãos, sendo necessário ultrapassar desafios para a sua inclusão nas diferentes esferas da sociedade, para que se efetive o cumprimento e execução dos direitos dos idosos (Estatuto do Idoso, 2003).

No Brasil, o Estatuto do Idoso (2003) exige a elaboração, aplicação e fiscalização de políticas públicas para toda a população com mais de 60 anos. Contudo, muitas dessas políticas são elaboradas para um contexto que não corresponde à realidade de todos os idosos. Uma parcela dos idosos não é portadora de doenças, nem inativa ou inapta para atividades laborais; têm hábitos de consumo, investem na saúde física, mental e social, em entretenimento e em viagens, incentivando o desenvolvimento de segmentos económicos voltados exclusivamente para atendê-los (Pinto e Miranda, 2014). Atualmente, os idosos já usam a internet com frequência, não apenas para acessar redes sociais, mas também para aprender novas atividades, utilizar serviços bancários, fazer compras, acompanhar notícias e até jogar (Miranda e Farias, 2009; Silva, Matos e Martinez-Pecino, 2021). Esse novo cenário é um alerta para que a estrutura da sociedade acolha esse novo velho cidadão.

Os 60+ da atualidade nasceram antes da década de 1960. Muitos deles vivenciaram momentos históricos importantes, como o final da Segunda Guerra Mundial, a ditadura militar brasileira, a chegada do homem à lua, o primeiro bebé proveta, a SIDA e o telemóvel. Foram criados para valorizar e priorizar o trabalho árduo, visando o sucesso económico e a fidelização do emprego; consequentemente, não foram preparados para lidarem bem com a inovação, embora sejam resilientes e emocionalmente maduros para lidarem com o coletivo (Fantini e Souza, 2015). Essa geração foi criada para um mundo que não existe mais.

Diante das novas estruturas sociais, apoiadas principalmente na tecnologia, o idoso passou a ser representado como descartável e obsoleto, um peso para familiares e para a sociedade. A diminuição do número de filhos e o ritmo da vida contemporânea potencializaram a solidão nessa fase da vida (Vilhena, Novaes e Rosa, 2014; Oliveira et al., 2021). Para Vilhena, Novaes e Rosa (2014), a velhice deve ser considerada como um fenómeno biológico com profundas consequências psicológicas. Por outro lado, em poucos anos, os 60+ sobreviventes deixaram de conceber a reforma como uma sentença de morte e de inutilidade, abrindo-se para novos desafios e aprendizagens (Pinto e Miranda, 2014). Logo, a identificação dos “inseridos” leva ao questionamento da perceção dos processos de inclusão, de oportunidades, direitos e escolhas.

A inclusão e o envelhecimento são temas da agenda da bioética, uma vez que são reflexos do desenvolvimento tecnocientífico e seus consequentes conflitos complexos, plurais e globais. A natureza prática e dialogante da bioética visa balizar os debates entre os atores de conflitos éticos e os seus desdobramentos económicos e sociais, para os quais, todavia, não existem referenciais éticos, morais ou legais (Fischer et al., 2017a). Os debates sobre inclusão na bioética podem ocorrer em diferentes perspetivas, formais e não formais - académicas, científicas, espaços de deliberação e acolhimento, políticas públicas e educação -, e devem ser apropriados nas pesquisas sociais. Como ética prática, a bioética, na sua essência, conecta o meio académico com a sociedade, por meio de espaços coletivos de acolhimento e deliberação ( Fischer et al., 2017b, Autor e Autor, 2017, 2019; Fischer et al., 2020); contudo, nos últimos anos pronunciaram-se os espaços deliberativos virtuais, decorrentes da necessidade de adaptações para atender as estratégias de enfrentamento da pandemia Covid-19 (Souza et al., 2020).

Em decorrência do impacto da pandemia na população idosa, a presente pesquisa teve como perguntas norteadoras a forma como os idosos representam a sua exclusão social e se a situação de pandemia potencializou a mesma. Segundo Faller et al. (2015), é fundamental que os idosos tenham um espaço que valorize as suas perceções e limitações quotidianas. Logo, a hipótese testada foi de que os espaços de deliberação virtual são hábeis na identificação das limitações, das âncoras e das objetificações que, se mobilizadas coletivamente e intermediadas pela perspectiva de sinergia entre as ciências sociais e a bioética, podem contribuir para uma identificação social e, automaticamente, uma melhor qualidade de vida e de futuro. Essas habilidades envolvem principalmente a empatia, a escuta ativa e acolhedora, o foco nos objetivos, o direcionamento dos propósitos e o conhecimento dos princípios e valores éticos utilizados para balizar as decisões. Assim, o objetivo da pesquisa foi avaliar a perceção, as fragilidades e as potencialidades da população 60+ sobre o impacto da pandemia na inclusão dos idosos.

Método

O presente estudo apresenta-se como uma pesquisa de tipo qualitativo e de abrangência transversal, exploratória e descritiva, cujos dados foram obtidos pela análise de um grupo focal, em espaços deliberativos virtuais. A metodologia foi adaptada do método peripatético utilizado na ação “Caminhos do diálogo” (Fischer et al., 2017b, 2020), bem como das propostas de Marcu et al. (2014), Zoboli (2016) e Souza et al. (2020) para estudos empíricos de espaços de deliberação coletiva em encontros presenciais e online. O estudo qualitativo caracteriza-se como sendo do tipo “ação-participante”, fundamentado no itinerário de pesquisa de Paulo Freire, adaptado por Souza et al. (2020):

  1. parte-se do diálogo inicial para prover a investigação da temática, visando a identificação dos temas geradores e das contradições próprias à vida social;

  2. procede-se à codificação e descodificação do discurso por meio da promoção da reflexão crítica dos temas e análise a posteriori da situação vivida dialeticamente, com vista à identificação das potencialidades;

  3. por fim, a expectativa do desvelamento crítico, alcançado por meio da compreensão e consciência da veracidade dos fatos, e a transformação almejada.

A análise do grupo focal, do tipo “círculo de cultura virtual” e denominado “O novo velho normal” foi resultante do oferecimento de duas oficinas remotas, nos dias 7 e 8 de dezembro de 2020, como atividade prévia ao II Congresso Ibero-americano de Bioética. Cada oficina foi conduzida por dois docentes do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, nos papéis de moderador e interlocutor, e um mestrando no papel de monitor (Figura 1). Os convites foram direcionados ao Conselho Estadual dos Direitos do Idoso (CEDI) e divulgados nas redes sociais pelo método bola de neve; logo, a amostra caracteriza-se como não probabilística e por conveniência. As oficinas tiveram duração de duas horas e capacidade máxima para 20 participantes, que deveriam inscrever-se previamente, preenchendo um formulário online, em que eram pedidas as seguintes informações: idade, sexo, instituição, relação com a bioética, os motivos para a escolha da oficina e como é que o participante acreditava que podia contribuir para a inclusão. O link foi enviado diretamente para os inscritos, condicionado a concordância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Utilizou-se o aplicativo Zoom®, por meio de dispositivos eletrónicos (computador ou telemóvel), o que viabilizou a participação interativa e simultânea, apesar da distância geográfica.

Figura 1 Os intervenientes e os seus papéis no grupo focal “O novo velho normal”. 

Mapa mental

O grupo focal foi iniciado pelo coordenador do CEDI, que introduziu a temática dando destaque às vulnerabilidades apresentadas pelos idosos com as medidas de distanciamento social como forma de contenção da pandemia Covid-19. Para estimular o diálogo, questionou-se: “quais são os seus sentimentos diante da situação de ser idoso durante a pandemia da Covid-19?” Durante a discussão, a codificação e descodificação dos temas deram-se num processo constante, fortalecendo as experiências e permitindo ressignificá-las.

O registo do percurso foi realizado num mapa mental com a função de representar o olhar coletivo para a questão e o fechamento comum para múltiplas trilhas possíveis. A construção do mapa mental baseou-se no modelo de análise do discurso adotado por Marcu et al. (2014) e Castro et al. (2020), que utilizaram a teoria das representações sociais, considerando-as como fundamentais para a prática deliberativa e a transposição das identidades culturais e ideológicas. Logo, foi necessário identificar as crenças e o senso comum, entendidos como âncoras compartilhadas e como estratégias na sustentação de um argumento. Assim, a ferramenta visou a identificação da objetivação que concretiza a imagem ou ideia num mundo extrapsíquico, que tem que na ancoragem a oportunidade de manter as ideias entrelaçadas.

O mapa mental foi construído sob quatro vetores: fragilidades, valores éticos, crenças/senso comum e potenciais. As fragilidades referiam-se às limitações, problemas, dificuldades, queixas e perdas apontadas. Os princípios e valores éticos foram considerados como os elementos balizadores de uma decisão. As crenças e senso comum foram identificados nas falas que mostravam conceções culturais ou pessoais que permeiam uma decisão, muitas vezes adotadas automaticamente e atuando como promovedoras de resistência às mudanças. Os potenciais foram reconhecidos nas inferências que apresentavam elementos em que se vislumbrava uma possibilidade de transposição das limitações, usando os valores éticos comuns como referenciais e voltando o olhar para realidade e o futuro.

Análise dos dados

Os termos e expressões emitidos pelos participantes da pesquisa distribuídos nos vetores foram categorizados utilizando a técnica de análise de conteúdo semântico de Bardin (2011). Na codificação aberta, os elementos foram agrupados por similaridades e diferenças. Posteriormente, procedeu-se à codificação axial, com reagrupamento dos elementos em relação às categorias e suas subcategorias. Por fim, procedeu-se à codificação seletiva, integrando e refinando a definição da categoria central que expressa e dá sentido ao conjunto de dados (Faller et al., 2015). Assim, os eixos resultantes foram:

  1. Fragilidades: emocional, trabalho, técnica, saúde, social, ética e ambiental.

  2. Valores: coletivo/pessoal e comportamental, físico, ambiental, social e ético.

  3. Crenças: limitantes e positivas.

  4. Potencialidades: coletivo, superação, conexão, tecnocientífica e ética. Os valores obtidos em cada categoria foram comparados por meio do teste do qui-quadrado, considerando como hipótese nula a homogeneidade da amostra a um erro de 5% e grau de confiança de 95%.

Procedimentos éticos1

A pesquisa foi realizada em consonância com os parâmetros éticos do uso do participante humano na pesquisa e da integridade na pesquisa, no planeamento e na recolha, análise e divulgação dos dados, tendo sido aprovada pelo CEP-PUCPR (CAAE: 48091515400000100).2

Resultados e discussão

A pandemia da Covid-19 sob a perspectiva dos idosos foi analisada a partir de relatos, opiniões e partilhas de 16 participantes. O grupo caracterizou-se como heterogéneo quanto ao sexo, origem geográfica e institucional, nível de formação e relação com a bioética.

Os inscritos elencaram como motivos que os levaram a participar na oficina: o convite (40%) e o interesse pessoal (33%), profissional (20%) e ético (6,7%). Descreveram a sua jornada de vida usando, essencialmente, referenciais profissionais (80%), mas com diversidade de atuação, tendo sido referidas as áreas da educação (19,2%), da saúde (19,3%), social (19,2%), da militância (15,4%), de voluntariado (15,4%) e a participação em conselhos (11,5%). Assim, os participantes representaram uma parcela da sociedade que beneficiou de oportunidades e escolhas que conduziram a um envelhecimento ativo e ainda envolvido com a procura de aprimoramento profissional e protagonismo social. Esse perfil era esperado num espaço virtual, uma vez que a participação remota demanda um domínio mínimo da tecnologia associado a uma identificação com o ambiente virtual. A acessibilidade digital ainda é um excludente do idoso, mesmo em países desenvolvidos, como Portugal, onde Lapa e Reis (2021) apontaram que 71,1% dos idosos não tem acesso à internet, e o aumento tem-se dado lentamente, o que agrava a situação, considerando que uma parcela dos idosos vive sozinha ou isolada, em situação de vulnerabilidade. Já no Brasil, 19% dos 50+ usam efetivamente a rede, porém sentem-se excluídos do mundo digital pelas dificuldades de ler e escrever, sendo que 72% nunca utilizaram uma aplicação e 62% nunca usaram redes sociais (Bocchini, 2020). Para o público-alvo correspondente a outras pesquisas online, como as de Lapa e Reis (2021), era usual o uso de tecnologia no trabalho, e o recurso à ajuda de familiares ou de profissionais. Os autores pontuaram que a maioria se sentia confortável e segura no ambiente virtual, utilizando as redes sociais para acompanhar a vida dos netos e resgatar laços identitários em grupos culturais ou sociais associados à infância. Assim, o protagonismo tecnológico é motivado por um interesse individual, utilitário e comunitário, visando a conexão e o enfrentamento da solidão e da ansiedade (Lapa e Reis, 2021). Logo, embora o recorte desta pesquisa traga trilhas interpretativas obtidas por meio da participação de um grupo diferenciado, o confronto com a realidade aponta as lacunas para a inclusão.

A opinião individual dos participantes, prévia à construção coletiva no grupo focal, demostrou uma conceção equilibrada dos efeitos da pandemia nas suas vidas, pois identificaram equitativamente os aspectos negativos, decorrentes do distanciamento social, e os positivos, atrelados à oportunidade de superação e ligados a políticas públicas, à educação e ao empoderamento (Figura 2).

Figura 2 Perspectivas dos inscritos nas oficinas 60+ sobre o impacto da pandemia no seu quotidiano. 

A categorização da fala dos participantes nos quatro eixos estabelecidos para o encaminhamento do grupo focal evidenciou o predomínio de expressões relativas aos valores éticos, os quais, juntamente com os potenciais de solução, superaram as crenças e fragilidades (Figura 3). Esses resultados sugerem que a conceção em grupo mostrou uma trajetória mais otimista do que a reflexão individual.

Figura 3 Frequência relativa da categorização dos vetores, fragilidades, valores e potencialidades identificados nas falas dos idosos. Os valores foram comparados por meio do teste do x2, sendo os valores significativamente maiores (P<0,05) representados por asterisco. 

Assim, os resultados apoiam a expectativa de que os grupos virtuais podem constituir uma ferramenta efetiva para o processo de inserção dos idosos. Essa expectativa encontra respaldo em pesquisas de Santiago et al. (2021), Conroy et al. (2020) e Oliveira et al. (2021), que igualmente ressaltaram a importância dos espaços de acolhimento e de valorização do idoso. Para Lapa e Reis (2021), a completude do indivíduo demanda a participação em grupos sociais, familiares, patrióticos ou humanitários, dando à representação da velhice perspectivas mais positivas (Castro et al., 2020), enquanto idosos destituídos das oportunidades de vivência coletiva, sensação de pertença ou envelhecimento ativo tendem a ter baixa autoestima e a associarem a velhice a doenças, perdas e declínio (Castro et al., 2020; Velho e Herédia, 2020).

As fragilidades destacadas pelos participantes foram ancoradas principalmente no contexto emocional, e, juntamente com as limitações técnicas, superaram as fragilidades sociais e de saúde (Figura 4). A fragilidade emocional dos participantes 60+ foi transposta de uma angústia natural dessa fase da vida, em que se deparam com a limitação da sexualidade e com a consciência de que o tempo passa rápido, para angústias acrescidas com a pandemia, pela limitação do contato físico e do convívio com familiares, pela confrontação com uma situação de luto coletivo e pelo questionamento das crenças religiosas (Figura 4). Em relação aos idosos de Portugal, Lapa e Reis (2021) identificaram as relações familiares e a integração social como as principais dimensões associadas aos sintomas depressivos. Concomitantemente, a ruptura com rotinas organizadas e hábitos consolidados tem um efeito negativo na saúde física e mental, e gera uma resposta de resistência às normas sanitárias (Daoust, 2020; Velho e Herédia, 2020). Diferentes autores, como Conroy et al. (2020), Lapa e Reis (2021), Oliveira et al. (2021), Ammar et al. (2021) e Plagg et al. (2020), têm chamado a atenção para o impacto da solidão na saúde mental do idoso, naturalmente mais vulnerável às tensões psicossociais, potencializando estados de ansiedade, depressão, stresse, alterações comportamentais, luto e até suicídio. Lapa e Reis (2021) ressaltaram que o isolamento desencadeia uma avalanche de emoções que promovem a solidão, as incertezas, a ansiedade pelo desconhecido, a tristeza por estar longe e a angústia por não poderem prover os seus cuidados físicos e o lazer. Expressões como “vó, não quero ser sua assassina”, “o abraço é um revólver” e “não matei ninguém e estou preso” sintetizam como a situação da pandemia impõe novos significados a atos tão consolidados. Neste contexto, a perda de vigor físico e de habilidades motoras, sensoriais e cognitivas soma-se às perdas decorrentes da pandemia como as vidas, a saúde, os rendimentos, a autonomia e a liberdade (Oliveira et al., 2021). Todas essas perdas compõem um cenário intensificado de luto coletivo, inédito mesmo na vida de pessoas que já vivenciaram tantos momentos históricos importantes, conforme a expressão de um participante: “o sofrimento do mundo e o luto coletivo é algo que toca a alma do idoso”. A amplitude das perdas e dos medos associados leva ao mundo o comungar de fases do luto como raiva e negação da dor e da aceitação, associadas a uma situação de stresse pós-traumático coletivo, cuja reatividade por gatilhos poderá durar décadas (Fischer et al., 2020; Oliveira et al. 2021), demandando um investimento na saúde mental no mundo pós-pandémico.

No contexto social, as fragilidades apontaram principalmente para a perda da função do idoso (Figura 4), pois as crenças e ideias do senso comum depreciativas, limitantes e que foram rejeitadas pelos participantes - tais como “o velho é doente”, “o velho é vulnerável a tudo”, “o velho não serve p’ra nada”, “o velho é o fim da linha”, “o velho tem de ter juízo”, “o mercado de trabalho é para o jovem”, “o idoso tem dificuldade com a tecnologia” e “os filhos enterram os pais” - estigmatizam o idoso, principalmente pela perda de dignidade e funcionalidade social (Figura 4). Esse processo, segundo Castro et al. (2020), deve-se ao facto de o senso comum não diferenciar velhice e envelhecimento, bem como usar a doença como indicativo de envelhecimento, demonstrando dificuldade em associar doenças com os hábitos e a vida em qualquer idade. O grupo estudado atende à expetativa de Santiago et al. (2021) de necessidade de transposição da velhice apenas no aspecto biológico e nos conceitos desrespeitosos, distinguindo a velhice (estado) do envelhecimento (processo) (Dardengo e Mafra, 2018; Castro et al., 2020). Quanto ao processo, o mesmo deve ser apropriado como fenómeno universal, socialmente construído e promulgador de uma dissonância quanto à sua função social: decadência/doenças/morte versus oportunidade de descanso, aproveitamento do tempo e abertura para novas aprendizagens. A complexidade dos processos biológicos, psicológicos e sociais envolvidos com o envelhecimento contribui para a disseminação de preconceitos enraizados. Esses encontram respaldo numa visão coletiva que entende o envelhecimento como perda e nos documentos oficiais que associam a definição baseando-se apenas na cronologia (Dardengo e Mafra, 2018; Castro et al., 2020). Para Castro et al. (2020), a representação do envelhecimento é uma experiência heterogónea, multifacetada e com uma multiplicidade de significados, demandando o resgate da imagem do sábio, das memórias e da importância como cola social (Santiago et al., 2021).

Figura 4 Mapa mental do debate ocorrido nas oficinas O velho novo normal com as expressões dispostas nos vetores fragilidades, valores éticos, senso comum e potencialidades. 

As fragilidades no contexto técnico apontaram para a terminologia usada para referir os cidadãos 60+ (Figura 4). O emprego da terminologia “velho”, “idoso”, “3.ª idade” ou “melhor idade” não apresentou unanimidade na aprovação ou na desaprovação. O argumento contrário ao uso da terminologia “velho” foi que “velho é sapato”, ou outros objetos, logo, inadequado para as pessoas. Por outro lado, a expressão “idoso” foi relacionada com “ido” - aquilo que foi ou já passou -, porém “nós somos”. A terminologia “3.ª idade”, “melhor idade” e “anos dourados” também foi atrelada à estigmatização, segregação e preconceito. A expressão “envelhecentes” foi uma alternativa apresentada, que, segundo Vilhena, Novaes e Rosa (2014), representa o desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo envelhecido. A expressão já é conhecida do meio científico e popular e faz uma analogia aos adolescentes, simbolizando um estado de transição entre o adulto e o velho. Um dos participantes conceituou ser envelhecente, com a constatação de que “não estou maduro para aceitar a minha idade” e referindo o ato de “tomar um banho de chuva apenas de roupas íntimas ao lado do meu amor” - como crianças, que exploram os sentidos, representando o que é viver de forma plena.

No contexto da saúde, os participantes apontaram que a pandemia Covid-19 amplificou a preocupação da prevenção da saúde, uma vez que o distanciamento social comprometeu os exames de rotina e as atividades físicas (Figura 4), ambos inseridos na instância de autocuidado e fundamentais para um envelhecimento saudável (Estatuto do idoso, 2003). A saúde e a qualidade de vida dos idosos devem ser prioridades, principalmente em situações de crise de longa duração (Conroy et al., 2020; Lapa e Reis, 2021), durante as quais devem ser integradas ferramentas inovadoras e criativas nas intervenções de saúde pública e nos programas de cuidados para enfrentamento da solidão e seus condicionantes, associando iniciativas com alta e baixa tecnologia ( Conroy et al., 2020).

Concomitante às limitações, as falas dos participantes foram ancoradas em valores, principalmente de ordem comportamental (Figura 4). O grupo demostrou que os valores temporais somam-se à qualidade da sua história de vida, de superação de desafios presentes e futuros. A autonomia e a liberdade foram os valores considerados importantes para o idoso, retroalimentando a motivação para a superação dos desafios de uma vida que ainda está em curso. Esses resultados corroboram as perspetivas de Velho (2020) e Plagg et al. (2020) de que devem ser incentivados debates éticos filosóficos e sociais sobre o valor da autonomia na compreensão individual da qualidade de vida e da dignidade no final da vida.

As limitações ancoradas em crenças culturais confrontadas com os valores cultivados no percurso de vida permitiram a consolidação de perspectivas de potencialidades, principalmente associadas à superação e à conexão.

Como potenciais coletivos, pronunciaram-se a partilha e a procura de soluções comuns e um protagonismo crítico que identifica nos direitos ferramentas de empoderamento. Moriguchi (2013) discutiu a bioética do envelhecimento e conclamou por aspetos éticos como ajuda, cuidado, respeito, gratidão, aprendizagem e retribuição; dee tal modo que se enalteçam também aspectos como experiência e espiritualidade na perda de capacidade física. Ohara (2019) destacou a importância da capacitação dos profissionais que irão atender a população envelhecida, somada a políticas públicas, acesso igualitário de oportunidades e garantia da tecnologia na saúde, endossando a inserção da bioética no contexto de envelhecimento ativo e com autonomia. Obviamente que o reconhecimento das necessidades por uma sociedade mais solidária permitirá a sua qualificação quanto ao protagonismo na ressignificação do envelhecimento, promovendo uma mudança no papel social do idoso para resgatar a dignidade no envelhecimento. Castro et al. (2020) atentaram que a longevidade de uma população deve ser encarada como desenvolvimento social, uma conquista para civilização, uma vez que indicia maior qualidade de vida e bem-estar social, demandando uma participação comunitária de reconhecimento e respeito. Quanto mais integrados e participativos forem os idosos, menos velha a população será, pois estará mais apta a exercer a cidadania ativa. Para Grolli et al. (2021) e Plagg et al. (2020), embora em situação de crise haja um direcionamento dos esforços para a integridade física, a situação vivida demonstra a importância de políticas precisas do envelhecimento ativo, adaptadas às características específicas de cada nação, mas que visem aliviar o sofrimento e os danos da saúde do idoso. Inclusive, segundo Daoust (2020), os governos precisam de rever as suas abordagens aos idosos mais resistentes às medidas preventivas como o distanciamento social.

A potencialidade da inovação foi identificada nas terapias alternativas, principalmente não medicamentosas, visando alcançar a qualidade de vida por meio do autocuidado (Figura 4), temática acolhida por diferentes segmentos sociais, tradicionais, como a educação física (Santiago et al., 2021), ou tecnológicos (Conroy et al., 2020). Embora Conroy et al. (2020) compreendam a situação emergencial da pandemia como o legado de ferramentas utilizadas na comunicação de crise, saúde pública e programas de cuidados para lidar com a solidão, ressaltaram a necessidade de se envolverem também tecnologias sociais de baixo custo, como práticas voluntárias criativas e o envolvimento da comunidade.

Os potenciais de superação foram identificados desde uma iniciativa individual de procurar “ficar ativo” e manter “o contato com a natureza” até “envolver-se numa luta ativa pelos direitos do idoso”, “protagonizar o incentivo de projetos sociais para inserção do idoso” e permear uma mensagem de esperança e de alerta para “aproveitar o tempo”. Obviamente que ser idoso já não é uma garantia de tempo disponível, reflexo de um mundo de doenças e stresses. Esses resultados identificam, na pesquisa de Conroy et al. (2020), as conceções de que mesmo no envelhecimento é possível aprender, superando a estigmatização da cronologia e dando ao idoso o reconhecimento de que se sente bem e agora quer ser livre e feliz.

Expressões como “o computador não morde!”, “a gente foi obrigado a se reinventar” e “um legado que fica para o pós-pandemia” ilustram a perspectiva de identificação com um estágio transitório, que procura, pelo protagonismo, enxergar o valor dos momentos e almejar um novo espaço social, que agregue as condições impostas pela pandemia como alternativa de aproximação da tecnologia, promovendo a inclusão (Figura 4). Irigaray e Gonzatti (2020) e Ammar et al. (2021) pontuaram a importância de incentivar e ensinar os idosos a usarem as tecnologias para manterem o corpo e a mente ativos, bem como emponderá-los a romperem o receio e a resistência ao uso da tecnologia, por meio de treinamentos para o domínio do equipamento e da sua expressão motora, automaticamente interferindo na autoestima. Conroy et al. (2020) acrescentaram que a alfabetização tecnológica e o fornecimento de equipamentos, treinamento e orientações se configuraria como um incentivo para a terapia online ou videoconferências, para combater a solidão e fomentar a inclusão social. As ferramentas tecnológicas despontam, então, como facilitadoras de relações preestabelecidas com um grupo de confiança, logo, quanto maior for a inclusão digital, maior será a inclusão social, ultrapassando a dependência da idade, do estado civil, da escolaridade e das dificuldades de uso (Lapa e Reis, 2021). Consequentemente, Velho e Herédia (2020) consideraram que as mudanças na forma de comunicação, bem como a tecnologia como forma de inserção e participação na esfera social, demandam a superação de riscos inerentes ao ambiente virtual e possibilitam acesso às redes sociais para informação e entretenimento, manifestações artísticas, políticas, educativas, aulas de atividade física, meditação e debates. Ammar et al. (2021) acrescentam, ainda, as plataformas digitais, o coaching interativo, a “gamificação”, os rastreios de saúde, a “internet das coisas”, as soluções digitais inteligentes, os caminhos inteligentes e a segurança física mental e social personalizadas, apoiadas por multiprofissionais, voltados para facilitar a adesão a práticas saudáveis e ativas, à receção psicossocial em caso de depressão e à preparação para outras situações de risco e emergenciais.

Os participantes da pesquisa identificaram igualmente na conexão uma potencialidade de inclusão, seja com a natureza, com a sociedade ou com o exercício da fé. Mas a conexão personificou-se na transposição de papéis, em que a ajuda do jovem na promoção da inserção com a tecnologia não é tomada como motivo de vergonha ou demérito, mas como uma oportunidade de aproximar as gerações. O grupo também levantou o senso comum que concebe “o idoso como obsoleto” e cujo acúmulo de conhecimento é desnecessário frente a uma sociedade que vive na era da informação. Consequentemente, o que se vivenciou foi uma inversão dos papéis de quem ensina e de quem aprende. No entanto, o grupo não percebeu essa situação como uma fragilidade, mas sim como uma oportunidade. A tecnologia antes da pandemia era um desafio impossível de ser superado, o idoso tinha mais medo de estragar e danificar o equipamento desconhecido do que de não conseguir aprender. Para o grupo estudado, aprender com o jovem não é um problema, pois entendem o valor da experiência de vida, assim como os idosos portugueses entrevistados por Lapa e Reis (2021). Segundo os participantes, a tecnologia, os tempos modernos e a rapidez do quotidiano são incapazes de desacreditar o valor de se “ensinar os valores”, pois compreendem que os valores não se aprendem na internet, mas sim na vivência com o outro, uma vez que “a experiência de vida não se ensina”. Assim, destacou-se o potencial da pandemia, como defendem Castro et al. (2020), e as representações sociais como lentes que permitem identificar crenças negativas e positivas e a desejável ampliação e continuidade por diferentes meios, como incentivos a políticas públicas e à prevenção da saúde, levando o conceito “velhice” a refletir uma autoimagem positiva. Crenças positivas desencadeiam estados emocionais que influenciam as mudanças fisiológicas e, automaticamente, estimulam comportamentos saudáveis. Para Carvalho-Silva e Caldas (2009), a bioética é um instrumento indispensável para a aprendizagem social, que pode promover e dar oportunidade à aproximação e troca entre as gerações. Essa conceção demonstra recetividade para a troca de saberes, o potencial de “encontrar fé nas pequenas coisas”, uma vez que a visibilização de pessoas antes invisíveis permitiu “olhar e encontrar o caminho da fé e da afetividade”, pois enquanto “o idoso tem o time diferente, se relaciona de forma diferente com o tempo e se permite estar aberto para esses encontros”, “os jovens estão distraídos, pois a velocidade das demandas e obrigações impedem-nos de usufruir dos momentos”.

Os dados endossam igualmente a expectativa de Carvalho-Silva e Caldas (2009) de que a bioética possa ser utilizada como instrumento para a aprendizagem social, na elaboração de pesquisas, na capacitação de profissionais de saúde e na promoção do equilíbrio entre efetividade/afetividade e equidade/invisibilidade.

Considerações finais

O presente estudo confirmou a hipótese da pesquisa de que os espaços virtuais de construções coletivas constituem ferramentas efetivas para estudos empíricos de confluência entre a bioética e as ciências sociais, bem como promove sentimento de pertença e subsidia a representação dos limites e potencialidades de uma fase da vida carregada de estigmas e vulnerabilidades. Se, por um lado, a composição do maior grupo de risco, o isolamento social e a pouca intimidade com a tecnologia potencializaram o aumento da solidão, os mecanismos de inclusão prévios e durante a pandemia incentivaram os idosos a romperem as barreiras impeditivas de usufruírem das possibilidades funcionais e sociais das tecnologias, afetando diretamente a saúde, a qualidade de vida e a autoestima. A pandemia mostrou que a inclusão do idoso é possível e desejada, porém demanda a ressignificação do velho e do envelhecimento, sinalizando que, com investimento e interesse, é possível proporcionar as mesmas oportunidades para todos, num futuro que precisa de ser pensando com ética e urgência.

No contexto metodológico, o uso de espaços virtuais para a realização de grupos focais demonstrou potencial para estudos de ciências sociais, considerando, obviamente, a limitação do acesso de uma boa parcela da sociedade, mas que permite lançar pistas interpretativas dos processos de representação necessários para considerar políticas de inclusão e de educação para o agora e para o futuro. Assim, a pesquisa sugere a inclusão de estudos de representações sociais que respeitem as vivências e os contextos psicossociais e familiares, como forma de conhecer o mundo e as expectativas para o futuro, a partir das explicações gestadas no senso comum. O percurso metodológico proposto permitiu a mobilização dos saberes como objetos práticos e apreendidos no espetro da sua dinâmica e variedade. O caráter simbólico, os significados e a formação de sentidos compartilhados permitiram a conceção identitária que reconhece o mundo e auxilia na compreensão de opiniões e atitudes dos indivíduos. Assim, a ferramenta permitiu a identificação da ancoragem e da objetificação, baseadas na capacidade de compreender o significado e a pluralidade das vivências dos idosos. À análise dessas perspectivas em confluência entre as ciências sociais e a bioética, acresce, no processo, a identificação dos agentes e pacientes morais, as vulnerabilidades e o balizamento do diálogo, visando identificar valores éticos e interesses de modo a orientar na procura de soluções consensuais, justas e factíveis.

A participação na oficina promoveu também a sensação de pertença, expressa por “nós estamos sendo vistos e ouvidos” e “estamos juntos fazendo conhecimento”. O maior desafio na atenção à pessoa idosa é conseguir contribuir para que, apesar das progressivas limitações, possa redescobrir possibilidades de viver a sua própria vida com a máxima qualidade possível. Essa possibilidade aumenta na medida em que a sociedade considera o contexto familiar e social e consegue reconhecer as potencialidades e o valor dos idosos. Portanto, parte das dificuldades está mais relacionada com a cultura que as desvaloriza e limita. “Perde-se biologia, ganha-se biografia”: cada fase superada da vida impõe novos desafios, mas também novos ganhos, logo é preciso sabedoria para entender que não se perde, mas transforma-se. Assim, “transformar o vigor físico em vivências, histórias, aprendizagens e valores é continuar eternamente vivo!” A população estudada não negou o envelhecimento, nem tampouco algumas limitações, mas sentiram-se autónomos nas atividades da vida diária, mesmo com as dificuldades encontradas no isolamento causado pela pandemia Covid-19. “A vida não foi feita para se descansar, mas para ser consumida de ponta a ponta”, perspectiva que evidencia desejo de experimentar, colocar o que é sensorial em ação, sentir-se vivo, imputando perspectivas de futuro, otimismo e recetividade a tudo o que a vida pode oferecer; emoções de alegria, mas também de tristeza, raiva e saudades, um turbilhão de reações num mundo em movimento. “O velho não é uma vela que se apaga, mas uma árvore que dá frutos” representa que os ciclos não são estáticos, logo “o país que esquece o seu velho, esquece a sua história”, e embora “morrer seja a única certeza que temos!”, não há como se consumir do mundo; cada um de nós ficará impregnado no corpo da descendência, no coração dos afetos e nas memórias, assim, “viva cada dia como se fosse o primeiro”.

Obviamente que se devem considerar as limitações desta pesquisa, por extrapolar a reflexão a partir de um pequeno grupo de participantes de uma determinada localização num país latino-americano e pertencendo a um segmento social diferenciado, com capitais culturais elevados, nomeadamente no que toca à literacia digital. Logo, incentiva-se que a metodologia seja replicada noutras realidades e com outros públicos 60+ com capitais económicos, sociais e culturais diversificados, para que uma massa crítica seja consolidada a respeito das necessidades, crenças, valores e potencialidades desse grupo social, que tem paulatinamente aumentado a sua representatividade e que demanda estratégias de empoderamento.

Agradecimentos

A todos os participantes da ação “E-caminho do diálogo”, em especial aos 60+.

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Notas

1. Os procedimentos éticos referem-se à garantia do anonimato dos participantes da pesquisa, à destruição da gravação após a transcrição codificada dos dados, à oportunidade de os participantes desistirem a qualquer momento e à etapa da pesquisa na qual autorizam o uso dos seus dados. Acrescem as condutas de respeito e acolhimento dos participantes, num espaço de construção colaborativa, no qual as opiniões divergentes são aceites como meios de amadurecimento para a procura de valores comuns, bem como o comprometimento ético dos autores na análise, interpretação e veiculação dos dados.

2. O Comité de Ética e Pesquisa com seres humanos (CEP) é constituído com efetiva representatividade, garantindo uma composição multi e transdisciplinar. A sua função é a de promover e aprimorar os aspetos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos, assim como promover, proteger e valorizar os participantes das pesquisas e defendê-los na sua vulnerabilidade, bem como apoiar e orientar os investigadores, zelando para que os seus projetos atendam às exigências éticas e científicas fundamentais, conforme a Resolução 466/12 brasileira.

Recebido: 11 de Novembro de 2021; Aceito: 23 de Junho de 2022

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