Durante a última década, temos observado discussões académicas, sociais, políticas e legais em torno de pessoas que se identificam como transgénero e/ou não-conformes de género (TGNC1), o que tem permitido o árduo alcance de alguns marcos de relevo, em particular no enquadramento dos cuidados de saúde mental disponíveis para pessoas TGNC. Em 2013 foi publicada a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM-5) (American Psychiatric Association, 2013), que reconhece explicitamente que “o desejo de ter um sexo diferente não representa uma perturbação”. Contudo, apenas substituiu o diagnóstico de perturbação de identidade de género por um diagnóstico de disforia de género - terminologia introduzida no DSM-III aquando das primeiras considerações sobre “transexualidade” (APA, 1986; Rodrigues, 2016). A última edição da Classificação Internacional de Doenças e problemas de saúde relacionados (CID-11, 2019) foi um passo mais longe, removendo a categoria de diagnóstico “perturbações de identidade de género” (WHO, 2019) e retirando-a das classificações.
No contexto ocidental, as linhas orientadoras para intervenção com esta população têm sido informadas, na sua maioria, pelos Standards of Care (SOC), da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Até ao presente, as SOC continuam a evidenciar uma perspetiva patologizadora das experiências trans, mesmo tendo em conta que na 7.ª versão (WPATH, 2012)2 ocorreu uma distinção entre “disforia de género” e “variabilidade de género”, numa tentativa de legitimar a variedade de experiências trans, e assim passar de um foco na avaliação da identidade para um foco na medição de sofrimento. Contudo, continua a negar a autodeterminação das pessoas, e os processos que deveriam ser de acompanhamento tornam-se de avaliação e julgamento de quem solicita apoio. Nesta abordagem, profissionais dos domínios biomédicos adotam frequentemente o papel de “guardiões” do sistema binário de sexo/género (Coimbra, 1995; Missé, 2014), promovendo a ideia de que a regulação dos corpos tem de acompanhar a regulação das identidades (sociais), ou seja, de que os processos devem seguir as normas de género (isto é, sexo masculino - género masculino e sexo feminino - género feminino).
A crescente visibilidade e legitimação social de pessoas TGNC evidenciou os défices das linhas orientadoras existentes e levou ao desenvolvimento, pela American Psychological Association (APA), de novas Guidelines for Psychological Practice With Transgender and Gender Nonconforming People (APA, 2015). A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) adaptou estas orientações para Portugal, em dezoito guidelines, no Guia Orientador da Intervenção Psicológica com pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans (LGBT) (OPP, 2017). Podemos organizar estas linhas orientadoras em três grandes dimensões que constituem a prática psicológica: a necessidade de formação adequada; a caracterização de uma prática psicológica conscienciosa; e a importância de um compromisso social e público que vai além do trabalho direto com pessoas TGNC.
A primeira dimensão, fundamentada pelas guidelines 1 a 4 (OPP, 2017), pretende reforçar a importância de formação e instrução adequadas por parte das/os profissionais em algumas das temática basilares para uma intervenção psicológica com pessoas TGNC: género como constructo não-binário; o direito à autodeterminação; distinções e inter-relações entre identidade de género, expressão de género e orientação sexual; e a importância de conhecer e saber aplicar a teoria da interseccionalidade - que procura compreender como certos aspetos das categorias identitárias de uma pessoa se combinam para criar diferentes modos de discriminação e privilégio (Nogueira, 2013; McCall, 2005) - na prática psicológica (OPP, 2017).
A segunda dimensão, fundamentada principalmente pelas guidelines 5 a 11 (OPP, 2017), dedica-se à sensibilização das/os profissionais para uma prática psicológica conscienciosa. Começa pela necessidade de autorreflexão, que consiste, sobretudo, em explorar as próprias atitudes e conhecimentos e a forma como estes afetam, ou podem afetar, a qualidade das suas intervenções com pessoas TGNC. É também essencial que se informem e compreendam as diversas especificidades das vivências de pessoas TGNC, não só a nível pessoal, mas também nas suas relações e experiências socioculturais. Cabe, então, a cada psicóloga/o não só tornar o lugar psicoterapêutico num lugar de suporte e aceitação, mas também participar na disseminação de relações profissionais multidisciplinares para um potencial acompanhamento mais compreensivo de pessoas TGNC, ou seja, de um maior entendimento e interseção das diversas dimensões das suas vidas, recursos e desafios (OPP, 2017).
Por fim, a terceira dimensão, fundamentada pelas guidelines 12 a 18, declara a importância de um comprometimento social e público das/os psicólogas/os, em que, por via do seu conhecimento especializado, e de acordo com as diretrizes éticas, trabalhem para o aperfeiçoamento de políticas e medidas promotoras da saúde e do bem-estar das pessoas TGNC. Pretende-se que este compromisso inclua contribuições para a produção científica, a disseminação de conhecimento científico e a formação de competências sensíveis à diversidade e desconstrução de crenças, atitudes e comportamentos de discriminação contra as pessoas TGNC (OPP, 2017).
As presentes linhas orientadoras aproximam-se das intenções de uma prática psicológica afirmativa. Inicialmente, o “modelo afirmativo gay” (por exemplo, Stein, 1988; Stein e Cabaj, 1996) referia-se a um conjunto de orientações para uma intervenção junto de lésbicas, gays e bissexuais. Este modelo pretendia redirecionar o foco da psicologia das noções de défice ou patologia para a validação da forma como os contextos sócio-culturais, ideológicos e políticos, assentes em configurações heterossexistas e homofóbicas, contribuem para as dificuldades e obstáculos à integração da diversidade sexual não-heterossexual (Carneiro, 2006; Moita, 2001). Este modelo veio afirmar a homossexualidade e a bissexualidade como modos de estruturação psicológica tão válidos, tão passíveis de uma vivência satisfatória e gratificante quanto a heterossexualidade (Carneiro, 2006). Assim, o modelo de terapia afirmativa gay representa um conjunto de linhas orientadoras da prática psicoterapêutica com pessoas lésbicas, gays e/ou bissexuais, e particularmente com aqueles que apresentam dificuldades relativas à sua sexualidade. O objetivo da/o psicoterapeuta que partilha esta perspetiva é trabalhar com as pessoas na direção da aceitação da sua sexualidade (Moita, 2001, 2006).
No presente trabalho, pretendemos explorar e estender as noções afirmativas originais à prática psicológica com pessoas com identidades e expressões desafiantes do sistema binário e/ou cisnormativo de género. Assim sendo, práticas afirmativas com pessoas TGNC, isto é, práticas transafirmativas, traduzem abordagens que proporcionem ambientes de empoderamento a pessoas TGNC, sendo culturalmente sensíveis às necessidades desta população, e que trabalhem os impactos da opressão social na sua saúde mental. Psicólogas/os transafirmativas/os têm de ter consciência, conhecimento e competências para não só afirmar pessoas TGNC nos seus processos de des/identificação de género, mas também para abordar as temáticas multiculturais e de justiça social que influenciam o bem-estar geral da pessoa (APA, 2015). Continuam a existir psicoterapeutas que cometem erros ao enfatizar excessivamente, subestimar ou estigmatizar as identidades TGNC nas sessões de psicoterapia (Mizock e Lundquist, 2016), isto é, adotando uma abordagem transnegativa, seja por falta de conhecimento, viés pessoal, invalidações ou até microagressões contra pessoas TGNC (McCullough et al., 2017).
As recomendações existentes (APA, 2015; OPP, 2017) ainda se revelam insuficientes, sendo persistentes os relatos de pessoas TGNC de experiências de sofrimento e rejeição na procura de ajuda da parte de profissionais da saúde e da psicologia (Bettergarcia e Israel, 2018; Dickey e Singh, 2017; McCullough et al., 2017; Richards et al., 2016). Estas experiências problemáticas de psicoterapia podem ser profundamente nocivas para a pessoa e contribuir para um agravamento dos sintomas, diminuição da satisfação com a intervenção e até desencorajamento da procura de ajuda (Mizock e Lundquist, 2016).
O movimento em direção à psicoterapia afirmativa para pessoas TGNC tem sido benéfico, mas, no entanto, é importante realçar que as recomendações pouco orientam para a psicoterapia afirmativa com pessoas que não encaixem nas expectativas transnormativas. Estas expectativas estão ancoradas na transnormatividade - a hegemonia social através da qual as expressões e as experiências de género de pessoas trans são concebidas com base numa estrutura binária medicalizada (Johnson, 2016; Bradford e Syed, 2019), com intenção da aproximação às expressões e experiências de pessoas cisgénero; ou seja, pessoas TGNC que passem por cisgénero são mais reconhecidas e legitimadas. Desta forma, a transnormatividade tem o poder de estruturar as vivências e identidades TGNC numa hierarquia de legitimidade de algumas pessoas - pessoas trans binárias com intenções de alterações corporais - face a outras - pessoas não-binárias, pessoas trans binárias que não desejem alterações corporais, etc. (Richards et al., 2016; Dickey e Singh, 2017; McCullough et al., 2017; Bettergarcia e Israel, 2018).
Persiste um posicionamento patologizador por parte de psicólogas/os, que muitas vezes revela práticas de gatekeeping, isto é, práticas que pretendem controlar, e geralmente limitar, o acesso geral ao cuidado e/ou acompanhamento que as pessoas TGNC procuram (Hilário, 2020; Linander et al., 2020; Dickey e Singh, 2017a). Algumas práticas de gatekeeping prendem-se com a tendência de certos profissionais de darem primazia ao trabalho com pessoas TGNC cuja identificação se insere dentro do binário de género e/ou que procuram intervenções médicas, tais como terapia hormonal e cirurgia (Singh e Burnes, 2017; Hilário, 2020). Esta legitimação parcial invisibiliza inevitavelmente as pessoas TGNC que se posicionam fora do binário de género e que, consequentemente, contam com menos acessos aos cuidados e acompanhamentos de que possam necessitar (Davis, Dewey e Murphy, 2016; Hilário, 2020; Matsuno, 2019).
No contexto português, em particular, a lei sobre a autodeterminação do género, aprovada em 2018 (Decreto-Lei n.º 38/2018), tem sido altamente celebrada por pessoas TGNC, pois representa um passo importante para o reconhecimento dos seus direitos, bem como para a despatologização desta população. Portugal tornou-se o décimo primeiro país do mundo com uma lei de reconhecimento de género assente na autodeterminação, que permite a separação entre os protocolos médicos e os direitos legais (Aboim, 2020). Esta lei promove práticas afirmativas com pessoas TGNC, no sentido de estas pessoas terem espaço para se definirem nos seus próprios termos, e deslegitima práticas de gatekeeping - apesar de estas persistirem em Portugal (Hilário, 2020).
Devido à rápida mudança no campo da saúde relativamente às pessoas TGNC e ao aumento das leis e políticas afirmativas desta população em Portugal, as/os psicólogas/os portuguesas/es devem manter-se atualizadas/os. Existe a necessidade de um compromisso maior por parte dos profissionais da psicologia, nomeadamente psicoterapeutas, para um processo contínuo de questionamento dos seus preconceitos de género e de como estes afetam o seu trabalho (Parker, 2007; Teo, 2012), de modo a que se construam e estabeleçam relações psicoterapêuticas afirmativas (Lindroth, 2016; Fassinger, 2017; Paine, 2018).
Estudos sobre o lugar psicoterapêutico de pessoas TGNC
Com base no estado da arte em torno das orientações para uma prática psicológica transafirmativa, procedemos a uma revisão bibliográfica com o objetivo de aceder a narrativas de pessoas TGNC sobre as suas experiências com processos psicoterapêuticos. A seleção de artigos para este ensaio bibliográfico foi orientada pelos seguintes critérios: 1) estudos qualitativos empíricos que recorressem a entrevistas, fornecendo assim narrativas das pessoas TGNC; 2) apenas estudos publicados em revistas científicas; 3) estudos em que exclusivamente as pessoas TGNC fossem participantes e que relatem as suas experiências psicoterapêuticas na primeira pessoa; 4) estudos em que o objetivo principal fosse discutir e caracterizar processos psicoterapêuticos com pessoas TGNC. Estes critérios levaram à seleção de quatro artigos, que passamos a apresentar. Importa salientar que não foi encontrado nenhum artigo empírico que correspondesse a estes critérios sobre a realidade portuguesa3.
Selecionámos inicialmente o artigo “The counseling experiences of transgender and gender nonconforming clients” (McCullough et al., 2017), por representar uma primeira abordagem à generalidade das experiências de pessoas TGNC com processos de aconselhamento. O estudo pretendeu responder à seguinte questão de investigação: quais são as experiências de aconselhamento de indivíduos TGNC? Este estudo contou com a participação de 13 pessoas que se identificaram como TGNC, com idades entre os 21 e os 54 anos de idade e com historial de utilização de serviços de saúde mental. Este estudo foi desenvolvido nos Estados Unidos da América (EUA); as pessoas participantes viviam em diversas regiões dos EUA, na Costa Oeste, no Nordeste, no Centro-Oeste, e no Sudeste. Destas pessoas, quatro identificaram-se como negras/afro-americanas, quatro como brancas, quatro como multiétnicas ou multirraciais, e uma pessoa identificou-se como latina. Todas as 13 pessoas participantes foram entrevistadas por telefone, e os dados foram analisados utilizando os procedimentos da Análise Fenomenológica Interpretativa (IPA - Interpretive Phenomenological Analysis), conforme delineada por Smith, Flowers e Larkin (2009).
De seguida, selecionámos o artigo “Missteps in psychotherapy with transgender clients: promoting gender sensitivity in counseling and psychological practice” (Mizock e Lundquist, 2016), por este aprofundar com mais especificidade as falhas que ocorrem nos processos psicoterapêuticos com pessoas TGNC. Este estudo também teve como foco principal explorar as experiências das pessoas TGNC com serviços de saúde mental. O processo de recrutamento para participar em entrevistas semiestruturadas ocorreu numa conferência no Nordeste dos EUA para indivíduos TGNC. Os critérios de seleção prendiam-se com três critérios: as pessoas terem uma idade igual ou superior a 18 anos, terem tido experiências de utilização de serviços de saúde mental e identificarem-se como TGNC. O estudo contou, assim, com a participação de 45 pessoas que se autoidentificaram como TGNC - 21 mulheres trans, 17 homens trans e sete pessoas que se identificaram como genderqueer e/ou genderfluid. A idade média dos participantes foi de 46 anos (SD = 16,5), com um intervalo entre 21 e 71 anos, e todas as pessoas tinham historial de utilização de serviços de saúde mental, sendo que 31 indicaram estar a frequentar psicoterapia no momento do estudo. Destas pessoas, 34 autoidentificaram-se como brancas, sete como birraciais, uma como afro-americana, uma como asiático-americana, uma como latino-americana, e uma como indígena-americana. As entrevistas duraram aproximadamente 60 minutos e decorreram por telefone ou num espaço privado de investigação num campus universitário onde a equipa de investigação estava afiliada. Para a análise dos dados recolhidos foi utilizada a Grounded Theory (Corbin e Strauss, 2008).
No sentido de complementar estes estudos, selecionámos ainda o artigo “Experiences of older transgender and gender nonconforming adults in psychotherapy: a qualitative study” (Elder, 2016), que nos permite aceder a narrativas de pessoas com mais idade e às suas perspetivas sobre as experiências e efeitos de processos psicoterapêuticos ao longo das suas vidas. O objetivo principal deste estudo prendeu-se com a exploração de perspetivas que são frequentemente negligenciadas devido à marginalização de pessoas TGNC e, assim, melhorar a qualidade dos cuidados psicoterapêuticos para esta população. Este estudo contou com a participação de dez pessoas TGNC que viviam na Baía de São Francisco (Califórnia, EUA), entre os 60 e os 83 anos de idade, e que tinham pelo menos uma experiência psicoterapêutica significativa, independentemente da sua identidade de género na altura do processo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas presenciais para explorar as experiências subjetivas das pessoas participantes em psicoterapia. Após a conclusão das entrevistas, o conjunto de dados recolhidos foi analisado de acordo com as seis fases de Análise Temática, de Braun e Clarke (2006).
Por fim, selecionámos o artigo “Finding a trans-affirmative provider: challenges faced by trans and gender diverse psychologists and psychology trainees” (Dickey e Singh, 2017), por acrescentar uma interseção ainda pouco estudada ao refletir sobre as especificidades dos desafios da procura e acesso a cuidados psicológicos transafirmativos por parte de pessoas TGNC que são profissionais/estudantes de psicologia. Este artigo relata na primeira pessoa as experiências das duas pessoas TGNC que escreveram o artigo, explorando os desafios relacionados com a procura de supervisão, o acesso a cuidados para serviços de avaliação e a procura de serviços de acompanhamento. Com base nos desafios a nível profissional e de formação que as pessoas TGNC enfrentam na tentativa de acesso a cuidado, são fornecidas recomendações relacionadas com a formação transafirmativa, para formar profissionais de psicologia e proporcionar acompanhamento à população TGNC.
De seguida, apresentamos uma reflexão integrativa que se reporta às principais conclusões da análise das narrativas de um total de 70 pessoas, que se identificam como TGNC e que participaram nestes quatro estudos, sobre as suas experiências, expectativas e desafios na procura e seleção de um/a psicoterapeuta e durante o processo psicoterapêutico. Esta reflexão visa, em particular, as experiências individuais das pessoas TGNC nos seus lugares psicoterapêuticos, e, por não existir material específico nestes domínios em contexto português, pretendemos elencar orientações para a prática psicoterapêutica que possam ser transferíveis para a experiência de pessoas TGNC em geral, mas tendo sempre em consideração a necessidade de conciliar a sensibilidade a diferentes contextos culturais e legais na articulação destes com as necessidades individualizadas.
Reflexão integrativa das experiências psicoterapêuticas de pessoas TGNC
Pessoas que se identificam como TGNC e que utilizam e procuram serviços de aconselhamento/psicoterapia fazem-no tanto por intenções relacionadas com as vivências que percecionam subjetiva e/ou culturalmente como problemáticas, como por intenções que não estão relacionadas com estas vivências. O mais recorrente é existir uma interseção e combinação de diferentes intenções, por exemplo, alguém procurar apoio psicológico para gestão de ansiedade em momentos de avaliação e para apoio em processos de revelação das suas identificações como TGNC a pessoas significativas (McCullough et al., 2017). Com base na presente revisão bibliográfica, apresentamos algumas considerações que emergem como importantes sobre as particularidades dos processos psicoterapêuticos com pessoas TGNC. Desta forma, todas as conclusões apresentadas nesta secção traduzem a integração das conclusões da análise dos discursos diretos, realizadas pelas respetivas equipas de investigação de cada um dos artigos empíricos selecionados.
Muitas pessoas TGNC relatam que o fator mais importante para o sucesso do processo psicoterapêutico está relacionado com o desenvolvimento de uma forte aliança psicoterapêutica; em particular, surgem as dimensões da confiança, da empatia e dos cuidados demonstrados como determinantes para uma boa relação psicoterapêutica (Elder, 2016; McCullough et al., 2017).
O processo de procurar e encontrar um/a psicoterapeuta revela-se crucial e bastante complexo, pelo que várias pessoas TGNC desenvolvem estratégias para identificar psicoterapeutas com possíveis abordagens transnegativas ou, de modo inverso, com abordagens transafirmativas, de forma a tentarem assegurar que as suas necessidades serão respeitadas e integradas na abordagem psicoterapêutica.
São então adotadas estratégias de avaliação de profissionais para determinar a decisão sobre que profissional acreditam ser mais adequada/o para atender às suas necessidades. Algumas pessoas entrevistam a/o psicóloga/o presencialmente ou por telefone, enquanto outras testam as reações da/o psicoterapeuta a determinadas palavras ou declarações (McCullough et al., 2017). Existem ainda pessoas TGNC que procuram profissionais especificamente com base na sua orientação sexual, identidade de género e/ou “raça”/etnia, pois afirmam que pode ser particularmente importante para si ter um/a profissional com semelhança de vivências de opressão/estigmatização, com quem encontrem pontos de identificação e se sintam, a priori, mais seguros. Ou seja, acreditam que as/os profissionais que experienciam lutas semelhantes serão mais capazes de entender os seus processos (McCullough et al., 2017). Apesar de esta estratégia ter sido útil para muitas pessoas TGNC encontrarem psicoterapeutas contemplativos das suas necessidades, nem sempre é o caso. Um/a psicoterapeuta identificar-se como TGNC não garante um bom acompanhamento, podendo por vezes trazer maior rigidez nas expectativas de como o processo de autodeterminação de género da pessoa deve ou não ocorrer (Elder, 2016).
Atualmente, nos Estados Unidos da América, existem, por um lado, cada vez mais psicólogas/os com formação sobre as temáticas e vivências de pessoas TGNC, e, por outro lado, muitas/os psicólogas/os a exercer com pessoas TGNC sem qualquer formação adequada (Dickey e Singh, 2017). Contudo, a prática e a formação não são condições suficientes para assegurar que os psicoterapeutas não adotem uma abordagem transnegativa.
Uma abordagem transnegativa evidencia muitas vezes a falta de conhecimento básico de aspetos políticos, históricos, culturais e médicos relacionados com a vida de pessoas TGNC (McCullough et al., 2017), originando situações desadequadas durante o processo psicoterapêutico com estas pessoas. São recorrentes os relatos destas pessoas de que, ao longo de um processo psicoterapêutico, sentem pressão para explicar e ensinar às/aos suas/seus psicoterapeutas sobre as suas vivências enquanto pessoas TGNC (Elder, 2016; Matsuno, 2019; Mizock e Lundquist, 2016; Rodrigues, 2016), existindo, em particular, muita dificuldade em gerir temáticas em torno do género. Por vezes, aspetos importantes da vida da pessoa para além das temáticas de género são negligenciados, ou, pelo contrário, é demonstrado um desinteresse e afastamento dos temas de género (Mizock e Lundquist, 2016).
Está ainda patente uma visão binária do género (isto é, delimitado a duas categorias, masculino ou feminino) como uma verdade absoluta por parte da psicologia, que se pode traduzir na utilização de noções restritivas e preconcebidas de género com pessoas TGNC. Além disso, muitas vezes estas crenças levam à utilização de generalizações durante o processo psicoterapêutico, assumindo uma homogeneização das experiências e vidas de pessoas TGNC e, portanto, desrespeitando a diversidade que estas vidas corporalizam e experienciam entre si (Elder, 2016; Matsuno, 2019; Mizock e Lundquist, 2016). É crucial respeitar e aceitar as especificidades de todos os processos, seja com pessoas TGNC que encontram legitimação no binário de género, seja com pessoas TGNC que encontram legitimação fora do binário de género, já que, como facilmente se compreende, generalizações e expectativas rígidas são danosas para o sucesso psicoterapêutico. Contudo, mesmo quando as/os psicólogas/os entendem que há uma infinidade de identidades e expressões de género além do binário de género (Richards et al., 2016; Teixeira e Carneiro, 2018), mantêm suposições binárias incorporadas na sua abordagem, por exemplo, assumindo uma noção de transição única e binária, em que se impõe às pessoas que se identificam como TGNC uma transição social e/ou médica normativa (Dickey e Singh, 2017).
Estas abordagens promovem, assim, inúmeras situações de invalidação das experiências de pessoas TGNC, que podem incluir: evasão, preconceito interpessoal, desânimo, recusa em levar a sério as pessoas e recusa em usar os pronomes de género com os quais as pessoas se autoidentificam (McCullough et al., 2017). Continuam, portanto, a existir psicoterapeutas que conduzem um processo psicoterapêutico como se a identificação de uma pessoa como TGNC fosse um problema a ser corrigido, estigmatizando estas identificações de género como uma doença mental a ser tratada e até como causa de todos os problemas que são abordados em consulta (Hilário, 2020; Linander et al., 2020; Mizock e Lundquist, 2016; McCullough et al., 2017; Dickey e Singh, 2017a). Importa também alertar para relatos de práticas de gatekeeping, que surgem de uma abordagem transnegativa: várias pessoas TGNC relataram ter experienciado que o processo psicoterapêutico passou por um foco no papel do psicoterapeuta no controlo do acesso a recursos médicos afirmativos de género (Elder, 2016; Mizock e Lundquist, 2016). Estes profissionais mantêm as pessoas TGNC em acompanhamento por mais tempo do que o necessário, muitas vezes perpetuando uma abordagem patológica e binária da identidade TGNC (Dickey e Singh, 2017; Linander et al., 2020).
Em contrapartida, uma intervenção transafirmativa pretende constituir-se como uma abordagem de validação e aceitação de pessoas TGNC, assim como a defesa e educação de outras pessoas sobre as suas preocupações e desafios sociais (Fassinger, 2017). As abordagens psicoterapêuticas transafirmativas constroem um lugar de validação e afirmação - nunca patologizando - das identificações como TGNC, sendo crucial que as/os psicoterapeutas sejam formadas/os no sentido de compreender as experiências de discriminação e marginalização de pessoas TGNC (Dickey e Singh, 2017; McCullough et al., 2017). Importa realçar dois níveis de particular relevo para uma intervenção transafirmativa: a relação psicoterapêutica em si e as/os psicoterapeutas assumirem posições públicas comprometidas com as necessidades das pessoas TGNC (McCullough et al., 2017).
Nas suas narrativas, as pessoas TGNC com mais idade e com experiência com processos psicoterapêuticos advertem que encontrar um/a psicoterapeuta informado/a sobre práticas transafirmativas não é suficiente, e valorizam mais a aliança entre si e a/o psicoterapeuta; caso não se forme essa aliança, aconselham a procura de um/a novo/a profissional (Elder, 2016). Para a construção desta relação é crucial que a/o psicoterapeuta exiba empatia e compreensão, empoderamento e transparência quanto ao seu conhecimento sobre as temáticas e vivências de pessoas TGNC (McCullough et al., 2017; Elder, 2016). Uma relação psicoterapêutica transafirmativa deve refletir sentimentos de conexão e confiança entre os intervenientes, para a construção de um lugar psicoterapêutico de conforto interpessoal, partilha aberta, aceitação, cuidado e suporte. É de salientar que um fator promotor da construção deste lugar é a utilização, por parte do psicoterapeuta, de uma linguagem de afirmação promovida por pessoas TGNC (McCullough et al., 2017; Elder, 2016). É também de particular relevância reforçar ligações entre as/os psicólogas/os afirmativas/os de pessoas TGNC e as/os profissionais afirmativas/os de pessoas TGNC de outras disciplinas; estas ligações facilitam a consciencialização e o conhecimento de mais serviços afirmativos desta população (Dickey e Singh, 2017a).
Uma abordagem apenas pode designar-se transafirmativa se incluir esse comprometimento público que implica apoiar os direitos de pessoas TGNC, criar espaços para que as pessoas TGNC contem as suas histórias e atuar com e em nome destas pessoas para ajudar a reduzir barreiras e danos sistémicos (Fassinger, 2017). Alguns exemplos deste comprometimento público por parte das/os psicoterapeutas, relatados por pessoas TGNC, incluem: aprender sobre as preocupações das pessoas TGNC; adotar uma abordagem de justiça social na intervenção; e ajudar a educar outras pessoas na eliminação de barreiras sistémicas para as pessoas TGNC. Quando um/a psicoterapeuta mostra, visivelmente, o seu apoio a pessoas TGNC na comunidade, estas pessoas sentem--se mais compreendidas e apoiadas (Elder, 2016; Mizock e Lundquist, 2016; Dickey e Singh, 2017; McCullough et al., 2017).
Apontamentos conclusivos sobre a intervenção psicoterapêutica crítica com pessoas TGNC
Partindo de um posicionamento construcionista social (Berger e Luckman, 1966; Gergen, 1999; Nogueira, 2001), entende-se que qualquer identidade se inscreve no quadro de construções sociais, criado para categorizar pessoas e experiências de subjetivação que escapam à uniformização (Foucault, 1999 [1976]; Butler, 1990; Fassinger, 2017). Este sistema, que patologiza identidades/identificações TGNC por desafiarem os limites do sistema binário de sexo/género, sobrevive muito eficazmente ao persuadir estas pessoas de que são elas as “responsáveis” e de que são elas que têm o problema (Parker, 1999). Uma crítica ao essencialismo identitário permite, precisamente, libertar o sujeito desses limites (Butler, 2004; Foucault, 1984 [1979]). Neste sentido, qualquer sistema - em particular um sistema de intervenção psicoterapêutica - que dependa de interações com base em identidades socialmente construídas é potencialmente problemático, uma vez que se baseia em construções temporais, históricas e culturalmente contingentes (Fassinger, 2017). Para olharmos criticamente para a psicologia nas suas vertentes psicoterapêuticas, é crucial refletir sobre a necessidade de integrar noções de poder e de subjetividade e recorrer a pontes entre as mudanças socio-estruturais e o trabalho psicoterapêutico, numa exigência que inclui atender criticamente à mudança ou, pelo contrário, à estagnação do discurso psicológico (Moita, 2006; Parker, 1999).
Importa, neste momento de reflexão final, questionar: apesar de, aparentemente, a formação psicológica sobre pessoas TGNC ter aumentado na última década (Dickey e Singh, 2017), será que esta tem reiterado noções essencialistas, identitárias e binárias de género? Será que estas formações têm valorizado a aprendizagem sobre a necessidade de um comprometimento público quanto a questões relacionadas com pessoas TGNC? Estaremos aqui em presença da problemática de estas pessoas sentirem que são remetidas para o que se pode chamar, de acordo com Rodrigues (2016), de um “não-lugar”? Torna--se urgente dar resposta a estes questionamentos e assegurar que as formações disponíveis são baseadas em conhecimento científico atual, transafirmativas e, ainda, que incluem as pessoas TGNC na sua conceção. Contudo, no presente, é escassa a investigação realizada em Portugal sobre a intervenção específica com esta população e dedicada a explorar e avaliar os planos educativos/formativos específicos sobre as vivências e experiências de pessoas TGNC.
A contínua formação e atualização de conhecimento, de forma a acompanhar os avanços críticos a nível teórico e empírico, desenvolverá as competências dos profissionais para as práticas psicológicas transafirmativas (Dickey e Singh, 2017). Contudo, é necessário ir mais longe; em particular, tendo em conta que várias/os profissionais com formação e experiência continuam a ter uma abordagem focada na problematização das identidades/identificações TGNC, sem questionar nem problematizar a transfobia e o seu impacto, direto e indireto, nessas pessoas. A psicologia deve reclamar para si mesma o combate à injustiça social (Parker, 2007; Teo, 2012), designadamente quando é divulgada e imposta por pretensos/as especialistas, tendo então de enquadrar argumentos políticos e defender perspetivas contributivas para a mudança radical destas tradições opressivas e essencialistas (Parker, 2007).
As/os psicólogas/os por vezes ignoram o impacto dos desequilíbrios de poder, em particular num processo psicoterapêutico, fazendo assim do lugar psicoterapêutico um contexto de exercício de poder no qual se omite o poder de quem procura a intervenção (Foucault, 1999 [1976]; Parker, 1999). O papel da/o psicóloga/o requer a não imposição do “saber/poder especialista” (Foucault, 1999 [1976]), principalmente quando se intervém com populações às quais histórica e reiteradamente são retirados o poder, o lugar e a possibilidade de autodeterminação. Como é possível perceber neste ensaio bibliográfico, continua a ser frequente os/as profissionais utilizarem o poder do seu pretenso saber especialista para determinar a legitimidade das identidades/identificações TGNC, o que leva muitas destas pessoas a recusarem ou adiarem a procura de apoio psicológico, e outras a abdicar dos seus processos individuais de subjetivação em prol da assimilação promovida nestes contextos, de forma a facilitar o acesso aos serviços e procedimentos legais e/ou médicos. Assim, estas/es profissionais da psicologia assumem o papel de determinar as vontades e identidades das pessoas TGNC, desconsiderando a autodeterminação dos seus corpos e identidades/identificações.
As pessoas TGNC apresentam contributos indispensáveis para o desenvolvimento de planos de intervenção culturalmente sensíveis a estas populações com vivências sociais desafiantes. Assim, um posicionamento humanizado desmistifica o processo: este reposicionamento do poder da “autoridade” profissional não significa que as/os profissionais não têm nada a oferecer ou que se devam tornar invisíveis para que as pessoas TGNC se tornem visíveis; significa que o diferencial de poder, predefinido por normas culturais, pode ser superado pela prática da humildade (Prilleltensky, 1999) e pela dedicação à construção de redes de solidariedade e de processos humanizados e humanizantes.