O sociólogo José Machado Pais, 6.º Diretor da Análise Social, reflete de forma retro e prospetiva sobre a Revista, considerando que os marcos fundacionais (análise crítica da realidade social, rigor metodológico, princípios éticos, pluralismo disciplinar, metodológico e teórico) se vêm consolidando ao longo do tempo num esforço coletivo de compromisso institucional. Entende que o futuro da Análise Social depende essencialmente da sujeição dos padrões de qualidade a uma ética de responsabilidade, refletida em políticas editoriais. E antevê a pertinência de abordagens em domínios como os da bioética, da biopolítica, e da saúde pública, pela sua relevância social e pelo seu impacto público.
ISABEL FREIRE__Em 1976 publicou o seu primeiro artigo na Análise Social. 29 anos depois, assumiu o cargo de diretor. Posso pressupor que esta publicação influenciou o seu crescimento enquanto cientista social?
JOSÉ MACHADO PAIS__Essa publicação resultou de um trabalho de grupo desenvolvido no âmbito de uma cadeira de História, lecionada por Vasco Pulido Valente, na licenciatura de Economia do ISCTE. Estávamos no rescaldo da revolução do 25 de Abril de 1974. Enquanto jovens universitários, desejávamos saber qual a natureza do regime deposto. Aproveitámos as circunstâncias para realizar um estudo sobre a Campanha do Trigo, uma das mais impactantes iniciativas do Estado Novo. Depois aconteceu algo fortuito. Duas ou três semanas após a entrega do trabalho, Vasco Pulido Valente falou-me da possibilidade de o publicar na Análise Social. Dei a boa nova aos meus colegas de grupo e tão entusiasmados ficámos que dois anos depois publicaríamos um novo artigo sobre a Campanha do Trigo na Análise Social, desta feita sobre os seus aspetos políticos, ideológicos e institucionais, contando com o precioso apoio de Manuel Villaverde Cabral.
Ainda enquanto estudante universitário, viria a publicar com João Ferreira de Almeida e Manuel Villaverde Cabral um conjunto de Materiais para a História do Advento do Fascismo em Portugal. Nessa altura, continuava a questionar a natureza do regime saído do golpe militar de 1926. Seria fascismo, ou outra coisa qualquer? Algumas teorias então em voga associavam as ditaduras surgidas entre as duas Grandes Guerras ao desenvolvimento repentino e assimétrico do capitalismo. Porém, as estatísticas económicas disponíveis não eram completamente esclarecedoras. Segui outro caminho. Interessava-me encontrar respostas locais para perguntas globais. Sem rejeitar influências da Micro-História e da L’ École des Annnales, o que me mobilizava era a exploração do macro através do micro, era encontrar um trilho metodológico que me permitisse perscrutar o social através do quotidiano. Pesquisando os submundos da prostituição e da Lisboa boémia do século XIX e do início do século XX, descobri que esses submundos poderiam ser tomados como uma escala de análise de processos económicos e sociais de natureza mais vasta. Tomando um marco temporal de longa duração, encontrei significativas mudanças nas relações entre prostitutas, fadistas, chulos, marialvas e proxenetas, personagens centrais da Lisboa boémia de então. As sociabilidades boémias não eram imunes às dinâmicas económicas em curso. Os primeiros resultados desta pesquisa foram apresentados num colóquio organizado pelo GIS (Gabinete de Investigações Sociais), em 1981, na Fundação Calouste Gulbenkian, sobre A Formação de Portugal Contemporâneo. Fiquei surpreendido com uma extensa reportagem do semanário Expresso sobre os achados da pesquisa, posteriormente publicados na Análise Social e, em livro, pela Editorial Querco.
A atração pela pesquisa histórica nunca me abandonou. Aliás, a maior parte dos livros que publiquei inscrevem-se no âmbito da história cultural. Pensando na minha trajetória académica, por vezes dou comigo a refletir sobre os rumos do passado e acabo por questionar o que poderia ter acontecido se o percurso inicial tivesse sido diferente. Provavelmente, se não tivesse tido a oportunidade de trabalhar com quem trabalhei e de conhecer o ambiente tão cientificamente estimulante do GIS, a minha trajetória de vida poderia ter seguido outro rumo. As minhas primeiras publicações na Análise Social foram determinantes para a descoberta da pesquisa como vocação.
ISABEL FREIRE__Foi o 6.º Diretor da Análise Social, entre 2005 e 2007. O que sentiu que podia ser objeto de mudança? E o que sentiu que precisava de se manter exatamente como estava?
JOSÉ MACHADO PAIS__Quando assumi a direção da Análise Social, tinha plena consciência da valiosa herança recebida e da responsabilidade inerente. Entre o havido e o haver, assaltaram-me algumas dúvidas sobre o que fazer, mas não tinha dúvidas de que a herança recebida deveria ser preservada em toda a sua riqueza e tudo o que pudesse ser feito para mudar alguma coisa deveria ser muito bem ponderado com os meus colegas do conselho de redação.
Por coincidência, quando tomei posse da direção da Revista, tinha acabado de ler um artigo de Gilberto Velho sobre o futuro das ciências sociais e a importância de seu passado. Desafiando-nos a olhar para o futuro sem perder de vista o passado, o antropólogo brasileiro identificava duas fases nesse processo evolutivo. A primeira fase caracterizava-se por ser mais universalista e abrangente, propícia a cruzamentos interdisciplinares. Essa abertura identificava-a em sociólogos clássicos, como Durkheim, Weber, Simmel ou Schutz, e em antropólogos como Gregory Bateson, da Escola de Palo Alto - um notável construtor de pontes entre as ciências sociais e biológicas, passando pela Linguística, a Semiologia, a Psiquiatria e a Cibernética. A segunda fase caracterizava-se por um fechamento das unidades disciplinares que em nada favorecia o diálogo entre elas. Gilberto Velho reconhecia claramente a necessidade de uma reflexão sobre as novas possibilidades de cooperação em novos domínios de pesquisa perante uma reorganização das fronteiras disciplinares cuja fluidez aparecia associada a uma maior comunicação e a um maior trânsito da produção científica.
Algumas décadas antes, nas suas Questões Preliminares sobre as Ciências Sociais, o Professor A. Sedas Nunes já tinha plena consciência do cenário em que se jogava o futuro das ciências sociais. Identificou os entraves que o ensombravam, ao constatar que, à unidade do real, se contrapunha uma pluralidade de ciências sociais francamente sobrelevada pela sua disjunção. A criação do GIS, dando origem, em 1982, ao Instituto de Ciências Sociais (ICS), criava condições para um diálogo desejável entre diferentes perspetivas disciplinares. Todas estas ideias ecoavam em minha cabeça quando assumi a direção da Análise Social. Olhava para o seu futuro à luz de aprendizagens passadas. O que estas mostravam era que os números temáticos sobre a realidade portuguesa eram dos que alcançavam maior sucesso e impacto nos media. Alguns deles resultaram de colóquios organizados pelo GIS/ICS. Recordo, desde logo, os dois volumes sobre a “A formação de Portugal contemporâneo 1900-1980”; o volume sobre as “As mudanças sociais no Portugal de hoje” ou o volume sobre as “Mulheres em Portugal”, com cerca de três dezenas de comunicações - todas, exceto uma, apresentadas por mulheres.
A aposta que no meu mandato se fez na publicação de números temáticos não foi uma inovação, apenas um objetivo que correspondeu ao reforço de uma boa prática que vinha do passado. Relembro que o primeiro número temático, dedicado aos “Aspectos sociais do desenvolvimento económico em Portugal”, foi publicado em 1964, um ano depois do aparecimento da Revista. No auge das manifestações estudantis do Maio de 1968 - com repercussões em toda a Europa, Portugal incluído -, a Análise Social não deixou escapar a oportunidade para avançar com uma profunda reflexão sobre temáticas candentes da sociedade portuguesa de então, como a educação, a crise e a democratização do ensino superior, o papel da universidade na formação dos dirigentes ou a situação e os problemas do ensino de ciências s ociais em Portugal. Estas múltiplas reflexões foram publicadas em dois extensos volumes sobre A Universidade na Vida Portuguesa . No meu mandato, seguiu-se um trilho que vinha de trás, procurando-se abrir mais espaço a colaborações vindas do estrangeiro, em particular de países de língua portuguesa. Ademais, para além do intento de alcançar uma multidimensionalidade analítica e disciplinar na abordagem de temáticas consideradas relevantes, um outro objetivo a alcançar era o da projeção internacional da Revista.
ISABEL FREIRE__Em 2011, na altura da comemoração dos 200 números da Análise Social, João de Pina-Cabral escreveu que a época fundadora da publicação se situa entre 1963 e 1988, e a época de consolidação entre 1988 e 2011. É neste segundo período que dirigiu a Revista. O que destacaria do seu trabalho e o do conselho de redação para essa consolidação?
JOSÉ MACHADO PAIS__Sim, podemos falar de uma época de consolidação, que resultou do processo da passagem do GIS ao ICS, com a sua integração na Universidade de Lisboa, concretizada em 1982. No meu mandato, em comprometida colaboração com os meus colegas do conselho de redação, deu-se mais um contributo para essa consolidação no seguimento de uma tendência que vinha de trás e que continuou a reforçar-se até ao presente. Essa tendência continuará, certamente, a projetar-se no futuro. O que mais destacaria da minha passagem pela direção da Análise Social? Talvez o esforço para a projetar internacionalmente. Um primeiro passo foi a constituição de um conselho consultivo com investigadores de diferentes áreas disciplinares de prestigiadas universidades estrangeiras: do Reino Unido, de França, de Espanha, de Itália, da Alemanha, da Holanda, da Bélgica, da Suíça, do Brasil e dos EUA. A Revista passou a contar com a colaboração de nomes internacionalmente conhecidos como Raymond Boudon, Philippe Schmitter, David Goldey, Raymond Carr, Michel Dobry, Manuela du Bois-Reymond, Michel Bozon, Gilberto Velho, Giovanni Levi, Carles Feixa, Bela Feldman-Bianco ou Richard Gunther. Alguns meses depois, a Análise Social lograva uma posição de relevo na classificação internacional de revistas da plataforma brasileira da Capes, atingindo o topo nas áreas de Sociologia, de História, e como revista interdisciplinar, além do seu bom posicionamento nas áreas de Antropologia e de Ciências Políticas.1
Outro passo importante para a projeção internacional e reconhecimento do valor da Análise Social foi a sua indexação que, depois de muitos emperros burocráticos, se iniciou na SciELO e na EBSCO. Como era exigido que Revista estivesse online, tomou-se a decisão de apenas se disponibilizar artigos publicados há mais de um ano para não afetar as vendas em versão impressa que, aliás, estavam em decréscimo. Os números temáticos eram os mais vendáveis, mas nem todos, e também não desejávamos transformar a Análise Social numa revista exclusivamente temática. Ou seja, as decisões editoriais nunca estiveram subordinadas a uma lógica de mercado, mas as estratégias de marketing não deveriam ser descuradas. Por exemplo, um número temático sobre “Futebol globalizado” esgotou imediatamente após ser editado. Porém, o seu lançamento realizou-se num momento ideal, justamente na véspera de um campeonato mundial de futebol, tendo sido acompanhado de várias iniciativas, como a organização de um seminário e a realização de entrevistas em órgãos de comunicação social. Num esforço adicional para a internacionalização, também se equacionou a edição online da Revista em inglês com uma periodicidade anual, ou com artigos originais ou com uma seleção de artigos publicados cada ano em português. Mas a ideia não foi adiante.
ISABEL FREIRE__Havia à época disciplinas, metodologias e abordagens científico-sociais sub-representadas e que tenha procurado trazer para as páginas da Análise Social?
JOSÉ MACHADO PAIS__O que mais desejava era que a Análise Social publicasse artigos inovadores, reflexões profundas sobre temáticas socialmente relevantes que pudessem ajudar a clarificar algumas das suas obscuridades. Refiro-me a fenómenos e a problemáticas sociais emergentes. Porém, a relativa ênfase no presente não deveria implicar um desprendimento do passado, pelo contrário. Aliás, preocupa-me que algumas pesquisas centradas no presente persistam em o analisar ignorando a sua historicidade. Sendo uma revista pluridisciplinar, a Análise Social deveria continuar aberta a essa diversidade. Todavia, notei alguma carência de contributos provindos da área da Economia em temas da atualidade, lacuna que ainda hoje persiste. É certo que a área da História Económica sempre teve uma considerável presença na Revista, mas recentemente teve duas baixas significativas com a jubilação de Jaime Reis e o falecimento de Pedro Lains. Na fase da sua fundação, vários economistas, sensíveis às dinâmicas sociais associadas ao desenvolvimento económico, deram um contributo valioso para a afirmação da Análise Social. Alguns deles foram meus professores como Adérito Sedas Nunes, Alfredo de Sousa ou Mário Murteira. Com eles aprendi que muitos paradoxos da economia apenas se conseguem solucionar convocando variáveis de natureza extraeconómica.
Mais do que a sub-representação de algumas áreas disciplinares, o que lamentava era a relativa endemicidade das existentes, já que pouco dialogavam entre si. Não quer isto dizer que esteja a desvalorizar a singularidade ou a autonomia de cada uma delas, estou apenas a sugerir que não há razão para que se encerrem nas suas clausuras conceptuais ou teóricas. Entretanto, a situação melhorou com a aprovação, em sede do conselho científico do ICS, de uma pluralidade de linhas temáticas e de grupos de investigação que têm proporcionado uma maior aproximação entre diferentes saberes disciplinares. O trabalho científico inovador desenvolve-se cada vez mais em condições trans-epistémicas. No cruzamento de distintas perspetivas de análise surge frequentemente uma tensão criativa. Também aspirava a que a Análise Social pudesse acolher artigos com novas perspetivas teóricas e novas abordagens metodológicas. No entanto, também me preocupava que a Revista pudesse ser invadida por metanarrativas perdidas nos seus labirintos retóricos ou em modas epistémicas ricas em especulações, mas pobres em fundamentações.
ISABEL FREIRE__Pedro Lains (1959-2021), o diretor da Análise Social que lhe sucedeu (2008-2010), defende que, graças ao conselho de redação dirigido por si, as taxas de rejeição de artigos que se previam para os anos seguintes aproximar-se-iam de padrões das revistas internacionais de topo com sistema de referee. Que estratégia esteve na base desta mudança?
JOSÉ MACHADO PAIS__O incremento das taxas de rejeição dos artigos submetidos à Análise Social para publicação nunca constituiu um objetivo per se do conselho de redação que integrei. Essa tendência foi corolário de uma única preocupação - a de garantir ao máximo os níveis de qualidade da Revista. Assegurado este objetivo, tudo o mais surgiu por efeito ou por acréscimo. O contexto também foi favorável. A democratização do acesso ao ensino superior - com uma leva intensificada de licenciados, mestres e doutorados - incrementou o número de propostas recebidas para publicação. Esporadicamente, também surgiam propostas de publicação redundantes, em que o artigo proposto já havia sido publicado com ligeiras variações. Esta estratégia de “fazer render o peixe”, como sói dizer-se - em inglês usa-se a expressão salami slicing tactics -, claro sintoma da pressão para publicação, já então se manifestava.
A obsessão produtivista - publish or perish -, levando a que a quantidade seja por vezes valorizada em detrimento da qualidade do que se publica, é uma tendência que persiste. Acresce que a avaliação de desempenho das carreiras académicas acabou por intensificar a valorização de artigos publicados em revistas com arbitragem científica, bem posicionadas nos respetivos rankings, sobretudo à escala internacional. Ora, em Portugal a Análise Social era já então uma das mais bem classificadas revistas de ciências sociais nos rankings da especialidade. O desejo de publicação numa revista de reconhecido prestígio avolumou a quantidade de submissões e, consequentemente, incrementou a percentagem de rejeições dada a oferta excedentária.
ISABEL FREIRE__Atualmente, a Análise Social segue os princípios éticos de publicação baseados no Código de Conduta e Normas de Boas Práticas para Editores de Revistas do Committee on Publication Ethics (COPE), que promove a reflexão sobre questões diversas, nomeadamente sobre plágio, falsificação de dados, definição de co/autoria, gestão de conflitos de interesse e falta de conduta na condução da investigação. Em termos éticos de publicação, quais eram as principiais preocupações que se colocavam à sua Direção?
JOSÉ MACHADO PAIS__As preocupações de ética editorial existiam, todavia não estavam tão formalizadas ou regulamentadas como estão hoje. Os compromissos éticos nos processos de investigação, publicações incluídas, registaram uma significativa consolidação ao longo dos últimos anos. Por exemplo, outrora os procedimentos metodológicos recomendavam o respeito pela autonomia dos indivíduos convidados a participar nas pesquisas, mas o seu consentimento informado e voluntário era correntemente baseado num acordo verbal orientado por uma “ética ordinária”, ideia usada por Veena Das para se referir a condutas consensualizadas nas tramas da vida quotidiana. Hoje, esses compromissos devem ser passados ao papel e assinados. Aliás, cada vez mais, as diretrizes éticas exigem certificações formais, como acontece quando é pedida uma declaração de autoria que certifique a originalidade do artigo proposto para publicação e, no caso de um artigo em coautoria, a percentagem de contribuição de cada autor na produção do mesmo. Por outro lado, as políticas de ciência aberta, viabilizando a disponibilização e a partilha do conhecimento produzido, justificam que aos/às autores/as seja pedida uma declaração concedendo os direitos de publicação do artigo à revista que o publica, usando-se para o efeito uma licença da Creative Commons que, para além do reconhecimento da autoria, garante o reconhecimento da publicação original nessa revista.
Na vigência do meu mandato, a Análise Social sempre teve por lema preocupações de natureza ética e deontológica no processo editorial da revista, espelhadas em princípios de transparência e de boas práticas, desde logo na validação da seriedade dos protocolos de investigação, do rigor metodológico e das fundamentações analíticas, bem como da integridade, da fiabilidade e da imparcialidade dos resultados de pesquisa dos artigos propostos para publicação. Nos últimos anos, registaram-se avanços importantes na identificação e na gestão das responsabilidades de agentes envolvidos na produção de revistas científicas: autores/as, editores/as, conselhos de redação, revisores/as e avaliadores/as. O pressuposto da boa-fé nem sempre é garantia de que tudo corra bem, daí a regulamentação dos protocolos éticos e o crescente uso de software para a deteção de textos plagiados. Infelizmente, a pressão para publicar tem gerado uma poluição produtiva. Na Análise Social, a contrafação do conhecimento sempre foi uma preocupação dominante. A ética permanentemente em busca de um ethos.
ISABEL FREIRE__Na edição da Análise Social em que se comemoram 200 números (em 2011), Jorge Vala lembra que a fundação da Revista quase se confundia com a fundação das ciências sociais em Portugal, e que o percurso das ciências sociais no nosso país estava bem refletido nos artigos publicados. Como vê o lugar da Análise Social no futuro breve da publicação científica em Portugal? E que passos dar para continuar a refletir o percurso das ciências sociais?
JOSÉ MACHADO PAIS__Nos seus primeiros anos de existência, a Análise Social refletia efetivamente uma boa parte do desenvolvimento das ciências sociais em Portugal. Poucas revistas existiam de pendor sociológico ou antropológico. Lembro-me da Revista Economia e Sociologia, da Universidade de Évora, antes designada Estudos Eborenses. Hoje, o panorama é muito diferente. Nas últimas décadas surgiram várias e boas revistas de ciências sociais que, no fundo, refletem a expansão do ensino universitário, também na área das ciências sociais. Por outro lado, as temáticas de pesquisa e as respetivas abordagens teóricas e metodológicas ampliaram-se de tal maneira que dificilmente seriam representadas, todas elas, em uma única revista.
O que se espera da Análise Social é que continue a refletir o que de melhor se publica em Portugal no domínio das ciências sociais e que consolide o seu prestígio a nível internacional. Não tenho razões para duvidar do futuro da Revista. Mas não basta uma ética da convicção para assegurar o seu futuro. Este depende fundamentalmente dos padrões de qualidade subjacentes a uma ética da responsabilidade, no sentido em que Max Weber a definiu, isto é, atenta às consequências das ações que politicamente se tomem, ou seja, à eleição dos meios mais adequados para alcançar os objetivos desejados. Esta ética da responsabilidade, refletida em políticas editoriais, é o garante do futuro da Análise Social.
ISABEL FREIRE__Olhando para a Análise Social no mundo global da ciência nos nossos dias, que problemas ou questões editoriais lhe parecem mais desafiantes?
JOSÉ MACHADO PAIS__O mundo global da ciência é um dos submundos do mundo globalizado. O que se perscruta no mundo contemporâneo da globalização é o auge de uma labilidade do social a larga escala caracterizada por conexões, mas também por cisões, fraturas, polarizações, descontinuidades. Daí o crescente apelo às teorias da complexidade. Tudo parece fluir numa inaudita teia de conexões: fluxos de capital, de mercadorias, de pessoas, de informação e de conhecimento. A circulação do conhecimento é uma condição necessária para a produção científica. Um dos desafios editorais que se coloca à Análise Social é o de assegurar a melhor difusão possível dos artigos que publica, independentemente dos formatos - impressos, digitais ou audiovisuais. Deram-se passos importantes ao longo dos últimos anos que culminaram na disponibilização, em acesso aberto, de todos os volumes da Revista até hoje publicados. Em consequência, registou-se um aumento significativo das consultas online. Creio que, atualmente, a Análise Social é muito mais lida fora de Portugal do que no próprio país.2 Políticas editoriais deste alcance constituem um valioso contributo para a internacionalização do conhecimento, objetivo que tem vindo a ser concretizado, mas que deve continuar em mira, consolidando desse modo o prestígio da Revista.
Outro desafio editorial mais arrojado - que se coloca às próprias instituições universitárias - é o do contributo que possa ser dado à promoção do direito à investigação como expressão de um direito social. O exercício da cidadania não se circunscreve a direitos clássicos, como o direito ao voto. Podemos recolher narrativas abundantes sobre o direito ao voto, à palavra, ao trabalho, à preguiça, à privacidade, ao ensino ou à informação. Mas no universo dos direitos humanos há muito mais por explorar, como é comprovado pelos recentes debates éticos em torno da clonagem, da eutanásia, da inteligência artificial ou de novas formas de genética. Como bem sustentou Arjun Appadurai em The Future as Cultural Fact, num tempo em que a desinformação e as notícias falsas pululam na ambígua sociedade de informação, urge assumir a investigação como um direito social, isto é, um bem traduzível na capacidade generalizada de se procurar conhecimento de forma disciplinada para o exercício de uma cidadania bem informada.
Que estratégias de produção e de difusão do conhecimento se poderão desenhar na persecução desse objetivo? Começando pela divulgação do conhecimento produzido, não surpreende que no ICS já muito se tenha feito neste domínio, pois a Ciência Aberta tem sido uma prioridade do desenvolvimento estratégico da instituição. Quanto à produção do conhecimento, estaremos provavelmente no limiar de um considerável salto qualitativo nos desafios colocados pela metodologia da investigação-ação. Bem mais recentes, as metodologias da horizontalidade, ao apelarem a uma coprodução de conhecimento que leva a que os investigados se transformem em investigadores, suscitam oportunidades para o exercício do direito à investigação, tomada esta não apenas como fonte de informação, mas no sentido de prática dialógica de produção de conhecimento, particularmente em estudos de pendor antropológico. Em que moldes é que a Análise Social poderia contribuir para este desafio? Talvez no domínio da extensão universitária, em estágios de verão dirigidos a estudantes do ensino secundário, desenvolvidos no âmbito do programa Ciência Viva. A Análise Social poderia ser o mote para a constituição de uma oficina de artes de investigação, tendo em vista o esboço de artigos sobre temas produzidos por diferentes grupos de estudantes. Ensejo para que, na lógica de uma hermenêutica coletiva, pudessem refletir sobre circunstâncias e interrogações que suscitam um objeto de estudo, hipóteses de investigação, opções metodológicas, criatividade teórica, dilemas éticos e artes de escrita na estruturação de um artigo e na clareza do encadeamento de ideias ou da exposição dos argumentos analíticos.
ISABEL FREIRE__Em 2006 (ano em que foi diretor da Análise Social), Hermínio Martins e José Luís Garcia congratulavam-se, embora surpreendidos, por aquele ser o primeiro número da Revista dedicado à tecnologia. A ausência do tema era à época, segundo argumentam, recorrente em outras revistas científicas, mesmo internacionais. Que temática(s) de vasta importância nos nossos dias se mantêm insuficientemente presente(s) (ou ausentes) das páginas da Análise Social?
JOSÉ MACHADO PAIS__A temática das tecnologias modernas, afortunadamente chegada à Análise Social, tem suscitado e continuará a suscitar problemáticas desafiadoras numa sociedade crescentemente globalizada e atravessada por múltiplas mobilidades. Segundo dados de um recente inquérito às práticas culturais dos portugueses, realizado pelo ICS com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, quase todos os inquiridos dos 15 e 34 anos (entre 99 e 100%) dizem usar a Internet. Por outro lado, 89% da totalidade dos internautas referiram o telemóvel como dispositivo preferencial de acesso à Internet, assegurando desse modo uma conectividade permanente. Ou seja, os contactos à distância tornaram-se muito mais próximos e omnipresentes, acentuando-se uma compressão do tempo-espaço de que nos fala David Harvey. Estes avanços tecnológicos repercutem-se em rápidas mudanças económicas, sociais e culturais, como o esbatimento das fronteiras cronotópicas do social, a expansão do comércio eletrónico, o incremento das sociabilidades online ou o uso das redes virtuais em formas emergentes de participação cívica e política. Pesquisas sobre a colonização ou a libertação das nossas vidas pelas tecnologias ou sobre a emergência de novas formas de exercício da cidadania são bem-vindas. Por outro lado, a problematização do futuro não pode deixar de ser equacionada quando se discutem os efeitos da globalização tecnológica: quer no modus vivendi contemporâneo, quer nas políticas educativas, económicas, demográficas ou culturais. Com efeito, há temas que pela sua relevância social e impacto público justificam a sua presença na Análise Social, até para que o seu debate não fique circunscrito à esfera ideológica. Refiro-me, por exemplo, a pesquisas no domínio da bioética com recurso às engenharias genéticas. No domínio do biopolítico pense-se nas querelas sobre o comércio sexual ou o uso do corpo procriador da mulher com as chamadas “barrigas de aluguer”. A saúde pública é um tema de vasta importância nos dias de hoje e poderá vir a ter uma maior presença na Análise Social que, aliás, em 2003 produziu um interessante volume temático, coordenado por João Lobo Antunes, sobre os “novos rostos da saúde”. Hoje, a saúde e o Sistema Nacional de Saúde encontram-se ante novos desafios e ameaças, merecendo amplas reflexões e debates.
Estou a falar de pesquisas em torno de dilemas da sociedade contemporânea que se projetam no futuro. Poderia dar outros exemplos, como é o caso das problemáticas relacionadas com os limites do crescimento económico e demográfico. Uma boa parte das ciências sociais hesita em abordar o futuro. Não é o caso da Economia, da Demografia ou da Ciência Política, com alguns estudos de natureza prospetiva. A problemática do futuro também não tem passado ao lado do interesse de alguns historiadores, como Reinhart Koselleck, Yuval Noah Harari ou Jacob Darwin Hamblin. Mesmo os mais críticos em relação a alguns posicionamentos metodológicos da chamada história alternativa ou contrafactual, acabam por estudar hipóteses de investigação na lógica desses paradigmas, pois acham que o conhecimento do que aconteceu robustece-se quando se analisam os futuros não acontecidos.
Outro filão de pesquisas que certamente se ampliará no futuro refere-se aos desafios da sustentabilidade ante os efeitos antropocénicos que incluem mudanças climáticas, desequilíbrios ecológicos, novas cadeias alimentares e tróficas, migrações, relocalizações populacionais e desequilíbrios demográficos. O estudo destas temáticas tenderá a repercutir-se na ecologia dos saberes, muito mais propenso ao diálogo entre ciências sociais e naturais, com destaque para as ciências biomédicas e as engenharias física, ambiental, oceânica, alimentar, agronómica e florestal. Estou em crer que ao mesmo tempo que o futuro é antecipado por novas temáticas e problemáticas de investigação, estas tenderão a reconfigurar o pensamento social, ao constituírem-se num locus de inovações metodológicas e teóricas.
ISABEL FREIRE__A investigadora Sofia Aboim inaugura a presença feminina na Direção da Análise Social. Este é um facto com relevância nesta entrevista?
JOSÉ MACHADO PAIS__É um facto relevante pelo que revela e deixa por desvelar. Não me apraz apenas ver na direção da Revista uma presença feminina. O que me regozija observar é o reconhecimento académico de uma colega cuja trajetória científica, muito valiosa, tenho acompanhado desde os anos 90 do século passado. A Sofia está de parabéns, mas a Análise Social também. O que outrossim me compraz constatar, pelo menos no ICS, é o esbatimento das desigualdades de género. Porém, em muitos domínios da vida social, a persistência dos estereótipos de género continua associada a fortes assimetrias de poder e de status, condicionando o reconhecimento das potencialidades de quem as tem.
ISABEL FREIRE__Se folheasse a Análise Social desde o seu primeiro número, em 1963, até aos nossos dias, como se se tratasse de um folioscópio, que figura em movimento é que os seus olhos veriam?
JOSÉ MACHADO PAIS__O que de mais aliciante encontro num folioscópio é a capacidade de subversão do estático através da sequência. Por vezes observamos a realidade aprisionados às suas figurações estáticas. É o que acontece quando contemplamos uma fileira de volumes da Análise Social em qualquer estante de biblioteca. É também o que ocorre quando, de relance, observamos um mural de gravuras ou figuras rupestres. Aí surge o desafio de desvendar as marcas ocultas do dinâmico no aparentemente inerte. Por exemplo, em temáticas lúdicas da arte rupestre, a expressividade corporal emana de posturas e de gestos associados ao movimento corporal. Sejam elas representações de cenas de caça, danças, simbologias ou ritualidades quotidianas - as figuras rupestres não se submetem docilmente a reproduções estáticas. Elas possuem, em si mesmas, uma força semântica que nos convida a olhar para cada uma delas como parte de um todo dinâmico.
São essas figurações dinâmicas da arte rupestre que me ocorrem quando apelo à memória para representar o percurso da Análise Social. Essas dinâmicas - abrangendo variações estilísticas e temáticas que ocorrem tanto na arte rupestre quanto nas artes de produção da Análise Social - são constitutivas de uma realidade filética, isto é, de carácter tribal. Tenha-se em vista o significado etimológico do termo qualificativo, do grego philetikós, respeitante a tribo. Da mesma forma que os registos rupestres correspondem a códigos culturais partilhados por diferentes tribos, também as revistas académicas refletem linhagens que se vão transmitindo, embora haja uma abertura à mudança. Por isso, os principais marcos fundacionais da Análise Social não foram corroídos com a passagem do tempo. Refiro-me à análise crítica da realidade social, ao rigor metodológico, aos princípios éticos; mas também ao pluralismo disciplinar, metodológico e teórico - atributos que se foram consolidando, num esforço coletivo de compromisso institucional, já que a Análise Social constitui um património emblemático do ICS. Dito isto, persistindo na metáfora do folioscópio ocorre-me outra imagem: uma corrida de estafeta em que o testemunho que passa de mão em mão representa a responsabilidade de publicação de cada novo número da Análise Social. Muita gente envolvida num corre-corre para garantir em tempo útil a produção de cerca de duas centenas e meia de números da Revista ao largo de seis décadas: autores/as, avaliadores/as, diretores/as, membros dos conselhos de redação e consultivos, assistentes editoriais, revisores/as, paginadores/as… Aproveitava para expressar um especial reconhecimento a António Martinho, Clara Cabral e Marta Castelo Branco pelo seu valioso e continuado apoio às edições do Instituto de Ciências Sociais.