Introdução
O diagnóstico que hoje é feito sobre o futuro da nossa vida social indicia que vamos viver numa sociedade capitalista cada vez mais complexa e volátil, em que os conhecimentos e as competências sociais e profissionais que se têm como adquiridos - rotineiros, naturais e institucionais, para garantir confiança (Giddens, 2000) - parecem estar a liquidificar-se (Bauman, 2007a), acompanhando a erosão dos processos socializadores institucionais e das consequentes identidades estatutárias (Dubet, 2002).1 Entende-se, assim, que a complexidade e a incerteza sejam expressões em voga na literatura das ciências sociais, tanto na análise dos processos de regulação da vida social como na interpretação do senso comum quotidiano. Segundo Bauman (2007b), somos cada vez mais estrangeiros entre iguais. Estamos todos sujeitos, em maior ou menor grau, a experiências intersubjetivas de ter de, situacionalmente, saber estar numa relação de maior horizontalidade com “o outro”, vivendo o quotidiano com ele, e, em consequência, temos de saber interpretar melhor as ambivalências das situações da vida diária.
Neste quadro de mudança social, os profissionais que exercem atividades técnicas e intelectuais de prestação de serviços2 são os que mais se debatem com o desafio da possível inadequação da sua educação formal, abstrata e científica - mais apropriada para lidar com evidências empíricas gerais, padronizadas e mais ou menos lineares - face à complexidade e incerteza crescentes. O reconhecimento da existência deste desafio não é novo, pois desde o final dos anos de 1980 que a educação científica dos profissionais academicamente qualificados começou a ser cada vez mais questionada (Schön, 1983), por serem confrontados com situações correntes para as quais não tinham soluções técnicas preestabelecidas pelo acervo de conhecimento científico da respetiva profissão (Jensen, Lahn e Nerland, 2012). Os caminhos a percorrer poderão ser vários (Noordegraaf e Steijn, 2013), mas, em qualquer caso, será necessário desenvolver um conhecimento mais próximo das condições locais dos problemas, para que os destinatários dos serviços se tornem parte da solução, que terá de ser parcialmente improvisada na interação social (Caria e Ramos, 2015).
No contexto das interrogações sobre a legitimidade e a eficácia da ação e do conhecimento formal profissional, temos destacado a importância de se explorarem o sentido e os saberes práticos e experienciais das profissões, sem os reduzir às disposições inconscientes do habitus (Caria, 2003), partindo de uma hipótese, de natureza sociocognitiva, inspirada na problemática da “dualidade da mente sociocultural”3 (Caria, 2017a). Daqui decorre que o tema central deste artigo seja a sabedoria prática (practice wisdom), pois a literatura científica do serviço social indica-a como o principal instrumento conceptual para se poder lidar com a imprevisibilidade das situações e melhor colmatar as limitações do conhecimento abstrato e científico para agir contextualmente (Cheung, 2017; Samson, 2015; Sheppard, 1995; Scott, 1990; Tsang, 2008).
Como veremos em seguida, a sabedoria prática pode ser considerada um saber tácito. Ambos os conceitos têm como referentes os conhecimentos implícitos, apreendidos e usados de forma naturalizada e rotinizada, através dos procedimentos/formas do fazer-dizer, endógenos à intersubjetividade dos quotidianos de trabalho profissional.
Tomar como objeto primeiro de análise a intersubjetividade, os quotidianos de trabalho e os modos naturalizados e implícitos de conhecer supõe afirmar a existência de um enquadramento fenomenológico para este artigo (Schutz, 1962): as coisas da realidade e o curso da ação presente, isto é, do fazer coletivo e contextual da profissão, são indissociáveis da consciência prática e da intersubjetividade inerentes ao dizer situacional da profissão (Caria, 2017b; Caria, Sacramento e Silva, 2018). Para tal, baseamo-nos num estudo etnográfico multilocalizado e de curta duração (Marcus, 1995) sobre a vivência profissional (fazer-dizer em contexto de trabalho) demonstrada por assistentes sociais em diferentes organizações portuguesas de trabalho social, tendo como foco a descrição e interpretação do que estes vão exprimindo como saber próprio na interação social, ao mesmo tempo que agem. Deste modo, procuramos compreender a emergência e as configurações de um saber que permite o encadeado, no presente, de um contínuo sequencial de situações de trabalho variadas, registadas de forma segmentada pela escrita do etnógrafo e objeto de reflexividade prática pelos profissionais, quando comparadas com situações do passado ou esperadas no futuro, consideradas equivalentes (Caria e Sacramento, 2017).
Do tácito à sabedoria prática em serviço social
Os saberes tácitos em serviço social são, sobretudo desde a obra pioneira de Boehm (1958), considerados como sabedoria prática, ainda que a literatura existente sobre o assunto se circunscreva mais a reflexões ensaísticas do que a estudos empíricos (Cheung, 2017; Dybicz, 2004; Imre, 1985; Samson, 2015; O’Sullivan, 2005; Sheppard, 1995, Tsang, 2008). Genericamente, o saber tácito é definido como decorrendo de modos e sentidos de fazer-dizer-pensar dos quais os atores sociais não têm consciência explícita e facilmente racionalizável (Collins, 2010). De forma mais específica, Michael Polanyi caracteriza-o como um conhecimento que é difícil de verbalizar, explicitar e justificar, partindo do postulado de que “we can know more than we can tell” (Polanyi, 2009, p. 4).
O saber tácito nunca se consegue explicar totalmente, não porque existam conhecimentos que por si próprios sejam sempre implícitos, mas porque, para se lhe conferir inteligibilidade, é preciso primeiro ter uma compreensão tácita e contextual do mesmo; ou seja, é preciso, antes, saber usar o conhecimento sem que estejam explicitadas e explicadas regras e/ou princípios para o seu uso (Collins, 2010). Por outras palavras, a compreensão tácita do conhecimento está na capacidade de detetar padrões e regularidades implícitas e parciais, quando se comparam situações de ação, sem que para isso seja necessário ter uma linguagem codificada sobre a realidade, que diga o que fazer-dizer-pensar no momento em que se age. Esta comparação exige a explicitação do primeiro dizer descritivo, aquele que está mais associado ao fazer imediato e situacional (o fazer relatável), pois sem ele nunca se poderá chegar à consciência prática do uso do conhecimento inscrito na experiência profissional acumulada (Caria, 2017b).
Na mesma linha de análise, no amplo balanço teórico-conceptual realizado por Cheung (2017) para o campo específico do serviço social, a sabedoria prática é considerada como intuitiva, tácita e espontânea, configurando um influente dispositivo de perceção, capaz de introduzir nas intersubjetividades que emergem no dia-a-dia profissional moralidades e sagacidades, para, de forma quase automática, se saber como proceder na interação (Schwartz, 2011). Osmond (2006, p. 159) aponta-lhe três grandes características: “difficult to describe knowledge, taken for granted knowledge or tacitly presupposed and silenced knowledge”.
A sabedoria prática não é facilmente aprendida (muito menos no meio académico) e depende, sobretudo, de processos sociais informais e holísticos de construção de saberes e, em particular, das aprendizagens difusas e distendidas do ofício junto de profissionais “mais experientes” e “mais vividos”. A efetiva valorização dos talentos, ações e qualidades dos assistentes sociais no quadro da sabedoria da prática poderá configurar um possível turn crítico, moral, emocional-humanista e criativo, face a uma epistemologia positivista ou racionalista e a um certo fundamentalismo técnico-científico (Chu e Tsui, 2008).
No entender de Klein e Bloom, os saberes tácitos dos assistentes sociais constituem “a personal and value-driven system of knowledge that emerges out of the transaction between the phenomenological experience of the client situation and the use of scientific information” (1995, p. 801). Compreende-se, assim, a perspetiva de Taylor e White, quando afirmam que, apesar da ascensão do managerialismo e da proliferação de mecanismos técnico-burocráticos de regulação da prática profissional desde os anos de 1980, “social work is as much a practical-moral activity as it is a technical-rational one” (2001, p. 37). Aliás, no seu entender, em clara dissonância face às visões objetivistas da realidade, “emotion and moral judgement are central to reason” (2001, p. 41), pelo que a razão e a técnica em serviço social não deixarão de ser alimentadas pelas intuições, emoções, (com)paixões e crenças morais dos seus profissionais.
O estudo etnográfico
Os estudos etnográficos que temos desenvolvido nos últimos 20 anos sobre o conhecimento profissional em contextos de trabalho têm-se revelado decisivos para melhor captar os saberes práticos e experienciais do trabalho profissional. Temos constatado que a presença, a observação, a conversa informal e a participação do etnógrafo junto dos profissionais, nos seus contextos de trabalho, são fundamentais para, no decurso da ação quotidiana (ou imediatamente antes ou depois), os profissionais conseguirem valorizar e serem capazes de desenvolver uma reflexividade prática a partir dos seus saberes, que noutras condições seria quase de imediato esquecida e/ou ocultada, sobretudo se o seu valor legítimo para afirmar o poder da profissão não fosse evidente.
Os dados que analisaremos neste artigo foram recolhidos num estudo etnográfico4 desenvolvido na terceira fase de um projeto de pesquisa mais amplo, sobre o trabalho social profissional em organizações do terceiro setor social do Norte de Portugal, com estruturas internas burocráticas, todas elas tuteladas e financiadas pela política social central do Estado5. Assim, antes de se chegar ao estudo etnográfico, durante mais de um ano colaboraram neste projeto 22 organizações e 63 profissionais de trabalho social (de diversos grupos profissionais, incluindo oito assistentes sociais); foram recolhidos e analisados dados quantitativos e qualitativos, utilizando, para esse efeito, técnicas diversificadas. Em função desta prolongada colaboração, pudemos, com relativa facilidade, perceber quais as organizações que estariam mais abertas a dar a conhecer as suas dinâmicas internas e quais os assistentes sociais que estariam mais disponíveis para partilharem com o etnógrafo os seus saberes quotidianos.
De seguida, convidámos a participar na etnografia três assistentes sociais, todas do género feminino6 e todas com trabalho social continuado e direto com os utentes dos serviços prestados em três diferentes organizações do terceiro setor. Tratou-se de uma etnografia de curta duração - cada uma das etnógrafas permaneceu pelo menos 12 dias em cada local de trabalho, distribuídos por três dias da semana (geralmente, terças, quartas e quintas-feiras) -, que se prolongou por quatro a cinco semanas. No total, foram 240 horas de trabalho de campo, distribuídas por 37 dias, correspondentes, em média, a cerca de 6,5 horas por dia com cada uma das três participantes. O texto do diário de campo produzido contém 136 038 palavras.
Na linha metodológica de cunho fenomenológico que foi desenvolvida, a prática de terreno das etnógrafas visou descrever e interpretar os vários saberes (fazeres e dizeres em simultâneo) expressos pelas profissionais na interação social quotidiana com os seus interlocutores mais comuns: utentes dos serviços, outros profissionais e outros trabalhadores do serviço e da organização, chefias do serviço e da organização e diversos parceiros externos colaboradores da atividade. Nesta descrição e interpretação etnográficas, visou-se captar tanto o sentido do quotidiano profissional que reproduz um fazer-dizer de atitudes/formas naturalizadas e rotineiras de saber, como estimular a reflexividade prática das participantes sobre o mesmo fazer-dizer, capaz, ainda na ação quotidiana, de suspender e quebrar a naturalização do contexto de trabalho. Esta suspensão e/ou quebra do sentido prático, resultante do desenvolvimento de uma reflexividade no curso da ação profissional, tinha como referentes principais, direta ou indiretamente, os utentes dos serviços, e estava focada em comparações da prática profissional do momento presente com a experiência e saber do passado ou com a experiência e saber que se era capaz de antecipar para o futuro. Comparações essas que permitiram, em parte, tornar reversível a consciência prática da ação que as assistentes sociais possuíam, especialmente quando se identificavam (quando se dava atenção na interação social a) situações do presente que aparentavam ser perturbantes e discrepantes, face ao que seria mais habitual e comum ter ocorrido (por relação com a ação passada) ou poder vir a ocorrer (por relação com a ação futura).
A sabedoria prática no quotidiano das assistentes sociais7
A reflexividade prática captada nesta etnografia permitiu-nos categorizar os diferentes saberes que configuram a sabedoria prática em serviço social que emerge nas situações quotidianas de trabalho. Para ser fiel à inspiração fenomenológica do estudo, a fim de se poder captar adequadamente esta inscrição quotidiana dos saberes, foi necessário desenvolver um modelo de análise que não separasse o conteúdo da forma de ação e que estivesse diretamente implicado no curso do tempo presente. De contrário, a reflexividade perderia a sua emergência tácita, “na ação” e “para a ação”, e passaria a ser “sobre a ação”, revelando os conhecimentos que criam distância face às coisas do dia-a-dia (objetivação da consciência reflexiva com abstração de factos) e afastando-se, por isso, do conceito de sabedoria prática e da abordagem fenomenológica.
Com base nesta orientação epistemológica, pudemos perceber a emergência de diferentes tipos de saberes (Tabela 1): 1) o saber rotineiro e o saber improvisado, cuja ação ocorre e tem efeito prático apenas no momento presente; 2) o saber normativo e o saber justificativo, cuja ação ocorre e tem efeito prático no momento presente, mas invoca ações do passado; 3) e o saber prenunciativo e o saber prospetivo, cuja ação ocorre e tem efeito prático apenas no momento presente, embora suportado por ações que se projetam no futuro.
Naturalizações e perturbações do presente
O saber rotineiro foi o mais fácil de identificar nas situações de trabalho, pois ocorria por defeito. Sempre que, na descrição de uma situação, nada era referido como sendo inesperado, nem nada do que sucedia no momento presente era comparado com fenómenos transatos ou antecipáveis para o futuro, pudemos categorizar essa situação de trabalho como sendo rotineira, isto é, uma naturalização do quotidiano, dado que o saber aí contido era vivido como óbvio e garantido, estando o seu sentido totalmente implícito na interação social.
O saber improvisado, por seu turno, ocorria sempre que tinham lugar interações sociais em que a mudança no curso da ação era suscitada por fatores não esperados, que originavam, no momento, uma reação por parte das profissionais face ao que tinha ocorrido de inesperado. Em consequência, este saber estava muito associado às mudanças situacionais impostas por outros e surgia sempre que as profissionais entendiam que tinham competência para saber reagir à situação imprevista. Pudemos encontrar três formatos de saber improvisado: de urgência, de (in)oportunidade e de desafio.
O saber improvisado-urgência ocorria em interações sociais que eram desencadeadas pelos utentes, como comportamentos agressivos, descontrolo emocional, manifestações súbitas de doença e ausências injustificadas em atividades ou em encontros previamente acordados. O que definia a situação de urgência não eram os riscos associados aos comportamentos dos utentes, mas sim o juízo prático que as profissionais faziam sobre se a situação em causa podia ser considerada de urgência e se estava ao alcance da sua competência poder agir. O saber improvisado-urgência também podia ocorrer pela iniciativa das profissionais, quando, pontualmente, abordavam outros trabalhadores da equipa e da organização (menos qualificados) com instruções diretas e ordens (ainda que retoricamente se pudessem apresentar como pedidos de ajuda) que tinham em vista acorrer, no momento, a algo que entendiam não poder estar sujeito a demoras (por vezes devido a esquecimentos passados). O saber improvisado-urgência podia, ainda, resultar de falhas inesperadas dos recursos de trabalho administrativo, como quebras na ligação da internet, por exemplo. A título ilustrativo deste tipo de saber, vejamos a seguinte vinheta etnográfica8:
[Durante a ação de formação] a Maria foi interrompida várias vezes por alguns beneficiários que tinham dúvidas muito individuais sobre os seus processos de RSI ou que estavam revoltados com as alterações recentes na lei e nos respetivos direitos, o que prolongou significativamente a duração da ação. Ela tentou responder às várias solicitações individuais e aproveitou-as para dar exemplos de aspetos mais específicos que não tinha referido antes, mostrando alguns problemas mais comuns e algumas alternativas possíveis para os superar. Um dos beneficiários, em particular, interrompeu-a diversas vezes e mostrou-se muito revoltado pelo facto de ter uma prestação muito baixa. Acabou por sair, quando viu que não estavam a dar uma atenção particular à sua situação. [VE1]
O saber improvisado-oportunidade está associado a um juízo prático sobre a conveniência de algo ocorrer num certo tempo e lugar. Ao contrário das situações de urgência, a opção é para atuar por omissão ou recusa explícita, e não para acorrer imediatamente ao sucedido. Sempre que se entendia haver um desajustamento de tempo e lugar na interação, surgia então um saber para reagir, no momento, a algo que se considerava estar a contrariar o curso “natural” da ação (VE2). Inevitavelmente, isto só era possível quando havia um reconhecimento da autoridade das profissionais para condicionarem “os outros” a atuar do modo que elas entendiam ser adequado. Quando isso não acontecia, podiam surgir situações em que as profissionais consideravam estarem a ser postas em causa pelos utentes, podendo dar origem a conflitos abertos. De modo inverso, sempre que consideravam terem existido erros e falhas imputáveis ao (seu) serviço, então apenas restava desculparem-se e darem a entender que tudo se iria resolver (VE3).
No meio da reunião, aparece à porta um formando, que diz à Marieta que o Dr. João [psicólogo, membro da equipa] lhe pediu para ir ter com ela. Minutos depois, surge o João, que fala baixinho ao ouvido da Marieta. Percebo, têm de o manter ocupado até ao almoço, mas a Marieta dá prioridade à reunião dizendo que agora não se pode dispersar com outros assuntos. [VE2]
Uma das utentes do centro de dia vem ao gabinete e diz à Daniela que ela fez confusão com os dias em que ela almoçou e explica onde está o erro. A Daniela, depois de conferir o que a senhora lhe diz, concorda com ela e pede-lhe desculpa pelo sucedido. Acrescenta que já anotou o erro e que o vai corrigir e que tudo vai ficar bem. [VE3]
Por último, o saber improvisado-desafio ocorria quando a situação era considerada inesperada, mas, ao mesmo tempo, era vista como desafiante para as profissionais. Neste caso, em lugar de considerarem o inesperado como inoportuno, as profissionais passavam a procurar alternativas momentâneas de ação. Não só acorriam ao pedido de ajuda, como, ao serem confrontadas com resistências e obstáculos variados, optavam por procurar, no momento, modos de atuação alternativos, considerando implicitamente que tinham meios e conhecimentos suficientes para contrariar o “outro”, no mesmo curso da ação. No exemplo que se segue, percebe-se que as profissionais nem sempre encontravam a solução prescrita, pois não era apenas a expectativa normativa que as desafiava:
Regressámos à junta de freguesia. O senhor para o atendimento seguinte entrou no gabinete. A Maria começou a ouvi-lo, mas, ao mesmo tempo, a mostrar algum incómodo com aquilo que tinha no processo à sua frente. O senhor já tinha um Plano de Inserção, mas isso não batia certo com o processo que tinha na mão. Entretanto, compreendeu o que se estava a passar: alguém (uma das auxiliares, a quem compete esta tarefa) lhe tinha colocado na pasta o processo errado, de um outro beneficiário com o mesmo nome. E, afinal, não tinha qualquer documentação deste beneficiário, embora se lembrasse dele e soubesse qual era a sua situação: renovação do Plano de Inserção. Explicou o equívoco ao beneficiário, tranquilizando-o […] e prosseguiu o atendimento, mesmo sem ter o processo daquele utente. [VE4]
Em síntese, as situações de trabalho inesperadas eram reveladoras da existência de um saber improvisado, que permitia lidar com situações em que as profissionais tinham de saber reagir face ao “outro”, em resultado de fenómenos imprevistos considerados urgentes, (in)oportunos ou desafiantes, e também discrepantes das expectativas existentes sobre o que seria mais óbvio e comum ocorrer. Este saber reagir permitia às profissionais ajuizarem a nova situação e optarem por uma escolha prática que, implicitamente, operava um ajustamento da sua atuação dentro do curso da interação social que ocorria no momento.
O saber rotineiro e o saber improvisado nunca se opuseram, pois eram saberes tácitos que podiam coexistir na mesma situação, não obrigando a nenhuma reformulação face ao que estava a ocorrer no tempo presente que se pudesse articular com o tempo passado ou futuro.
Juízos e apreciações prático-experienciais
A narrativa etnográfica também permitiu identificar situações de trabalho que continham saber normativo e saber justificativo, isto é, saberes que permitiam às profissionais fazerem aquilo que julgavam comparável entre o vivido no presente e o experienciado no passado. O saber normativo possibilitava a formulação de juízos e apreciações, de valor positivo ou negativo, entre o presente e o passado, tendo por base apenas a experiência adquirida pelas próprias profissionais na interação que tinham com os seus interlocutores e evidenciando uma consciência prática do valor que a experiência passada podia ter no presente para o trabalho social.
O mais comum era os juízos-apreciações formulados assumirem um valor negativo através de censuras, lamentos e ironias, embora pudessem surgir, pontualmente, regozijos e entusiasmos, com valor positivo. As profissionais também evidenciaram que o saber normativo tinha por base comparações parcialmente implícitas com o passado e se baseava no pressuposto de que o significado atribuído à experiência adquirida devia servir como padrão (do certo/bem e do errado/mal) para se saber o que fazer e dizer no momento, sem que se tivesse de indicar quais as ações e os planos para o futuro. De forma pontual, podiam ser referidas as regras institucionais que respaldavam os juízos formulados, embora a comparação com o passado fosse sempre o principal referencial.
Entrando no detalhe deste saber (ver, em seguida, VE5 e VE6), podemos dizer que, para as profissionais, num primeiro caso, o juízo/apreciação normativa estava diretamente associada à ação no presente (saber normativo-ação), pressupondo a existência de uma continuidade com o passado, e esperava-se, implicitamente, que ambos os tempos de ação tivessem o mesmo valor (positivo ou negativo).
A Daniela trata do pedido da equipa de rua. Liga [pelo telemóvel] para a técnica da outra instituição, relata o caso e (como sabe pelo passado que a transferência pode ser recusada) diz-lhe que espera que ela a aceite, porque está a cobrar um favor que lhe fizera no passado. [VE5]
Encontrámo-nos com a senhora que aluga quartos, e ela leva-nos a visitar o quarto que tem para alugar. A Maria e a assistente social que nos acompanhava veem o quarto e o resto da casa. Começam a fazer perguntas sobre a limpeza. A Maria parece ironizar, quando diz que a mulher da limpeza anda a esquecer-se de fazer o seu trabalho. Quando chegam à cozinha e veem sinais muito evidentes de uso continuado sem limpeza, expressam mais claramente o seu desagrado pelas condições que estão a ser oferecidas, ao contrário do que no passado foi mais comum ocorrer […]. [VE6]
Verificámos que o saber normativo também podia assumir uma segunda forma, quando se reconhecia a existência de uma mudança entre o presente e o passado, com esta descontinuidade a ser objeto de juízo/apreciação. Neste caso, o saber não tinha como centro a ação presente, mas antes o relato explícito, no presente, de fragmentos passados da ação (saber normativo-relato). Vejamos, em seguida, um exemplo desta forma de saber, em que se tomava por referência uma mudança entre o passado e o presente:
[Na visita domiciliária] a dada altura da conversa [quando a Maria enunciava as exigências que tinham de ser cumpridas para obter RSI, a mãe de uma requerente de RSI] começa a ficar revoltada e a falar de situações que considera injustas, como a de um vizinho que se gabava de receber de RSI uma quantia avultada e de trazer ainda comida para casa. […] A Maria conseguiu dizer à senhora que tinha de fazer uma denúncia sobre tudo o que tinha dito e que esta podia ser anónima. A senhora continuou a contar pormenores, e aí [a Maria] interrompeu-a, para saber do nome do vizinho, e em seguida afirmou, perentoriamente, que já tinha havido uma denúncia e que essa prestação já tinha cessado. […] A senhora ficou mais calma e em seguida voltou à conversa sobre o agregado familiar. [VE7]
Porém, a forma mais usual de saber normativo-relato ocorria quando as profissionais faziam uma narração do passado para, em seguida, formularem um juízo de apreciação sobre o que se podia encontrar/esperar no presente. Neste contexto, de forma bastante recorrente, o saber normativo-relato tendeu a ser suscitado pela presença da etnógrafa, quando tomava a iniciativa de perguntar por acontecimentos passados, ou quando a profissional tomava a iniciativa de a esclarecer sobre o que era normal naquela situação, face a acontecimentos considerados típicos, ocorridos no passado. Comparativamente, nesta forma de saber normativo, a ação presente centrava-se no próprio relato do passado, enquanto no saber normativo-ação (referido atrás) o passado era acionado como referência normativa do curso da ação presente.
Para além destes dois formatos, encontrámos situações em que o juízo/apreciação era feito na continuidade da situação anterior, como se se tratasse apenas de um comentário ao que ocorrera antes: o saber normativo-comentário. Neste terceiro formato, era gerada uma nova situação (com mudança de interlocutores) que complementava a anterior. Diferencia-se das formas anteriores porque se centra somente na produção de um juízo (tal como acontecia no relato), mas agora sem que seja necessário descrever o ocorrido, pressupondo-se que os interlocutores na situação, por aquilo que conheciam do passado, já teriam percebido o que tinha ocorrido. Vejamos duas passagens da narrativa etnográfica que dão conta da ocorrência deste saber normativo-comentário:
A Maria, que se tinha mostrado incomodada com a informação que a jovem filha tinha dado sobre a mãe, quando saiu do atendimento, comentou depreciativamente com o Nuno [psicólogo, membro da equipa] a atitude da mãe para com a filha […]. E durante vários minutos continuou a manifestar o seu inconformismo com a situação, dizendo: “é que se não fosse pela filha, ao menos pelo neto”; “viu-se mesmo que a rapariga estava desesperada”; “espero que a Segurança Social não me venha pedir documentos adicionais que compliquem ainda mais a situação”. [VE8]
Depois de desligar o telefonema com a utente que faltou ao atendimento das 15h, e enquanto anota o novo dia de atendimento combinado, comenta em voz alta, para o resto da equipa, em tom crítico: “Esqueceu-se! Espero que se tenha esquecido mesmo, porque o miúdo está em casa sem fazer nada. Não estão a trabalhar e esquecem-se dos assuntos dos filhos!” [VE9]
Não era só o saber normativo que continha juízos práticos-experienciais relativamente ao passado. Também o saber justificativo podia conter estes juízos, embora não se ficasse apenas por eles e procurasse integrá-los numa visão mais ampla, de ação a prazo, tornando o passado num referencial para gerar, num primeiro formato, embriões de diagnóstico social sobre casos-utentes específicos ou sobre as razões das dificuldades da ação profissional. Tal como o saber normativo, o saber justificativo também pode assumir as mesmas três formas.
No formato de saber justificativo-relato, o passado é invocado para ser contextualizado no presente, salientando os factos passados (interpretados a partir da experiência que se imputa ao “outro”) que podem ter relevância no momento, para, implicitamente, poder dar uma orientação à ação, antes de se agir de modo mais ajustado. Trata-se de um formato de saber justificativo que tem afinidades com o saber normativo-relato, atrás referido, pois ambos colocam o passado como objeto central da interação presente. Mas o saber justificativo-relato vai mais além do normativo, pois indica, potencialmente, uma orientação para a ação, embora sem nunca se chegar a qualquer esboço de plano-estratégia. Este esboço poderá ocorrer numa situação posterior, mas que já nada terá que ver com este tipo de saber, por relacionar o presente com o futuro da ação.
Percebe-se que no saber justificativo há um embrião de diagnóstico que coloca a ação presente em suspenso, para melhor a justificar. De tal modo, esta suspensão da ação-presente pode ir ao passado, permitindo diagnosticar, com exemplos, a existência de um problema geral, sem que daí decorra qualquer indicação sobre como agir no presente (VE10).
A Marieta disse à Alice [colega de profissão, da equipa] que combinou sair com o João [psicólogo, membro da equipa], para ir ter com uma formanda. O João aparece e está pronto para sair. […] Vamos num carro de serviço, sentei-me atrás, e o João conduziu o carro. A Marieta explicou-me que vão tentar encontrar uma formanda que tem faltado às aulas. Ela teve problemas com a mãe e saiu de casa; foi viver com o namorado, e não conseguem contactá-la telefonicamente. O namorado tem fama de se dedicar a negócios ilícitos e querem mesmo tentar “resgatá-la”. Por intermédio da mãe, têm a morada onde ela está agora. O João parece preocupado […]. Pelo contrário, a Marieta parece bastante descontraída e, entretanto, muda a conversa e passa a temas não relacionados com o trabalho. [VE10]
Para além desta forma do saber justificativo, que suspende a ação presente, também verificámos que este saber, tal como o normativo, podia ser diretamente inserido na ação no presente (saber justificativo-ação), associando (com base em factos passados relativos aos comportamentos e atitudes de outros) o esboço de um diagnóstico ao que está a ocorrer no momento (VE11).
O telefone tocou, e a Marieta foi informada de que tinham chegado as pessoas do atendimento das 11h00 (são 11h30). Mas antes de ir ter com eles, a Marieta faz novamente o telefonema que já tentara e desta vez consegue falar com a pessoa que desejava. Falou de uma formanda, a propósito de um pedido de avaliação psicológica que tinha recebido. A Marieta explicou que a avaliação psicológica da formanda foi feita em 2008 e que nestes casos não há evolução de défices, apenas de competências, e que isso poderia ser descrito num relatório. Explica que esta formanda não conhece a família, não se lembra dela, e por isso não pode decidir em consciência onde quer viver, apesar de ter noção das consequências dos seus atos. Depois explicou em que consiste o formato do relatório que o psicólogo costuma fazer, e isso pareceu satisfazer a pessoa com quem falava. [VE11]
Retomando o que dissemos atrás sobre o saber justificativo-relato, podemos acrescentar que o relato dos acontecimentos ocorridos também podia ser desenvolvido como se se tratasse de um comentário ao que tinha acontecido ou ao modo como se tinha procedido (saber justificativo-comentário), tendo por isso afinidades com o que referimos existir no saber normativo. No entanto, neste terceiro formato de saber justificativo, através do comentário à situação, parece procurar-se apresentar um esboço de prestação de contas sobre o que se fez, após a ação. Este esboço de prestação de contas podia assumir a forma explícita de uma “quase autoavaliação” do trabalho realizado, não deixando de se dar a entender que se tinha seguido um princípio implícito de atuação (VE12).
[Depois de falar com uma funcionária da contabilidade ao telefone], desligou e desabafou comigo, dizendo que: “A tesouraria e a contabilidade estão sempre às turras com a equipa, porque querem recibos; são muito rígidas, só dão senhas se as usadas forem devolvidas, o que é incompatível com esta população. São formas opostas de trabalhar: nós flexibilizamos, e elas são muito rígidas.” Afirmou que podia compreender a rigidez, por causa das auditorias, mas continuou a desabafar dizendo que não tinha vida para cumprir estes requisitos. Contou-me que já chegou a comprar senhas para devolver à tesouraria sem serem usadas. E que muitas vezes ela e a Eduarda [assistente social, membro da equipa] compravam elas próprias as senhas com o seu dinheiro para não terem de lidar com estas exigências não adaptadas à população com que trabalham. [VE12]
Em jeito de síntese, destacamos que os dois tipos de saber que se reportam ao passado assumem, na interação social, três formatos possíveis: 1) o relato normativo, que se pode ampliar através de uma justificação que tem um diagnóstico em embrião; 2) a ação normativa, que se pode ampliar para gerar justificações que contextualizam no passado a ação presente; 3) o comentário normativo, que pode evoluir para uma justificação da ação, com base em enunciados que podem conter princípios e autoavaliações implícitos e embrionários.
Perceções e antecipações prático-experienciais
O saber prenunciativo e o saber prospetivo das profissionais tinham uma característica central em comum: visavam, no presente, pensar a ação futura, antecipando possíveis acontecimentos e as respetivas ações. Estes saberes detalhavam como era o modo de agir, referindo-se sempre a ações concretas que se indicavam para realização a curto prazo, não se ficando por uma simples orientação geral.
O saber prenunciativo podia assumir três formatos possíveis na interação social: 1) permitia que se avisasse o interlocutor (ou que se fosse avisado pelo interlocutor), no presente, sobre uma tarefa que teria de ser realizada, visando evitar-se um eventual esquecimento, uma dificuldade acrescida na sua realização ou uma continuada indefinição; 2) permitia que se alertasse o interlocutor (ou que se fosse alertado pelo interlocutor) sobre algo a que, no presente, devia ser dada atenção, tendo em vista prevenir consequências não desejadas no futuro; 3) promovia a melhoria dos resultados obtidos com as ações presentes, por via do conselho, da sugestão e do acordo com o interlocutor (por iniciativa própria ou do interlocutor) sobre ações que poderiam ser realizadas no futuro (a realizar pelo interlocutor ou por ambos). No excerto a seguir, estão bem patentes os avisos contidos no primeiro formato do saber prenunciativo:
A Elsa [auxiliar domiciliária, membro da equipa] regressou ao gabinete e começou a falar com os colegas do que existe de vestuário no Gabinete de Emergência Social (GES) da instituição para distribuição. […] Ao ouvir isto, a Maria pareceu lembrar-se do senhor que atendeu de manhã, pegou no processo deste beneficiário - que estava no monte de processos para serem inseridos no sistema - e perguntou à Elsa se havia quispos no GES. A Elsa disse que sim, que havia bastantes, e a Maria informou-a de que era preciso entrar em contacto com este senhor para marcar com ele uma ida ao GES com os filhos para ver os quispos. A Elsa pediu-lhe o contacto, e a Maria deu-lhe o número de telemóvel do senhor. [VE13]
Como se pode perceber, este formato de saber prenunciativo, com aviso, ocorria quando se indicava que faltava fazer algo no futuro que importava não esquecer, ainda que não houvesse um prazo para a sua realização. Podia ainda ocorrer após uma situação em que as profissionais dessem indicações/informações de/sobre tarefas rotineiras a realizar, e à qual se seguisse uma nova situação em que era feita uma recapitulação das tarefas indicadas anteriormente. Neste caso, na recapitulação passava-se a enunciar verbalmente quais as tarefas que o utente se comprometia a realizar, como se as profissionais estivessem, de forma implícita, a fazer-lhe um aviso (e este a interiorizá-lo), para evitar esquecimentos ou para não desistir, face a eventuais dificuldades. Ao estar envolvido na antecipação de uma tarefa que se apresenta como necessária, o aviso não implica qualquer especificação adicional sobre qual o seu objetivo, daí que não possa evoluir para uma qualquer orientação de sentido estratégico.
Este saber prenunciativo podia ainda estar associado àquilo que designamos como saber prenunciativo-alerta (segundo formato do saber prenunciativo), quando, para além de se procurar evitar o esquecimento de algo, se dava uma indicação precisa do que se iria fazer (ou iria acontecer) no futuro, procurando que o interlocutor não fosse apanhado de surpresa pela nova situação e pudesse ser parte da antecipação da ação. Vejamos os exemplos seguintes, que demonstram como as profissionais antecipavam dificuldades, ativando saberes, na tentativa de prevenir consequências não desejadas:
A Marieta fez um novo telefonema [para uma mãe], por causa de um potencial formando, um jovem que podia ser candidato ao curso. Pela resposta, percebe que o rapaz estava a fazer um estágio e procurou obter informação sobre o grau de satisfação que havia. Perguntou pelo nome da professora responsável e disse à mãe que iria contactá-la para ter a certeza de que o jovem iria continuar nesse estágio, ou se não seria preferível mudar para o curso que estavam a propor. Acrescentou que, se a professora confirmasse a continuação do jovem no estágio, iria enviar à senhora uma carta de desistência para ser assinada. Disse ainda que, apesar do envio da carta de desistência, seria sempre possível à família voltar a contactá-la para realizar um curso no futuro. [VE14]
A Constança [animadora, membro da equipa] entrou no gabinete e interrompeu a Daniela. Veio entregar o plano mensal que a Daniela lhe pedira, seguindo as ordens da Valentina [coordenadora da equipa] de lhe dar mais responsabilidades, como animadora social. A Daniela pegou no plano e disse-lhe em seguida que queria que ela fizesse o relatório do mês de janeiro e de fevereiro. A Constança pareceu ficar contrariada e perguntou: “Mas é para fazer mesmo?! É que houve uma altura em que os relatórios eram obrigatórios, e depois ninguém lhes ligava nenhuma.” Em resposta, a Daniela garantiu-lhe que era para fazer, que tinha sido a Valentina a falar no assunto e que, por isso, ser-lhe-ia dada atenção. [VE15]
Este último excerto é um bom exemplo da possível conjugação do aviso com o alerta. Em primeiro lugar, ocorria o aviso, para evitar o esquecimento. A seguir, era reafirmado, e em terceiro lugar havia um alerta para evitar uma consequência não desejada. No final, percebemos que, na interação social, se esboçava um acordo entre os participantes sobre como proceder no futuro, para melhorar o resultado do que se fazia. Assim, ao aviso e ao alerta também podia ser associado um saber-melhorar (terceiro formato do saber prenunciativo).
Como se pode constatar na situação apresentada a seguir (VE16), o saber-melhorar podia ter em vista antecipar possíveis consequências não desejadas, indicando e sugerindo ações precisas, para, no futuro, se poderem corrigir os erros (ou os resultados insuficientes) ocorridos no presente. Além do mais, incorporava um sentido de alerta na situação, para se poder, a partir dele, contextualizar a razão da ação que se apresentava, como permitir melhorar no futuro o que ocorria no presente.
O último atendimento da manhã foi de uma beneficiária que eu já tinha visto noutro atendimento e a quem a Maria disse, mal esta entrou: “Tenho uma coisa para lhe dizer.” […] Informou-a de que o seu processo foi para outro gabinete de RSI e que tinha de se confirmar se a sua morada estava certa na Segurança Social. A senhora disse que tinha lá ido, que tinha visto a sua morada correta no computador, mas que a impressora não funcionava e não puderam dar-lhe um comprovativo. A Maria disse-lhe que ela teria então de lá voltar e pedir esse comprovativo, porque precisava dele para conseguir de volta o processo dela ali naquele gabinete de RSI. De seguida, ela explicou a razão de tanta confusão […]. A Maria avisou a senhora de que, se alguma carta da Segurança Social ou do Centro de Emprego for parar ao sítio errado e ela faltar a uma chamada, “entra em incumprimento, e a prestação é cessada, e depois não pode requerer durante 2 anos”. A senhora respondeu que, então, iria tentar ir mais rapidamente à Segurança Social, para obter o comprovativo de morada. [VE16]
Por fim, o saber prospetivo. Ao contrário do saber prenunciativo, em que as profissionais davam como óbvio que as ações a realizar no futuro não careciam de uma explicação adicional, no saber prospetivo estávamos perante a antecipação de uma ação que carecia de uma especial organização prévia e/ou de uma decisão anterior à ação futura, deixando o saber de depender da experiência estritamente individual ou da ação pontual e voluntariosa de cada profissional. Neste contexto, o saber prospetivo desenvolvia-se em dois formatos principais: 1) quando as situações continham iniciativas de planeamento e programação de atividades futuras (saber prospetivo-plano) que supunham a preparação, a partir do presente, do encadeamento de várias ações ao longo do tempo; 2) quando implicava situações em que, explicitamente, se tomavam decisões (saber prospetivo-decisão) para o futuro, e, para o efeito, eram ponderadas as vantagens (e as desvantagens) comparativas que daí poderiam advir, em relação à situação presente.
Começando pelo saber prospetivo-decisão, podemos perceber, pela situação apresentada em seguida (VE17), que este podia implicar a discussão de hipóteses (alternativas) de ação a prazo (mais longo do que acontecia com o saber prenunciativo), com o eventual enfrentamento de conflitos e divergências. Implicava, geralmente, o esboço de pequenos planos subsequentes, para se aferir no momento a viabilidade de executar a decisão no futuro.
[No hospital, para tratar do acompanhamento de um doente oncológico, a Maria foi recebida pelo assistente social desta instituição]. O colega sugeriu, ao fim de algum tempo de análise do caso, que nos dirigíssemos todos à enfermeira que tinha em sua posse o plano de tratamentos do utente, para completar informação em falta, e que reuníssemos com a respetiva médica, para lhe pedir ajuda na resolução de uma situação específica de transporte entre a residência e o hospital para o cumprimento dos tratamentos de quimioterapia. […] Procurámo-la [à médica] no gabinete onde nesse momento estava a dar consultas. A médica mandou-nos entrar e sentar no seu consultório, mostrando desconhecimento sobre o que era pretendido dela. Quando, finalmente, percebeu que os assistentes sociais queriam que ela pedisse o transporte do doente em ambulância para que ele conseguisse deslocar-se ao hospital e cumprir o plano de tratamentos, argumentou, de forma exaltada, que isso deveria ser tratado pelos assistentes sociais e não por si, visto que se tratava de uma situação de carência social e não de um motivo clínico. O colega manteve-se calado atrás de mim, e a Maria foi argumentando como pôde, alegando que o senhor tinha dificuldade física em deslocar-se sozinho, além de não ter retaguarda familiar. A médica acabou por ceder, visivelmente contrariada. Saímos. Combinaram-se ainda alguns pormenores de datas, e despedimo-nos do colega. [VE17]
Por sua vez, o saber prospetivo-plano estava, geralmente, associado a decisões já assumidas antes, que eram dadas como garantidas aquando da interação, sem prejuízo de se poderem evidenciar algumas dúvidas sobre a melhor relação meios-fins. Ocorria quando se evidenciava o acordo (a possibilidade) de todos os participantes na interação contribuírem para a viabilização do plano de ações que estava a ser delineado. O saber prospetivo-plano mobilizado podia ser mais ou menos detalhado na programação das ações futuras e podia conter, mais ou menos implicitamente, a indicação de objetivos capazes de melhor garantirem o ajustamento entre os meios que iriam ser usados e os resultados pretendidos. Podia, assim, conduzir a um sentido/orientação estratégica embrionária, no quadro da qual se ponderavam ações para o futuro e se definia a concretização do que estaria previsto. Vejamos o exemplo a seguir, em que, como dissemos, este saber está implicado na preparação de um plano de ações futuras que toma as decisões como adquiridas:
[Na visita domiciliária, a senhora, candidata ao RSI, explicou à Maria porque é que, afinal, já não precisava de RSI]. Percebeu-se que a Maria já conhecia a beneficiária […] e, talvez por isso, mostrou-se muito contente por ela. Perguntou-lhe, então, quanto é que ela estava a ganhar no novo emprego. Anotou a quantia e disse que, como ela tem o filho a cargo, talvez ainda recebesse alguma coisa, mas que teria, para isso, de sair de casa da mãe, porque todas as pessoas que lá viviam entrariam no agregado. A senhora explicou que só está à espera de endireitar as suas contas para conseguir sair da casa da mãe, até porque, como disse, o irmão às vezes era muito barulhento, e ela tinha de ir com o filho dormir para a roulotte (que está estacionada em frente ao prédio). A Maria pediu-lhe, então, que a mantivesse informada e que, como o processo ainda demorava cerca de três semanas a ir à reunião da Segurança Social, ela tinha tempo de fazer alterações, e o processo poderia ser avaliado em novos termos. A senhora comprometeu-se a dar informação à Maria logo que mudasse de alojamento, para então poder receber algum apoio social adicional. [VE18]
Verificámos, ainda, que os dois formatos de saber prospetivo não eram estanques e/ou mutuamente excludentes, podendo coexistir na mesma situação.
Considerações finais
Neste estudo etnográfico sobre as atividades quotidianas de serviço social, constatámos que a sabedoria prática remete, sobretudo, para saberes situados e quotidianos que se manifestam em naturalizações, improvisações, antecipações, perceções e projeções da prática e da experiência profissionais, aquém de qualquer racionalidade de objetivação do real e das próprias capacidades de enunciação discursiva das profissionais nos seus contextos de trabalho. O universo dos saberes analisados, ao remeter para perceções, apreciações e antecipações práticas, aproxima-se bastante do conceito de esquemas disposicionais do habitus, teorizado por Bourdieu (1972), embora, ao contrário deste autor, nos estejamos a referir a sentidos práticos relatáveis: fazeres-dizeres inscritos na consciência prática e partilhados de modo tácito na intersubjetividade.
À exceção do saber rotineiro, todas as outras manifestações de sabedoria prática ocorrem porque as assistentes sociais têm autonomia face ao aparato técnico-procedimental da profissão, para, tacitamente, optarem por um certo modo de fazer-dizer, quando reagem, comparam e antecipam o que foge (ou pode fugir) ao esperado e ao habitual (mais rotineiro e mais prescrito) inscrito na cultura profissional. Esta autonomia surge porque, a todo o momento, a sucessão de situações de trabalho faz emergir, de um modo implícito e tácito, contingências, tensões e hiatos de sentido, que exigem o (re)ordenamento das práticas quotidianas na interação social com o “outro”. Assim, a sabedoria prática é um conceito que nos permite evidenciar a discricionariedade das assistentes sociais, e que pode colmatar ou ajustar orientações macropolíticas e quadros institucionais à escala situacional do tempo quotidiano, ainda que também possa reproduzir estigmas sociais e pequenos poderes arbitrários, eventualmente inscritos na cultura profissional.
Neste estudo, não chegámos a pôr em evidência as relações que possam existir entre a ação profissional e os sistemas de conhecimento abstrato, pois, como explicámos na descrição da metodologia do estudo, a necessidade de desenvolver um modelo de análise “colado” à epistemologia da vida profissional quotidiana obrigou a enfatizar a consciência e a reflexividade práticas e a dimensão fenomenológica do tempo do presente, ambos longe de facilitarem o desenvolvimento de enunciados de conhecimento abstrato. Só assim pudemos captar as dimensões tácitas e emergentes dos saberes fazer-dizer sem os descontextualizar, evitando qualquer análise que separasse os formatos quotidianos dos saberes dos conteúdos do conhecimento em uso.
Estamos certos de que, numa etnografia mais focada no plano formativo, debatendo com as participantes os textos etnográficos obtidos, seria possível, em muitos dos registos formalizados, obter e dar relevância, em geral, aos conteúdos de conhecimento e, em particular, aos conteúdos de conhecimento abstrato que implicitamente poderiam estar presentes na interação social. Aliás, como vimos, os saberes justificativos e projetivos da ação, ainda que referenciados ao presente, continham em embrião escalas temporais mais amplas e de mais longo prazo, podendo ser articulados com conteúdos de conhecimento abstrato, desde que, eventualmente, se criassem as condições para desenvolver processos de consciencialização e de objetivação da cultura profissional das assistentes sociais.
Ao persistirmos nesta linha de análise sobre a sabedoria prática, julgamos ser possível reponderar as conotações negativas que tendem a ser associadas aos saberes situados e contextuais, e perceber que, embora fora do campo da racionalidade discursiva e do realismo (subjacente às práticas baseadas na evidência), eles têm particular valor científico e social para enfatizar o quanto os quotidianos de trabalho profissional encerram um enorme potencial de inovação e criatividade, assim como de continuada reinvenção do próprio trabalho social, bem necessária nos tempos atuais de intensificação da incerteza e da mudança sociais.
Em simultâneo, a persistência nesta linha de pesquisa poderá contribuir para se evitarem dois outros tipos de análises, extremadas, sobre as relações entre conhecimento e ação: 1) as análises que se limitam a explicar (ainda que possam também criticar) o que existe na sociedade capitalista de oposição e dicotomia hierárquica entre o teórico e o prático, desenvolvendo apenas perspetivas de análise centradas no macropolítico, no institucional-legitimador e/ou no estrutural-histórico; e 2) as análises que, idealmente, pressupõem a necessidade de fusão entre teoria e prática, desenvolvendo críticas a todos os dispositivos e agentes sociais que concorrem e contribuem para a separação entre estes dois planos da ação profissional.
Como explicámos de início, a nossa abordagem teórica parte do pressuposto hipotético de que há uma dualidade sociocognitiva entre a epistemologia que organiza o abstrato/teórico/analítico e a epistemologia que organiza o prático/experiencial/cultural. Esta dualidade remete para uma sociedade cujo desenvolvimento histórico se tem baseado numa divisão social do trabalho que, duravelmente, tem dividido e oposto teoria a prática (e vice-versa), não sendo, por isso, possível encontrar uma “ilha de superação” desta oposição. Mas também não é inevitável que o diálogo tensional (muitas vezes eclético, ambíguo e ambivalente, e por isso tácito) entre estas duas epistemologias da vida social não possa ocorrer, sobretudo quando o procuramos encontrar e compreender numa perspetiva “de baixo para cima”: partir do micro, da agência e da sabedoria prática dos profissionais para o macro, o instituído e o estrutural das políticas, dos poderes e das desigualdades existentes na vida social. Deste modo, seria possível atenuar o viés da perspetiva “de cima para baixo”, que facilmente suscita análises extremadas entre a teoria e a prática, atrás referidas, por estar demasiado centrada em apriorismos teóricos, tidos como universalistas, permitindo suportar e legitimar (mesmo que não se queira) o poder simbólico e cultural da academia sobre as culturas profissionais extra-académicas.