I. Introdução
Em dezembro de 2019, surgiram diversos casos de pneumonia, de etiologia desconhecida associados à cidade de Wuhan, na China. A 11 de fevereiro de 2020 o International Committee on Taxonomy of Viruse batizou o vírus de “síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2” (SARS-CoV-2) e, no mesmo dia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a doença causada pela SARS-CoV-2 como Coronavírus 19 (COVID-19) (Xie, Ma, Tang, & Liu, 2020). Um mês depois, a 11 de março de 2020 a OMS declara a situação de pandemia. O processo de difusão mundial do vírus veio destacar a importância da Geografia na interpretação destes fenómenos, tal como estudos anteriores de processos de difusão, onde os trabalhos sobre a difusão da hepatite infeciosa (Arroz, 1979) ou do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) (Gould, 1993) constituem exemplo.
O presente artigo apresenta a evolução concelhia da propagação do vírus COVID-19, no período compreendido entre 02/03/2020 e 14/06/2020 em Portugal Continental, e relaciona o padrão de difusão com as características demográficas e socioeconómicas do território português. O artigo estrutura-se em três partes. A primeira parte corresponde à presente introdução. A segunda descreve sucintamente o contexto de Portugal no mundo e na Europa e desenvolve a análise da distribuição regional do fenómeno, evidenciando a sua relação com o contexto demográfico e socioeconómico do território continental. O artigo termina com breves conclusões.
A informação de enquadramento de Portugal no contexto mundial e europeu foi recolhida nos dashboards da OMS (WHO, 2020a; 2020b). Relativamente a Portugal, a recolha teve por base a informação da (DGS, 2020a) disponibilizada nos boletins epidemiológicos diários publicados no seu Portal. Os dados possuem informação por regiões e por concelhos, sendo que não estão disponíveis o mesmo tipo de indicadores para as diferentes escalas. De referir que a informação apresenta limitações ligadas ao sistema de recolha e contabilização. Com os dados recolhidos, foi cartografado o número de casos e suas capitações por 10 000 habitantes nos concelhos do Continente em vários momentos de forma a compreender o seu padrão espacial. Importa assinalar que sempre que nos referimos a “casos”, estamos a reportar “casos confirmados”.
II. Padrão geográfico de evolução da pandemia em Portugal continental e sua relação com o contexto socioeconómico do território
1. Enquadramento na Europa e no mundo
A 14/06/2020, registavam-se a nível mundial 7 805 148 casos e 431 192 mortos (WHO, 2020a) enquanto a nível europeu se atingiam 2 398 779 casos e 188 064 mortos (WHO, 2020b). A 1/04/2020, a Europa representava 56% dos casos mundiais, mas, em 14/06/2020, viu reduzido o seu peso para 30%, evidenciando a transferência do epicentro da pandemia para o continente americano.
A 14/06/2020, Portugal ocupava o 11º lugar em número de casos, o 15º lugar no número de óbitos por milhão de habitantes e o 12º lugar no número de testes realizados por milhão de habitantes. Neste último caso, importa referir que nove dos outros onze países que apresentam dados mais favoráveis que Portugal, eram Estados de dimensão populacional inferior a 1 milhão de habitantes, o que facilitou amplamente o processo de testagens massificado (WHO, 2020b).
Os primeiros registos em Portugal remontam ao dia 02/03/2020, data em que são confirmados os primeiros dois casos importados (de Itália e Espanha). Regionalmente, para além das regiões de Lisboa e Porto, vemos juntar-se também a área de Coimbra. A 8 de Março surge o primeiro caso na Região do Algarve e só a 17 de março vemos surgir o primeiro caso na Região do Alentejo, território interior de menor densidade populacional (Marques da Costa & Marques da Costa, 2020a).
Face aos números em crescimento muito rápido, no dia 18/03/2020 foi decretado o Estado de Emergência em Portugal (DL n.º 14-A/2020, de 18 de março). A 26/03/2020, a DGS declara o início da fase de mitigação da pandemia (DGS, 2020b).
2. Análise geográfica e fatores de propagação do fenómeno em Portugal
A análise do padrão geográfico do fenómeno apresenta evidências associadas a três grandes grupos de fatores: i) elevadas densidades urbanas e concentração de atividades económicas; ii) espaços de concentração de população idosa; e iii) fluxos populacionais com relação com o exterior.
2.2.1. Elevadas densidades urbanas e concentração de atividades económicas
Numa primeira fase, a evolução do número de casos (figs. 1a e 1b) apresentou uma forte relação com a densidade populacional, a estrutura urbana e a localização das principais concentrações de emprego, destacando-se as duas Áreas Metropolitanas (AM) e os territórios urbanos que se encontram no seu quadro de relações funcionais, nomeadamente no quadro das deslocações casa-trabalho (figs. 2c e 2d). Com ligação às atividades económicas, identifica-se ainda o alinhamento com as ligações viárias e funcionais a Espanha, mais evidente na Região Norte de Portugal. Depois das AM, assiste-se à expansão para as áreas de concentração empresarial industrial, destacando-se as de natureza exportadora, relação que é demonstrada pelos resultados da regressão linear múltipla (passo a passo; Marques da Costa e Marques da Costa, 2020a) onde se demonstra a relação entre o número de casos em 23/03 e 11/06 com as variáveis regressoras de densidade populacional e taxa de exportações do concelho (quadro 1).
Fonte: a) DGS (2020a), b) INE (2018a), c) Marques da Costa & Marques da Costa, (2003), d) INE (2018b)
2.2.2. Espaços de concentração de população idosa
Num segundo momento, nos territórios do norte e centro interior do território continental, o fenómeno expande-se a concelhos com menor densidade populacional e com uma população mais envelhecida (figs. 1c e 2b). Os lares de idosos afirmaram-se como focos, sendo responsáveis por uma parte significativa dos novos casos em concelhos com quantitativos demográficos reduzidos e envelhecidos (ex. Castro Daire) (fig. 1c). Com um desfasamento de duas semanas, a situação dos lares no norte e centro, replica-se nos concelhos do Oeste e do Médio Tejo e, de seguida, a Lisboa e ao resto do país (fig. 1d) (Marques da Costa & Marques da Costa, 2020b; 2020c). A população com mais de 70 anos, representava 20 a 25% dos casos, associando-se a uma parte significativa dos óbitos. Nestes espaços, as primeiras contaminações pelo vírus poderão ter tido três origens: visitas de familiares infetados, a entrada de cuidadoras e outro pessoal trabalhador infetados e ainda, contágio aquando das deslocações a hospitais ou outras unidades de saúde para a realização de exames ou consultas.
2.2.3. Fluxos populacionais com relação com o exterior
Para além dos aspetos anteriores, é de considerar um terceiro fator que resulta da análise dos casos importados (quadro II).
Os primeiros dados reportam-se ao dia 03/03/2020, tendo-se registado dois casos importados provenientes de dois países. A 25 de Março, totalizavam-se 155 casos de 18 países. Passados três dias, os resultados mostravam que os 329 casos confirmados eram originários de 29 países. Este número de pessoas infetadas duplicou em 12/04/2020 e o número de países ascendeu a 48. Até ao final de Abril, registou-se um acréscimo de um país e um total de 748 casos.
A análise da origem geográfica dos casos importados tem um evidente interesse científico. Dos valores presentes no boletim de 28/04/2020 podemos destacar Espanha (171), França (137), Reino Unido (88), Suíça (45), Brasil (30), Emirados Árabes Unidos (29), Itália (29) e Estados Unidos (27), o que totalizava 556 casos (74,3% dos casos importados).
Procurando associar as origens geográficas às motivações para as deslocações, podemos adiantar quatro tipos de movimentos. O primeiro liga-se às entradas decorrentes do regresso/visita de emigrantes que se deslocaram para Portugal, ora com o argumento das férias da Páscoa, ora por razões de visita aos familiares ou, ainda, por razões de retorno dos países onde estão emigrados (nomeadamente pela interrupção das atividades profissionais). Aqui enquadram-se parte significativa dos casos importados de França, Suíça, Reino Unido, Alemanha, Luxemburgo e Espanha.
O segundo grupo centra-se no grupo de imigrantes que entraram no país (países asiáticos ou Brasil), a que se juntam o terceiro e o quarto grupo: estudantes e turistas portugueses regressados de destinos bastante diferentes.
III. Conclusões
A difusão da COVID-19 em Portugal relaciona-se com a hierarquia da rede urbana, difundindo-se a infeção a partir destes centros urbanos principais para outros aglomerados próximos. Este padrão espelha a tipologia de emprego, a dinâmica de fluxos de pessoas e bens (áreas exportadoras, importadoras e centros de emigração) e a incidência territorial de grupos vulneráveis como imigrantes e naturais com rendimentos baixos, que se mantiveram em atividade mesmo em período de confinamento, recorrendo especialmente à utilização de transporte público nas suas deslocações.
Assim, bacias industriais e de logística, a construção civil e o comércio grossista, surgem como gatilhos de difusão do fenómeno. Se tomarmos como exemplo o recente crescimento de casos em Lisboa e Vale do Tejo, vemos a relação com as atividades que envolvem mobilidade de trabalhadores. É o caso da construção civil, onde a subcontratação de pequenas e médias empresas traz trabalhadores de várias origens geográficas a um mesmo local, ou da atividade grossista e agrícola, com o recrutamento de migrantes, sem contrato a termo e que residem em coabitação em condições de habitabilidade precária. Ora numa semana, desenvolvem atividade num local, ora noutra semana, transferem-se para outro local, gerando uma aleatoriedade crescente no padrão de contágio, catalisado em casa com contatos familiares ou com elementos com quem coabitam, que iniciam novos clusters de contágio.
Por contraponto positivo, vemos que a definição de Planos de Contingência nos lares de idosos, afigurou-se eficaz, assistindo-se a uma estabilização dos contágios nestes lugares.
A presente evolução permite confirmar a relação com as características demográficas e socioeconómicas dos territórios. Portugal iniciou o desconfinamento a 4/05/2020 com um plano gradual de retoma de atividades (2ª fase - 18/05 e 3ª fase - 1/06) mas o padrão diferenciado de velocidade de propagação, evidencia a dificuldade em encontrar uma linearidade no fenómeno, limitando a definição de cenários futuros.
Neste contexto, a efetivação da ação de testar é fundamental para encontrar os clusters e limitá-los, uma vez que estratégias de confinamento total serão difíceis de voltar a implementar, pelas nefastas consequências económicas e sociais que arrastam. Volvidos os primeiros 100 dias, Portugal encontrou “tempo” para os serviços de saúde se prepararem para eventuais momentos de futura pressão. As interrogações são muitas, constituindo um enorme desafio, ultrapassar a pandemia e ao mesmo tempo, atenuar as vulnerabilidades sociais que esta expôs.