I. Introdução
O estudo da relação entre saúde humana e saúde do ambiente vem ganhando destaque em anos recentes. Na Rio 92, houve um grande movimento para o delineamento de novos caminhos que levassem em conta a conservação da natureza. Foram assinados e acordados os seguintes documentos, que representavam compromissos das nações signatárias: a Carta da Terra, a Agenda 21 e as Convenções do Clima e da Biodiversidade. A Agenda 21, que visava preparar o mundo para os desafios do próximo século, refletia um consenso global e um compromisso político em níveis mais elevados em uma cooperação entre o meio ambiente e o desenvolvimento. O sexto capítulo da Agenda, parte da Seção 1 - Dimensões Sociais e Econômicas, focava na Proteção e Promoção da Saúde Humana e ressaltava a ligação entre saúde, meio ambiente e desenvolvimento econômico. As seguintes áreas programáticas estavam contidas no capítulo: a) Atender às necessidades de atenção primária; b) Controle de doenças transmissíveis; c) Proteção a grupos vulneráveis; d) Enfrentamento ao desafio da saúde urbana; e e) Redução dos riscos da poluição ambiental (United Nations [UN], 1992). Era, portanto, uma agenda ainda bastante incipiente, no que diz respeito à saúde pública e à saúde ambiental. Nestes 30 anos que se passaram, houve um despertar dos profissionais de saúde para o estudo mais acurado da relação entre o ambiente e a saúde humana. Houve não só um compromisso com novos temas de pesquisa, mas, também, um refinamento e aprimoramento de técnicas que permitissem estudos mais aprofundados e sob novos ângulos.
Uma das abordagens recentes é a de soluções baseadas na natureza (Nature-Based Solutions - NbS), adotadas para minimizar problemas ambientais, mas que têm vantagens, também, para a saúde pública. Elas são consideradas estratégias promissoras para adaptar-se às mudanças climáticas e fortalecer a resiliência da comunidade. As soluções NbS utilizam serviços ecossistêmicos fornecidos pela natureza para proteger e gerenciar, de forma sustentável, ecossistemas naturais ou modificados, proporcionando, simultaneamente, o bem-estar humano e os benefícios da biodiversidade (Cohen-Shacham, 2016).
Dentre os problemas de saúde humana que vêm recebendo novos olhares e abordagens está a insuficiência/deficiência de vitamina D.
Cerca de 80% da quantidade de vitamina D que o corpo precisa é produzida endogenamente por meio da exposição da pele à radiação ultravioleta B (UVB), sendo o restante adquirido por alimentos e suplementos (Holick, 2004). A exposição ao UVB nas cidades depende, em parte, do clima local. A nebulosidade e o adensamento urbano, caracterizado pela grande quantidade de edifícios, causam aumento das áreas sombreadas que atenuam os comprimentos de onda biologicamente significativos para a síntese de vitamina D (Leal et al., 2021; Turnbull et al., 2005). A cobertura de árvores em calçadas também pode interferir neste processo, pois as sombras das árvores permitem a síntese da vitamina D (Heisler et al., 2003, Turnbull et al., 2005).
A produção da vitamina D é afetada por grandes diferenças sazonais na disponibilidade da luz solar, conforme a estação do ano e latitude (Schrempf et al., 2017). Nos países tropicais, localizados nas mais baixas latitudes, a síntese da vitamina é possível durante todo o ano (Leal et al., 2021). Nos países localizados nas latitudes médias, a síntese não é possível nos meses de inverno, mas a vitamina D pode ser armazenada na gordura corporal e mobilizada durante estes meses (Schrempf et al., 2017). A despeito da aparente facilidade em se alcançar bom status de vitamina D, o aumento da prevalência da deficiência na população urbana necessita ser analisado com base na abordagem multidisciplinar. Adicionalmente, o sobrepeso, a idade e a cor da pele são variáveis que influenciam no status de vitamina D, sendo as mulheres adultas as que apresentam maior sensibilidade à deficiência (Ribeiro et al., 2020).
A análise sobre como tornar o ambiente urbano mais propício para a exposição humana ao UVB é necessária, tanto para proteção contra doenças causadas pela radiação (por exemplo, queimaduras solares e câncer de pele), como para sintetização suficiente de vitamina D por meio de atividades cotidianas. O presente artigo visa responder à questão: A quantidade de áreas verdes em cidades sob clima tropical contribui para os diferentes status de vitamina D entre as mulheres? O objetivo foi analisar a associação entre verde residencial em áreas urbanas e as concentrações séricas de 25 hidroxivitamina D [25(OH)D] em moradoras de uma cidade brasileira do interior de médio porte e de clima tropical.
II. Local de estudo
Este estudo foi realizado na cidade de Araraquara - São Paulo (Brasil). Com 208 662 habitantes, a cidade possui 77,37km2 de área urbana (fig. 1). A média anual das temperaturas máximas é de 26⁰C, com variação, positiva ou negativa, de 3⁰C graus ao longo do ano, podendo chegar a 38⁰ C nos dias mais quentes. Durante o ano há pouca nebulosidade, apresentando média de ٣٨mm de precipitação mensal no período seco (abril a setembro) e ١٨٢mm de precipitação mensal no semestre chuvoso (outubro a março). O município está localizado na região central do estado de São Paulo, a 21⁰47’40” de latitude sul e a uma altitude de 664 metros. Sua irradiação global para superfície idealmente inclinada é de 2058kWh/m2 por ano (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais [INPE], 2019).
As primeiras ações visando a organização da ocupação e do crescimento urbano em Araraquara foram identificadas em 1960, com a elaboração do plano diretor (PD) pelo Executivo local (Toledo, 2013). Desde então, foram promulgadas leis complementares que visam promover áreas verdes e arborização da cidade, de forma a preservar e conservar as árvores em locais públicos. Para conservação e implantação de áreas verdes e biodiversidade, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente executa os trabalhos de manutenção e execução dos projetos “Espaço Árvore” e “Floresta Urbana”, além de outros plantios pontuais em canteiros e praças (Araraquara, 2021). A percentagem de arborização das vias públicas de Araraquara era de 97,1%, em 2010, tendo o município ocupado a 551º posição no ranking de 5570 municípios do Brasil (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010).
Contudo, há consideráveis diferenças nos padrões de arborização da cidade (fig. 2). Somente uma rua na região central da cidade apresentava grande quantidade de árvores com copas robustas o bastante para oferecer uma sombra considerável, tornando o ambiente mais agradável. A maior parte das ruas apresenta árvores esparsas que oferecem pouco sombreamento.
III. Metodologia
1. População e covariáveis do estudo
Este estudo faz parte do projeto multicêntrico Healthy Living Healthy Aging, desenvolvido por três universidades (Universidade de São Paulo, University of Surrey - Inglaterra e University of Wollongong - Austrália), que constituem a Universities Global Partnership Network (UGPN). O foco principal foi analisar a prevalência e os fatores de risco para deficiência de vitamina D numa amostra de, no mínimo, 100 mulheres adultas de cada país envolvido, Brasil, Inglaterra e Austrália. No Brasil, foram recrutadas 101 mulheres no ano de 2019. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, de acordo com a Resolução CNS 196/96 (protocolo número CAAE: 11939219.3.0000.5421, 4 de junho de 2019). Todas as voluntárias deram consentimento informado por escrito.
A análise da relação entre status de vitamina D e vegetação circundante residencial foi realizada na população urbana de Araraquara, Brasil. Araraquara foi escolhida como local de estudo por ser uma cidade de médio porte com forte presença de universidades, características também apresentadas nas demais cidades participantes do estudo multicêntrico. Além disso, Araraquara significa “Morada do sol”, devido à abundância de dias ensolarados durante todo o ano. Banners, folders, televisão e rádios locais foram os principais meios de comunicação utilizados para a divulgação do projeto, além de visitas pessoais a estabelecimentos públicos mais frequentados por mulheres. Para participar no estudo, as mulheres deveriam ter mais de 35 anos de idade e não poderiam estar em terapia para tratamento da osteoporose, câncer, diabetes, doença cardíaca ou hipertensão, ou ainda estar fazendo suplementação de vitamina D. Tais tratamentos são fatores de risco que poderiam afetar o metabolismo da vitamina.
Foram medidas as seguintes covariáveis: nível de radiação ultravioleta (RUV), consumo de vitamina D e cálcio, índice de massa corpórea (IMC), idade, cor da pele, tabagismo, consumo de bebida alcoólica e nível de atividade física. Como um proxy do nível socioeconômico, foi utilizada a variável nível de escolaridade das participantes da pesquisa. Também foi avaliado o desfecho da insuficiência de vitamina D na saúde mental das mulheres, sendo considerados os sintomas de depressão. A mensuração das variáveis ocorreu no inverno, em julho de 2019.
O nível de exposição à RUV foi mensurado por meio de um polysulphone badge and sheet em unidades de dose padrão de eritema (Standard Erythema Dose - SED), sendo um SED equivalente a 100Jm-2 de RUV eritemal (queimadura de sol) (Webb et al., 2010). As participantes utilizaram o polysulphone badge and sheet durante quatro dias sobre a roupa, na altura do ombro. O instrumento fornecido pela University of Manchester do Reino Unido é capaz de mensurar a RUV eritemal eficaz que, embora não seja idêntica à RUV, é eficaz para a síntese de vitamina D, e fornece um proxy adequado para a exposição ao sol para os fins deste estudo (Webb et al., 2010).
O consumo de vitamina D e cálcio foi avaliado por meio de um diário alimentar preenchido durante quatro dias seguidos (incluindo o fim de semana). Para análise dos dados foi utilizado o software Nutrition Data System for Research® (NDSR, Minneapolis, MN, EUA), versão ٢٠١٤. Foi realizada a análise de consistência dos dados dietéticos para identificar possíveis erros na coleta e processamento de dados e usada como base de dados a tabela norte-americana desenvolvida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América. Para verificar a adequação dos valores nutricionais dos alimentos presentes no programa foram utilizadas as Tabelas Brasileiras de Composição de Alimentos da Universidade de Campinas (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação [NEPA], 2011) e da Universidade de São Paulo (Tabela Brasileira de Composição de Alimentos [TBCA], 2017). Foram utilizados os alimentos que obtiveram percentuais de concordância entre 80% e 120% dos valores de energia e macronutrientes. Os nutrientes Cálcio e Vitamina D foram corrigidos após a exportação dos dados do NDSR, de acordo com os valores disponíveis nas tabelas nacionais (NEPA, 2011; TBCA, 2017).
Dados de idade, altura, peso, escolaridade, cor da pele, tabagismo e consumo de bebida alcoólica foram obtidos por meio de um questionário autoaplicável. A escolaridade foi apurada em anos e classificada em níveis (ensino fundamental, médio e superior). A cor da pele foi autodeclarada como preta, parda, branca ou outra (asiática ou indígena). O status de tabagismo foi auto relatado como já ter fumado, fuma atualmente e nunca fumou. O IMC foi definido como o peso (quilogramas) dividido pela altura (metros) ao quadrado. Dados sobre o consumo de bebida alcoólica foram avaliados como ingestão habitual semanal de bebida alcoólica ou não.
Os níveis de atividade física foram obtidos a partir do Questionário Internacional de Atividade Física (IPAQ), já validado no Brasil (Matsudo et al., 2001). A mulher que realiza atividade física intensa é caracterizada como aquela que realiza atividade vigorosa por cinco ou mais dias por semana com duração de 30 ou mais minutos por sessão. A mulher que realiza atividade vigorosa por três ou mais dias por semana e com duração de 20 ou mais minutos por sessão somada com atividade moderada e/ou caminhada por cinco dias na semana, com duração de 30 ou mais minutos por sessão, também é caracterizada como aquela que realiza atividade física intensa.
Para identificar distúrbios psiquiátricos não psicóticos em ambientes de cuidados primários e na comunidade foi utilizado o instrumento de triagem General Health Questionnaire (GHQ), versão de 12 itens, concebido para uso em inquéritos populacionais em geral (Goldberg, 1978). O instrumento já foi validado na população brasileira (Mari & Williams, 1985) e, de acordo com os escores de angústia, as mulheres foram classificadas em dois grupos: a) com sintomas de depressão, e b) sem sintomas de depressão. O tipo de angústia mais conhecido e mais prevalente em mulheres é a depressão (Rondó et al., 2013).
2. Avaliação sérica de 25(OH)D
As concentrações séricas de 25(OH)D foram medidas por quimiluminescência. Acredita-se que a 25(OH)D sérica seja o melhor biomarcador do status da vitamina D, pois pode refletir fontes de vitamina D tanto da exposição solar quanto da dieta (Zerwekh, 2008). O instrumento de medição foi Centaur XP, fabricante Siemens, Cidade e país do fornecedor foi São Paulo, Brasil, calibrado por ensaio de proficiência Controllab e PNCQ (Programa Nacional de Controle de Qualidade). As medidas do instrumento comparadas com as medidas de espectroscopia de massa foram: ADVIA Centaur VitD = 0,93 (ID-LC/MS/MS) + 2,89ng/ml (7,23nmol/l), r=0,99. A concentração sérica de 25(OH)D foi dicotomizada em duas categorias: a) suficiente (> 50nmol/L) e b) deficiente (<50nmol/L).
3. Avaliação da vegetação circundante residencial
Foi utilizado o Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (NDVI) como indicador de exposição às áreas verdes. Foi definido como a vegetação circundante residencial, caracterizada como a quantidade de verdura fotossinteticamente ativa derivada do Landsat 8 imagens Thematic Mapper (TM), com resolução espacial de 30m x 30m (multiespectral) (Dadvand et al., 2014). O NDVI é um indicador de verdura com base na refletância da superfície da terra de partes visíveis (vermelho) e infravermelho próximo de espectro, que varia entre -1 e 1 (Persson et al., 2018). Valores positivos mais altos indicam mais verde. Valores de NDVI de 0,2 a 0,5 são associados a vegetação esparsa e em crescimento. Valores acima de 0,5 indicam dossel superior da vegetação densa e saudável. Os valores negativos de NDVI correspondem principalmente a corpos d’água (O’Callaghan-Gordo et al., 2020). O software de geoprocessamento QGis 3.16.7 foi utilizado para realizar as análises.
Foram utilizadas imagens Landsat TM sem nuvens disponíveis durante o verão (período máximo de vegetação do ano para a região de estudo) do Sistema de Observação da Terra do INPE (http://www.dgi.inpe.br/catalogo/). Com base nesta pesquisa, foi gerado o NDVI usando a imagem obtida em janeiro de 2019. Na área de estudo não havia grandes corpos d›água, de forma que os valores negativos afetassem as médias finais de verde; assim não foi necessário excluir essas áreas das imagens de satélite NDVI antes da análise dos dados.
Para análise da exposição ao verde residencial das participantes, foram georreferenciados (geocodificados) os endereços das suas moradias de acordo com o código postal, nome da rua e número da casa. Para cada participante, a vegetação circundante residencial foi abstraída como a média de NDVI em buffers de 100m, 250m, 500m e 1000m (Dadvand et al., 2014) em torno de seu endereço de residência geocodificado. Através desta análise, foi realizada uma classificação de áreas com índices de vegetação circundante residencial abaixo ou acima da mediana. O valor de NDVI abaixo da mediana foi considerado como baixa exposição à vegetação circundante residencial e o valor acima da mediana foi considerado como alta exposição à vegetação circundante residencial.
4. Análise estatística
Foi usado um modelo de regressão logística para analisar a associação entre o índice de vegetação circundante residencial e o status de vitamina D. Foram analisadas como variáveis categóricas:
Nível de RUV - Polysulphone badge and sheet <2 SED ou >=2.
Sobrepeso - IMC > 25 (ou 27 para maiores de 60 anos de idade).
Depressão - Sem sintomas de depressão (GHQ <3) e com sintomas de depressão (GHQ >=4).
Nível de atividade física - Mulher que realiza ou não atividade física intensa.
Faixa etária - Idade >50 anos ou <=50 anos.
Cor da pele - Branca ou parda/preta.
Escolaridade - Com ou sem nível superior.
Fumar - Hábito de fumar atual ou não.
Beber - Consumo de bebida alcoólica semanalmente ou não.
Ingestão de vitamina D - Ingestão de vitamina D acima ou abaixo da mediana.
Ingestão de cálcio - Ingestão de cálcio acima ou abaixo da mediana.
As características das participantes do estudo de prevalência, em relação à exposição ao NDVI abaixo ou acima da mediana, dentro do buffer de 100m, 250m, 500m e 1000m ao redor de cada endereço residencial, foram analisadas por testes qui-quadrado de Pearson para as variáveis categóricas. A existência de colinearidade foi avaliada por meio do fator de inflação da variância, ajustado para todos os potenciais confundidores (Greenland et al., 2016). O nível de significância foi estabelecido em p=0,05. O software R 3.6.3 para Mac foi usado para a análise estatística. Os dados são apresentados como razão de prevalências (intervalos de confiança de 95%).
IV. Resultados
As participantes moravam na área urbana e apresentavam, em média, 51 anos de idade, IMC de 26,7kg/m2, exposição à RUV de 2,2SED, nível de vitamina D de 63,8nmol/L, e 15,8% das participantes apresentaram insuficiência de vitamina D.
1. Análise da razão de prevalências
A prevalência de insuficiência de vitamina D foi maior entre mulheres com baixa exposição à RUV (27,5% vs 4,4%, p=0,002), com uma razão de prevalência de 6,2 (intervalo de confiança de 95% [IC] 1,68-22,7) (quadro I). A prevalência de insuficiência de vitamina D também foi maior entre mulheres com sobrepeso (22% vs 7,1%, p=0,04), contudo a razão de prevalência de 3 perdeu significância (intervalo de confiança de 95% [IC] 0,87-10).
A prevalência de sintomas de depressão foi maior entre mulheres com insuficiência de vitamina D (68,8% vs 35,3%, p=0,01), com uma razão de prevalência de 1,95 (intervalo de confiança de 95% [IC] 1,1-3,5). No modelo ajustado para o IMC na associação entre exposição à insuficiência de vitamina D e sintomas de depressão, a razão de prevalência foi de 3,2 (intervalo de confiança de 95% [IC] 1,02-11,3).
Como quase todas as participantes (97%) tiveram ingestão de vitamina D abaixo dos 10 µg/dia recomendados, optou-se em fazer a análise conforme o valor da mediana. A mesma análise foi realizada para a ingestão de cálcio, pois mais de 80% tiveram ingestão média abaixo da ingestão dietética recomendada (IOM, 2011). Contudo, os resultados não alcançaram significância estatística.
Variáveis de exposição | Vitamina D | ||
---|---|---|---|
Suficiente (n) | Insuficiente (n) | P-valor | |
RUV | 0,002 | ||
Alto | 43 | 2 | |
Baixo | 37 | 14 | |
IMC | 0,04 | ||
Normal | 39 | 3 | |
Alto | 46 | 13 | |
Depressão | 0,01 | ||
Sem sintomas | 55 | 5 | |
Com sintomas | 30 | 11 | |
Inatividade física¹ | 0,052 | ||
Não | 25 | 1 | |
Sim | 60 | 15 | |
Faixa etária | 0,26 | ||
Maiores de 50 anos | 45 | 6 | |
Até 50 anos | 40 | 10 | |
Cor da pele | 0,68 | ||
Branca | 62 | 11 | |
Parda/preta | 22 | 5 | |
Escolaridade | 0,76 | ||
Graduação | 46 | 8 | |
Até o ensino médio | 39 | 8 | |
Hábito de fumar¹ | 0,07 | ||
Não | 66 | 9 | |
Sim | 19 | 7 | |
Consumo de bebida alcoólica | 0,72 | ||
Não | 57 | 10 | |
Sim | 28 | 6 | |
Uso de protetor solar diariamente | 0,71 | ||
Não | 41 | 7 | |
Sim | 43 | 9 | |
Ingestão de vitamina D acima da mediana | 0,37 | ||
Não | 38 | 9 | |
Sim | 42 | 6 | |
Ingestão de Cálcio acima da mediana | 0,17 | ||
Não | 38 | 10 | |
Sim | 42 | 5 |
Nota: Algumas das 101 participantes não responderam a todas questões.
2. Análise do NDVI e associação com a insuficiência de vitamina D
Na figura 3, é apresentada a superfície contínua de NDVI gerada a partir das imagens Landsat TM. Ao dividir a superfície NDVI em três classes, foi observado que as participantes moravam em uma classe com valor muito baixo (0,05), indicando a escassez de vegetação. Em relação aos níveis de vitamina D, foi verificado um padrão aleatório da distribuição espacial dos casos de insuficiência.
Foram calculados os valores médios de NDVI dentro dos buffers de 100, 250, 500 e 1000 metros do endereço geocodificado das participantes. Na figura 4, é possível observar valores de NDVI que estavam acima ou abaixo da mediana, conforme os diferentes buffers. Nos buffers de 1000 e 500 metros, verifica-se que as moradoras na região central da cidade de Araraquara estavam menos expostas a áreas verdes.
Foi feita a análise de associação entre o índice de vegetação circundante residencial em diferentes buffers e demais variáveis. A prevalência de insuficiência de vitamina D foi maior entre mulheres que moravam em locais com baixo índice de verde circundante residencial no buffer de 1000m (24% vs 8%, p=0,03). Contudo, a razão de prevalência não apresentou significância estatística (intervalo de confiança de 95% [IC] 0,97-9,27) (quadro II).
Mediana NDVI 1000 | Mediana NDVI 500 | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Abaixo | Acima | P-valor | Abaixo | Acima | P-valor | |
Vitamina D | 0,03 | 0,27 | ||||
Suficiente | 38 | 46 | 40 | 44 | ||
Insuficiente | 12 | 4 | 10 | 6 | ||
IMC | 0,42 | 0,68 | ||||
Normal | 23 | 19 | 22 | 20 | ||
Alto | 27 | 31 | 28 | 60 | ||
RUV | 0,001 | 0,005 | ||||
Alto | 14 | 30 | 15 | 29 | ||
Baixo | 33 | 18 | 32 | 32 | ||
Atividade física | 0,49 | 0,82 | ||||
Sim | 11 | 14 | 12 | 13 | ||
Não | 39 | 36 | 38 | 37 | ||
Angústia | 0,41 | 0,41 | ||||
Não | 28 | 32 | 28 | 32 | ||
Sim | 22 | 18 | 22 | 18 |
A prevalência de baixos níveis de RUV foi maior entre mulheres que moravam em locais com baixo índice de verde circundante residencial no buffer de 1000m (70,2% vs 37,5%, p=0,001), com uma razão de prevalência de 1,87 (intervalo de confiança de 95% [IC] 1,24-2,82). Também houve maior prevalência de baixos níveis de RUV entre mulheres que moravam em locais com baixo índice de verde circundante residencial no buffer de 500m (68,1% vs 39,6%, p=0,005), com uma razão de prevalência de 1,72 (intervalo de confiança de 95% [IC] 1,14-2,6). Para os demais buffers, nenhuma associação significativa entre a exposição ao NDVI verde e demais variáveis foram encontradas.
V. Discussão
Dependendo da estrutura da copa das árvores, é possível que os raios UVB não cheguem à superfície, principalmente quando suas sombras obscurecem o sol e o céu. Sob árvores que obscurecem o sol, mas deixam grande parte do céu à vista, a irradiância UVB será maior, mesmo que seja substancialmente reduzida (Heisler et al., 2003). Outros fatores afetam o grau de proteção à RUV fornecidos pela sombra das árvores e incluem refletividade das superfícies circundantes e comportamentos individuais, como níveis de atividade física ao ar livre e tipo de roupa (Parisi et al., 2020).
O maior acesso a áreas verdes contribui para realização de atividades físicas e status de peso normal (Markevych et al., 2017), variáveis essas associadas aos níveis adequados de vitamina D, como demonstrado no presente estudo (P=0,052 e P=0,04, respectivamente). Estudos encontraram associações inversas entre certas medidas de exposição à árvore e IMC, incluindo mais manchas de árvores urbanas bem conectadas, maior proximidade com florestas e maior densidade de árvores nas ruas (Choi et al., 2011; Dadvand et al., 2014; Kim et al., 2014; Lovasi et al., 2012; Ulmer et al., 2016). Viver em ambientes mais verdes também está associado ao aumento das atividades, como caminhada, redução do uso de veículos motorizados e participação mais ativa em atividades físicas recreativas (Fernandes & Barreto, 2017, Villeneuve et al., 2018). Tendais e Ribeiro (2021) estudaram a relação entre espaços verdes urbanos e saúde mental durante o confinamento na pandemia da Covid-19, mostrando o efeito de reduzir a exposição a condições adversas de habitações inadequadas e superlotadas. Logo, as atividades físicas ao ar livre promovidas pelos espaços verdes contribuem para a maior exposição à luz solar, permitindo a produção cutânea de vitamina D. Em nosso estudo, a definição de atividade física não foi informativa o suficiente para saber o tempo gasto ao ar livre, tornando-se assim um limitante para a análise de mediação desta atividade na síntese da vitamina D. Também não foram levantados os deslocamentos feitos a pé ou por bicicleta para ir ao trabalho, geralmente de grande regularidade e exposição aos elementos do clima.
Os benefícios das árvores urbanas para a saúde humana são comprovados em muitos desfechos e incluem tópicos relacionados com a redução da poluição do ar e da exposição ao calor. Em um país de clima tropical, a menor exposição ao calor pode se relacionar, direta ou indiretamente, com maiores concentrações de 25(OH)D, pois um ambiente ao ar livre com microclima agradável torna-se mais convidativo à exposição da pele ao sol. Em contrapartida, a deficiência de vitamina D pode ser agravada pela poluição do ar, que reduz a exposição aos raios UVB, além de desestimular a exposição ocupacional ao sol (Mendes et al., 2019). Na Cidade do México, a deficiência de vitamina D é um problema, pois a radiação ultravioleta é bastante reduzida pela poluição (Galindo et al., 1995). Desta forma, outro limitante do presente estudo é a ausência de uma análise da influência direta e indireta das árvores sobre a exposição ao calor e à poluição atmosférica local. Guedes Vidal et al. (2021) revelaram que em espaços da cidade onde há maior privação socioeconômica e ambiental os espaços verdes são percebidos pelos seus utilizadores como de menor qualidade e, portanto, podem ser menos atrativos. Franco & Marques da Costa (2021) concluíram que, em uma comunidade vulnerável de Sintra, Portugal, a população praticante de atividades físicas constitui uma minoria e que isso decorre de vários fatores: socioeconômicos, extensão das deslocações casa-trabalho e horários a que estas se verificam e a composição do agregado familiar, além do pouco acesso aos espaços verdes. Este padrão repete-se em vários municípios da Área Metropolitana de Lisboa, mostrando a validade da tendência (Louro et al., 2021).
Achados indicam que a vitamina D pode ser o mediador entre o verde residencial e a mortalidade (Zhu et al., 2020). A associação entre deficiência de vitamina D e várias doenças, como osteoporose, hipertensão, doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, e mais recentemente Covid-19, é evidenciada em vários estudos observacionais (Acharya et al., 2021, Dawson-Hughes et al., 2020, Holick, 2007, Martineau et al., 2017, Mcdonnell et al., 2018, Oristrell et al., 2021, Vimaleswaran et al., 2014, Zhou et al., 2022). Como encontrado no presente estudo, associações sugerem que tanto a deficiência quanto a insuficiência de vitamina D também podem ser fatores de risco para o desenvolvimento de depressão de início recente em adultos de meia-idade (Ronaldson et al., 2020). Já a associação entre o verde residencial e sintomas de depressão não foi encontrada no presente estudo. Contudo, outros estudos demonstram que a exposição a áreas verdes está associada a medidas mais baixas dos sintomas de ansiedade, raiva, confusão, fadiga e depressão (Morita et al., 2007, Park et al., 2011), em especial para mulheres, ao caminhar na floresta (Shin et al., 2013).
Há de se considerar ainda que o NDVI médio de um bairro é apenas uma estimativa do acesso real ao espaço verde, e não foram medidos todos os fatores que influenciam o comportamento individual ao ar livre. Ainda assim, os resultados do estudo fornecem uma primeira visão sobre a conexão entre vitamina D e vegetação urbana e podem ser importantes para um planejamento urbano saudável no Brasil.
VI. Proposições para futuros estudos
Em estudos de Geografia da Saúde, os mapas têm um papel central na geração e verificação de hipóteses sobre condições de saúde e para a compreensão dos seus determinantes sociais e ambientais. O geoprocessamento, além de uma mera localização no território, se presta a estabelecer correlações espaciais e a analisar fenômenos dinâmicos e complexos. O uso de NDVI, como indicador de vegetação circundante residencial, tem sido frequente na literatura científica e tem possibilitado análises de associação do tipo multinível para diversos desfechos em saúde (Nichani et al., 2020, Persson et al., 2018). Entretanto, poucos estudos foram encontrados sobre a associação entre área verde residencial e status de vitamina D, principalmente estudos que utilizassem NDVI. Entre eles está o estudo realizado por Zhu e colaboradores que analisou a associação entre maior média anual de NDVI e maiores chances de níveis suficientes de vitamina D. O estudo longitudinal rastreou as mudanças nas concentrações séricas de 25(OH)D em relação ao verde residencial (Zhu et al., 2020). Já Fransen (2021) investigou a associação entre o espaço verde residencial durante a gravidez e o status de vitamina D no nascimento, bem como o efeito do verde na densidade mineral óssea em crianças, já que foi o primeiro estudo a encontrar uma associação entre espaço verde residencial e saúde óssea em crianças (Fransen, 2021). Até onde sabemos, o estudo agora apresentado é o primeiro sobre a relação do status de vitamina D com o nível de verde residencial realizado no Brasil, utilizando NDVI. O estudo fornece evidências sobre os benefícios das áreas verdes na saúde, precisando assim que a análise seja continuada. A extração de conhecimento inovador e inédito, a partir de uma quantidade de dados requer um conhecimento interdisciplinar, tomando o espaço geográfico como indicativo das condições de vida da população que nele reside.
A idade está entre as variáveis que precisam ser mais detalhadas. Os idosos apresentam capacidade reduzida para produção de vitamina D, absorção de cálcio e produção renal de 1,25(OH)2D (Gallagher, 2013). Contudo, melhores hábitos de vida na velhice, como realizar mais atividades ao ar livre, podem interferir positivamente na produção cutânea da vitamina D através da maior exposição ao ultravioleta (Santana et al., 2022). Tendo em vista que o envelhecimento se tem mostrado um determinante essencial na síntese de vitamina D, a continuação do estudo, com número de amostra suficiente que permita a categorização por idade, fornecerá resultados mais completos sobre a influência do ambiente arbóreo.
Uma caminhada de 20 minutos, durante o intervalo do almoço, em um ambiente urbano, seria suficiente para alcançar o status adequado de vitamina D. Esse cálculo é realizado em condições de céu aberto e em países localizados em latitudes médias, considerando 1000UI suficientes para alcance de status adequado de vitamina D (Mckenzie et al., 2009; Schrempf et al., 2017; Seckmeyer et al., 2013). As condições climáticas dos países tropicais podem trazer novos resultados sobre o tempo necessário de exposição a luz solar para a síntese de vitamina D. São necessárias, também, análises sobre conforto térmico ao ar livre, estilo de vida e poluição do ar.
Poucos alimentos contêm naturalmente vitamina D, o que reforça o peso que a exposição adequada ao sol tem sobre níveis ideais da vitamina no corpo humano. Alimentos que contêm vitamina D (salmão ou outros peixes oleosos, óleo de fígado de bacalhau, leite, ovos e cogumelos secos ao sol) (Holick, 2007), são de baixo consumo no Brasil. Níveis baixos da ingestão de vitamina D foram observados no presente estudo, não havendo associação com as concentrações de 25(OH)D.
Há ainda necessidade de aprofundar estudos sobre NbS, de forma a que evolua como uma ferramenta baseada no rigor científico e pesquisa acadêmica. Entre outras classificações, as abordagens podem ser relacionadas à gestão baseada em ecossistemas, à restauração de paisagens florestais e à infraestrutura verde. O plantio e a preservação de árvores no ambiente urbano de países tropicais poderiam contribuir para tornar o clima local mais agradável à exposição solar, com temperaturas mais amenas. Esses temas são sensíveis à síntese da vitamina D e podem contribuir para o alcance dos níveis adequados, evitando a necessidade de suplementação farmacêutica do nutriente.
Agradecimentos
Ao SESA - Serviço Especial de Saúde de Araraquara e sua equipe. Às Mulheres que participaram da pesquisa.
À Capes - Coordenadoria de apoio ao Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil. Ao CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico. À UGPN - University Global Partnership Network.
Contributos dos/as autores/as
Keila Valente de Souza de Santana: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original. Sofia Lizarralde Oliver: Análise formal; Redação - revisão e edição; Visualização. Thais Mauad: Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Redação - revisão e edição; Visualização. Maria Aparecida de Oliveira: Software; Validação; Redação - revisão e edição; Visualização. Tiana Carla Lopes Moreira: Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Redação - revisão e edição; Visualização. Susan Lanham-New: Conceptualização; Metodologia; Visualização; Aquisição de financiamento. Helena Ribeiro: Conceptualização; Metodologia; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto; Aquisição de financiamento.