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Revista Portuguesa de Saúde Pública
versão impressa ISSN 0870-9025
Rev. Port. Sau. Pub. v.29 n.1 Lisboa jan. 2011
Conhecimento de factores de risco e de profilaxia na transmissão da brucelose humana nos profissionais da pecuária na província do Namibe Angola 2009
Franco Cazembe Mufindaa, Carlos Henrique Kleinb
aDepartamento Provincial de Saúde Pública e Controlo de Endemias, Província do Namibe, Angola. mufinda@portugalmail.com
bEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
Introdução: A brucelose humana é endémica e problema de saúde pública em África, inclusive em Angola. O objectivo do presente estudo foi observar os níveis de conhecimento dos factores de risco e de profilaxia na transmissão da brucelose nos profissionais da pecuária da Província do Namibe (Angola), comparando os criadores de gado com os trabalhadores de talhos, salas municipais de abate e matadouro. Material e métodos: Tratase de um estudo seccional, realizado em Novembro de 2009, com aplicação de questionário sobre aspectos sóciodemográficos, conhecimento de factores de risco e de profilaxia. Todos os trabalhadores (N = 40) e uma amostra aleatória dos criadores (n = 130), controlados pelo Departamento Provincial da Pecuária do Namibe, foram entrevistados. Resultados: 60,8 % dos profissionais declararam não ter ouvido falar de brucelose. Os criadores demonstraram maior conhecimento do que os trabalhadores. Quanto à profilaxia não há diferenças relevantes. Conclusões: Não há associação entre conhecimento de factores de risco e profilaxia da brucelose humana.
Palavras Chave: Brucelose humana. Conhecimento de factores de risco. Profilaxia.
Knowledge of risk factors and prevention of human brucellosis transmission in the livestock professionals in the province of Namibe Angola 2009
Abstract
Background: Human brucellosis is endemic, and a public health problem in Africa, including in Angola. The objective was to observe the levels of knowledge of risk factors and prevention in occupational transmission of brucellosis in livestock in the Province of Namibe (Angola) comparing the farmers with workers in slaughterhouses, municipal halls of slaughter and the slaughterhouse. Materials and methods: A crosssectional study was conducted in November 2009, with application of a questionnaire on sociodemographics, knowledge of risk factors and prevention. All workers (N = 40) and a random sample of farmers (n = 130), controlled by the provincial Department of Livestock Namibe, were interviewed. Results: 60.8 % of professionals declared to ignore what brucellosis was. The creators demonstrated greater knowledge than the workers. No relevant difference was found as far as the prophylaxis is concerned. Conclusions: There is no association between knowledge and prophylaxis of human brucellosis.
Keywords: Human Brucellosis. Knowledge of risk factors. Prophylaxis.
Introdução
A brucelose é uma zoonose de grande importância económica em saúde pública. Em países com um baixo nível sanitário, a enfermidade tem um carácter profissional. Na espécie humana, a brucelose é considerada uma antropozoonose e uma doença ocupacional 1. Ela tem uma distribuição mundial com uma alta taxa de morbilidade, 500,000 casos por ano e baixa mortalidade. Em trabalhadores de matadouros, o contacto infeccioso tem como fonte as carcaças e vísceras de animais e através da formação de aerossóis presentes neste ambiente laboral 2-4.
Segundo Kunda et al. 5, citando vários autores, a prevalência da brucelose em África é a seguinte: 3 % no Malawi (Bernard, 1993); 2,27 % no Sudão (Mahmoud, 1991); 4,2 % na Etiópia (Tekelye-Bekele, 1989); 5,45 %-17,5 % no Kenya (Waghela, 1977; Ndarathi e Waghela, 1991); 9,5 % na Somália (Wernery et al, 1979); 7 %-50 % na Nigéria (Eze, 1977); 37,9 %-61,8 % no Egipto (Refai, 1990).
Em Angola, a brucelose acomete populações que se dedicam a criação de gado. No Namibe, o estudo dos Médicos Sem Fronteiras 6 apontou taxa de prevalência de 4,68 % de brucelose humana nos municípios de Bibala e Kamucuio e outro em gados bovinos no Virei dirigido pelo departamento Provincial da Pecuária apresentou 27,7 % de Brucella bovis 7.
Namibe é uma província que se situa no Sudoeste da República de Angola. O clima é árido e desértico. Tem uma densidade populacional de 21 hab/km2. A população é heterogénea e dedica-se principalmente à pesca, pastorícia e agricultura 8.
O objectivo deste trabalho é identificar o nível de conhecimento dos factores de risco envolvidos na transmissão da doença do animal para o homem em matadouro, salas de abate, talhos e sambos (criações de animais) e aspectos relacionados com a profilaxia da doença no homem.
Material e métodos
A estratégia geral é de um estudo epidemiológico seccional 9.
O instrumento de colecta de informações no campo consistiu num questionário pré-codificado e padronizado com perguntas fechadas abordando variáveis relacionadas com conhecimento e profilaxia da brucelose humana, além de questões sócio-demográficas. As entrevistas foram realizadas no mês de Novembro de 2009. O questionário apresentou perguntas aplicáveis a todo grupo dos profissionais da pecuária e específicas para trabalhadores ou criadores. Estas últimas, foram sobre profilaxia para os trabalhadores ("desinfecta as mãos no trabalho") e sobre conhecimento, profilaxia. Para obter a compreensão foi necessária a utilização do dialecto local, o Nhaneca-Umbi.
As questões sócio-demográficas se relacionaram com idade, sexo, naturalidade, grau de educação formal, posição e inicio na actividade. A posição na actividade foi dividida em três categorias: legado, empreendedor e contratado. Entende-se por legado o indivíduo que herdou a actividade de seus ancestrais, empreendedor aquele que inicia a actividade e o contratado aquele que é empregado. O início da actividade foi dividido em três categorias: menor (menos de 12 anos), adolescente (de 12 a 17 anos) e adulto (de 18 anos ou mais).
O conhecimento foi caracterizado de acordo com os aspectos que se relacionam com "ouvir falar" da brucelose, com o reconhecimento da brucelose como antropozoonose, suas formas de transmissão aos humanos, de prevenção, sua transmissão pelo leite azedo ou materiais fecais de animais, a existência da vacina animal e a necessidade de uso de equipamentos de biossegurança. O leite azedo referenciado diz respeito ao fermentado ou não pasteurizado, conhecido por "Mahini" em Nhaneca-Umbi, muito estimado e usado como condimento na alimentação diária da população pastoril no sul de Angola.
Quanto à profilaxia, os trabalhadores foram inquiridos sobre o consumo de leite azedo, a fervura do leite fresco e o contacto com excrementos de animais. O leite fresco é o leite in natura, pós-ordenha, não fermentado e que não sofreu fervura. Além disto, aos trabalhadores se inquiriu se desinfectavam as mãos no trabalho, e aos criadores foi inquirido se tomavam medidas de protecção no parto animal, e se separavam os animais que abortavam, por pelo menos um mês.
Adicionalmente foram construídas variáveis para medição resumida do conhecimento e da profilaxia. A do conhecimento foi baseada na combinação das respostas às perguntas específicas sobre conhecimento, descritas acima. Esta variável tem três categorias. A de conhecimento completo corresponde à combinação de respostas correctas às oito perguntas correspondentes, enquanto que a de nenhum conhecimento corresponde à combinação de todas respostas incorrectas. A categoria intermediária, de conhecimento parcial, reúne aqueles que responderam correctamente a pelo menos uma das questões. Também foram construídos escores de conhecimento sobre factores de risco baseados em somas simples, atribuindo-se um ponto à cada resposta correcta às oito perguntas sobre conhecimento descritas acima.
Para resumir a medida de profilaxia foram combinadas as respostas correspondentes às questões descritas acima, sobre profilaxia. Esta variável também tem três categorias. A de nível de profilaxia completo corresponde à combinação de respostas correctas às perguntas correspondentes, segundo o tipo de profissional, enquanto que a de nenhum conhecimento corresponde à combinação de todas respostas incorrectas. A categoria intermediária, de nível de profilaxia parcial, reúne aqueles que responderam correctamente a pelo menos uma das questões. Os escores de profilaxia foram construídos por somas simples, atribuindo-se um ponto a cada uma das três questões comuns à trabalhadores e criadores sobre profilaxia (consumo de leite azedo, fervura do leite fresco e contacto com excrementos).
Amostragem
Para conhecer a população de referência do estudo (trabalhadores e criadores) foram utilizados os relatórios do Departamento Provincial da Pecuária de 2005 e 2006, provenientes da Secretaria da Direcção da Agricultura e Desenvolvimento Rural 7,10. A população de referência são os profissionais da pecuária, da Província do Namibe de Angola, divididos em dois grupos: os trabalhadores de matadouro, talhos e salas de abate, e os criadores de animais (gados bovino, caprino, ovino e suíno). Os trabalhadores, oficialmente controlados pelo Departamento Provincial da Pecuária do Namibe até Setembro de 2009, constituíam um universo de 40 pessoas, enquanto que os criadores, conhecidos pelo mesmo departamento, eram 377 indivíduos.
Planeou-se entrevistar todos os trabalhadores, portanto obter os parâmetros populacionais das variáveis investigadas nos trabalhadores. Já em relação aos criadores foi seleccionada uma amostra, de acordo com um processo de amostragem aleatória simples, isto é, sem reposição 11. Para uma estimativa de 15 % e um erro amostral admitido de 5 %, para um intervalo de confiança de 95 %, o tamanho da amostra aleatória simples foi calculado em 130 criadores. A selecção dos indivíduos foi feita utilizando-se uma tabela de números aleatórios gerada pelo programa Epi Info 12. Portanto, dos criadores foram obtidas estimativas dos parâmetros populacionais.
Critérios de inclusão e exclusão
Para inclusão no estudo foram considerados somente os profissionais da pecuária pertencentes ao sistema formal controlados pelo Departamento Provincial da Pecuária do Namibe, tanto os trabalhadores como os criadores. Como critérios de exclusão foram considerados não pertencentes à população de estudo os profissionais do sistema informal, ou seja, os trabalhadores que praticavam o abate clandestino e venda de carne em mercados informais e os criadores dos desconhecidos pelo departamento de pecuária, geralmente nómadas.
Análise dos dados
O questionário foi produzido com Word XP 13 e informatizado com Excel XP 14. A análise foi feita com o programa Stata 15. As tabelas foram construídas cruzando os resultados das variáveis investigadas de acordo com os grupos de profissionais da pecuária, trabalhadores e criadores. Os percentuais correspondentes foram estimados para as categorias de cada variável, inclusive os limites dos intervalos de confiança de 95 %. A estratégia geral para confrontações entre os grupos consistiu nas comparações dos limites dos intervalos de confiança, de 95 %, das estimativas obtidas para os criadores com os parâmetros obtidos para os trabalhadores. Também foram obtidas estimativas para o conjunto dos profissionais da pecuária utilizando-se as ponderações correspondentes aos grupos (trabalhadores e criadores). Estas ponderações correspondem aos inversos das fracções amostrais, que no caso dos trabalhadores foi igual a 40/40 (= 1) e no caso dos criadores foi igual a 130/377 (≈0,3448). Os limites dos intervalos de confiança de 95 % foram construídos utilizando-se uma transformação logito de p (ln p/(1-p)) para obter apenas valores entre os limites 0 e 100 % 15.
As diferenças de distribuições dos escores de conhecimento e de profilaxia foram testadas com a estatística Mann-Whitney 16. Para testar a independência entre níveis de conhecimento e de profilaxia foi utilizado o teste de qui-quadrado de Pearson, corrigido para o delineamento amostral, com correcção de segunda ordem de Rao e Scott 17, convertido para estatística F 15.
Aspectos éticos
A participação foi condicionada por consentimento livre e informado, seguindo-se as orientações de Helsínquia e da CIOMS-2002 (Council for International Organizations of Medical Sciences), referentes à pesquisa com seres humanos, evitando qualquer tipo de dano físico ou moral conforme observação do comité de ética da ENSP-FIOCRUZ na carta N.º 03/10-CEP/ENSP de 29 de Julho de 2010.
Resultados
Todos os profissionais seleccionados para participar no estudo foram entrevistados, portanto, não houve perdas por qualquer motivo, inclusive rejeição.
A tabela 1 resume os achados dos indicadores sócio-demográficos. Os trabalhadores têm um perfil etário mais jovem do que os criadores. Esta observação é corroborada pela comparação das médias de idade que são de 36,9 anos nos trabalhadores e de 48,9 anos (IC 95 %: 47,2; 50,8) nos criadores.
Tabela 1 - Percentuais e intervalos de confiança de 95% de indicadores sócio-demográficos de trabalhadores e criadores da pecuária da Província do Namibe - Angola, 2009
Como o intervalo de confiança da média dos criadores não contém a média de idade dos trabalhadores, pode-se concluir que há diferença estatisticamente significativa entre os grupos de profissionais. No total dos entrevistados predomina o sexo masculino, e não há diferença estatística significativa na distribuição do sexo entre os grupos de profissionais da pecuária. A maioria dos criadores nasceu no Namibe, ao passo que metade dos trabalhadores provém da Huila.
Do total dos profissionais estima-se que apenas 6,3 % têm instrução formal de nível médio. Há diferença estatística significativa entre criadores e trabalhadores quanto ao nível de instrução formal, sendo os últimos mais instruídos. Os trabalhadores iniciaram sua actividade na idade adulta enquanto que metade dos criadores o fizeram ainda menores (diferença estatísticamente significativa). Os trabalhadores pertencentes às categorias de legado e empreendedor são proprietários de talhos enquanto os contratados actuam no matadouro. Há diferença significativa na categoria de legado a qual pertencem quatro quintos dos criadores e na de contratados a qual pertencem mais da metade dos trabalhadores.
A tabela 2 resume os achados sobre o conhecimento dos factores de risco. O nível de conhecimento básico aferido pela evocação da palavra brucelose (Katolotolo em Nhaneca Umbi) foi baixo em ambos os grupos, mas há diferença estatística significativa sendo que os criadores responderam "sim" 2,4 vezes mais do que os trabalhadores. No geral estima-se que dois quintos dos profissionais da pecuária do Namibe já ouviram falar de brucelose. O desconhecimento da brucelose como antropozoonose é generalizado. Entre os criadores pouco mais de um terço reconhece que a doença pode ser transmitida para animais e homens, e o mesmo acontece com um décimo dos trabalhadores (diferença estatisticamente significativa).
Tabela 2 - Percentuais e intervalos de confiança de 95% de respostas positivas a questões sobre conhecimento de factores de risco de brucelose de trabalhadores e criadores da pecuária da Província do Namibe - Angola, 2009
Quase três quartos dos profissionais da pecuária do Namibe não conhecem as formas de transmissão da brucelose. O desconhecimento da prevenção sobre a brucelose é quase total por parte dos trabalhadores e por metade dos criadores (diferença estatisticamente significativa). A maioria dos profissionais da pecuária do Namibe não reconhecem que o leite azedo transmite brucelose, apenas um quarto conhecem esta forma de transmissão. Pouco mais de um quarto dos criadores e menos de dez por cento dos trabalhadores reconhecem a relevância do leite azedo (diferença estatisticamente significativa).
Pouco mais de um terço dos criadores e menos de dez por cento dos trabalhadores reconhecem o papel dos materiais fecais (diferença estatisticamente significativa). Cerca de um quarto dos criadores e menos de um quinto dos trabalhadores reconhecem a importância da vacinação animal (diferença estatisticamente significativa). O percentual de reconhecimento da necessidade de uso de medidas de protecção é quase três vezes maior nos criadores do que nos trabalhadores (diferença estatisticamente significativa).
A tabela 3 resume os achados sobre a profilaxia. Pouco mais de três quartos dos profissionais da pecuária declararam consumir leite azedo. A diferença entre trabalhadores e criadores é estatisticamente significativa, porém não é relevante, porque ambos os percentuais são muito elevados. O percentual estimado de fervura do leite fresco é baixo e a diferença entre trabalhadores e criadores também é estatisticamente significativa, mas não é relevante porque ambos os percentuais são muito baixos.
Tabela 3 - Percentuais e intervalos de confiança de 95% de respostas positivas a questões sobre profilaxia da brucelose de trabalhadores e criadores da pecuária da Província do Namibe - Angola, 2009
Estima-se que pouco menos de 30 % dos profissionais da pecuária não se expõe ao contacto directo com excrementos de animais, sem diferença significativa entre os grupos. Poucos trabalhadores desinfectam as mãos e nenhum dos criadores usa rotineiramente medidas de protecção pessoal durante o parto animal ou separa os animais que abortam, por um mês, de forma usual.
Nenhum dos trabalhadores possuía conhecimento completo dos factores de risco, 30,0 % de nenhum e os demais, 70,0 %, têm conhecimento de pelo menos um dos factores. Quanto aos criadores, apenas 3 dos 130 entrevistados possuíam conhecimento de todos os factores. Porém, 25,4 % não têm nenhum conhecimento e o restante, 72,3 %, de pelo menos um dos elementos. Portanto, os dois grupos não são diferentes quanto ao nível de conhecimento, pois não significância estatística.
Entretanto, se cada resposta correcta aos oito elementos investigados quanto ao conhecimento contribuir com um ponto para a formação de escores, observa-se que as médias dos escores dos trabalhadores (de 0 a 8, as quantidades foram: 12, 18, 7, 3, 0, 0, 0, 0 e 0) e dos criadores (de 0 a 8, as quantidades foram: 33, 15,15, 16, 13, 13, 15, 7 e 3) foram 1,02 e 2,87, respectivamente. O teste de Mann-Whitney para a diferença das distribuições de escores resultou na estatística z = -3,999 e um p-valor = 0,0001. Portanto, a avaliação da diferença entre as distribuições de escores permite supor que os criadores têm mais conhecimento dos factores de risco do que os trabalhadores.
Nenhum dos trabalhadores está totalmente protegido, segundo os elementos positivos para profilaxia. Além disto, 47,5 % estão sem nenhuma protecção e os demais, 52,5 %, estão parcialmente expostos a pelo menos um elemento negativo. Quanto aos criadores, da mesma forma, nenhum está totalmente protegido. Além disto, 53,1 % está sem nenhuma protecção e os demais, 46,9 %, estão parcialmente expostos a pelo menos um elemento negativo. Os dois grupos não são diferentes quanto aos elementos de profilaxia contra a brucelose, pois não significância estatística.
Na comparação das distribuições dos escores formados pela soma de respostas correctas aos elementos de profilaxia comuns a ambos os profissionais da pecuária (não consumir leite azedo, ferver o leite fresco e não ter contacto com excrementos de animais) observa-se que as médias dos escores foram muito aproximadas, de 0,70 e 0,65, para trabalhadores (de 0 a 3, as quantidades foram: 19, 14, 7 e 0) e criadores (de 0 a 3, as quantidades foram: 69, 38, 22 e 1), respectivamente. O teste de Mann-Whitney para a diferença das distribuições de escores resultou na estatística z = 0,458 e um p-valor = 0,6467. Portanto, não há evidência de diferença nas distribuições de escores entre trabalhadores e criadores quanto ao nível de profilaxia.
Na tabela 4 comparam-se os níveis de profilaxia de acordo com os níveis de conhecimento. Entre os de nível de conhecimento parcial, pouco menos da metade se protegem com medidas parciais de profilaxia, enquanto que entre os de nenhum conhecimento, pouco mais da metade se protege de forma parcial. O teste de independência resultou em F = 1,8864 com p-valor = 0,1534. Portanto, não é possível inferir que há associação entre os níveis de conhecimento e de profilaxia.
Tabela 4 - Percentuais estimados e intervalos de confiança de 95% dos níveis de profilaxia segundo os níveis de conhecimento dos profissionais da pecuária da Província do Namibe, Angola - 2009
Discussão
Este trabalho é um estudo de observação seccional e como tal descreve a situação relativa aos aspectos de comportamentos e atitudes, conhecimento dos factores de risco na transmissão da brucelose humana e de profilaxia dos profissionais da pecuária da província do Namibe da República de Angola, em Novembro de 2009. Pelo carácter deste tipo de estudo existem certas limitações. Primeiro, a restrição a observações em uma amostra de criadores pode resultar em erros de estimativas. Segundo, a população de referência se limita aos profissionais da pecuária do sector formal e controlados pelo Departamento Provincial da Pecuária. Portanto, não é possível inferir sobre as condições dos criadores nómadas e trabalhadores das salas de abate informais, que estão além do olhar do sistema de vigilância sanitária. Terceiro, o questionário padronizado e pré-codificado limita o escopo do estudo, não considerando aspectos não contemplados no inquérito.
O estudo fez o recorte dos factores de risco que são reconhecidos pelos profissionais da pecuária do Namibe tendo em consideração os hábitos locais, excluindo aspectos tais como o consumo dos derivados de leite (queijo e manteiga) e de legumes, por estes não serem observados na província. Os relatórios de estudos da brucelose animal e humana realizados nos municípios de Bibala, Kamucuio e Virei, da província do Namibe, indicaram a existência desta doença nos animais e humanos com as respectivas taxas de prevalência de 27,7 % em bovinos e 4,68 % em humanos 6,7. Pelo seu carácter zoonótico, torna-se de primordial importância a identificação e a eliminação das fontes de infecção com a finalidade de bloquear a transmissão ao ser humano e a outros animais susceptíveis 19. O perfil etário dos profissionais da pecuária do Namibe revela que estes são relativamente mais velhos do que a população de Angola. Isto, porque, uma vez que 70,2 % tinham 40 anos ou mais, enquanto que o mesmo só ocorria com 36,4 % dos adultos de Angola em 2004 19. Este perfil etário, dos profissionais da pecuária, se deve principalmente aos criadores, a fracção mais numerosa. Como seria de esperar, o predomínio de homens é quase absoluto entre os profissionais da pecuária. A naturalidade dos criadores é predominantemente ligada a Província do Namibe, enquanto que a maioria dos trabalhadores são oriundos de outras províncias, na busca de melhores condições de vida, em movimento possivelmente ocasionado pela guerra recente e pelo crescimento económico das regiões litorais, conhecido por fenómeno da litoralização. O percentual de escolaridade dos profissionais da pecuária (49,0 %) é próxima daquela estimada para todo o país em 2006 que foi de 45,0 % 18. A educação específica sobre as zoonoses deve começar na infância especialmente, no grupo dos criadores. As actividades de criação de animais começam na infância, pela educação tradicional no cuidado da riqueza, representada pelos animais. A criação de animais é também produto do legado ou herança. A forma de trabalho contratado é muito mais importante para os trabalhadores do que para os criadores.
O trabalho sobre a brucelose bovina e humana, realizado em matadouro municipal de São Luís (Maranhão, Brasil) 20, aferiu que 84,75 % já tinham ouvido falar de brucelose e o mesmo percentual de trabalhadores sabia o que é a brucelose. No presente estudo, no Namibe, obteve-se, respectivamente, os seguintes resultados: 17,5 % e 10,0 % para as mesmas questões feitas aos trabalhadores. Infelizmente o trabalho de São Luís não refere o grau de escolaridade dos seus trabalhadores, mas relata que o matadouro estava sob frequente inspecção oficial enquanto que o matadouro, as salas de abate e talhos do Namibe têm tido inspecções educativas irregulares e insuficientes. Portanto, este pode ser um dos motivos para maior sensibilização dos trabalhadores do matadouro de São Luís em relação ao problema da brucelose. De qualquer modo, o conhecimento geral dos profissionais da pecuária do Namibe sobre a brucelose é muito incipiente, pois pouco mais de um terço ouviu falar da doença e sabe que é uma zoonose.
Apenas pouco mais de um quarto dos profissionais reconheceram as formas de transmissão da brucelose. Muito poucos apontaram o consumo de leite azedo como forma de transmissão. O leite azedo (Mahini) é intimamente ligado a vida nutricional da população pastoril do Namibe. O contacto com restos de animais teve maior cotação. O desconhecimento da maioria aumenta o risco da contaminação 21.
Quanto ao conhecimento da prevenção contra a brucelose, o estudo observou de novo que mais da metade dos profissionais a desconhecem. Mais de um terço dos criadores referiu a vacina animal como meio de prevenção, provavelmente em analogia a outras vacinas aplicadas em bovinos. Entretanto, a vacina contra a brucelose nunca foi aplicada em Angola. Apesar da inexistência da vacina contra a brucelose animal no Namibe, quase um quarto dos profissionais declararam ter ouvido falar deste antígeno, ainda que um percentual maior (35,5 %) acredite tratar-se de um meio eficaz de prevenção. Portanto, há uma razoável sensibilidade dos profissionais, especialmente dos criadores, em relação à necessidade de vacinação.
Os criadores de gado bovino são os potenciais consumidores de leite azedo na sua alimentação diária. Entretanto, um percentual insuficiente dos profissionais reconheceu que o leite azedo pode transmitir a brucelose.
Da mesma forma, mas em nível um pouco superior, houve reconhecimento de que o contacto com os materiais fecais de animais transmitem brucelose. O reconhecimento da necessidade do uso de medidas de biossegurança é insuficiente no conjunto dos profissionais do gado. Mas o pior é que o grupo dos trabalhadores, o que mais necessita de medidas de biossegurança, é o que menos reconhece a sua necessidade. O estudo de São Luis observou que ninguém fazia uso de máscara, nem de luvas e botas 20, enquanto que em estudo sobre factores de risco no Município de Correntes (Estado de Pernambuco, Brasil), encontrou-se 73,2 % das pessoas sem fazer uso do equipamento de protecção individual 22. A observação directa dos trabalhadores do matadouro, salas municipais de abate e talhos do Namibe mostrou que apenas alguns usavam botas e quase todos o fato de protecção (ou macacão). Nenhum utilizava todas as medidas de protecção recomendáveis. Isto é testemunho da fraca vigilância sanitária em Angola.
Para sintetizar o grau de informação sobre o nível de conhecimento a respeito de brucelose, combinaram-se em uma única variável os elementos: ouviu falar de brucelose, que a brucelose é uma antropozoonose, como se transmite aos humanos, suas formas de prevenção, sua transmissão pelo leite azedo ou materiais fecais de animais, existência da vacina animal e necessidade de uso de equipamentos de biossegurança. O conhecimento correcto de todos os elementos sobre conhecimento investigados só foi registrado em 2,1 % dos profissionais. No outro extremo, do conhecimento completamente equivocado, se posicionaram praticamente um quarto dos profissionais o que revela que a maioria tem parcos conhecimentos sobre a brucelose. Em relação aos pontos extremos do conhecimento, completo ou nenhum, trabalhadores e criadores apresentam semelhanças, o que poderia ser justificado pelo facto de terem a mesma base cultural tradicional, apesar de diferirem no grau de instrução formal. Isto indica que a educação formal, dada na juventude, não determina o conhecimento específico sobre brucelose e provavelmente sobre outros agravos correlatos de saúde. Porém, ao observar os elementos específicos do conhecimento, é possível verificar que os criadores parecem ter níveis maiores do que os trabalhadores, pela comparação dos escores. Isto talvez se explique pelo fato de que o cuidado dos animais pelos criadores é mais elevado. Os animais representam valor social e económico mais importante na vida dos criadores do que na dos trabalhadores.
Nas populações angolanas que vivem da pastorícia, com ênfase os povos Kuvales, Mumuilas e outros Hereros, o leite azedo é o acompanhante principal do funji (pirão de farinha de mandioca ou cereais) na sua ração diária. Dois terços dos profissionais de gado confirmaram o consumo de leite azedo, enquanto que o leite fresco só é fervido por um sétimo. Estas atitudes podem potenciar o risco de infecção pela brucelose. Os estudos dos municípios de São Luís 20 e de Correntes 22 observaram frequências relativas de consumo de leite cru de 27,1 % e 78,6 %, respectivamente. Em outro estudo realizado no Município de Araputanga, Mato Grosso-Brasil, encontrou-se o consumo de leite não pasteurizado ou não fervido em 62,1 % das propriedades com criação de bovinos de leite 23.
O percentual de criadores em contacto com excrementos de animais, como era de esperar, é bem maior do que o dos trabalhadores. Mas, mesmo estes têm contacto frequente com excrementos o que significa que o risco de infecção é elevado no conjunto dos profissionais.
Ainda mais, em relação aos trabalhadores são raros os que desinfectam as mãos durante o trabalho. Por outro lado, o trabalho no matadouro de São Luís observou que 98,3 % dos trabalhadores desinfectavam as mãos pelo menos antes das refeições 20. A pouca cultura de higiene básica de lavagem das mãos é uma fonte real de exposição, uma vez que constitui via importante de transmissão de Brucella sp. 24. A lavagem das mãos é atitude simples, mas capital na redução do risco de infecção contra a brucelose, entretanto, a falta de água canalizada e lavatórios em matadouro, salas de abate e talhos da Província do Namibe favorece a contaminação contra brucelose.
Em caso de brucelose animal ou quando acontecem abortos, as autoridades sanitárias orientam os criadores a separar os animais do rebanho durante um mês. Apenas um quinto dos criadores usa medidas de protecção raras vezes durante o parto e ainda é menor a fracção daqueles que raramente separam os animais que abortam do restante do gado. Isto provavelmente se deve ao facto de que há falhas na comunicação entre autoridades e criadores.
Para sintetizar o grau de informação sobre o nível de profilaxia para brucelose combinaram-se em uma única variável os elementos: não consumir leite azedo, ferver o leite fresco, não ter contacto com excrementos de animais e desinfectar as mãos no trabalho (trabalhadores), e usar medidas de protecção durante o parto, separar os animais que abortam (criadores). Não houve diferença entre trabalhadores e criadores quanto à profilaxia que foi completamente inexistente em pelo menos metade dos profissionais. Nenhum dos profissionais observou todos os elementos de profilaxia investigados.
Não foi possível inferir que existe uma relação entre nível de conhecimento e de profilaxia nos profissionais da pecuária da Província do Namibe da República de Angola. Não houve significância estatística na associação, mas o que é evidente e relevante é que os níveis de conhecimento e profilaxia são inadequados. A situação ideal seria aquela em que todos os profissionais tivessem níveis de conhecimento e de profilaxia completos, mas esta condição está muito longe da realidade dos profissionais da pecuária do Namibe. Ainda assim, se houvesse relação perfeita entre conhecimento e profilaxia, logicamente todas as observações deveriam recair na diagonal da Tabela 4
. Porém, não só isto não aconteceu, como se estimou que apenas 42,6 % das observações recaem na diagonal correspondente à perfeita concordância entre conhecimento e profilaxia, ocorrendo grande dispersão de observações fora da diagonal. Além disto, maior percentual de profilaxia parcial foi observado entre os de nenhum conhecimento, enquanto que entre os de conhecimento parcial foi verificado um percentual mais elevado daqueles com nenhuma profilaxia. Este aparente paradoxo pode ter ocorrido por artefacto, isto é, pelo menos em parte, sua explicação pode estar relacionada com viéses de resposta, especialmente nas questões sobre conhecimento, uma vez que o entrevistador é identificado como agente de saúde.A brucelose é zoonose listada entre as doenças negligenciadas, segundo a Organização Mundial de Saúde 25, portanto da sua vigilância deveria participar um sector da infraestutura responsável pela veterinária em saúde pública. No Namibe este papel é desempenhado pelo Departamento Provincial de Pecuária que se vê a braços com número reduzido de veterinários. Como resultado desta precariedade, a brucelose não é diagnosticada, gerando uma percepção errónea de que não é um problema relevante na província. Há um esforço por parte do governo da província em recuperar o sector da pecuária para fortalecer a economia. Entretanto, o controle da brucelose humana necessita da eliminação de seu reservatório animal.
Conclusões e recomendações
Os procedimentos utilizados no tratamento dos produtos da pecuária da Província do Namibe são rudimentares e obsoletos.
O nível de conhecimento dos factores de risco da brucelose humana dos profissionais da pecuária da Província do Namibe é, de maneira geral, insuficiente, ainda que em vários aspectos específicos os criadores tenham demonstrado maior conhecimento do que os trabalhadores de matadouro, talhos e salas de abate.
O nível de profilaxia contra a brucelose humana adoptado pelos profissionais da pecuária da Província do Namibe também é, de maneira geral, insuficiente, tanto por parte de criadores como trabalhadores.
Não há associação entre os níveis de conhecimento dos factores de risco e de profilaxia da brucelose humana nos profissionais da pecuária da Província do Namibe.
Portanto, são recomendações deste trabalho: a) elevar o conhecimento de factores de risco e de profilaxia para brucelose a níveis adequados por meio de educação, inspecções veterinárias, cumprimento de medidas de biossegurança e fervura do leite; b) incrementar a vigilância sanitária animal e humana da brucelose; e, c) incrementar políticas públicas de inclusão da brucelose como doença prioritária, de aumento dos recursos humanos, de coordenação interdisciplinar e de realização de estudos.
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Conflito de interesse
Os autores declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 11 de Setembro de 2010
Aceite em 17 de Fevereiro de 2011