INTRODUÇÃO
O aumento da população mundial, acompanhado da urbanização e industrialização, conduz inevitavelmente ao aumento da produção de todo o tipo de resíduos (Rékási et al., 2019). A ampliação e melhoria das redes de recolha de águas residuais segue este crescimento, contribuindo para um consequente aumento do volume total de lamas provenientes das estações de tratamento de águas residuais (ETARs) (Suleiman et al., 2017). Este subproduto é composto principalmente por água, matéria orgânica, microrganismos, metais pesados, gorduras e sólidos inorgânicos, variando a sua composição com o tipo de zona que é drenada para a ETAR (urbana, industrial, rural), época do ano e ainda com as caracteristicas técnicas do tratamento das águas residuais (Rorat et al., 2017).
A valorização agronómica de lamas como fertilizante, tendo em conta o princípio da economia circular, é um dos possíveis destinos para as lamas de ETAR que se tem vindo a revelar promissor (Suleiman et al., 2017). Contudo, as lamas, para além da matéria orgânica e nutrientes que podem introduzir nos solos, podem conter organismos patogénicos, elementos potencialmente tóxicos como metais pesados, fármacos, compostos aromáticos, hormonas e/ou matéria orgânica não estabilizada que limitam fortemente a sua utilização devido aos elevados riscos de toxicidade e contaminação associados.
A vermicompostagem é um processo acelerado de bio oxidação e estabilização de resíduos orgânicos que envolve a ação conjunta de minhocas, impulsionadoras do processo através da fragmentação do substrato e de microrganismos, responsáveis pela degradação bioquímica (Dominguez, 2004). Este processo tem-se revelado favorável na ultrapassagem das limitações das lamas como matéria fertilizante (Rékási et al., 2019), pois proporciona a estabilização da matéria orgânica e a redução da disponibilidade de compostos potencialmente tóxicos, com vantagens agronómicas e ambientais evidentes.
O objetivo do presente estudo consistiu em avaliar a viabilidade do processo de vermicompostagem em substratos com quantidades variáveis de lamas de ETAR digeridas.
MATERIAL E MÉTODOS
Inicialmente foram preparadas três misturas, em diferentes proporções (massa fresca), de lama de ETAR digerida (LE), estrume de equino maturado (EE) e casca de arroz (CA). As misturas M1, M2 e M3 foram compostas por: M1- 45% LE, 45% EE, 10% CA; M2- 35% LE, 55% EE, 10% CA; M3- 25% LE, 65% EE, 10% CA. As misturas, e o substrato controlo (100% EE), foram sujeitos a 5 semanas de pré-compostagem e manualmente reviradas todas as semanas para eliminação de gases voláteis (NH3 e CH4) potencialmente tóxicos para as minhocas.
No final do período de pré-compostagem foram preparados os substratos para a vermicompostagem. Os substratos consistiram nas misturas iniciais M1, M2 e M3 e em mais três substratos, M1L, M2L e M3L, que corresponderam a 75% de cada uma das misturas iniciais (M1, M2 e M3, respetivamente) com 25% de LE (Figura 1). O tratamento controlo consistiu em estrume de equino maturado (EE).
O processo de vermicompostagem decorreu nos 6 tratamentos com lamas e no tratamento controlo: M1, M2, M3, M1L, M2L, M3L e EE. As misturas foram colocadas em biorreatores constituídos por caixas de polipropileno (20 cm comprimento x 15 cm largura x 10 cm altura) com tampa perfurada para assegurar o arejamento adequado. Antes da sua colocação nos biorreatores, as minhocas (Eisenia fetida) adultas, com clitelo desenvolvido, foram depuradas para limpeza do conteúdo intestinal e procedeu-se ao registo da sua massa corporal (29 minhocas/ kg de mistura, massa fresca). O teor de humidade dos biorreatores foi reposto sempre que necessário por aspersão periódica de uma quantidade adequada de água destilada. Os biorreatores foram mantidos no escuro a uma temperatura ambiente de 20°C durante 31 dias.
A condição das minhocas foi avaliada aos 7, 14, 21 e 31 dias, com registo da mortalidade. Aos 31 dias, nos tratamentos sem mortalidade (M2, M3, M3L e controlo) as minhocas foram removidas, lavadas com água destilada, depuradas por um período de 24 horas, e determinada a sua massa corporal. Em cada biorreator foi avaliada a produção de casulos, com contagem do número de casulos depositados.
Nesses tratamentos (M2, M3, M3L e controlo) foram analisados, aos 0 e 31 dias, os seguintes parâmetros: matéria seca, pH, condutividade elétrica (CE), Ctotal, Ntotal, N-NH4 +, N-NO3 -, P, Ca, K, Mg, S, Cu, Zn, Fe, Pb, Hg, Cr, Cd, Ni, Mn.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mortalidade
Os resultados obtidos revelaram que os tratamentos M2, M3, M3L e controlo não induziram mortalidade nos 31 dias de exposição das minhocas. Ao fim de 7 dias de exposição, os tratamentos M1, M1L e M2L registaram mortalidades superiores a ou iguais a 60%, tendo o tratamento M1L, com a maior quantidade de lama de ETAR, apresentado uma mortalidade de 100%.
Embora a mortalidade inicial de M1 (72%) tenha sido superior à registada em M2L (60%), o máximo de mortalidade foi alcançado ao fim de 14 dias em M2L (98%) e ao fim de 31 dias em M1 (100%) (Figura 2).
Reprodução
A reprodução, avaliada ao fim de 31 dias pela produção de casulos, foi significativamente inibida pela presença de lamas nas diversas misturas. Enquanto o tratamento controlo registou uma deposição média de 11,22 casulos por minhoca, nos restantes tratamentos, com a exceção de M3L com uma média de 0,07 casulos por minhoca, não se observou a deposição de casulos.
Massa das minhocas
No início do ensaio, dia 0, não se registaram diferenças significativas na massa média das minhocas (Figura 3). Ao fim de 31 dias, as diferenças entre os vários tratamentos foram significativas, com a exceção entre o tratamento M3L e controlo.
Na comparação dos resultados obtidos entre o início e final do ensaio, destacam-se M2 e M3 com decréscimos de massa/minhoca entre os 0 e os 31 dias de exposição, sendo a diferença significativa apenas em M2, tratamento com maior quantidade de lama de ETAR. Pelo contrário, os tratamentos M3L e controlo registaram acréscimos significativos de massa/minhoca entre os dois períodos.
Os efeitos observados na mortalidade, reprodução e massa das minhocas poderão ser atribuídos à composição das misturas: (i) valores de pH < 5.3 em M2, M3 e M3L; (ii) aumento significativo durante o processo de vermicompostagem de N-NH4 + nas misturas com lamas, atingindo valores superiores a 400 mg N kg-1 em M3L; (iii) valores de condutividade elétrica > 1.7 dS m-1 nos tratamentos com lamas e acréscimos significativos ao fim de 31 dias; (iv) as lamas consistiram numa fonte significativa de Cu, Zn, Cd, Pb, e Hg, contudo salvaguarda-se que nos substratos preparados os valores máximos admissíveis para teores totais destes metais pesados em matérias fertilizantes obtidos a partir de resíduos orgânicos não foram ultrapassados (DR, 2015).
Nos tratamentos com incorporação de lamas, destaca-se a prestação de M3L pelo maior acréscimo de massa das minhocas, podendo este resultado estar associado a: (i) razão C/N significativamente inferior a M2, M3 e controlo, tanto no início como no final do ensaio com diferenças não significativas entre os 0 e 31 dias; (ii) valor de pH significativamente mais elevado do que o observado em M2 e M3, no início e final do ensaio (dados não apresentados).
CONCLUSÕES
O presente trabalho revelou a importância da composição do substrato para a viabilidade do processo de vermicompostagem, uma vez que foi condicionante para a sobrevivência, crescimento e reprodução das minhocas, Eisenia fetida. As quantidades mais elevadas de lamas de ETAR provocaram a morte das minhocas, e a presença de lamas inibiu o processo reprodutivo. Além dos parâmetros avaliados, propõe-se a determinação de outros contaminantes ambientais usualmente encontrados em lamas de ETAR (compostos aromáticos, fármacos, hormonas, produtos de limpeza e de higiene pessoal) para uma melhor compreensão dos resultados obtidos.