1. INTRODUÇÃO
A escola é considerada um espaço privilegiado de convivência, capaz de propiciar a apropriação de conhecimentos importantes para o desenvolvimento dos processos sociocognitivos articulados com a realidade dos sujeitos. Entende-se que o ambiente escolar pode promover, em seus alunos, a capacidade de fazer escolhas adequadas para um estilo de vida saudável.
Ao ingressar na escola a criança começa a realizar refeições distante do meio familiar e, portanto, a representação social do alimento é modificada e passa a ser influenciada pelo ambiente escolar, o qual se torna o principal meio de conhecimento formal sobre o ato de se alimentar e nutrir-se. Embora grande parte das crianças leve para a escola alimentos fornecidos pela família, todas as escolas públicas brasileiras fornecem merenda escolar, e é neste momento que existe a possibilidade de se estabelecer relações entre Educação Alimentar e Nutricional (EAN) e práticas pedagógicas.
Os professores, no entanto, expressam ter dificuldades em sistematizar conteúdos sobre alimentação além dos propostos pelos livros didáticos, existindo uma carência de conhecimentos científicos para possibilitar o desenvolvimento do tema articulado aos conteúdos disciplinares. Do mesmo modo, a falta de materiais didáticos é relatada como a principal dificuldade dos professores para trabalhar, na escola, o tema saúde. Suas concepções sobre saúde são insuficientes para o ensino das crianças, pois o tema, geralmente, está relacionado, nos livros didáticos, ao modelo biomédico/patológico e não com a concepção ampliada de educação em saúde. A maioria das formações continuadas para os professores que abordam o tema saúde é voltada à orientação e à prevenção de doenças (Silva et al., 2017, p. 161).
Juzwiak (2013) destaca a possibilidade de criar uma rede de conteúdos a partir de um alimento, para ser trabalhada em disciplinas tradicionais e nas atividades extras, possibilitando desenvolver as questões alimentares transversalmente, incluindo estudantes, professores, família e comunidade escolar. A autora também ressalta os contos de fada como ferramentas interessantes a serem utilizadas.
As ações interdisciplinares são defendidas como significativas para trabalhar o tema saúde na escola. Educação em saúde, porém, não significa apenas prevenir ou tratar doenças. A escola e o professor têm a responsabilidade de ensinar os alunos, capacitando-os para tomar suas próprias decisões de modo a contribuir para o desenvolvimento de uma vida saudável (Silva et al., 2017, p. 161).
No cotidiano da escola “uma das preocupações centrais para o professor está na quantidade de conteúdo a ser ‘transmitido’ para seus alunos; cumprir o programa, geralmente produzido por outros, ainda parece ser uma das metas prioritárias para grande parte dos professores” (Boff, 2011, p. 168). Ainda existe a concepção de que para ser competente o professor precisa conseguir “desenvolver todos os itens listados nos programas instituídos por outros distantes da realidade escolar”. Produzir a aula “não faz parte da cultura dos professores e por isso exige um esforço demasiado para que ele de fato se envolva na elaboração do seu programa de ensino” (Boff, 2011, p. 168).
Vigotsky (2008) afirma que “a criança pensa de forma sincrética sobre assuntos de que não tem conhecimento ou experiência, mas não recorre ao sincretismo com relação às coisas familiares ou que sejam de fácil comprovação prática” (p. 27), posto que o número dessas coisas depende do método de educação. Por isso são importantes as atividades educativas no ambiente escolar, que despertem, com maior intensidade, o interesse e a curiosidade da criança. As atividades, porém, não devem ser pontuais, mas articuladas no contexto escolar, fazendo parte do Projeto Político Pedagógico da escola para que realmente seja possível formar conceitos escolares significantes de hábitos alimentares e estilos de vida saudáveis.
Quando o professor deixar de reproduzir sua aula terá a possibilidade de refletir com os estudantes sobre seus hábitos alimentares e estilos de vida e, ao mesmo tempo, produzir sentidos e significados aos conteúdos escolares e, portanto, ele pode contribuir para prevenir futuros problemas de saúde, promovendo a qualidade de vida ainda na infância. A escola é um espaço e momento para a realização de ações de EAN e o trabalho inter e multidisciplinar, envolvendo professores de diferentes áreas e profissionais da saúde, possibilita articular os conteúdos escolares com o mundo vivido pelos estudantes.
Vários estudos (Ministério da Saúde do Brasil, 2014; Silva et al., 2018; Bezerra, 2018) mostram que a EAN produz resultados positivos quando está articulada com ações interdisciplinares e sistemáticas. Com base nestes argumentos, foi pensado constituir um processo formativo envolvendo nutricionista, professores, merendeiras1, equipe diretiva e demais sujeitos da comunidade escolar.
O objetivo deste artigo é analisar um processo formativo na perspectiva do desenvolvimento de um trabalho em equipe que visa à Educação Alimentar e Nutricional (EAN) de crianças de duas escolas públicas. A intenção foi aprofundar o debate sobre a temática, bem como auxiliar no processo de compreensão do tema e desenvolver alternativas pedagógicas nos anos iniciais, incluindo a EAN como constitutiva do currículo escolar.
A questão central da pesquisa foi: Que contribuições podem ser produzidas a partir de um processo coletivo formativo para a compreensão da EAN como constitutiva do currículo escolar?
2. METODOLOGIA
A pesquisa é qualitativa na modalidade de pesquisa ação, uma vez que busca produzir mudanças no ambiente escolar quanto à EAN. O estudo envolveu 18 participantes, entre eles equipe diretiva, professores, auxiliares, estagiárias e funcionárias de duas escolas públicas de um município do interior do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil.
Foram realizados três encontros formativos (moderados pela nutricionista pesquisadora) e uma entrevista com as professoras: o primeiro encontro aconteceu na Escola Municipal de Educação Infantil, tendo como roteiro para as discussões a alimentação em período escolar oferecida pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a resistência das crianças em comer alimentos saudáveis, como frutas e hortaliças.
O segundo encontro envolveu a Escola de Educação Básica e Ensino Fundamental, anos iniciais (idades compreendidas entre 4 e 10 anos), tendo como roteiro orientador das discussões as questões respondidas pelos professores entrevistados previamente.
O terceiro encontro de formação retomou os assuntos das formações anteriores, analisando resultados. Após os encontros foram realizadas entrevistas, individualmente, com seis professoras de ambas as escolas que participaram das formações.
Também aconteceram duas reuniões com pais, professores e nutricionista, em que esta última abordou o tema alimentação saudável, com o objetivo de sensibilizar os pais sobre a importância de serem os exemplos para as suas crianças.
Todos os momentos da pesquisa foram registrados em audiogravações com a autorização dos participantes e, posteriormente, transcritos e analisados com base nos argumentos de Moraes e Galiazzi (2020) sobre a Análise Textual Discursiva (ATD).
Os argumentos de Moraes e Galiazzi (2020) sobre ATD fundamentaram a análise dos resultados, os quais possibilitaram aprofundar a compreensão dos fenômenos investigados a partir de uma análise rigorosa e criteriosa com a intenção de compreender e reconstruir conhecimentos existentes sobre o tema investigado. A análise textual discursiva parte da desconstrução do corpus, com a intenção de identificar as unidades de significado pela sua fragmentação. Ao examinar-se as unidades e confrontá-las, são estabelecidas as categorias que podem ser emergentes ou a priori. As relações entre as unidades de significado possibilitam nova compreensão do todo, de modo crítico e validável, pela produção de metatextos (Moraes & Galiazzi, 2020).
Para preservar a identidade dos sujeitos participantes do processo foram criados nomes fictícios com a letra inicial P para a descrição de cada professora, com a letra M para a descrição de merendeiras, F para a descrição de funcionárias e, para as crianças, foram utilizados nomes com a letra inicial C.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, com o parecer 33.159. A pesquisa foi desenvolvida de maneira a contemplar todos os preceitos éticos contidos na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (Conselho Nacional de Saúde do Brasil, 2012).
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os encontros formativos foram realizados de forma interativa e problematizadora para permitir aos participantes refletir sobre seus pontos de vista na mediação de outros. O objetivo dos encontros foi aprofundar o debate sobre a temática, bem como auxiliar no processo de compreensão sobre as tomadas de decisão e escolhas saudáveis, e ainda como planejar alternativas para a prática de ensino nos anos iniciais, incluindo a EAN como constitutiva do currículo escolar.
Os resultados mostram que o professor que pensa em conjunto com seus colegas e com outros sujeitos que possuem experiências diferentes pode se constituir em um profissional mais crítico.
Não se trata de reflexão sobre a prática embasada somente nos saberes da experiência desconectada da teoria. Trata-se de um profissional que reflete sobre seus saberes, obtidos da prática e compreendidos à luz de uma teoria, articulados por múltiplas interlocuções (Boff, 2011, p. 143).
Boff (2011) defende que é “a reflexão coletiva que permite ao docente ser autor e ator de seu processo de ensino e aprendizagem” (p.143). A reflexão também significa “que o processo de aprender e ensinar não se limita somente aos programas de formação inicial de professores” (p. 147). A formação inicial prepara “para começar a carreira, com capacidade, disposição e responsabilidade para estudar e melhorar, de maneira contínua, o seu próprio desenvolvimento profissional” (p.147); assim, aprender e ensinar é um processo que se prolonga no decorrer da carreira do professor.
Articular a teoria e a prática:
se torna possível quando se prioriza práticas e modalidades que privilegiam a partilha de ideias entre os atores, a construção de espaços e momentos em que os formadores e os outros atores possam refletir e trabalhar juntos em seu projeto de formação (Boff, 2011, p. 179).
Considerando esses argumentos, foram realizadas discussões em três momentos formativos, assim como entrevistas semiestruturadas. A análise do corpus possibilitou a construção de unidades de significado, as quais são expressas pelos argumentos dos sujeitos que participaram da pesquisa. Do confronto das unidades de significado emergiram três categorias; a) Alimentação escolar articulada aos conteúdos disciplinares; b) A imitação como modo de aprendizagem; e c) Formação de conceitos de EAN.
3.1. ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ARTICULADA AOS CONTEÚDOS DISCIPLINARES
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem o objetivo de “contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições” que atendam às necessidades nutricionais durante o período de aulas (Ministério da Educação do Brasil, 2013, p. 3). Para compreender a importância do PNAE, questionou-se ao grupo sobre o que eles entendiam por alimentação escolar.
Paula argumenta que a alimentação escolar precisa ser uma alimentação saudável para as crianças. Na sua percepção, a alimentação escolar é saudável, pois o cardápio é elaborado pela nutricionista do município, que discute com professores, merendeiras e alunos continuamente. Paula ressalta que a alimentação escolar é “para as crianças”, mas também é um momento propício para o professor dar o exemplo. O professor, comendo junto com as crianças, vai estimulá-las a experimentar e a comer alimentos que favorecem uma alimentação adequada.
A professora Patrícia complementa que a alimentação tem como importância
nutrir o corpo, alimentar o cérebro; em partes isso minha mãe sempre dizia. Ela é importante porque na verdade junta tudo o que o corpo da gente precisa, que são sais minerais, vitaminas. Isso eu compreendo por uma questão de alimentação.
De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira,
A alimentação adequada e saudável é um direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo e que deve estar em acordo com as necessidades alimentares especiais; ser referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; acessível do ponto de vista físico, financeiro; harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis (Ministério da Saúde do Brasil, 2014, p. 7).
As discussões continuaram com foco nas recomendações do PNAE, considerando porque determinados alimentos precisam estar incluídos nos cardápios e outros não devem ser ofertados. Foi enfatizada a importância do consumo de frutas e verduras e ressaltado o fato de a população não ter o hábito de consumir frutas.
As pessoas nem sempre entendem que as frutas e verduras são indispensáveis, mas entre os fatores associados a esses entendimentos está a pouca disponibilidade de fruteiras no município pesquisado. É possível encontrar frutas nos pequenos mercados, mas com pouca variedade e com valores acentuados quando comparados aos municípios vizinhos.
O Guia Alimentar para a População Brasileira ensina que:
Adotar uma alimentação saudável não é meramente questão de escolha individual. Muitos fatores - de natureza física, econômica, política, cultural ou social - podem influenciar positiva ou negativamente o padrão de alimentação das pessoas. Por exemplo, morar em bairros ou territórios onde há feiras e mercados que comercializam frutas, verduras e legumes com boa qualidade torna mais factível a adoção de padrões saudáveis de alimentação. Outros fatores podem dificultar a adoção desses padrões, como o custo mais elevado dos alimentos minimamente processados diante dos ultraprocessados, a necessidade de fazer refeições em locais onde não são oferecidas opções saudáveis de alimentação e a exposição intensa à publicidade de alimentos não saudáveis (Ministério da Saúde do Brasil, 2014, p. 22).
A discussão sobre o cardápio escolar (como é elaborada a lista de compras, os custos, os fornecedores, como é feita a compra desses alimentos) é um aspecto que possibilita a articulação dos conteúdos disciplinares. A Matemática envolveu cálculos dos custos dos alimentos e quantidades; Ciências estudou os nutrientes, suas funções no corpo humano e implicações na saúde; História e Geografia abordaram origem e evolução dos tipos de alimentação, locais de maior produção, questões culturais. O debate possibilitou a interlocução com questões do cotidiano dos alunos, como alimentos fornecidos pela agricultura familiar e dificuldades encontradas com os fornecedores para trazer os alimentos adequados.
Priscila mostrou um vídeo feito durante o almoço das crianças, que ficam em turno integral na escola, para analisar os pontos positivos e negativos do que acontece na hora do almoço. Durante o vídeo era possível ir conversando sobre o que estava acontecendo e pensando em melhorias para este momento. Algumas questões sobre a alimentação das crianças foram debatidas na perspectiva de encontrar soluções no coletivo, conforme indicado pela nutricionista: O PNAE pede que 30% do recurso que vem para a merenda escolar seja destinado à compra de produtos da agricultura familiar [...], por isso que vem o suco de uva, vem a laranja, batata-doce, mandioca, verduras e panificados (Nutricionista).
Nas escolas municipais a alimentação é farta em variedade. Segue-se as recomendações do PNAE para a elaboração dos cardápios e o consumo de frutas e verduras é sempre estimulado. Para as crianças que frequentam a escola em turno integral é oferecido 70% das recomendações nutricionais diárias de alimentos, e para as crianças que frequentam a escola em turno único precisa-se oferecer 30% das recomendações nutricionais diárias.
O diálogo frequente entre nutricionista, merendeiras e professores é importante para a adequada execução do trabalho. Um estudo de Longo-Silva et al. (2013) ressalta que as educadoras de creches têm dificuldades em lidar com a rejeição das crianças a certos tipos de alimentos e com a demanda de tempo necessária para a introdução destes. Elas enfatizam a necessidade de orientação por um/a nutricionista para que possam compreender as mudanças e o porquê da necessidade de consumo de determinados alimentos em detrimento de outros.
As professoras estão com as crianças todos os dias; experimentam, comem junto com elas; se não está bom, conversam com a nutricionista para melhor adequar o cardápio.
O grupo também discutiu a respeito das birras das crianças na hora das refeições, exemplificando com o Cristiano, que fazia “um gritedo” (Maria) na hora do almoço, com o César, que só queria pão e bolacha Maria, e com o Carlos, que só comia arroz e pão puro e não tomava água.
Ele só queria comer pão puro, daí se embuchava de pão, se trancava, depois não conseguia fazer coco e só queria pão, daí a gente não queria deixar sem comer e dava o que ele queria: só pão (Priscila).
E o que a nutri falou para nós, que não é para colocar o pão no lugar da comida. E não é para dar muito arroz. É para servir o prato variado para todas as crianças, para estimulá-las (Mariana).
Eu acho que o Cristiano evoluiu bastante desde que está aqui (Maria).
Priscila destaca que, para não deixar César sem comer, davam pão ou bolacha “porque precisávamos adaptar ele na escola [...] aí tínhamos que ir aos poucos trocando”.
O melhor exemplo é o Carlos, que só comia arroz e pão puro, eu chamei a família, para conversar. Precisamos trabalhar com a educação alimentar e nutricional da família. A mãe me disse que tinham o hábito em casa de comer muita bolacha recheada, salgadinho e tomar refrigerante, eles não tomavam água, só coca-cola. E tem muitas famílias que não tomam água, só refrigerante. Por isso também é preciso mudar em casa (Nutricionista).
Sim, o Carlos me pedia Coca, ele não queria tomar água (Palma).
Muitas vezes as opiniões e condutas dos educadores divergem, mas eles têm claramente a compreensão de que cada criança é um indivíduo único, com gostos e hábitos diferentes.
Durante uma formação em um ambiente escolar muitas vezes a conversa acaba tomando outros rumos e, por isso, é importante a roda de discussão; não necessariamente é preciso conversar exatamente aquilo que a nutricionista pensou, mas, sim, nortear as discussões e abrir para ver quais são realmente as necessidades dos educadores, quais são suas dúvidas e aflições, sendo o diálogo do grupo fundamental para enfretamento dos problemas.
Para auxiliar na mudança de hábito alimentar foi trabalhado o livro Socorro! Meu filho come mal, de autoria de Kapim e Abreu (2014), com a montagem do prato das crianças seguindo as recomendações do PNAE, discutindo-se a higiene dos alimentos e das crianças. Embora a merenda escolar seja planejada conforme orientações nutricionais saudáveis, é necessário considerar a cultura familiar para que as mudanças aconteçam. O estudo mostra que a EAN, de modo sistemático e articulada aos conteúdos disciplinares, pode contribuir significativamente para a construção de hábitos alimentares mais saudáveis.
3.2. A IMITAÇÃO COMO MODO DE APRENDIZAGEM
O grupo discutiu sobre a necessidade de ser exemplo para as crianças, pois estas, ao verem o professor experimentando as frutas, serão estimuladas a experimentar também. Comer em conjunto com as crianças constitui-se uma atividade educativa e estimulante de alimentação saudável.
As professoras relatam que o exemplo delas é seguido pelas crianças, que as imitam constantemente: “Mas às vezes até de você chegar e dizer: ó a profe vai comer o tomate; aí eles vão lá e comem o tomate só para ver o que é que a profe está comendo” (Paula).
As próprias crianças estimulam-se umas às outras:
É que nem a Camila hoje, tirou a batata-doce, aí a Maria disse: Vocês experimentaram a batata-doce? Alguém experimentou a batata-doce? Daí eu olhei e disse assim: Não, aqui na mesa ninguém experimentou ainda. Daí a Carolina deu uma mordidinha; a Camila comeu a batata-doce (Poliana).
Poliana refere-se a uma das preparações novas, que era a batata-doce assada, representando que as crianças têm medo de experimentar o que é novo, o que elas não conhecem. De acordo com Vigotsky (2018):
para imitar é necessário possuir os meios para se passar de algo que já se conhece para algo novo. Com o auxílio de uma outra pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha - ainda que se restringindo aos limites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento. ( p. 129)
No desenvolvimento da criança, “a imitação e o aprendizado desempenham um papel importante. Trazem à tona as qualidades especificamente humanas da mente e levam a criança a novos níveis de desenvolvimento” (Vigotsky, 2008, pp. 129-130).
Do mesmo modo se dá com a alimentação. A criança imita o outro, imita os colegas, ao dizer “eca” para algum alimento que “pensa não gostar” antes mesmo de ter experimentado. Ela também imita o colega que leva à boca, experimenta e come o alimento; imita o professor, adulto de referência no período em que está na escola. A imitação, na percepção de Vigotsky, não é simplesmente cópia, pois existe um movimento de internalização.
As educadoras destacam, ainda, a importância de incentivar e elogiar as crianças quando estas atendem às suas expectativas.
Eu disse: “o Carlos hoje vai brigar, não tem arroz”.
Daí, quando eu dei uma observada nele, aí ele começou a comer, me chamou e chamou uma por uma: “Olhem, eu estou comendo massa com carne, e temperos!” E todos elogiaram o Carlos (Maria).
Carlos é rotulado na escola como o menino do arroz, pois, desde que ingressou na escola, somente aceitava consumir pão e arroz.
A gente está tentando não dar o pão para ele na frente dos outros, porque ninguém mais vai querer lanchar e vão querer só o pão. Aí a gente deixa todos comerem e se é uma coisa que realmente ele não come, aí a gente dá o pão depois. Mas, tipo aquele dia de manhã, que não tinha o pão, ele comeu os sucrilhos do copo dos colegas. Ele não pediu e cuidava pra quando a gente estava de costas (Paola).
Mas o Carlos, depois da formação que a gente fez, ele começou a comer; antes ele comia só pão e arroz (Priscila).
Mas aí aconteceu dele ficar um tempo em casa e na volta ele teve a resistência de novo (Maria).
Nós encaminhamos ele e a família para conversar com a nutricionista e realmente ele comia só arroz em casa. Aí a família começou a insistir em casa e nós, aqui na escola, para ele variar um pouco os alimentos. Ele não tomava água, ele pedia coca e cerveja (Priscila).
Observa-se a importância do trabalho articulado entre comunidade escolar e nutricionista para que seja possível olhar as crianças integralmente. O cuidado precisa estar voltado também à família, influente e formadora dos primeiros hábitos alimentares das crianças. Se, portanto, a criança pede cerveja, significa que já experimentou, o que indica a necessidade do trabalho com a família, que, certamente, não tem noção do prejuízo que está causando a esta criança. Paula busca estratégias de ensino de EAN:
Eu estava trabalhando com o Beleléu na turma, o Beleléu era o amigo da turma. Eu trabalhei com eles todas as histórias do Beleléu, a só do “Beleléu”, do “Beleléu e as cores” e do “Beleléu e as formas”. Depois que trabalhamos as formas, a mistura de cores, o Beleléu trouxe o amigo dele, que era o João. O João trouxe a historinha do “João e o pé de feijão”. As crianças pintaram um castelo com a mãozinha e eu colei em um palitinho de picolé, dentro de um potinho de iogurte, no qual elas plantaram o feijão. Elas foram molhando e cuidando até esse feijão chegar até o castelo do gigante.
E daí para não só plantar um pé de feijão, eu vou mostrar toda a transformação que o feijão pode ter; que ele vira o pezinho de feijão, mas que ele vira feijão que a gente come no prato, ele vira uma salada de feijão.
Iniciar contando as histórias do Beleléu (Dugnani, 2003, 2010, 2011), chegando em João e o pé de feijão (Sousa, 2010), desenvolvendo o interesse e a criatividade das crianças, mostra o interesse de fazer com que elas tenham consciência dos processos de transformação. A educadora não se preocupa em simplesmente fazer com que as crianças comam porque elas têm de comer, mas instiga que elas visualizem, toquem, sintam e compreendam a origem dos alimentos, que fiquem felizes para aprender e comer com consciência e conhecimento dos alimentos.
As professoras relembraram a diversidade da população do município, onde se tem pessoas com elevados recursos financeiros e outras com poucos recursos. Há as crianças que não tomam café da manhã por não sentirem fome e também há aquelas que afirmam: “não tinha pão lá em casa hoje”. Independentemente de qual for o caso, a orientação é de que quem chegar à escola e estiver com fome vá até ao refeitório e se sirva de uma fruta, oferecida com muito amor e carinho pelas merendeiras atenciosas, que também se constituem em educadoras ao acolher as crianças e compreender suas necessidades e, muitas vezes, sentimentos. O gesto de atenção dessas profissionais engrandece o iniciar do dia escolar das crianças, pois o alimentar em nada melhor pode se traduzir do que em amor. Além disso, como nos diz Wills (2009), não existe currículo suficientemente brilhante para compensar um estômago com fome ou uma mente distraída, do mesmo modo que crianças com fome, entre outros problemas, não conseguem focar na excelência académica. Assim, a primeira refeição do dia é importante para o despertar da atenção da criança em sala de aula.
As crianças estão abertas para tudo e não se sabe até onde exatamente vai a influência do educador. Mas o que se tem certeza é que trabalhar a educação alimentar e nutricional não pode ser responsabilidade só do nutricionista, mas também das merendeiras, professores, familiares e comunidade. De nada adianta a nutricionista fazer um cardápio adequado se as merendeiras não o executarem, ou se os professores não estimularem as crianças a comer. Se for permitido que em ambiente escolar as crianças tragam refrigerante, salgadinho, guloseimas, eles não irão comer a merenda (Nutricionista).
Ao serem incentivadas pelas professoras as crianças aprendem e, ao ser sensibilizadas, passam a ter uma compreensão diferente da história e de seu papel, recusam a acomodar-se e passam a organizar-se para mudar o mundo. Ao ter incentivo para uma alimentação saudável a criança imita o educador, internalizando conceitos e desenvolvendo as funções mentais superiores. As interlocuções com seus colegas também são potencializadas pela zona de desenvolvimento proximal, posto que, na medida em que acontecem as interações, aquilo que ele ainda não sabe fazer sozinho fará em interação com o outro, o que se poderá enquadrar na Teoria da Aprendizagem Social de Bandura, que é considerada também um dos modelos de promoção e educação para a saúde (Montano et al., 2008).
3.3 FORMAÇÃO DE CONCEITOS DE EAN
O conceito de EAN envolve muito além do ato de comer, pois engloba a cultura, as condições socioeconômicas, a disponibilidade de alimentos, e influencia nas escolhas alimentares. A alimentação adequada e saudável precisa atender “aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis, estabelece um campo muito mais amplo de ação para a EAN do que aquele tradicionalmente restrito às dimensões biológicas e do consumo alimentar” (Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil, 2018, p. 13). Já a EAN “é o campo do conhecimento e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional que visa promover a prática autónoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)” (Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil, 2018, p. 9).
Considerando que as crianças têm hábitos alimentares que trazem de seu convívio familiar e, ao chegarem na escola, deparam-se com uma realidade, na maioria das vezes muito diferente, exige-se da escola a produção de conhecimentos respeitando a cultura e os gostos delas. O gosto também é reflexo das diferentes culturas. No entanto, o conceito de alimentação saudável implica a construção de estratégias de ensino articuladas entre profissionais da saúde e da educação. A professora Pérola assim define EAN:
Acredito que seja aquela primeira orientação que se dá aos pequenininhos; então é a primeira noção de como eles deveriam se alimentar. Nutricional é aquele prato colorido que tem acesso a pelo menos a quase todas as vitaminas, os tipos de nutrientes que a criança precisa para se desenvolver.
Pérola pode não ter clareza do conceito, uma vez que destaca somente os aspectos biológicos, mas se preocupa com seus alunos, assim como as demais participantes da pesquisa, quando se expressam sobre o que entendem por alimentação dessa forma: “É tudo o que te sacia” (Pérola); “É o ato de nutrir-se, saciar-se” (Poliana); “Deleitar-se nas guloseimas, também” (Pérola); “Satisfazer o meu cérebro” (Maria); “Mastigar, prazer” (Patrícia); “Lá em casa a alimentação é bastante a reunião da família” (Fabiane).
As respostas das educadoras indicam que a alimentação significa muito mais do que simplesmente ingestão de alimentos: abrange saciedade, nutrição, deleite, satisfação, prazer, reunião em família. Pérola destaca: “a forma de preparo: a minha mãe faz a couve-flor na manteiga, a minha faz só cozida no vapor, a minha mãe bota vinagre, a minha não bota, e assim vai indo... Os hábitos”.
As participantes reconhecem os hábitos como definidores das práticas alimentares que envolvem desde métodos de preparo aos tipos de temperos utilizados.
Quanto ao conceito de nutrição, Pérola argumenta: “No meu ver, minha cultura de nutrição é pequena, mas eu acredito que é quando tu reforça teu sistema imunológico a partir do que tu ingere”.
A nutrição envolve a questão de nutrientes, do processo que o alimento sofre no organismo, digestão, absorção e sendo a alimentação desequilibrada, consequentemente o nosso organismo e alguma coisa não vai ficar bem. Então a EAN envolve tudo isso, por isso que falamos de EAN e nunca só educação alimentar ou educação nutricional, porque é um contexto; a alimentação envolve o ato de se alimentar, de comer, mas envolve a cultura, envolve a vontade, o gosto, enfim, e a nutrição é o processo que esse alimento vai sofrer no nosso organismo (Nutricionista).
Também é preciso que os educadores tenham consciência de sua importância na EAN das crianças, pois eles ficam em contato direto com elas, muitas vezes passando mais tempo do que a própria família. A interação entre nutricionista e professores possibilita estabelecer uma rede de conhecimentos para educar as crianças de maneira mais saudável.
Na verdade, se diz é gordo porque come bastante. E muitas vezes a gente diz para a criança: come maçã, mas não diz porque tem que comer a maçã; é só para não engordar? A gente fala para as crianças, mas não diz o motivo que não pode comer só gorduras, só frituras ou só doces. Então falta um pouco também do adulto dar mais explicações para as crianças (Pilar).
O grupo discutiu os conceitos de EAN e as possibilidades de trabalhar o tema na escola; propôs que os professores, sempre que possível, articulem seus conteúdos disciplinares à EAN, com o objetivo de promoção da alimentação saudável e qualidade de vida no ambiente escolar.
Assim, as atividades de EAN foram articuladas aos conteúdos escolares. Rodas de conversa com a nutricionista aconteceram quando os professores solicitaram auxílio para tirar dúvidas e esclarecer conceitos aos seus alunos, com o objetivo de sensibilizá-los para a importância de uma alimentação saudável.
Nas respostas das entrevistas verifica-se que as professoras conseguiram mobilizar conceitos de EAN em sala de aula, embora a interferência da família dificulte a prática, como destacado por Petra e Pilar nas falas a seguir:
Com as crianças até a gente conseguiu, mas aqui na escola, acredito que fora da escola, eles continuam com aqueles hábitos que eles tinham antes. A gente vê isso quando faz passeios. Quando pede água, vai refri, quando pede lanche é aqueles chips, salgadinho, enfim. Na sala de aula sim, eles sabem; se a gente conversar com eles, eles vão te dar praticamente uma aula do que é uma alimentação saudável, mas na prática não funciona muito bem, com alguns (Petra).
Observa-se, na fala de Petra, que na escola as crianças trabalham a EAN e se alimentam de forma saudável. Fora da escola, porém, envolve a família, pois não são as crianças que, sozinhas, têm acesso a refrigerantes ou salgadinhos. A professora Petra salienta que os alunos possuem os conhecimentos referentes à EAN, mas alguns não os colocam em prática na sua vida.
Na minha opinião, os professores conseguiram trazer para a sala de aula alguns conceitos de educação alimentar, principalmente após o fato de nós, enquanto escola, conseguirmos fazer com que os alunos não trouxessem mais lanche de casa e comessem o alimento que é fornecido pela escola, que é o suficiente. Então, a partir desse momento que eu considero que foi bem significativo para nós enquanto escola nessa questão de educação alimentar. Aos poucos as crianças estão comendo um pouquinho de frutas. Após uma conversa com as famílias e com a nutri também, que abraçou a causa conosco para as crianças comerem os lanches que a escola fornece, a situação começou a melhorar (Pilar).
A equipe solicitou a colaboração dos familiares responsáveis pelas crianças de ambas as escolas, primeiramente por meio de um bilhete colado no caderno de recados das crianças, o qual deveria, obrigatoriamente, retornar assinado pelos familiares responsáveis, informando que não era permitido que suas crianças levassem para a escola alimentos industrializados (como salgadinhos, balas, refrigerantes), pois estar-se-ia tentando educá-las para uma alimentação saudável. Explicou-se que a escola oferece uma variedade de alimentos nas refeições, não sendo necessário trazer de casa, mas, para quem quisesse trazer, que optasse pelas frutas. Para qualquer dúvida, os familiares poderiam entrar em contato com a escola ou com a nutricionista, que estariam disponíveis para esclarecimentos.
Assim, produtos ultraprocessados não são permitidos na escola. Pâmela acredita ser possível trazer para as aulas conceitos de EAN:
Eu acredito que sim; vários de nós conseguimos. Um exemplo, com essa questão do cancelamento dos aniversários, de dizer porque para os pais, de que até não só na questão nutricional, mas também do cuidado, do manejo com o alimento, que a gente não sabia qual vinha para dentro da escola (a procedência) e dentro da escola tem todo um manejo, toda uma limpeza, toda uma organização para as crianças. Então eu acho que isso nós conseguimos, porque automaticamente a gente trabalha com os pais, automaticamente as crianças também absorvem isso, então é um conteúdo que daqui a pouco não é conteúdo de sala de aula, mas é um conhecimento, é uma aprendizagem que eles têm também. E eu acho também, na questão do lanche, o fato das frutas ficarem disponíveis e a gente dizer: você não quer comer este alimento, mas tu tem uma fruta então durante a manhã. O fato de eles brincarem durante o intervalo e no retorno poder pegar a fruta, então eu acho que diretamente talvez todo esse conteúdo nutricional, de vitaminas e sais minerais, talvez tudo isso, talvez não tão dessa forma tão sistematizada, mas de uma forma de conhecimento amplo.
No momento do lanche, além da preparação do cardápio, as crianças têm a opção da fruta, que é variada e fica disponível também no intervalo. Foi cancelada uma prática que era comum nas escolas do município: as festinhas de aniversário das crianças realizadas em ambiente escolar, com alimentos hipercalóricos e dos quais não se sabia a procedência. Esta era uma questão que já vinha sendo debatida há anos, mas que, durante a formação de professores, veio à tona com a discussão da Lei n.º 11.947 (Brasil, 2009), que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos de educação básica.
Após os encontros de formação, realizaram-se reuniões com os familiares das crianças de ambas as escolas para explicar essas questões, conversar sobre a merenda escolar e seu funcionamento, assim como pedir a sua colaboração para, juntos, trabalhar a EAN no ambiente escolar e em casa também.
Solicitou-se aos professores e familiares para terem muita atenção aos alimentos que consomem na frente das crianças, pois dificilmente elas terão uma alimentação saudável se seus professores e familiares comem mal. A primeira coisa a fazer antes de iniciar a EAN com uma criança é dar um bom exemplo, pois considera-se a família e os professores referências para ela. As crianças não entendem porque os adultos podem comer mal e elas não. De nada adianta proibir as crianças de beber refrigerantes e consumir alimentos industrializados, não saudáveis, se elas veem os adultos fazendo. Não adianta simplesmente falar para as crianças da necessidade de consumir alimentos saudáveis e praticar exercícios físicos para se ter saúde; é preciso ensinar por meio de exemplos, sabendo que os adultos de referência têm um efeito de modelagem no comportamento da criança, levando-a a imitá-los (Montano et al., 2008). A professora Palmira argumenta que uma possibilidade de trabalhar em sala de aula a EAN é pela interdisciplinaridade:
Os professores conseguem trazer para a sala de aula conceitos de educação alimentar e nutricional, trabalhando de forma interdisciplinar, construindo bons hábitos alimentares e readequando o comportamento alimentar. Podendo ser trabalhado de forma lúdica, com músicas, desenhos, mercadinho, feirinha, sistema monetário, exemplos com degustação de adultos, conversa, escrita, confecção de receita e estudo do gênero textual, conceitos de misturas heterogênea e homogênea, pesquisa de alimentos, observando e analisando rótulos, painel de recortes, livros de receitas da turma, piquenique de receitas, estudo de frações, associar as preparações, leitura das frações, quantidades que representam, histórias, conversas, enfim.
A BNCC (Ministério da Educação do Brasil, 2018) destaca a importância de ações de organização interdisciplinar por meio do fortalecimento da “competência pedagógica das equipes escolares para adotar estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas em relação à gestão do ensino e da aprendizagem” (p. 26). Deste modo, o trabalho de sala de aula, desenvolvido a partir da temática EAN, além de favorecer a construção de conhecimento sobre o tema, também favorece a interdisciplinaridade. Já na educação infantil parece ser mais natural a ênfase na EAN, posto que está preconizado como assunto fundamental para este nível de ensino, conforme argumento da professora Poliana:
Como são crianças pequenas, não que a gente estude o conceito, mas conseguimos, através de atividades práticas, através de histórias, de literatura, que envolviam a questão alimentar, principalmente o hábito de comer as frutas, que era uma resistência para provar, então eles estão provando mais as frutas. Como é educação infantil, é mais complicado o conceito em si, mas a gente trabalha através da prática, fazendo com eles atividades.
As experiências da criança contribuem para o desenvolvimento da imaginação. Vigotsky (2007) afirma que o comportamento muda e a criança “envolve-se em um mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo” (p. 109). Assim, tal como um brinquedo, também um alimento pode despertar sensações na criança, e o ato de comer pode tornar-se um momento de brincar e experimentar novos sabores, como elucida a professora Patrícia:
Falando sobre conceitos, as crianças, elas aprendem nessa idade; na escolinha de educação infantil elas aprendem tudo através de brincadeiras. Com elas tudo praticamente é concreto. Elas não entendem muito a questão da abstração; então essa fase é uma fase muito sensorial. E toda a questão alimentar que eu percebi, pelo menos todo esse tempo que eu estou na educação infantil, é sensorial. No momento que eles levam à boca eles começam a provar; no momento que eles provam eles começam a desenvolver o paladar. Se eles gostam, ou não gostam..., e foi desse modo que eu comecei a trabalhar com eles.
Alguns professores conseguiram trabalhar a EAN com as crianças pequenas, seja por meio de conversas ou práticas. Os professores percebem a EAN como um tema amplo, possível de ser trabalhado não como atividade pontual, mas com significado, e que não é necessário trabalhar a EAN somente como um projeto, restrito a um único momento ou conteúdo de uma disciplina. A EAN está em todos os lugares e pode ser um tema transversal.
Palmira, ao trabalhar com as crianças misturas homogêneas e heterogêneas, convidou a nutricionista para participar da aula, quando as crianças realizaram a preparação de cupcakes de chocolate para compreender, na prática, como se dava o processo das misturas. No decorrer da aula as crianças foram preparando a massa, a professora explicando o conteúdo proposto e a nutricionista solucionando as dúvidas relacionadas que iam surgindo. No final, os cupcakes foram assados e degustados por todos.
Para Vigotsky (2008, p. 127), o desenvolvimento intelectual “não é compartimentado de acordo com os tópicos do aprendizado. O seu percurso é muito mais unitário, e as diferentes matérias escolares interagem, contribuindo com ele”. De acordo com os experimentos de Vigotsky (2008, pp. 127-128), “os pré-requisitos psicológicos para o aprendizado de diferentes matérias escolares são, em grande parte, os mesmos; o aprendizado de uma matéria influencia o desenvolvimento das funções superiores para além dos limites dessa matéria específica”. A forma como é realizada a EAN, portanto, precisa ser diferente nas diversas faixas etárias.
No entendimento das professoras de educação infantil, a EAN pode ser trabalhada explorando os sentidos, conhecendo os alimentos e aprendendo sobre os seus benefícios para a saúde:
Os conteúdos da educação infantil envolvem a questão dos hábitos alimentares, como provar, sentir o cheiro, o sabor, tocar; envolve o sentido da gustação, do olfato, o ver, o sentir. Trabalhamos mais a questão dos sentidos com eles e também apresentando os alimentos, comendo junto com eles, e mais a questão de conteúdos. Eles aprendem a manipular os alimentos e, a partir daí, ingerir maior número de alimentos diferentes (Poliana).
A gente começou sempre que íamos comer frutas, discutir: laranja é bom pra quê? Daí eu dava a dica: "Ó Carlos! O Carlos não está bem, que é que o Carlos tem?" Daí eles diziam: "Tá engripado!" Daí eu dizia: "E o que é bom para o Carlos comer?" Aí eles ficavam dizendo: "a minha mãe diz que suco de laranja!" Então eles têm o conhecimento de casa, eles têm muito conhecimento. "Viu Carlos?" Daí eles começavam a se policiar para o Carlos comer laranja, bergamota, abacaxi; daí eles ficavam puxando. O que foi muito bom, porque o Carlos aprendeu a comer fruta que ele não comia. E o Carlos, preocupado muito em melhorar, comia. Então isso foi muito positivo para a turma (Patrícia).
As professoras da educação infantil produzem discussões que vão além do consumo alimentar. Elas buscam estabelecer relações desde a origem dos alimentos até a importância da conservação ambiental. Na perspectiva de Vigotsky (2008, p. 107), “o aprendizado é uma das principais fontes de conceitos da criança em idade escolar, e é também uma poderosa força que direciona o seu desenvolvimento, determinando o destino de todo o seu desenvolvimento mental”. Vigotsky (2008, pp. 108-109) afirma que “o estudo dos conceitos científicos como tais tem importantes implicações para a educação e o aprendizado. Embora a criança não absorva esses conceitos já prontos, o ensino e a aprendizagem desempenham um importante papel na sua aquisição”.
As professoras estimulam seus alunos a fazer pesquisas sobre os conteúdos estudados, levando em conta o meio em que vivem, para que as realidades individuais possam ser consideradas, minimizando a exclusão e enfatizando a alimentação e estilos de vida saudáveis.
Ao pesquisar, a criança amplia sua visão de mundo, produzindo novos significados para suas práticas alimentares.
Vigotsky (2008, p. 108) assevera que “os conceitos se formam e se desenvolvem sob condições internas e externas totalmente diferentes, dependendo do fato de se originarem do aprendizado em sala de aula ou da experiência pessoal da criança”. A mente da criança “se defronta com problemas diferentes quando assimila os conceitos na escola e quando é entregue aos seus próprios recursos”. Quando se transmite um conhecimento sistemático à criança, ensina-se a ela “muitas coisas que ela não pode ver ou vivenciar diretamente.”
Para Vigotsky (2008), o processo de formação de conceitos normalmente se inicia na infância e desenvolve-se até a adolescência, quando atinge a maturidade. Quando os verdadeiros conceitos estão formados, e se entre eles está a alimentação e esta não está sendo adequada ao indivíduo, há uma maior dificuldade na adoção ou, até mesmo, modificação de hábitos alimentares e de estilos de vida mais saudáveis. Uma criança que iniciou sua formação de conceitos sobre alimentação e estilos de vida saudáveis, portanto, terá maior facilidade para desenvolvê-los durante a adolescência e formar os verdadeiros conceitos, seguindo e mantendo o pensamento saudável para a sua vida adulta.
Vigotsky (2008) destaca que é a cultura que constitui o próprio locus do desenvolvimento, sendo este uma função da interação do homem com o meio/grupo social em que está inserido e não como uma função individual que seja programada biologicamente. Assim, o ser humano não nasce com sua cultura pronta; ela é moldada pelo convívio em sociedade, que definirá os conceitos a serem formados durante o processo de transformação intelectual.
O autor afirma que a criança desenvolve uma função por meio de sua utilização e prática, inconsciente e espontaneamente, antes de ter consciência e controle sobre ela. As crianças aprendem por imitação e mediação com os outros, pois é o meio, a sociedade em que estas estão inseridas, que as constituirá como ser humano, histórico cultural.
Este estudo demonstra como as ações de educação alimentar e nutricional precisam ser contínuas, e ressalta a importância do trabalho em equipe para que seja possível a articulação de saberes de diferentes áreas do conhecimento.
Em Portugal, a Educação Alimentar constitui um dos temas do Referencial de Educação para a Saúde (Carvalho et al., 2017), que é atualmente um dos documentos de referência na Educação para a Cidadania. O tema Educação Alimentar inclui oito subtemas, dos quais os três primeiros apoiam bem este estudo, mais precisamente: “Alimentação e influências socioculturais”, o que converge para as ideias de Vigotsky (2008) acima descritas e que, no caso de Portugal, dá especial ênfase à dieta mediterrânica como exemplo de influências socioculturais no consumo alimentar; “Alimentação, nutrição e saúde”, em estreita relação com o conceito de EAN, que é central nesta pesquisa, esperando-se que as crianças desde o pré-escolar reconheçam a alimentação como um dos principais determinantes de saúde e que aprendam a identificar alimentos benéficos e alimentos prejudiciais para a saúde, bem como que compreendam a importância do consumo de água; “Alimentação e escolhas individuais” cujos objetivos incidem na compreensão de que fatores psicológicos e sensoriais, individualmente ou em grupo, também contribuem bastante para as escolhas alimentares, alertando para a influência da publicidade e do marketing. Este último subtema, em relação à faixa etária deste estudo (4 a 10 anos, ou seja, pré-escolar e primeiro ciclo do ensino básico em Portugal / anos iniciais do ensino fundamental no Brasil), preconiza como objetivos mais específicos que a criança identifique os alimentos que fazem parte da sua dieta quotidiana e que tenha uma atitude positiva perante novos alimentos e novos sabores. Consideramos que este referencial português é muito importante para refletir sobre os casos das crianças, referidas pelas merendeiras e professoras que integraram esta pesquisa no Brasil, que só comiam arroz e pão puro ou que só consumiam refrigerantes ao invés de água, bem como pode ser um bom suporte de EAN em complementaridade ao trabalho de nutricionista na escola.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo mostra que um processo coletivo formativo contribui para a constituição de hábitos alimentares saudáveis, considerando a EAN constitutiva do currículo escolar. As professoras interagiram com a nutricionista internalizando conceitos que não estão prontos nos livros didáticos; do mesmo modo, interagiram com seus alunos a partir de uma visão ampliada de ensinar e aprender.
Levando em conta que as crianças aprendem por imitação, o exemplo de boas práticas de EAN representa estratégia importante para o professor, que não se restringe a ensinar os conteúdos desvinculados de questões importantes para a saúde/vida.
O processo formativo, por sua forma interativa e problematizadora, permitiu aos participantes refletirem sobre seus pontos de vista na mediação de outros. A intenção foi de aprofundar o debate sobre a temática, bem como auxiliar no processo de compreensão das decisões e escolhas alternativas para a prática de ensino nos anos iniciais, incluindo a alimentação saudável e a nutrição humana como constitutiva do currículo escolar. O trabalho em equipe constituiu-se em momentos formativos e reflexivos sobre EAN articulados aos conteúdos disciplinares.
Este fato demonstra, claramente, como as ações de EAN precisam ser contínuas, e ressalta a importância do trabalho em equipe para que o processo funcione da forma mais adequada possível.
O professor pode influenciar nas escolhas alimentares sem impor sua vontade, mas pelo diálogo problematizador junto a seus alunos.