1. Introdução
No contexto e na sequência da recente pandemia, o debate internacional acerca da Educação e Acolhimento na Primeira Infância (EAPI), nomeadamente sobre a creche, ganhou um renovado interesse: são sublinhados os seus benefícios na promoção do desenvolvimento cognitivo e emocional, na aprendizagem e bem-estar das crianças; na geração de impactos duráveis no desempenho académico e ganhos na vida adulta; no combate à pobreza e exclusão social, providenciando guarda e cuidados básicos às crianças, funções imperativas para pais trabalhadores e facilitadoras da integração de comunidades imigrantes (OECD, 2020; 2019). É reforçado, ainda, que investir em cuidados infantis contribui para aumentar o emprego e a produtividade das mulheres, criar empregos, impulsionar o crescimento económico e apoiar uma recuperação mais resiliente e inclusiva da pandemia (Devercelli & Beaton-Day, 2020; World Bank, 2022).
Sensivelmente neste período, e praticamente pelas mesmas razões, também em Portugal a creche foi projetada para a agenda política e mediática tornando-se alvo de inúmeros debates em que argumentos político-partidários1 foram esgrimidos a favor de interesses ora públicos, pela defesa da criação de uma rede gratuita e pública, ora privados, que acautelassem critérios de escolha e de prioridade das famílias; um debate que culminou com a aprovação da lei da gratuidade das creches, em 2022 (Portaria n.º 198/2022, de 27 de julho), e lançamento do Programa Creche Feliz - Rede de Creches Gratuitas.
Este interesse pela creche, encontrando justificação em algumas das especificidades da realidade portuguesa face ao contexto da União Europeia (UE), não é, na premência que ganhou, isento de paradoxos: Portugal é o terceiro Estado-membro com a maior percentagem de participação das mulheres no mercado de trabalho (71%); elas têm mais qualificações, apresentam maior precariedade e menores salários, trabalham maioritariamente por conta de outrem e com uma maior jornada de trabalho, sendo sobrecarregadas em tarefas domésticas e de cuidado; porém, em contrapartida, existe uma baixa taxa de cobertura de equipamentos destinados aos cuidados e educação das crianças, públicos ou apoiados pelo Estado, em que as amas, creches e jardins de infância (JI) são amplamente usados como soluções externas à família (Torres & Vieira, 1998; Correia, 2020; Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, 2022). Em 2020, a taxa de privação material e social era superior entre as mulheres e havia uma maior prevalência de pobreza em famílias com crianças, agravada em situações de monoparentalidade feminina, mas apenas 51,1% de crianças menores de 3 anos frequentava serviços destinados à pequena infância, aumentando para 82,9% entre os 3-6 anos (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, 2022). Porém, se atendermos à relação entre a frequência de creches e o rendimento familiar, observamos que a pobreza das famílias penaliza a frequência da creche: 67,4% de crianças até aos 3 anos de famílias pobres não as frequentam, sendo esta percentagem de 50% nas de famílias com maiores rendimentos. Quanto ao JI, e ainda que a existência da rede pública e privada (com e sem fins lucrativos) faça aumentar a frequência, a percentagem de crianças que não o frequenta é também mais alta entre as famílias pobres (Peralta et al., 2023)2.
A compreensão destes paradoxos persistentes traz a lume as relações entre pequena infância, família e Estado relativamente às soluções exteriores à família destinadas à guarda e educação das crianças até à escolaridade obrigatória em Portugal, e de como nessa história as marcas e efeitos de um tempo longo e lento, com raízes anteriores ao século XIX que se arrasta até à revolução de 1974 se transformam, mas perduram. Relembra-se que em Portugal prevaleceu durante séculos um modelo de proteção social para a infância de carácter assistencial, predominantemente de inspiração religiosa caritativa. O reconhecimento da infância desprotegida nos alvores do século XX e da problemática familiar a si associada (Martins, 2006; Vasconcelos, 2005), desencadeia, por parte da sociedade civil, iniciativas de carácter filantrópico reconhecidas e ampliadas pelo Estado que, progressivamente, se pautam por preocupações assistencialistas de carácter higienista e educativo com eco no regime republicano. Com o Estado Novo, retoma-se uma estreita relação entre a conceção assistencialista do Estado e a doutrina social da igreja (Pereira, 2015), sendo a eficiência da assistência social extremamente baixa, refletindo uma forte dependência da iniciativa privada e informal que persiste até à transição da década de 1960-1970, quando foram alargadas as garantias de proteção social (Wall, 1995; 2011).
Entretanto, no espaço de uma geração sucedem-se rápidas mudanças: a entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho e a incompatibilidade em assegurar práticas de guarda e educação das crianças, na esfera parental e familiar, obrigam a recorrer a soluções informais e formais, exteriores à família (Torres et al., 1999; Wall et al., 2001). É a iniciativa privada quem fornece os serviços formais de acolhimento e educação, nomeadamente a igreja católica e as Misericórdias, sobretudo com carácter assistencial e para crianças e famílias das classes populares. Como veremos através da análise legislativa, é com a democracia que o Estado passa a regular e tutelar a EAPI, instituindo duravelmente uma estrutura separada para diferentes grupos etários: a creche para as crianças até aos 3 anos e o JI para as crianças dos 3-6 anos.
Interrogar o interesse estatal acerca da creche, agora tornado uma prioridade que peca por tardio, justifica aprofundar os processos de construção social da infância e seus recortes etários, reconsiderando as interdependências entre familialização, escolarização e intervenção estatal: em Portugal, no conjunto das políticas sociais para a pequena infância, foi preciso aguardar mais de um século para que fosse efetivada a escola gratuita obrigatória a partir dos 7 anos (1836) e colocar nesse alinhamento o JI para crianças dos 3-6 anos (1977), e mais 43 anos para abranger a creche.
Referenciadas a contributos das Ciências da Educação e das Sociologias da Infância, da Família e da Educação, perspetivamos então o recente interesse político sobre a creche no âmbito das relações entre pequena infância, família e Estado, para, mediante o levantamento e análise da produção legislativa acerca do cuidado e educação da pequena infância publicada em Portugal entre 1974 e 2023, interrogarmos o lugar da Creche. Com esta análise dos processos de institucionalização da creche procuramos participar no atual debate nacional e, simultaneamente, resgatar um objeto de estudo ainda marginal no campo da investigação em Ciências da Educação e na Sociologia.
2. Enquadramento teórico
A necessidade da deslocação precoce de crianças cada vez mais pequenas da família para instituições da infância na esfera pública, com funções socioeducativas e de guarda, requer revisitar dois dos processos que caracterizam e constroem a infância contemporânea ocidental - a familialização e a institucionalização -, bem como as interdependências entre a esfera doméstica e a esfera pública, pautadas pela intervenção do Estado (Näsman, 1994; Makrinioti, 1994; Edwards, 2002; Zeiher, 2009).
A emergência e construção social da infância entre a família e a escola, compreendendo intricadas relações que remontam à modernidade e prosseguem no presente, implicam considerar, do ângulo da família, por um lado, a sentimentalização e privatização da vida conjugal e familiar; a definição social dos papéis femininos no lar como boas esposas, donas de casa e mães, responsáveis pela gestão da vida doméstica e pelo desenvolvimento físico, social e moral das crianças, conformes aos discursos médico-psicológicos; e, por outro lado, a crescente participação feminina no mercado de trabalho e os efeitos da dupla jornada; a prevalência do modelo de família nuclear e a valorização das funções afetiva e expressiva que os filhos desempenham na vida familiar em detrimento das produtivas (Rocha & Ferreira, 2016).
Idealmente, é na família que os filhos pequenos, particularmente os bebés, dependentes de apoio físico, emocional e moral, e tornados investimentos afetivos, económicos e culturais visando o seu bem-estar e promoção educativa pelos pais, deveriam permanecer até à entrada na escola obrigatória. Esta familialização da infância, reafirmando a pertença natural das crianças à família como sua localização por excelência e sob tutela dos pais, os primeiros responsáveis pelo dever de providenciarem condições básicas ao seu desenvolvimento e educação, define assim uma espécie de esfera pessoal e privada como algo separado da esfera pública e do estado, onde reinam os mundos do económico e do político (Näsman, 1994; Makrinioti, 1994; Edwards, 2002).
Do ângulo da institucionalização da infância, i.e., do processo socio-histórico da localização das crianças em contextos diferenciados da família que, na sua forma e função social de provisão e proteção se apresentam organizados de modo compartimentado, segundo critérios de idade e de capacidade sob supervisão hierárquica de profissionais (Näsman, 1994; Edwards, 2002), importa considerar primeiramente a escola pública, obrigatória e gratuita. A institucionalização da escola como o local onde, sob intervenção e tutela do estado, se processa a educação formal das crianças representa a congregação de vários interesses e desafios da modernidade: os da industrialização capitalista para formar uma mão de obra disciplinada, produtiva e qualificada; os do estado-nação para formar cidadãos comprometidos com os valores do progresso, racionalidade e ciência e os dos direitos da criança à proteção e provisão. Tornada a norma da infância (Sacristán, 2003, citado por Rocha & Ferreira, 2008), a escola e a instrução/educação escolar distinguem-se da família e da educação familiar, e os 7 anos, assinalando um primeiro corte etário, desdobram os papéis sociais das crianças como alunas e como filhos/as (Rocha & Ferreira, 2008).
A familialização e escolarização das crianças colocam as famílias das classes populares e trabalhadoras que não se enquadram no modelo moral e funcional da família burguesa - com um pai provedor e uma mãe educadora a tempo inteiro -, sob escrutínio, vigilância, controlo e intervenção por parte do estado. Consideradas refratárias às expetativas sociais do ideal de família protetora e cuidadora das crianças, por ausência, ignorância ou negligência, incorrem, ainda, na incapacidade para conciliarem o trabalho com uma educação familiar a tempo inteiro, justificando-se a necessidade de delegarem essas funções. Riscos e necessidades familiares criam assim um contexto favorável à ingerência do estado na esfera doméstica: chamando a si os deveres familiares, a produção de leis e medidas de intervenção protetoras das crianças, autorizam-no a “institucionalizar funções até então mantidas informalmente pelas famílias” (Zeiher, 2009, p. 130), garantindo direitos sociais aos cidadãos mediante a provisão de condições básicas de bem-estar, de educação, e “não de caridade” (Wilensky, 1975, citado por Makrinioti, 1994, p. 272). De acordo com a autora, a assunção dos cuidados infantis e educação familiar pelo Estado de bem-estar através das políticas sociais, seja no provimento de serviços sociais - benefícios monetários (abonos) ou serviços gratuitos e/ou subsidiados - seja na regulação de atividades privadas oriundas de instituições da sociedade civil - religiosas, profissionais, de iniciativa local e popular -, atesta que a satisfação daquelas necessidades é socialmente relevante, ainda que tais políticas não sejam neutras nem imunes aos interesses e poderes de determinados grupos sociais, mesmo alcançando consensos sociais alargados.
Neste sentido, mudanças na guarda e nos cuidados socioeducativos das crianças pequenas, visíveis desde a 2.ª Guerra Mundial em muitos países europeus, são generalizadamente catapultados como questão inadiável nas últimas 4-5 décadas, para fazer face à entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho, exigindo políticas de bem-estar mais ativas. O foco das políticas sociais para as famílias tem incidido na conciliação entre responsabilidades laborais e familiares mais equitativas. Já para a pequena infância as políticas têm visado atenuar desfasamentos entre elevada procura e baixa provisão de serviços públicos, gratuitos e de qualidade, em prol da integração educação-cuidado, conforme a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) (ONU, 1989). Estas intenções têm alimentado a institucionalização da infância: valorização e alongamento da escolarização enquanto investimento promissor em capital humano numa economia crescentemente competitiva e globalizada; promoção da entrada cada vez mais precoce dos “mais novos” em instituições diversas, privadas e públicas, vocacionadas para a sua guarda, cuidado e educação, como Berçários, Creches, Infantários e JI.
Assim, na maioria dos países europeus veio a ser instituído um sistema separado de serviços para a pequena infância (Comissão Europeia/EACEA/Eurydice, 2019), fundado em duas tradições discursivas radicadas no século XIX - o cuidado e a educação - (Bertram et al., 2016; Moss, 2006, 2017; Moss & Urban, 2020), que coexiste com sistemas integrados, noutros países (Bennett & Kaga, 2010). Os sistemas integrados ou unitários abrangem toda a pequena infância: crianças a partir de 1 ano, ou logo após o fim da licença de parentalidade até ao início da educação básica aos 6/7 anos. Num sistema separado típico, a oferta é organizada para duas faixas etárias distintas: as crianças numa idade precoce começam a frequentar uma estrutura de tipo acolhimento, como a creche, antes de transitarem para uma estrutura de tipo educativo, aos 3 anos.
Esta diferenciação interna das políticas para a pequena infância, permeável aos discursos médico-psicológicos que subjazem ao conhecimento sobre o desenvolvimento infantil e as ‘necessidades’ da criança e o que é ‘bom’ para elas (Woodhead, 1997), alicerçou o reconhecimento da especificidade humana da criança como um ser em desenvolvimento, mas não deixa de ser denotativa de um conceito de cuidado associado ao desenvolvimento da criança corpo, e de educação associado ao ensino/aprendizagem da criança mente. São contrastantes outros discursos presentes no espaço público e político que, desafiando a indissociabilidade cuidado-educação e a inclusão dos direitos à cultura, lazer e educação (CDC, 1989), fundamentam os sistemas integrados de atendimento à infância (Bennett & Kaga, 2010). A produção destas políticas, refletindo como diferentes contextos nacionais têm construído diferentes recortes etários e institucionais na infância, requer atender à sua história particular e variações no tempo.
3. Metodologia
As políticas e os modos como definem a infância têm implicações nos modos como pensamos acerca das crianças e como nos relacionamos com elas. Neste sentido, os documentos de política nacional e internacional são assumidos como discursos e locais de exercício e de legitimação do poder (Codd, 1988) em que a linguagem, enquanto prática social, usa as palavras para além da nomeação do que já existe, produzindo efeitos ideológicos diferenciados e desiguais. Este entendimento dos documentos políticos como artefactos culturais e ideológicos significa que podem ser descodificados nos seus significados e sentidos, dependendo dos contextos em que são interpretados (Codd, 1988). Assim, neste texto, a identificação e análise das políticas sociais e educativas para a infância até aos 6 anos é observada, sobretudo, a partir da produção legislativa e dos contextos político partidários que influenciam a sua produção (Ball & Maynardes, 2011).
O acesso a fontes on-line disponíveis nos sites públicos e abertos da Assembleia da República (AR), da Associação de Profissionais de Educadores de Infância (APEI), da Santa Casa da Misericórdia, da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS), do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTS)3, possibilitou, a partir das palavras de busca “amas”, “infantário”, “creche”, “JI” e educação pré-escolar”, identificar, organizar e sistematizar exaustiva e cronologicamente as políticas para a infância até aos 6 anos, traduzidas na produção legislativa portuguesa entre 1974-2023.
No levantamento e reconstituição da trajetória destas políticas sociais, os discursos presentes nos textos legislativos foram submetidos à análise visando i) identificar os marcos legais estruturantes da institucionalização de respostas socioeducativas, interpretar as especificidades das suas (re)configurações e compreender o seu lugar relativo; ii) apreender (re)afirmações e tensões nas sucessivas versões dos textos políticos naquela temporalidade e quais os discursos predominantes acerca da infância; iii) problematizar as intenções, valores e funções preconizados para a organização e funcionamento da creche.
Neste processo, e particularmente no caso da legislação da creche, uma análise sociopolítica crítica, contextualizada à escala nacional e internacional, foi essencial para desconstruir os preâmbulos - onde se expõem as linhas orientadoras e os motivos que fornecem dados para a tomada de decisão - e atentar à formulação das suas finalidades e objetivos, designações institucionais, classificações e critérios reportados às crianças para apreender a sua coerência interna bem como linhas de continuidade e as descontinuidades entre diplomas. No entanto, só quando esta análise se intersectou com a dos modos de organização e funcionamento da creche e as atribuições do pessoal consignadas é que foi possível “fazer falar” os não ditos subjacentes às conceções de crianças, de cuidado e de educação em presença, conforme se dá conta seguidamente.
4. POLÍTICAS PARA A PEQUENA INFÂNCIA: A INSTITUIÇÃO DE UM SISTEMA SEPARADO E O LUGAR DA CRECHE
À semelhança de outros países ocidentais, também em Portugal, as instituições destinadas às crianças até aos 6 anos surgem ao longo do século XIX, em contextos urbanos, ora associadas à pobreza e ao trabalho feminino fabril, com funções de guarda e cuidado - as creches -, ora associadas às classes burguesas, culturalmente informadas, com funções educativas - os JI (Cardona, 1997; Rocha & Ferreira, 1994; Ferreira, 2001; Vasconcelos et al., 2009; Vilarinho, 2020). No entanto, será só durante o século XX, cerca de 20 depois da regulamentação de equipamentos privados para crianças até aos 7 anos e outros dependentes, no âmbito do Ministério da Saúde e Assistência do Estado Novo (1968), mas, sobretudo, após o 25 de Abril, e a partir da década de 1980, que se assistirá à configuração de políticas para a pequena infância de que resultará a institucionalização de um sistema separado: políticas sociais emanadas do MSS, definindo a creche como resposta social específica para crianças até aos 3 anos, emparceirada com a resposta Amas; políticas educativas oriundas do Ministério da Educação (ME) que, no âmbito da Educação Pré-Escolar (EPE; Decreto-Lei n.º 5/77, de 1 de fevereiro; Decreto-Lei n.º 542/79, de 31 de dezembro), definem o JI como resposta socioeducativa para crianças dos 3-6 anos. Neste processo destacam-se cinco momentos marcantes (cf. Figura 1).
4.1. Emergência de um processo de regulamentação
O primeiro momento, abrangendo o período de 1974 até 1984, congrega políticas educativas e sociais que desencadeiam o processo de regulamentação das respostas destinadas à infância por parte do Estado.
Trata-se de um momento conturbado da história recente que, na sequência do golpe de estado e do período revolucionário (1974-75), e das grandes movimentações sociais e políticas, acarinha as primeiras iniciativas populares e comunitárias para a criação de creches e JI (Bairrão et al., 1990). Entre 1976-1979, sucedem-se cinco Governos Constitucionais, mas em 1977, legislação emanada da AR, quando Mário Soares é primeiro-ministro, cria o sistema público de EPE e as Escolas Normais de Educadoras de Infância (Lei 6/77, de 1 de fevereiro). Será no V Governo Constitucional (1979-1980), liderado pela única primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintassilgo, que se legislará o reforço da universalidade ao abono de família e a aprovação dos Estatutos dos JI do sistema público de EPE (Decreto-Lei 542/79, 31 de dezembro), no último dia do seu governo.
Após três governos sociais-democratas (1980-1983; VI, VII, VIII Governos Constitucionais) toma posse um governo do Bloco Central, coligação PS/PSD (1983-85), presidido por Mário Soares e em que o MSS conta como Secretária de Estado Leonor Beleza. É neste governo e sob tutela deste ministério que, em 1984, é estabelecido o plano para a implementação de creches familiares e a criação de serviços para acolher crianças dos 3 meses aos 3 anos: as Amas oficializadas e Creches familiares (Decreto-Lei 158/84, de 17 de maio), e as instituições com fins lucrativos como Infantários e Jardins de Infância (Despacho Normativo n.º 131/84, de 25 de julho) (cf. Figura 1).
Estas medidas legislativas, enquadradas pela primeira Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 28/84, de 14 de agosto), definem, no texto emanado do MSS que, Infantários, JI e Amas podem acolher crianças até aos 6 anos - estas, integradas na “categoria de dependentes”, são colocadas a par de outros nessa condição, como deficientes ou idosos abrangidos por instituições com fins lucrativos. Nesse sentido, Infantários e JI compõem a “categoria de apoio social”.
Esta legislação dos Infantários e JI, na sequência da legislação em vigor antes do 25 de Abril de 1974 (Decreto-Lei 48580, de 14 de setembro), prossegue a regulamentação estatal das respostas de apoio social com fins lucrativos e institui como seus objetivos específicos “proporcionar às crianças oportunidades que facilitem o seu desenvolvimento físico-emocional, intelectual e social, através de apoios adequados, individuais ou em grupo, adaptados à expressão das suas necessidades” (Despacho Normativo n.º 131/84, Norma II). A sua reafirmação e a explicitação das condições de instalação e funcionamento nas normas reguladoras vêm a constituir-se como matriz das iniciativas e aprimoramentos subsequentes.
Neste contexto, a regulamentação das Amas, sublinhada a justificação da sua função supletiva da família face à elevada taxa de feminização do emprego, compreende-se por razões económicas, podendo constituir uma alternativa a respostas “socioeducativas com adequado nível técnico” e “aos equipamentos tradicionais de apoio às crianças” (Decreto-Lei 158/84, de 17 de maio).
A emergência destas medidas de política social destinadas à pequena infância, uma categoria dependente, e, portanto, a proteger, reflete um esforço no cumprimento da Constituição da República Portuguesa (1976) quando é declarado que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral” (Artigo 69.º, n.º 1). O mesmo acontece com a emergência de políticas educativas, no cumprimento artigo 74.º - Ensino - da Constituição da República Portuguesa, que aponta para a “Cria[ção de] um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar (n.º 2, alínea b)”.
Finalmente, ao nível da sociedade civil ressalva-se a fundação do Instituto de Apoio à Criança (IAC), em 1983, com o objetivo fundamental do seu desenvolvimento integral e a defesa dos seus direitos.
. Uma resposta específica e uma nova nomenclatura - do infantário à creche
O segundo momento, desenrolando-se entre 1985-1989, abrange três governos constitucionais: o final do IX Governo liderado por Mário Soares (PS; 1983-1985) e o X Governo Constitucional (1985-1987) e início do XI (1987-1991), ambos chefiados por Aníbal Cavaco Silva (PSD). Neste curto período é reforçada a regulamentação e a instituição da tutela do Estado sobre as Creches com fins lucrativos; agora uma resposta específica para as crianças até aos 3 anos diferenciada do JI a quem, doravante, apenas acedem crianças dos 3-6 anos (Despacho Normativo nº 99/89, de 27 de outubro).
Paralelamente, avança a regulamentação do exercício da atividade de Ama e o seu enquadramento em creches familiares, designadamente a seleção, formação e qualidade do apoio dispensado pelas instituições de enquadramento (Despacho Normativo nº 5/85, de 18 de janeiro).
Na análise destas medidas do MSS identificam-se grandes linhas de continuidade com o momento anterior: i) inserção de todas as crianças até aos 6 anos na “categoria de dependentes”; ii) inserção dos estabelecimentos em causa na categoria de apoio social; e iii) prossecução da regulamentação por parte do Estado das respostas sociais com fins lucrativos.
Genericamente reafirmados os objetivos definidos para os Infantários e JI (1984), destacam-se agora como inovações a instituição de uma nova designação, Creche, em substituição de ‘Infantário’, e um maior refinamento das normas de instalação e de funcionamento (Despacho Normativo n.º 99/89 de 27 de outubro, complementando o Decreto-Lei n.º 30/89, de 24 janeiro). São objetivos específicos das creches:
a) Proporcionar o atendimento individualizado da criança num clima de segurança afectiva e física que contribua para o seu desenvolvimento global;
b) Colaborar estreitamente com a família numa partilha de cuidados e responsabilidades em todo o processo evolutivo de cada criança;
c) Colaborar no despiste precoce de qualquer inadaptação ou deficiência, encaminhando adequadamente as situações detetadas. (Norma II)
A isenção deste diploma ser aplicado aos estabelecimentos das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) e “estabelecimentos particulares sob tutela do ME, nomeadamente as atividades que se enquadrem no sistema público de educação pré-escolar e no âmbito do ensino especial” (Decreto-Lei n.º 30/89, de 24 Janeiro, art.º 4º a), b)) compreende-se na sequência da publicação dos Estatutos do JI (1979, cf. 1.º momento) e, depois, da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE, 1986), três anos antes, aquando da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE), que não considera a faixa etária dos 0-3 anos quando define como destinatárias da Educação Pré-Escolar somente as crianças dos 3-5 anos. Ao contrário do que sucede em muitos estados-membros da UE, em Portugal a creche e as crianças pequenas são excluídas do Sistema Educativo, pelo que, doravante, a ação legislativa sobre as crianças até aos 3 anos apenas diz respeito às Creches, Creches Familiares e às Amas, todas sob tutela do MSS. Neste contexto, é reforçada a capacidade fiscalizadora dos Centros Regionais da Segurança Social sobre estabelecimentos cujas atividades se inserem em respostas sociais tipificadas pelo Ministério da Segurança Social.
É particularmente relevante determo-nos sobre a importância da LBSE e a EPE (Artigo 4.º da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro). De acordo com Lima (2018), na LBSE “foi valorizada a educação de infância, através da categoria, conceptualmente discutível, de ´educação pré-escolar´” (p. 86) que, integrando-a no sistema educativo, dele exclui as crianças até aos 3 anos. O Estado legitima assim a criação de um sistema separado, tutelado, no caso da creche exclusivamente pelo MSS, restringindo-se às Creches, Creches Familiares e às Amas, enquanto para as crianças dos 3-6 anos, a componente educativa é oriunda do ME, reportando-se aos JI das redes pública e privada (com e sem fins lucrativos).
A adoção da CDC na ONU (1989), encerrando este segundo momento, é um acontecimento internacional, cuja ratificação em 1990 se repercute à escala nacional, tornando-a direito interno.
4.3. Creche e Jardim de Infância: Instituição do sistema separado e do binómio cuidar e educar
O terceiro momento, incidindo na década de 1990, abrange parte do XI Governo Constitucional (1987-1991) e o XII (1991-1995), presididos por Aníbal Cavaco Silva (PSD), a que se seguiram o XIII (1995-1999) e parte do XIV (1999-2002), chefiados por António Guterres (PS).
Neste contexto, a aridez legislativa que dá continuidade às políticas dos anos de 1980 para a Creche e Amas contrasta com a abundância devotada à afirmação da educação das crianças dos 3-6 anos, cujo corolário é a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-escolar (Lei N.º 5/97, 10 de fevereiro), assinada por Eduardo Marçal Grilo (PS). A definição da EPE como “a primeira etapa da educação básica (…) [e] complementar da acção educativa da família” (Artigo 2.º), reforçada com a publicação das Orientações Curriculares (OCEPE, 1997), consolidam a separação entre Creche e JI iniciada 10 anos antes. Ao mesmo tempo, passa a ser exigido o grau de licenciatura para educadores/as de infância (Decreto-Lei 255/98, de 11 de agosto).
A creche é confirmada como resposta social, de iniciativa privada ou solidária, sob regulamentação e tutela do MSS, destinando-se a suprir as necessidades de guarda e cuidado das crianças até aos 3 anos devidas ao trabalho parental; o JI é certificado como resposta educativa, sob regulamentação e tutela pedagógica do ME, destinando-se a fomentar as potencialidades das crianças dos 3-6 anos, numa perspetiva relacional, holística e inclusiva, essenciais à transição para a escola.
Num contexto internacional em que é aprovada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, em 1990, e localmente se ergue o sistema separado nos serviços para a pequena infância, o estatuto social das crianças até aos 3 anos acumula a menoridade educativa que pesa sobre elas. Só em 1999, a infância retém a atenção estatal com a promulgação a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de setembro).
4.4. A Creche como instituição e contexto regulado
O quarto momento, da entrada no milénio até 2019, compreende parte do XIV Governo até parte do XXII. Nestes 19 anos sucederam-se, alternadamente, 8 Governos presididos, respetivamente por António Guterres (PS - 1999-2002), Durão Barroso (PSD - 2002-2004), Pedro Santana Lopes (PSD - 2004-2005), José Sócrates (PS - 2005-2009; 2009-2011), Passos Coelho (PSD - 2011-2015; 2015) e António Costa (PS - 2015-2023).
Destaca-se neste longo período a estreita relação do MSS com a Creche, seja através da regulamentação e definição das condições de funcionamento, seja de comparticipações financeiras às IPSS, mediante acordos de cooperação.
Constituem marcos estruturantes deste momento a promulgação das Bases Gerais do Sistema da Segurança Social (Lei Nº 4/2007, de 16 de janeiro), quando José Sócrates era primeiro-ministro, posteriormente alterada pela Lei 83-A/2013, de 30 de dezembro, no governo de Passos Coelho, quando Pedro Mota Soares (CDS-PP), era ministro do MSS. Esta lei inclui no seu articulado o desenvolvimento de equipamentos sociais de apoio na primeira infância, no âmbito da promoção da natalidade (artigo 27º), da especial proteção aos grupos socioeconómicos mais vulneráveis, nomeadamente crianças (artigo 29º), e sua concretização, graças a prestações como serviços e equipamentos sociais (artigo 30º).
Assiste-se ainda à definição técnica das respostas por parte do MSS, através do Programa de Cooperação para o Desenvolvimento da Qualidade e Segurança das Respostas Sociais (2003), atualizado em 2018 pelo então ministro socialista José António Vieira da Silva, quando passou a abranger as creches das IPSS.
A creche volta a ser alvo de regulamentação do MSS em 2011: uma nova Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto (alterada pela Portaria nº 411/2012, de 14 de dezembro) revoga os diplomas dos anos de 1980, estabelecendo as “normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches”. Uma outra estrutura textual e uma linguagem atualizada visibilizam preocupações de tipo pedagógico na especificação dos equipamentos/objetos e de algumas atividades na sala-parque, sala de refeições e recreio.
Subsistindo continuidades com a matriz regulamentar forjada em 1984, que define as condições de instalação e de funcionamento, atualizada em 1989, torna-se agora presente um conjunto de normas de pendor educativo. Estas configuram a creche como
um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais" (artigo 3.º da Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto).
Este pendor educativo estende-se à composição da direção técnica que pode ser assegurada por educadores/as de infância e por graduados/as em Ciências da Educação (art.º 9.º). No entanto, e em contradição com os mais elementares princípios pedagógicos, a mesma Portaria estabelece o aumento do número de crianças por grupo (art.º 7º), mantendo as condições de instalações e de pessoal - uma estratégia política denotativa do desinvestimento estatal.
Permanece e coexiste com este modelo de creche a resposta social Amas, agora uma profissão liberalizada no mercado e regulamentada (Decreto-Lei n.º 115/2015, de 22 de junho, que revoga o Decreto-Lei n.º 158/84, de 17 de maio, atualizado pelo Decreto-lei n.º 94/2017, de 9 de agosto).
Não obstante a feição educativa na legislação da creche, as crianças até 3 anos continuam fora do sistema educativo. Perante esta tensão, relembra-se que, anteriormente à legislação de 2011 sobre a Creche, já o CNE tinha alertado para a importância do continuum educativo dos 0-12 anos e de aí se considerar a educação das crianças dos 0-6 anos como um direito e não apenas como uma necessidade social (cf. CNE, 2009; Vasconcelos et al., 2009). Quer no relatório do CNE (2009), quer na Recomendação n.º 3 pelo CNE (Diário da República, 2011), é advogada a necessidade do Estado repensar a educação dos 0-3 anos: alargando apoios, investindo na qualidade dos serviços, elaborando linhas pedagógicas e uma intencionalidade educativa mais explícitas4, elevando o nível de qualificação dos profissionais e das condições de trabalho, apostando na profissionalização das amas, cuidando da continuidade nas transições entre fases educativas, proporcionando uma melhor oferta de ocupação de tempos livres e uma articulação entre serviços sociais e educativos para ultrapassar a tradicional dicotomia entre proteção social às populações mais carenciadas e provisão de serviços educativos às mais favorecidas. As 11 recomendações do CNE (Diário da República, 2011) não tiveram reflexos na Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto, promulgada 4 meses depois: empenho e tentativa de mudança para um sistema de serviços integrados para a infância foram gorados.
A intervenção da troika (2011-2014), formada pelo Fundo Monetário Internacional, pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, teve um forte impacto no grupo social da infância: aumento da pobreza e da pobreza infantil; cortes nos serviços públicos, sobretudo nas áreas da saúde e educação; diminuição do investimento público em políticas sociais com a redução significativa do investimento em políticas para a infância.
Sob a alçada do governo de coligação do PS, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português, apoiados pelo Partido Ecologista "Os Verdes", popularizado como “a geringonça” (2015-2019), as atenções voltam-se para a EPE. Não significando uma ausência total de preocupações com a creche, estas expressam-se por “vias travessas”. Na atualização das OCEPE em 2016, pode ler-se que:
Apesar de a legislação do sistema educativo [LBSE, Lei-Quadro da EPE] incluir apenas a educação pré-escolar a partir dos 3 anos, não abrangendo a educação em creche, considera-se, de acordo com a Recomendação do CNE, que esta é um direito da criança. Assim, importa que haja uma unidade em toda a pedagogia para a infância e que o trabalho profissional com crianças antes da entrada na escolaridade obrigatória tenha fundamentos comuns e seja orientado pelos mesmos princípios. (…) Considerando a unidade e sequência de toda a educação de infância, são apresentados fundamentos e princípios que constituem uma base comum para o desenvolvimento da ação pedagógica em creche e em jardim de infância (…) [e] traduzem uma determinada perspetiva de como as crianças se desenvolvem e aprendem, destacando-se a qualidade do clima relacional em que educar e cuidar estão intimamente interligados. (Silva et al., 2016, p. 5)
A esta declaração subjazem linhas de força estruturantes de uma visão da educação de infância como sistema integrado, “unido” e “sequencial”, em que cuidar e educar são indissociáveis.
Entretanto, o contexto internacional foi profícuo na produção de políticas e recomendações para crianças até aos 3 anos: Recomendação da OCDE para Portugal apoiar o seu atendimento (OCDE, 2000); Cimeira de Barcelona (2002), preconizando estruturas de acolhimento para, pelo menos, 33% destas crianças, até 2010; Programa de Cooperação Desenvolvimento da Qualidade e Segurança das Respostas Sociais (ISS, 2003); Comentário Geral n.º 7 do Comité dos Direitos da Criança sobre a Implementação dos direitos da criança na primeira infância (UN Committee on the Rights of the Child, 2005); Conferência Mundial sobre Cuidado e Educação na Primeira Infância (ECPI): Construir a Riqueza das Nações (UNESCO, 2010), defendendo uma conceção ampla e holística da ECPI desde o nascimento até os 8 anos de idade. Em Portugal assiste-se, em 2009, à criação do Sistema de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI).
4.5. A formalização da creche: funções sociais, gratuitidade, reconhecimento profissional e orientações pedagógicas
Atualmente, é identificável a emergência de um quinto momento, iniciado em 2020, quando se aprofunda a relação do MSS com a Creche, mediante legislação que define a comparticipação às IPSS, visando assegurar o alargamento progressivo da gratuitidade das creches, creches familiares e amas do Instituto de Segurança Social: Lei 2/2020, de 31 de março (Artigo 146º); Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (Artigo 159º); Portaria nº 271/2020, de 24 de novembro; Portaria n.º 199/2021, de 21 de setembro; Lei n.º 2/2022, de 3 de janeiro; Portaria n.º 198/2022, de 27 de julho; Portaria n.º 305/2022, de 22 de dezembro). Esta produção legislativa para a creche compreende-se no contexto pandémico internacional, já mencionado, que, localmente, expôs as gritantes desigualdades sociais agravadas com o desemprego parental e encerramento das creches.
A implementação da recente política de gratuitidade na creche insere-se num contexto mais amplo de debate e ação política em que, sob influência das orientações europeias - Programa Garantia para a Infância decorrente da Recomendação (UE) 2021/1004 do Conselho, de 14 de junho de 2021, aprovada durante a presidência portuguesa do Conselho Europeu -, o compromisso nacional no combate à pobreza infantil e na promoção da igualdade de oportunidades se expressa na Resolução de Conselho de Ministros n.º 3/2023, de 17 de janeiro. Esta aprovou o Plano de Ação da Garantia para a Infância 2022-2030, cujo objetivo principal é prevenir e combater a pobreza e a exclusão social, colocando as crianças e os jovens no centro das suas prioridades. Visa ainda a defesa dos direitos da criança, subscrevendo o princípio do 11.º Pilar Europeu dos Direitos Sociais e o seu Plano de Ação, que tem como meta reduzir em, pelo menos 5 milhões, o número de crianças nesta situação até 2030.
Acrescem dois marcos significativos em relação à creche, configurando o retraimento da garantia à educação das crianças até aos 3 anos: um, de natureza associativa quando, a 15 de março de 2021, a APEI entregou no Parlamento a Petição “Direito à educação desde o nascimento”, reivindicando a alteração da LBSE para incluir as crianças até aos 3 anos; outro, de natureza política, quando a 24 de junho de 2022, cinco projetos de lei e dois de resolução de alteração à LBSE pela inclusão das crianças aos 0-3 anos foram chumbados na Assembleia da República.
Em 2023, a creche volta à ribalta, destacando-se um conjunto de iniciativas. No domínio profissional, o Decreto-lei 32-A/ 2023, de 8 de maio, que “Estabelece o novo regime de gestão e recrutamento do pessoal docente dos ensinos básico e secundário e de técnicos especializados para formação”, reconhece o tempo de serviço aos/às educadores/as a trabalhar em creche para efeitos de concurso (art.º 11.º, n.º 2). No domínio político/simbólico, a 30 de maio, a Comissão de Educação e Ciência promove um seminário na AR sobre "Uma política para a infância" onde creche e crianças assumiram protagonismo. No domínio pedagógico, sob iniciativa do ME e MSS, é constituído um grupo de trabalho para redigir “Orientações Pedagógicas para Creche” e o referencial de qualidade para creche (em curso), concretizando (espera-se) uma das proposições da Recomendação n.º 3/2011, de 21 de abril, e da Resolução da AR n.º 364/2021, de 27 de dezembro, “Recomenda ao Governo medidas no âmbito da educação de infância”.
4. Conclusão
O 25 de abril de 1974 assinala uma viragem paradigmática na história do País, nos processos de familialização, escolarização e institucionalização da infância, e nas políticas sociais destinadas à pequena infância. Em cerca de 50 anos, entre 1974-2023, assiste-se ao processo de institucionalização e estabilização de um sistema separado de atendimento à infância em Portugal promovido pelo Estado, conforme a análise das políticas procurou dar conta. Neste processo, o lugar social da Creche, situado entre as Amas (remetendo para continuidades com o contexto familiar) e o JI (antecipando a entrada na escola), configura uma intencionalidade legislativa afirmada desde 1984, e confirmada em 1989, 2011 e os dias de hoje, que a define como um equipamento de natureza socioeducativa com funções supletivas das famílias, cujos objetivos assentam em 3 pilares centrais: o desenvolvimento da criança; a articulação com a família e o combate e a prevenção dos deficits de desenvolvimento da criança, sobretudo das crianças pobres.
Este sistema separado que vigora em Portugal, observado na maioria dos países europeus, tem subjacente dois a priori culturalmente muito consistentes, restritivos, mas que se implicam mutuamente: o cuidar e o educar. Se a criança pequena até aos 3 anos é um ser a cuidar é porque da educação, que persistentemente se associa à escola, se esperam conteúdos e relações associados a um ambiente de aprendizagem que é visto como não lhes sendo adequado, mas sim próprio às crianças dos 3-6 anos.
Estes dois a priori são, em si mesmos, anacrónicos e nefastos no que se refere às crianças pequenas e seus direitos, requerendo ser ultrapassados por uma conceção de cuidado que não se fixe em fronteiras etárias e por uma outra conceção de educação imune à contaminação e pressões escolares que sobre ela se exercem. O espaço assim aberto no combate às dicotomias instituídas creche/JI, educação/cuidado, corpo/mente, proteção/provisão, desafia então a repensar a educação de infância numa perspetiva ampla, complexa e crítica, a afirmar a sua especificidade identitária face à escola e escolarização, a resgatar o cuidado como práticas e relações éticas e a integrar discursos alternativos da filosofia, moral e dos direitos para transformar serviços para crianças em espaços das crianças (Moss & Petrie, 2002).