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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.20 no.3 Porto  2011

 

Caso hematológico

 

Miguel Salgado1, Emília Costa2, Filipa Campos3, Luís Leite4, Inês Freitas5, José Barbot4

1 S. Pediatria, ULS Alto Minho, V. Castelo

2 S. Pediatria, CH Porto

3 S. Hematologia, CH Porto

4 S. Hematologia, IPO, Porto

5 S Patologia Clínica, CH Porto

CORRESPONDÊNCIA

 

ABSTRACT

The authors present the clinical case of a six years old child followed by Pediatric Hematology because of anemia detected after a late hemorrhage following adenotonsillectomy, debating the differential diagnosis and management.

Keywords: adenotonsillectomy, anemia, hemorrhage, histogram.

 

Criança do sexo masculino, seis anos de idade, sem antecedentes pessoais ou familiares de patologia hematológica, realizou estudo pré-operatório de rotina para intervenção cirúrgica programada (adeno-amigdalectomia), que não sugeriu coagulopatia, tendo o procedimento decorrido sem intercorrências. Doze dias após a cirurgia ocorreu uma hemorragia abundante, resolvida com tamponamento no hospital. O estudo analítico efectuado nesta altura demonstrava a presença de anemia – He­moglobina (Hb) 7.8 g/dL e Hematócrito (Htc) 22.1% para valores pré-operatórios de 12.5 g/dL e 36.8%, respectivamente. Foi também reavaliada a hemostase primária (PFA-100) e secundária (estudo da coagulação) com resultados normais.

Ao terceiro dia após a hemorragia era já objectivada uma recuperação hematológica espontânea, com Hb 8.4 g/dL, RDW 14.7% e reticulocitose (174300/μL). O conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos (CHr) era de 30.3 pg (reticulócitos normocrómicos) (Figura 1).

 

Figura 1 – Histograma demonstrando a presença de uma população eri­trocitária madura dentro dos parâmetros da normalidade e reticulócitos normocrómicos (30.3 pg).

 

Perante a melhoria clínica e a ausência de episódios adicionais de hemorragia, a criança teve alta para o domicílio sem qualquer tipo de medicação, com marcação de consulta após três semanas para reavaliação.

Vinte e quatro dias após a hemorragia foi observada na consulta externa. Os pais negaram novos episódios de sangramento mas referiram sonolência excessiva e cansaço fácil. Ao exame objectivo apresentava descoloração da pele e mucosas. Os exames efectuados demonstraram um novo agravamento da anemia (Hb 7.8 g/dL, Htc 26.4%) com índices eritrocitários reveladores de hipocromia e microcitose ligeiras (VGM 73.9 fL, HGM 21.8 pg), queda na contagem de reticulócitos (73300/μL) e aumento do RDW (17.5%).

No histograma eram claramente visíveis duas populações de eritrócitos, uma normocítica e normocrómica e outra microcítica e hipocrómica. O CHr era de 19.3 pg (reticulócitos hipocró­micos) (Figura 2).

 

Figura 2 – Histograma revelando duas populações com diferentes parâmetros eritrocitários e reticulócitos hipocrómicos (19.3 pg).

 

QUAL A CAUSA DA ANEMIA?

Uma hemorragia oculta?

Ferropenia?

Falência medular?

 

 

DISCUSSÃO

A hemorragia tardia pós adeno-amigdalectomia é uma complicação rara mas potencialmente grave, mesmo em crianças sem patologia hematológica prévia(1,2). O facto de ocorrer no domicílio, eventualmente longe duma urgência hospitalar, potencia o risco que lhe é inerente. O sangramento massivo obriga por vezes à realização de hemostase cirúrgica no bloco operatório e à transfusão de concentrado eritrocitário(3). Após a estabilização na fase aguda, é necessária uma vigilância atenta e activa para garantir que a criança com anemia por hemorragia recupere os valores hematológicos de base. Paradoxalmente, aquelas com quadro clínico menos dramático e que por isso não realizam transfusão de concentrado eritrocitário são as que maior risco correm de iniciar secundariamente uma eritropoiese ferripriva.

Foi o caso da criança supra-citada, em que o rápido controlo da hemorragia com estabilização hemodinâmica sem necessidade de suporte transfusional, aliado a uma aparente melhoria precoce (aumento da hemoglobina com reticulocitose normocró­mica) levaram a uma enganadora noção de resolução clínica.

Um exercício de cálculo permite concluir ter-se tratado de uma hemorragia importante:

Massa eritrocitária (mL) = Peso (Kg) x 75 x Htc

Sabendo que esta criança pesava 22 Kg e tendo acesso ao valor de Htc antes e após a hemorragia, é possível calcular a massa eritrocitária perdida, que neste caso se cifrou em 242 mL, ou seja, 40% do total. A esta perda de massa eritrocitária substancial está sempre associada uma perda de ferro. Assim, estimando as reservas de ferro em 330 mg (15 mg/Kg), e equivalendo cada mililitro de massa eritrocitária a 1.1 mg de ferro, calcula-se que a hemorragia foi responsável pela perda de 266 mg de ferro, correspondente a 81% das reservas.

Neste caso particular, na ausência de reposição por trans­fusão de sangue, assim como de suplementação medicamento­sa, a resposta positiva inicial foi travada pelo esgotamento das reservas de ferro do organismo, ressurgindo assim a anemia, com a emergência aguda de uma nova população de eritrócitos microcíticos e hipocrómicos claramente visível no histograma. Os parâmetros bioquímicos do ferro efectuados nessa altura apoiaram o diagnóstico, tendo sido obtidos valores diminuídos do ferro sérico (3.3 μg/dL) e da ferritina (1.5 μg/L).

Após o diagnóstico de anemia ferripriva a criança iniciou tratamento com ferro, com boa tolerância e melhoria progressiva. À data de alta da consulta apresentava Hb 12.6 g/dL, Htc 36.7%, parâmetros eritrocitários adequados e uma ferritina de 105 μg/L (Figura 3).

 

Figura 3 – Histogramas antes, durante e após tratamento com ferro. Uma análise mais atenta demonstra que apenas oito dias após início da terapêutica, apesar de ainda não ser visível qualquer modificação da população eritrocitária madura, estava já presente um grande desvio dos reticulócitos no sentido da normocromia, sendo assim possível antecipar a boa resposta terapêutica que se veio posteriormente a verificar.

 

Face a este caso clínico, os autores concluem da importância da suplementação sistemática com ferro de todas as crianças com anemia secundária a hemorragia pós adeno-amigdalectomia que não tenham sido transfundidas, independentemente da sua evolução inicial, de modo a não comprometer a normal recuperação hematológica.

 

BIBLIOGRAFIA

1. Windfuhr JP, Chen YS. Incidence of post-tonsillectomy hemorrhage in children and adults: a study of 4848 patients. Ear Nose Throat J 2002; 81(9):626-8.         [ Links ]

2. Liu HJ, Anderson KE, Willging JP, Myer III CM, Shott SR, Bratcher GO et al. Posttonsillectomy hemorrhage. What is it and what should be recorded? Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2001; 127:1271-5.         [ Links ]

3. Ribeiro C, Figueiredo S, Matos C, Chacim S, Costa E, Barbot J. Hemorragia tardia pós-adenoamigdalectomia. AB0 2010; 44:43-6.         [ Links ]

 

CORRESPONDÊNCIA

José Miguel Vaz Salgado

Estrada de Santa Luzia

4901-858 Viana do Castelo

Tlf: (00351) 258 802 100

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