Introdução
Os direitos sexuais e reprodutivos constituem uma ramificação dos Direitos Humanos e incluem o acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva, a possibilidade de viver uma vida segura, a autonomia corporal e o direito a reproduzir-se em liberdade e segurança. Muito embora as últimas décadas tenham visto grandes avanços no que diz respeito ao acesso a cuidados de saúde maternos, visando a gravidez, parto e pós-parto, ainda resta trabalho por fazer. Os movimentos sociais feministas têm-se articulado desde os anos 1960, de forma a exigir cuidados de saúde reprodutiva que respeitem a autonomia da mulher e que caminhem para a diminuição da medicalização do processo, em momentos em que as intervenções são desnecessárias. Da América Latina chega o conceito de violência obstétrica, uma construção epistémica feminista que nasce dos movimentos sociais, no início do século XXI. Este conceito, ao contrário do de humanização do parto, procura ter uma perspectiva interseccional que permite explicar de que forma a vivência das mulheres racializadas difere das experiências de outras mulheres. Em alguns territórios, como o Brasil e os EUA, dados quantitativos e qualitativos têm indicado que as mulheres negras têm mais probabilidades de sofrer violência obstétrica, em comparação com as mulheres brancas, e mais probabilidade de desenvolver comorbidades em consequência de negligências nos cuidados durante a gravidez, parto e pós-parto. Sobre Portugal, poucos são os dados disponíveis sobre as experiências de mulheres racializadas no acesso aos cuidados de saúde, pelo que surgiu a necessidade de criar um coletivo que tem como objetivo chamar a atenção para esta temática. Este artigo tem como objetivo relatar as experiências desse coletivo de mulheres antirracistas atuantes, sob uma óptica interseccional, em Portugal.
Enquadramento teórico
A violência obstétrica nomeia um fenômeno multifacetado e difuso que pode ocorrer durante o contato com os cuidados de saúde sexual e reprodutiva de mulheres que engravidam (Sesia, 2020). Violência obstétrica define-se como “a apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde que se expressa numa relação desumanizadora, num abuso de medicalização e patologização dos processos naturais e traz consigo uma perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre os seus corpos e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres” (Fondo de Población de las Naciones Unidas, 2007). Experiências de violência são comuns em todos os contextos geográficos e violam o direito a cuidados de saúde dignos e respeitosos. Os abusos mais comuns são de violência física e/ou psicológica, através de discriminações várias (Bohren et al., 2015), pelo que, embora a violência obstétrica seja uma violência de gênero, é importante ter em conta outros aspetos identitários da parturiente que possam influenciar a experiência de gravidez, parto e pós-parto. Tendo em conta o passado colonial e racista da biomedicina, é pertinente olhar para esse processo de uma perspectiva interseccional.
A teoria interseccional é uma teoria que emerge das margens, com base no trabalho das feministas negras; pretende demonstrar como as discriminações de raça se cruzam e sobrepõem às opressões de gênero e classe (Crenshaw, 1989). As experiências de gravidez, parto e pós-parto das mulheres negras são uma forma de expressão da interseccionalidade das opressões, e é muitas vezes difícil de discernir por ocorrer dentro dos sistemas de cuidados de saúde, espaços em que se espera ser de atenção, cuidado, respeito e amabilidade. Para as mulheres racializadas, as relações de gênero não podem ser separadas dos processos de racismo e relação de classe, pois estes não são neutros, nem benignos e resultam no seu silenciamento e exclusão (Anderson, 2000). O consultório obstétrico constitui um lugar de reprodução de raça, enquanto construção social produzida através de procedimentos institucionais (Bridges, 2009). Esse espaço institucional de cuidado age, assim, também como um lugar de reprodução do racismo, enquanto sistema de hierarquização dos seres humanos (Grosfoguel, 2016). O racismo é um sistema social, político e cultural que modela as crenças dos indivíduos que se consideram racialmente superiores sobre aqueles que consideram inferiores. Esta hierarquização faz parte da criação e manutenção das desigualdades sociais que permite a preservação dessas mesmas hierarquias.
É consensual entre a maioria da comunidade científica que não existem raças na espécie humana. Contudo, a raça continua a influenciar e a pairar nas experiências diárias das sociedades. As ideologias raciais que permanecem nas sociedades eurocêntricas causam barreiras diversas, nomeadamente de acesso à cidadania e a serviços, como é o caso da justiça, educação, emprego e saúde (Goldberg, 2006). Além do mais, mesmo tendo acesso a cuidados de saúde, a experiência das pessoas racializadas é muitas vezes marcada pela violência racial, tornando as pessoas negras mais vulneráveis ao desenvolvimento de doenças que impactam a sua vida e a dos seus descendentes. As ideologias do racismo científico do século XIX ainda hoje têm repercussões nos (des)cuidados prestados às pessoas racializadas. Criou-se um mito de que as pessoas negras seriam menos sensíveis à dor (Hoberman, 2012), e este mito tem como reflexo a menor taxa de administração de anestesias durante os procedimentos médico e a negligência face a queixas de dor (Bhopal, 2007; Hamed et al., 2020; Santos, 2009).
A medicina obstétrica e ginecológica desenvolveu-se, em parte, com base em experiências realizadas em corpos de mulheres negras escravizadas (Owens, 2017; Scott & Davis, 2021; Washington, 2008). Não só se mantinha a crença de que as pessoas negras eram extremamente resistentes à dor, como seriam hiperférteis e teriam corpos preparados para parir, ao contrário das mulheres brancas. Este é um mito que justifica a negligência e a ausência de intervenções, mesmo quando necessárias, durante o parto. Estas situações constituem o que se entende por racismo obstétrico, que surge na intersecção entre a violência obstétrica e o racismo médico (Tempesta & Eneile, 2020). Na sua conceção original, a violência obstétrica não tem em conta a forma como o racismo se materializa nas experiências de gravidez, parto e pós-parto das mulheres negras, pelo que o conceito de racismo obstétrico pretende dar sentido à narrativa histórica sobre a reprodução de práticas gineco-obstétricas na qual os corpos das mulheres negras são violentados (Tempesta & Eneile, 2020) e explicar as disparidades existentes entre mulheres, quando se tem em conta a sua identidade étnico-racial.
Existem alguns estudos que têm vindo a comprovar que a discriminação racial e as desigualdades sociais associadas impactam os resultados de gravidez e parto das mulheres racializadas. Nos EUA, a mortalidade materna é mais elevada entre mulheres afro-americanas, e estas têm quatro vezes mais probabilidades de morrer de complicações relacionadas com a gravidez (Wynn, 2019). No Brasil, um estudo a nível nacional demonstrou que as mulheres pobres e negras estão mais sujeitas à negligência médica e omissão de auxílio (Leal et al., 2017). As investigações têm demonstrado que existe um tratamento diferenciado entre mulheres, com base em atributos considerados positivos, associados na maioria dos casos à branquitude, e atributos negativos, que são muitas vezes relacionados com a negritude (Assis, 2018; Leal et al., 2017; Oliveira, 2018; Rodrigues, 2020). O estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil” demonstrou que as mulheres pardas e pretas passam por menos intervenções obstétricas no parto, em comparação com as mulheres brancas, e recebem menos anestesia local quando submetidas à episiotomia. A menor taxa de intervenção, num país que entende as intervenções como sinônimo de bons cuidados, reflete um menor cuidado por parte dos serviços (Leal et al., 2017).
Em Portugal, desde o século XIX, após o povoamento dos territórios africanos, o país criou uma narrativa sobre uma suposta relação de amizade e companheirismo entre brancos e negros que viria a ser denominada lusotropicalismo. Esta ideologia desculpabiliza a administração portuguesa pela sua ação colonial, criando também a mitologia do país não racista, ao contrário de outros países colonizadores (Matos, 2018). No período pós-25 de Abril, esse mito alastra-se até à atualidade, com o objetivo político, social e simbólico de manter o statu quo de paternalismo colonial de Portugal face às suas antigas colônias. Cria-se assim a ideia de que é um país onde ninguém é discriminado; contudo, isso só é verdade se toda a gente se mantiver no seu lugar. Este imaginário ligava Portugal a uma Europa que se posicionava politicamente como sendo livre de discriminações raciais (Goldberg, 2006; Hamed et al., 2020), muito embora pouco ou nada tenha feito para contrariar as relações de hierarquia racial que constituem o passado colonial e que se entrelaçam com a realidade atual.
O racismo estrutural presente no país traduz-se em vários fatores de discriminação e exclusão da população afrodescendente: microagressões quotidianas (“De onde és? Os teus pais não são portugueses!”; “Volta para a tua terra”; “Lá em África vocês…”); invisibilização das discriminações e das condições de vida pela impossibilidade de recolha de dados oficiais a nível nacional que impedem a criação de políticas públicas direcionadas para as necessidades específicas da população; exclusão de pessoas racializadas de lugares de visibilidade social; pouco incentivo para a continuação dos estudos além do ensino secundário; atribuição geral de empregos no primeiro setor; discriminação no acesso à habitação, justiça e saúde (Alves, 2013; Roldão, 2016; Vala et al., 1999). Neste último aspecto, nos cuidados de saúde, a hegemonia do pensamento biomédico, que tem como base a herança colonial, leva a uma formação médica pouco crítica sobre violência obstétrica, à inexistência de dados oficiais no sistema de saúde sobre a gravidez, parto e pós-parto em mulheres negras em Portugal, à fragilidade da participação popular/feminina, como consequência do sistema patriarcal, bem como a uma baixa disseminação de informação e comunicação, em especial com mulheres negras e pobres, que seja atenciosa, vinculativa e qualificada.
Métodos
Este trabalho constitui um relato de experiência, descritivo e reflexivo, sobre as ações e vivências de um coletivo de mulheres antirracistas em Portugal no enfrentamento do racismo obstétrico e na partilha de informações para dar suporte às mulheres negras no país. A técnica foi escolhida devido à necessidade, pela ausência de debate no contexto acadêmico e político local, de descrever a experiência de um coletivo social que integra conhecimentos teóricos e práticos.
O relato de experiência é um estilo de produção que quebra com o modelo acadêmico positivista, em que se procura transmitir o conhecimento com base num passo a passo fechado. Neste artigo, assumimos que não somos operadoras neutras. Pelo contrário, agimos e interagimos com o campo e procuramos com este relatório invocar algumas reflexões sobre a constituição de movimentos sociais feministas antirracistas em Portugal. Este é um desenrolar de memórias que não pretende apresentar conclusões estanques; contudo, tem em consideração os resultados da nossa experiência enquanto lições aprendidas, com que pretendemos causar inquietações e expor igualmente algumas lacunas (Hoga & Abe, 2000).
Considerando que uma das atividades do coletivo é a aplicação de um questionário, como detalhado a seguir, o estudo foi submetido e aprovado pelo Comité de Ética do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, cumprindo todas as obrigações éticas e regimentais.
Resultados e discussões - Relato de experiência
Em Portugal, nos últimos anos tem se observado um aumento na quantidade e qualidade de debates de movimentos, grupos, coletivos e indivíduos que se dedicam ao tema do parto humanizado e/ou respeitado e ao combate às diversas faces da violência obstétrica. No entanto, estes debates são constituídos em maioria por mulheres brancas e têm como público mais prevalente este mesmo perfil. Neste sentido, entendemos que as mulheres negras representam corpos que por vezes são mais violados, porém na mesma medida são silenciados e camuflados nos outros corpos dentro do cenário obstétrico.
O coletivo SaMaNe (Saúde das Mães Negras) nasce, assim, da necessidade de articular questões do corpo feminino com o corpo racializado, no âmbito dos cuidados de saúde sexual e reprodutiva. Trata-se de um coletivo de mulheres plural em geografias e identidades (constituído por mulheres brasileiras, portuguesas e africanas), que se juntou com o propósito de trazer ao debate social, acadêmico e político as diversas experiências obstétricas das mulheres negras e afrodescendentes em Portugal, na tentativa de suprir uma lacuna na informação e consequentemente no olhar específico sobre essas mulheres.
O grupo nasce especificamente em julho de 2020, após os movimentos mundiais desencadeados pelo Black Lives Matter. A maior visibilidade da questão da violência contra a pessoa negra suscitou a curiosidade de uma das componentes do coletivo em saber como era a realidade portuguesa das mulheres negras no cenário da violência obstétrica. Surpreendentemente (ou não), nada foi encontrado na literatura e nas publicações midiáticas. Perante a ausência de informação, surge a inquietação e a necessidade de debater o tema e de trazer à luz as experiências e vivências das mulheres negras e afrodescendentes no contexto obstétrico no país. Desta forma, após uma convocatória através das redes sociais da FEMAFRO (Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal), cinco mulheres se uniram neste desafio e provocação.
As ações do SaMaNe acontecem em quatro principais frentes: 1) aplicação do inquérito: “Experiências de gravidez, parto e pós-parto de mães negras e afrodescendentes em Portugal”; 2) rodas de conversa com mulheres negras; 3) divulgação de informações e participação em eventos acadêmicos e políticos; 4) contribuição para a formulação de políticas públicas em favor da mulher negra em Portugal.
Referente à primeira linha de atuação, o inquérito foi construído mediante a quase ausência de informação oficial ou extraoficial sobre a relação entre as mulheres negras e o período obstétrico em Portugal, tendo sido adaptado de outros inquéritos, nomeadamente o inquérito nacional realizado no Brasil, “Nascer no Brasil” (2011-2012), e o estudo realizado entre 2015 e 2019 pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP). Desta forma, passados aproximadamente quatro meses de estudo e preparo entre as componentes do grupo, e após um estudo-piloto com oito mulheres, lançámos no dia 08 de março de 2021 (em alusão ao Dia Internacional das Mulheres) nas redes sociais uma pesquisa online e anônima. A coleta de dados (ainda aberta) está sendo realizada através de um inquérito, por Web Surveys, com questionário autoaplicável, desenvolvido na plataforma Google Docs. O questionário é composto por seis blocos de perguntas abertas e de múltipla escolha e contém questões sobre: os aspectos socioeconômicos, os antecedentes obstétricos, o pré-natal, o parto, informações sobre o bebê, a amamentação e o pós-parto. Até o presente momento participaram aproximadamente 140 mulheres, tendo algumas feito os seguintes relatos:
Além de terem falado para o meu marido ir para casa que não estava ali a fazer nada, também sugeriram que, sendo de ascendência negra, seria um parto fácil; e quase nunca me explicaram os procedimentos e a razão dos mesmos. Quando injetaram algo no meu soro e as dores começaram, chamei a enfermeira e disse que já não estava a aguentar mais as dores, ela me disse que nós pretas somos boas “parideiras” e que ia aguentar. O fato de ser angolana resultou com que as próprias enfermeiras tomassem decisões por mim! Voltaram-me a fazer todos os exames na noite do parto. E muitos saíram errado. Em dois momentos senti que, por ser negra, fizeram suposições a meu respeito; acharam que não teria o cartão de cidadão e que já tinha mais filhos. Neste segundo momento, a médica sugeriu até que fizesse uma histerectomia sem ver o meu caso. Assustou-me imenso.
Sobre o tema, os poucos estudos realizados em Portugal sobre a saúde das mães e grávidas negras apresentam-se na perspectiva da migração, concluindo, na maioria dos casos, que as migrantes negras têm experiências menos satisfatórias quando acedem aos cuidados de saúde do que as mulheres brancas (Dias & Rocha, 2009; Machado et al., 2016; Topa, 2015). Apesar da importância destes estudos para início do diálogo e provocação, cabe ressaltar que não existem apenas mulheres negras migrantes em Portugal, mas também mulheres portuguesas negras, e é neste sentido que existe uma lacuna gritante nas pesquisas. E neste mesmo sentido observamos, como por exemplo na última fala, que, pelo fato de a mulher ser negra, a profissional de saúde realizou um pré-julgamento de que aquela não seria portuguesa.
Relativamente aos outros depoimentos, observa-se um discurso racista dos profissionais através da reprodução de estereótipos e da infantilização do corpo negro. Estas atitudes são reflexo de uma estrutura racista e colonial em que as profissões de saúde originalmente se inserem, numa perspectiva biomédica. Nesta, o corpo humano é o lugar do conhecimento, da experimentação e do (bio)poder (Foucault, 1972). Neste sentido, durante o século XIX, desenvolveram-se discursos sobre higiene e saúde pública sobre corpos considerados dissidentes, como é o caso das mulheres e dos negros, por exemplo. Especificamente sobre a saúde obstétrica, o médico estadunidense James Sims, conhecido como o “pai da ginecologia moderna “, criou a técnica cirúrgica para reparação da fístula vesico-vaginal. No entanto, em seus experimentos realizava cirurgias sem o consentimento expresso e sem o uso de anestesia em mulheres negras escravizadas, pois considerava que os africanos teriam uma elevada tolerância à dor (Washington, 2008). Como pode perceber-se, existe uma semelhança entre a fala de Sims e a fala de alguns profissionais referente à suposta resistência à dor das mulheres negras, o que revela que, apesar de estarmos no século XXI, o pensamento e atitudes racistas permanecem como herança, reverberando na produção e reprodução do racismo obstétrico.
Outros países apontam de forma mais direta e abrangente a raça como marcador de adoecimento e de vulnerabilidade obstétrica. Observa-se, por exemplo, que nos Estados Unidos, entre 2014 e 2017: a proporção de mães negras que morrem durante ou após a gravidez é três vezes maior do que a de mães brancas (Centers for Disease Control and Prevention, 2020); as mães negras continuam obtendo resultados ruins – como ter um bebê abaixo do peso ao nascer (Colen et al., 2006); e sofrem estresse relacionado à raça e gênero, apresentando consequentemente piores resultados da gravidez (Jackson et al., 2012). No Brasil, a pesquisa nacional “Nascer no Brasil” (2011-2012) apontou que, entre as mulheres negras: 65,9 % sofrem violência obstétrica; recebem 50 % menos anestesia em caso de corte do períneo; 27 % veem negado o acesso ao acompanhante; são as que mais migram entre os hospitais à procura de assistência ao parto; representam 65 % dos óbitos maternos (Leal et al., 2017).
Os dados acima e os achados preliminares do inquérito apontam a necessidade de compreendermos que as questões socioeconômicas, raciais e de gênero estão associadas às iniquidades em saúde; portanto devem ser posicionadas como fatores de determinação social da saúde. Além disso, o racismo, enquanto ideologia que se mantém às custas da suposta superioridade de uns sobre outros, levando ao controle e/ou eliminação de seus corpos simbólicos, coletivos e físicos e impactando diretamente no processo saúde-doença, precisa ser considerado como fator importante na produção de desigualdades (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2011).
A segunda frente – rodas de conversa com mulheres negras – tem o objetivo de propiciar um lugar seguro de trocas de experiências e informações entre as mulheres, em especial, as negras. As rodas, em formato presencial ou online, se dão no mínimo uma vez no mês e podem ser promovidas pelo próprio coletivo ou a convite de instituições (como espaços comunitários), pessoas e movimentos parceiros. Os temas abordados versam questões relacionadas à maternidade, como: sentimento ao saber da notícia da gravidez, direitos, experiências de parto e amamentação.
As rodas de diálogos podem ser consideradas, além de momentos de partilha, como espaços de resistência e representatividade, pois nelas as mulheres têm possibilidade de se verem umas nas outras e de falarem livremente, coisa que historicamente não foi (e ainda não é) permitido ao corpo feminino negro. Para Hooks (2019), na obra “Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra”, diante da exploração, discriminação e opressão das mulheres negras, existe a possibilidade de usar as experiências vividas para criar uma contra-hegemonia através da crítica do racismo, sexismo e classicismo. A autora afirma que, “para mulheres negras, nossa luta não tem sido emergir do silêncio para a fala, mas mudar a natureza e a direção da nossa fala, para fazer uma fala que atraia ouvintes, que seja ouvida” (Hooks, 2019, pp. 32-33).
A ação de divulgação de informações, assim nomeada pois tem o objetivo de debater e/ou comunicar sobre um tema, acontece normalmente através das redes sociais, por meio de lives e webinars com mulheres negras. Outra comunicação frequente se dá por meio de publicações com produção de conteúdo que abordam temas que dialoguem sobre a saúde materna e o racismo. Desta forma, a rede social tem sido, para o coletivo, um espaço potente de informar e de comunicar, pois, como afirma Franco (2012, p. 117), contribui para “um processo de socialização, algum tipo de interação coletiva e social que pressupõe a partilha de informações, conhecimentos, desejos e interesses”; contudo, sabemos, que esta ferramenta não alcança todas as mulheres que desejaríamos, pois, por vezes, é mais acessível a certos grupos etários ou classes sociais (Minella, 2013). Também é um importante espaço de comunicar e divulgar informações, pela maior extensão, a nossa apresentação em mídias televisiva, rádio e jornalística, já que colaborámos em dois programas na televisão pública de Portugal, uma entrevista em rádio e três reportagens para jornais digitais.
Já relativamente à participação em eventos acadêmicos e políticos, está tem se dado mediante convite de outros movimentos sociais e acadêmicos para participarmos e colaborarmos em mesas redondas, mediação de cursos, conferências, debates, manifestações públicas. Dentro do espaço acadêmico, destacamos o chamamento da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Este destaque se dá porque demonstra a preocupação dos estudantes em debater a questão racial na saúde, tema muitas vezes ausente ou insuficiente na formação curricular oficial das instituições de ensino. Estas ausências ou insuficiências, por sua vez, contribuem para exacerbar indicadores de saúde negativos na população negra, para o não reconhecimento das suas necessidades de saúde, para a negligência do Estado no cuidado, dentre outros aspectos (Werneck, 2016). Assim, mesmo que de maneira insatisfatória, já que o ideal seria que a interface saúde e raça fosse abordada de forma ampla e integral na grade curricular de todos os cursos da saúde, o fato de estudantes de cursos com um caráter biomédico hegemônico, especial de medicina, se interessarem minimamente em discutir e refletir sobre a questão já pode ser considerado um avanço importante.
Do ponto de vista de eventos políticos, podemos mencionar nossa participação como colaboradoras na Greve Feminista de 2021 e 2022 referente ao Dia Internacional das Mulheres, na manifestação nacional contra a violência obstétrica e na vigília por partos respeitados, ambas em 2021. Cabe ressaltar que nos dois cenários – acadêmico e político – a presença de um coletivo com uma pauta diretamente antirracista é muito mais que uma simples aparição, pois representa um ato de existir e resistir e, como aponta Hooks (2019):
Quando nos desafiamos a falar com uma voz libertadora, ameaçamos até aqueles que podem, a princípio, afirmar que querem ouvir nossas palavras. No ato de superar nosso medo da fala, de sermos vistas como ameaçadoras, no processo de aprendizagem de falar como sujeitas, participamos da luta global para acabar com a dominação. Quando acabamos com nosso silêncio, quando falamos com uma voz libertadora, nossas palavras nos conectam com qualquer pessoa que viva em silêncio em qualquer lugar. (p. 55)
E por fim, a quarta frente de atuação do SaMaNe – contribuição para a formulação de políticas públicas em favor da mulher negra em Portugal – tem o objetivo de, a partir de todas as ações anteriores, fornecer subsídios para que a ação política coletiva se torne uma agenda política do Estado, onde, desejando de forma esperançosa, possamos contribuir para a formulação de uma política pública voltada para a população negra no país. Neste caminho, colaborámos na consulta pública para o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação; na assinatura da petição pública pela criminalização da violência obstétrica em Portugal; e, junto à ONU, na elaboração do relatório “Statement to the media by the United Nations’ Working Group of Experts on People of African Descent, on the conclusion of its official visit to Portugal”.
Diante do exposto, o coletivo SaMaNe tenta contribuir para, não apenas trazer ao debate as opressões e desigualdades que mulheres negras vivem no cenário obstétrico, mas também romper com o silêncio em torno do tema e transformar este silêncio em ação. Assim, almejamos que as mulheres negras em Portugal assumam seu lugar de sujeito e protagonista de suas próprias histórias e vivências.