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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica vol.21 no.3 Lisboa out. 2017
ARTIGOS
Esparramar família: sentidos e pertencimentos na ocupação da Amazônia brasileira
“Spreading family”: meanings and belongings in the occupation of Brazilian Amazon
Manuela Souza Siqueira CordeiroI
IInstituto de Antropologia, Universidade Federal de Roraima (UFRR), Brasil. E-mail: cordeiro.manuela@gmail.com
RESUMO
Esse artigo aborda a trajetória de ocupação da terra de um projeto de colonização no Brasil, durante a ditadura militar. Por meio do uso de um relato de família, lançarei luz sobre o processo de ocupação de terras na região do Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Burareiro, localizado no estado de Rondônia, Brasil. Colocarei em evidência o modo específico de vida daqueles que se denominam pioneiros, durante a década de 1970, responsáveis pela ocupação e início do ciclo agrícola na Amazônia Ocidental. Para tanto, utilizo o potencial narrativo das experiências de cena das famílias que organizam a experiência da ocupação em três movimentos. Esses movimentos em busca do novo são apresentados por meio da categoria esparramar, que, ao se referir à dinâmica familiar, enfatiza a centralidade da família de origem. O pioneirismo é visto como uma forma de enquadramento social na qual a busca pela participação na construção de novos espaços é um elemento constitutivo da vida das famílias, tendo sentidos distintos.
Palavras-chave: colonização, família, antropologia rural, pioneirismo
ABSTRACT
This paper addresses the land occupation trajectory of a colonization project in Brazil during the military dictatorship. Through the use of a family report, I will shed light on the process of land occupation in the region of the Burareiro Settlement Project (PAD), located in the state of Rondônia, Brazil. I will highlight the specific way of life of those who called themselves pioneers during the 1970s, responsible for the occupation and beginning of the agricultural cycle in the Western Amazon. For that, I use the narrative potential of the experiences of the scene of the families that organize the experience of occupation in three movements. These movements in search for the new are presented through the spreading category, which, when referring to family dynamics, emphasizes the centrality of the origin family. Pioneering is seen as a form of social framework, in which the search for participation in the construction of new spaces is a constitutive element of the life of the families, having different meanings.
Keywords: colonization, family, rural anthropology, pioneers
Introdução
O artigo trata do processo de ocupação de terras no projeto de colonização Burareiro, localizado no estado de Rondônia, na Amazônia Ocidental, analisado por meio do relato de famílias.[1] Nesta região, foram implantados dois projetos de assentamento dirigidos (PAD), criados nos anos de 1974 e de 1978. A descrição do processo de ocupação do lote PAD Burareiro e os movimentos para ocupar essa terra serão assim o ponto de partida para observar as noções de família e uma categoria nativa relacionada à mesma: esparramar. Estas falam não só desta história de colonização brasileira, como também de um modo de existência próprio dos chamados pioneiros e de suas famílias modo que, como veremos, está profundamente articulado à experiência do movimento.
No município de Ouro Preto dOeste, em Rondônia, em 1970, foi criado o primeiro projeto de colonização no território de Rondônia, o Projeto Integrado de Assentamento Ouro Preto dOeste, sendo a responsabilidade pela implementação inteiramente do governo federal, no caso através do Incra. Os projetos de assentamento dirigidos (PAD) faziam parte da iniciativa do PIN Programa de Integração Nacional e do Proterra Programa e Redistribuição de Terras. Os objetivos dos projetos integrados de colonização (PIC) eram legitimar, disciplinar e organizar a situação fundiária da região, ao passo que os projetos de assentamento dirigidos tinham como meta promover o assentamento de trabalhadores sem-terra nos projetos de colonização implantados ao longo da década de 1970 (Lopes 1983). O principal incentivo ao plantio no PAD Burareiro era a lavoura de cacau, enquanto no PAD Marechal Dutra plantava-se principalmente café. As terras tinham tamanhos diferenciados 250 hectares no caso do PAD Burareiro e 100 hectares no Marechal Dutra, além de um processo seletivo das famílias também distinto.
O Incra era responsável pelos 12 programas da metodologia operacional nos PIC nos anos iniciais de implantação, o que incluía distribuição de terra, organização territorial, administração do projeto, assentamento, unidades agrícolas, infraestrutura física, educação, saúde e previdência social, habitação rural, empresa cooperativa, crédito e comercialização. Segundo Ianni, Na prática, o Incra, a Funai, a Sudam e o Basa, entre outros órgãos do governo federal, estaduais, territoriais e municipais, continuaram a servir à criação, expansão ou consolidação dos latifúndios, fazendas e empresas de propriedade de estrangeiros na Amazônia e no país (1986: 122).
No entanto, a política de colonização não foi a primeira forma de ocupação das terras no território onde se localiza o estado de Rondônia. A região de Ariquemes, na qual os dois projetos de assentamentos foram implantados, eram áreas do distrito de Porto Velho, atual denominação da capital do estado, desde a criação do Território Federal do Guaporé. Essa região, por sua vez, era o ponto de apoio para a atividade garimpeira do território, principalmente a extração de cassiterita. Portanto, ficam em contradição as análises que consideram a terra virgem ou que existiria um vazio demográfico, uma vez que seringueiros, seringalistas, garimpeiros, populações indígenas e outros sujeitos sociais ocupavam a área de Ariquemes antes mesmo da colonização que teve início na década de 1970.
No presente artigo, por meio dos relatos de dois irmãos que contam os seus movimentos e deslocamentos, será apreendido o significado da ocupação do lote na área que se transformaria no PAD Burareiro. Posteriormente, a noção de esparramar será analisada, de maneira a demonstrar que as movimentações de família são responsáveis, em última medida, por criar mais família, tornando a ruptura parte constitutiva, portanto, não disruptiva, da dinâmica familiar. Trata-se de estratégias não oficiais que são também contadas por outras famílias que se deslocaram para a Amazônia no início da década de 1970. Dessa maneira, podem ser encontradas socialidades contra o Estado (Clastres 2003 [1988]) mesmo dentro de sociedades que possuem Estado e, mais do que isso, um projeto de colonização que foi organizado tendo como base uma política pública de caráter federal. Está em jogo, portanto, a política em outros termos, especificamente no que tange à compreensão dos modos de ser e de pertencer, ligados à gestão da terra na Amazônia. Essas resistências podem ser enquadradas em formas cotidianas (Scott 2011), na medida em que não se trata de irrupções ou revoluções camponesas, mas das maneiras pelas quais as famílias puderam ocupar a terra com pouco investimento efetivo do Estado e permanecer nesta até hoje, realizando a divisão do espaço para as gerações seguintes, mesmo diante de estrita legislação para o uso da terra no âmbito da Amazônia Legal.
Primeiro movimento: vir e ver as terras
O relato da família Zanella será apresentado por meio de três movimentos. Sigo a proposição teórica de Crapanzano (2006), na medida que o artigo se baseia em duas concepções concomitantes: o reconhecimento daquilo que é considerado objetivo ou quiçá oficial a política pública de ocupação da Amazônia na década de 1970 e a cena, isto é, o relato das famílias. Existe uma maneira recorrente de estruturar a sua experiência, subdividindo-a em três etapas consecutivas: verificar a qualidade da terra e viabilidade de permanência; organizar a família e seus pertences para a deslocação do Sul do país até o Norte; o processo de abertura de terras e suas implicações na construção da noção de pioneirismo.
O acaso esteve presente na decisão de deslocamento da família Zanella, o que fazia seu João sorrir, pois se lembra de saber sobre Rondônia por meio de um primo que estava fugido. No estado do Espírito Santo, em Colatina, os Zanella viviam em uma chácara de oito alqueires e, naquela época, contando os membros das famílias dos irmãos que já eram casados, eles chegavam a somar 40 pessoas. Um bocado de capixaba foi para o Paraná, quando abriu lá, seu João comentou a respeito do processo de abertura realizado no estado do sul do país, porém relata que a sua família não se deslocou para aquele estado. A abertura das terras é um processo presente tanto no Paraná quanto em Rondônia em diferentes momentos históricos. A geração anterior à de seu João Zanella teve a possibilidade de possuir terras no Paraná, se quisesse abri-las, participando da política de governo em questão, que permitia a divisão das terras para os ocupantes. Em Rondônia, mais especificamente em Ariquemes, a abertura das terras ficava a cargo dos próprios trabalhadores que se mudavam para o estado.
Depois de saber pelo primo da possibilidade de possuir terra em Rondônia, a primeira decisão de seu João Zanella foi ir lá para ver as terras. Decide vir só com amigos, não traz a família para esse reconhecimento, nem esposa e filhos, nem seus pais e irmãos. No entanto, salienta que essa decisão foi tomada em conjunto com os irmãos, por ele ser mais velho e por resolver as coisas. Todos os amigos que foram junto com ele moravam em terras vizinhas em Colatina e, nesse primeiro momento de reconhecimento, só homens foram para olhar a terra.
Ao chegar às terras do PIC Ouro Preto dOeste e encontrar seu primo, ele percebeu que a ocupação das terras naquela localidade já estava ocorrendo longe do eixo da estrada federal, a BR-364. Além disso, não era mais possível encontrar em Ouro Preto uma área grande de terra com lotes contíguos para que os irmãos a pudessem ocupar sendo vizinhos uns dos outros, o que facilitaria a abertura da terra e o trabalho em conjunto, tendo o objetivo de se separarem no futuro, como será abordado na secção sobre a abertura das terras. A vicinalidade se aproxima da descrição realizada por João de Pina Cabral (1991) quando sinaliza que, no contexto do Porto, esta é constituída por grupos unidos por relações sociais primárias, formados por famílias de irmãos ou primos próximos física e socialmente. Assim, a ajuda mútua é prestada segundo um espírito de reciprocidade generalizada em que não se contam os favores (1991: 185).
Quando seu João encontrou seu primo, ele contou que comprara uma área de 200 alqueires em Ariquemes e disse que poderia oferecer essa terra à família do seu João, se fosse do seu interesse. Seu João Zanella resolveu comprar a terra, pensando em seus irmãos e irmãs, principalmente os casados, aqueles que estavam buscando terra para a família recém-formada. Mas ele comenta que realizou a compra um pouco receoso por não consultar os irmãos e, principalmente, seu pai.
A compra da terra foi possível porque a família Zanella possuía uma propriedade em Colatina; além do preço da terra em Ariquemes ser muito mais baixo em comparação com o Centro-Sul, naquela época não se iniciara o processo de colonização na localidade. Ele afirma que tinha certeza de que os seus irmãos viriam: Foi o seguinte: a gente queria terra. Um monte de homem igual à gente, era o que se falava. Onde tinha homem, tinha que ter terra para trabalhar! Desta forma, era importante que houvesse espaço suficiente para cada família, o que significava, no caso dos Zanella, que cada irmão casado e cada irmã casada (porém, a decisão de se deslocar ficava a cargo do marido, neste caso) pudesse ter o seu próprio pedaço de terra. Os irmãos ficaram satisfeitos diante da possibilidade de haver uma área para a família que era dez vezes maior da que tinham no Espírito Santo e de poderem efetivamente dividir a terra entre eles:
Cheguei lá e falei para os meus irmãos, assim, assim, como é que é. Eu falei e eles ficaram doidos. Eu falei: Ó, comprei uma área lá de 200 alqueires. Por quanto? Comprei por 9 mil, 9 milhões na época. Agora, ficamos bonitos! Quem tinha lá 20 alqueires e poder comprar 200 alqueires aqui, dava para dividir pra cada um e ficava muito bom! [Seu João Zanella, 27 / 04 / 2012]
Ao conversar com um dos irmãos mais novos, seu Abel Zanella, pude visualizar a importância de seu João como o irmão que tomava as decisões que, de fato, eram acatadas pela família. Contava a história da sua família rememorando momentos anteriores àquele do deslocamento para Rondônia, construindo os motivos que fizeram com que acontecesse. Tal como demonstra Desconsi (2009) em relação aos pequenos proprietários de Mato Grosso do Sul, estava em jogo também para as famílias que se deslocaram para a Amazônia uma avaliação cotidiana das possibilidades de acesso à terra em assentamentos rurais. No entanto, diferentemente da argumentação do autor, para as famílias dos projetos de assentamento dirigidos em Rondônia não se tratava apenas de um horizonte de possibilidade para acesso ao trabalho agrícola, a terra representava a possibilidade de poder deixar um bem de herança às gerações futuras. Isto porque no Sul do país as terras estavam já sofrendo um processo intenso de subdivisão, impedindo que os filhos dos moradores da zona rural pudessem permanecer na terra.
Segundo movimento: a travessia da casa a rodar
Em 9 de julho de 1972, seu Abel Zanella fez aniversário na estrada, completava 22 anos. Eles passaram mais tempo do que o previsto na viagem, algo em torno de dez dias, porque o veículo teve problemas mecânicos. Assim, ele conta, explicando como seguiram pela estrada em cima do pau de arara:
O famoso pau de arara. O pau de arara é um carro grande, coberto, alonado e dentro colocava várias famílias. Só da minha [família] vieram quatro [famílias] e mais duas conhecidas. Tinha seis famílias. Ah, tinha bastante gente, tinha de contar! Era um caminhão de gente que vinha junto com a mudança, não mandava a mudança, vinha tudo junto. A gente vinha parando, cozinhando, vinha vivendo na estrada. Foram 12 dias de viagem. O carro ainda quebrou em Mato Grosso, teve que voltar para Cuiabá e a gente ficou esperando [seu Abel, 05 / 03 / 2013].
Os relatos demonstram que a família Zanella se organizou para a viagem. Ao mesmo tempo, Rondônia não era um sonho de poucos, como pode ser visto pela quantidade de famílias que vinham juntas, enfrentando os desafios da estrada, buscando reforçar as relações familiares e de amizade, que eram fundamentais para enfrentar os próximos movimentos de família. Corroboro a leitura de Martins: A história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de revolta, de protesto, de sonho e de esperança (1996: 26).
A insegurança quanto à possível falta de alimentos na estrada e a incerteza em relação ao que encontrariam para comprar foram administradas com a organização da família Zanella e das demais famílias que estavam se deslocando com eles. Na verdade, a gente vinha A gente ficou morando na estrada, meio parecido com ciganos, não é?, tal como conta seu Abel Zanella. Os seus irmãos traziam os filhos pequenos, parte do cenário que é descrito por seu Abel:
Tinha uma pá de crianças, era um pacote de crianças. Ah, elas faziam parte da festa da vida. Choravam, riam, brincavam, tudo misturado. Vinha meio apertado o caminhão da mudança, mas a gente criou um espaço em cima dos colchoados, vinha todo mundo deitado o dia todo e, quando parava então, fazia um pouco de exercícios, esticava as pernas, movimentava. Viajava, dormia, noite e dia no mesmo lugar. Praticamente ficou a carreta estivada de colchões e cada um tinha o seu, ficava sentado, deitado. E aí o motorista só pedia para a gente evitar pôr a cabeça para fora. Mas tinha as duas laterais, abriu-se uma corrente de ar, puxava a lona com a corda e ficava uma espécie de duas portas laterais. Então, a gente tinha os visuais. A gente fazia de tudo para visualizar um pouco as coisas. Era a casa, né? A casa a rodar, a casa ambulante [seu Abel, 05 / 03 / 2013].
Além da preparação para a viagem, outra estratégia da família Zanella foi dividir a família em dois grupos para ocuparem as terras em Rondônia. Assim, por meio dessa mudança em dois estágios, o grupo que veio primeiro poderia criar as condições para que o segundo se instalasse, bem como instruí-lo a respeito do que encontraria.
Terceiro movimento: a abertura das terras
Nas terras em Ariquemes, os irmãos poderiam ter a sua parcela de forma contígua e no eixo da estrada, facilitando o trabalho de abertura dos lotes. Seu Abel Zanella conta que os dois irmãos mais velhos foram os responsáveis por propor essa possibilidade para os outros irmãos e irmãs. O pai deles tinha ido morar numa chácara com os irmãos menores, já os irmãos mais velhos formaram um grupo de sete homens, dentre os quais havia duas figuras que eram caracterizadas como líderes na família para seu Abel Zanella: seu João, anteriormente mencionado, e também Luiz, segundo irmão mais velho. Eles que ajeitavam isso aí e trouxeram para cá uma parte dos irmãos, se desfizeram de uma parte [da terra] e investiram aqui e, mais tarde, o meu pai se desfez [do que tinha] e investiu aqui também. Seu irmão João comenta que, no início da ocupação em Ariquemes, o trabalho da família foi realizado de forma conjunta, eles fizeram um barraco só no lote, mas pontua a necessidade crescente de debandar, isto é, separar, principalmente porque alguns irmãos já eram casados. Seu João afirma que no começo era Tudo uma panela só. Até um tempo, depois foi debandando. A ideia era essa, né? Debandar. É difícil trabalhar junto. Ainda mais a gente é irmão, dá certo até que não tenha as noras, as mulheres. Como nós éramos dez homens, aí começou a entrar mulheres diferentes e não funcionou.
Seu João Zanella também se recorda de quais famílias foram contemporâneas na chegada a Ariquemes: Os primeiros que vieram junto com a gente foram os Cozer, a primeira família, depois os Juliatti, os Martinelli, os Tamanini, todos capixabas e com ascendência italiana. Brumatti, Ferrari, tem três gerações de Ferrari aí. O pioneiro tem que ser capaz de se recordar do que existia na área quando a ocuparam, bem como de outras famílias que vieram na mesma época, para a organização de um retrato fiel do período de ocupação, prova de que estavam em Ariquemes quando ainda não havia nada.
Algumas coisas mudaram no tempo, o que é marcado como quando o Incra chegou, mas a família pioneira Zanella já estava morando no local. Seu Abel comenta que os primeiros agricultores já estavam ali há cinco anos. Quando os agricultores chegaram, havia um projeto imaginário, isto é, não haviam sido colocados em prática os projetos de assentamento dirigidos que foram mencionados na secção anterior. Seu Abel Zanella pontuou: O agricultor faz linha de foice e o Incra de imaginação, em alusão ao trabalho que foi realizado por sua família e outras que ocuparam a área de Ariquemes para efetivamente abrir as terras, e que contavam apenas com o aval, mas não a assistência técnica e nem de infraestrutura do governo federal, para essa abertura. No entanto, o próprio governo estava criando os mecanismos para regulamentar a ocupação materializada nos projetos, por isso a caracterização como linha imaginária.
Ainda que o projeto da família tivesse como pretensão uma área bastante menor, diante da proposta de um dos gestores do Incra à época, as famílias viram se concretizar à sua frente o sonho não somente do acesso à terra, mas a uma extensão de área que nunca havia feito parte de seu universo de possibilidades. A noção de projeto, segundo Velho (2004), enfatiza a dimensão consciente da ação social, implicando avaliação e estratégia para desenvolvimento de certas metas. No entanto, projeto, na acepção da presente pesquisa, na maioria dos casos, não representa uma tentativa individualizante de produzir e comunicar sentido, mas uma possibilidade de produzir um coletivo (família de origem e formação de novos núcleos familiares) por meio da construção de objetivos comuns de vida.
Esparramar: sentidos dos movimentos de família
Como exposto brevemente no relato dos Zanella, a família é uma unidade plástica, cabendo movimentos de união e de separação ao longo do tempo, vista como referência que não se desfaz com a ida para Rondônia. Há a possibilidade de formação de núcleos familiares que, a partir do casamento, procuram esparramar e criar as próprias condições de reprodução social para os filhos, mesmo que isto não signifique a permanência na terra visando as outras gerações. A família de origem, na formulação de seu João Zanella, é formada por aqueles que ainda estão na mesma panela; porém, mesmo depois de se dividirem, continua sendo uma referência para os que se esparramam. Por isso, em um primeiro momento, todos os irmãos se ajudaram para depois terem condição de possuir uma terra para o seu grupo familiar. O verbo esparramar possui dois principais sentidos: além de espalhar, separar, um dos sinônimos utilizados pelas famílias para o esparramar denota debandar. No caso dos pioneiros, está em jogo não um espalhamento desorganizado das famílias, mas uma separação que, no limite, serve ao fim de se criar mais família, preparando-a para a sua continuação.
Observa-se que a família está orientada para a construção de outros grupos familiares, que são em última análise novas unidades, mas sem perder a identidade familiar de onde vieram. A referência a uma origem comum da família é determinada pela efetiva união de seus membros (cf. Thomas e Znaniecki 1918), que, mesmo ao se esparramarem, conduzem esse movimento de acordo com os passos já dados por membros da família de origem. No caso anterior, a abertura das terras foi um projeto conjunto para que depois cada grupo familiar pudesse ter a sua propriedade.
O esparramar divide a família de origem em outros núcleos que ampliam a sua área de atuação. Trata-se de uma maneira de a família se reproduzir socialmente, contrapondo-se a pressões da sociedade no sentido de sua dissolução. Thomas e Znaniecki (1918: 107) apontam que a família é uma organização dinâmica, e as mudanças internas, como o casamento, o nascimento e crescimento, são incluídas como normais e não como algo inesperado. Nesse sentido, os movimentos de família são também esperados, e Rondônia não foi o primeiro lugar para o qual se deslocaram, ainda que os sentidos desses deslocamentos sejam diferenciados. O esparramar faz parte de um esquema reprodutivo que ocorre na vida dessas famílias, seja quando se deparam com o problema da falta de terras para a próxima geração, seja em função dos diferentes posicionamentos dos filhos e netos de pioneiros a respeito de seus próprios futuros, não incluindo a permanência na terra. No caso da família Zanella, foi a partir do casamento que ficou mais clara a necessidade de se separar, esparramar, debandar. Portanto, o casamento determina a necessidade de possuir um espaço próprio para a nova família que será criada, e novas personagens se integram ao enredo da família: principalmente as noras, mas também os genros, que, ao pensarem conjuntamente os projetos de futuro da família, potencializam a ação e podem traçar novos caminhos para o esparramar.
Considerações finais
As categorias abordadas nesse artigo, notadamente família e seu movimento êmico esparramar, foram trazidas à tona a partir da incursão do potencial narrativo das experiências de cena (cf. Crapanzano 2006) nos projetos de assentamento dirigidos em Rondônia. Portanto, com base nesses relatos familiares, busquei mostrar formalmente a estruturação da cena (framing of framing), nos termos de Crapanzano, como a experiencialidade da ocupação foi construída. Os dados trazidos dessa narrativa são particulares à família Zanella, mas a organização do relato em três momentos, quais sejam vir e ver as terras, a travessia da casa a rodar e a abertura das terras, está presente nas outras famílias com as quais foram realizadas as pesquisas, como índices, nos termos de Pierce (1955), que marcam a temporalidade de ocupação da terra em Rondônia na ótica de quem efetivamente ocupou e hoje é responsável pela gestão das terras.
As ações relacionadas ao projeto de integração nacional organizado pela política de colonização, bem como os movimentos de família, influenciaram na formação do projeto de futuro. Assim, temos a evidência de resistência e plasticidade de estratégias, baseadas em noções de reputação, notadamente ligadas ao pertencimento (pioneirismo) e família, mesmo no seio de uma sociedade com Estado (cf. Clastres 2003 [1988]). No primeiro caso, os funcionários do Incra, seguindo os direcionamentos legais cabíveis, conduziram o processo de seleção responsável por cortar as famílias, no sentido de enquadrá-las como marechais ou burareiros. Ao mesmo tempo, seu Abel Zanella faz questão de pontuar dois processos de demarcação da terra que julga completamente distintos: a linha da foice, isto é, fruto do trabalho do agricultor no lote, e a linha imaginária, que remete apenas à projeção do gestor do Estado. Ficam patentes as formas cotidianas de resistência camponesa (cf. Scott 2011) no processo de abertura de terras e, em análise mais geral, nas estratégias conjuntas de movimentação familiares.
A noção de família que seu João mostra em seu relato inclui os irmãos que eram aqueles da mesma panela, aqueles que pensavam de maneira parecida sobre o gerenciamento da terra a serem levados em conta para o primeiro movimento. No entanto, ao se casarem, a terra no estado do Espírito Santo fica pequena em área como em possibilidade de cada família recém-formada tocar seus próprios planos para a terra, sendo necessário se separar ou se esparramar. Depois de explicar a quantidade de terra a que teriam acesso naquele novo estado, ele faz questão de marcar que era necessário que se separassem, principalmente porque os irmãos já tinham as suas famílias (nucleares, formadas por eles, esposas e filhos), o que incluía novas personagens no enredo familiar: as noras. Os irmãos prometeram às esposas, como salienta seu João, que no início os Zanella trabalhariam juntos, mas que depois se separariam e cada família poderia tocar o que é seu, trabalhar na sua terra, já adquirida e aberta, de acordo com as regras de cada uma dessas novas famílias.
A casa a rodar, ou o segundo movimento, é uma imagem que mostra a relevância da mudança para Rondônia realizada pela família Zanella, bem como para as outras famílias acima mencionadas e para aquelas que tenham ido para aquelas terras de diferentes maneiras. Dessa forma, pode-se dizer que eles trouxeram a casa junto com eles, era transportada, reproduzindo grande parte do que possuíam na construção do novo espaço doméstico em Rondônia. A casa a rodar se referia aos elementos anteriormente descritos por ele próprio a mistura de gente e de sentimentos, a preparação em conjunto dos alimentos e a desorganização espacial entre as famílias dos irmãos.
Sobre o processo da abertura das terras, o terceiro movimento, seu Abel comenta: A abertura, sim, foi combinada de todo mundo abrir junto e, quando estivesse acabando a sua abertura, aí então cada um tocava por conta própria. Já era um projeto junto até pela necessidade. É, projeto da família. Havia, assim, o trabalho inicial conjunto para depois se esparramarem para cada um dos lotes, que seria da posse de cada família formada, isto é, aquela dos irmãos casados, o que é denominado como projeto de futuro da família. Fica também nítido no relato da família que o irmão mais velho, isto é, seu João, tinha a prerrogativa da tomada da decisão, mas isso não pressupunha uma orientação hierárquica tão rígida que prescindisse totalmente da aprovação dos irmãos e de seu pai. Nesta passagem, percebe-se a importância da figura do irmão mais velho na condução das decisões familiares.
O termo pioneirismo, por sua vez, define uma geração determinada nesse contínuo processo de esparramar das famílias ao longo dos tempos. Dessa maneira, a categoria nativa esparramar não se opõe à separação, mas mostra como a separação é constitutiva da união, o espaço sendo continuamente reconfigurado à medida que novos núcleos familiares vão sendo formados, dando novos contornos à terra e à família.
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NOTAS
[1] Este artigo tem origem na pesquisa de doutorado A casa a rodar: projetos e pioneirismo na Amazônia Ocidental, realizada entre março de 2010 e março de 2015 no âmbito do programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.