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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.1 Lisboa abr. 2023  Epub 28-Abr-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.13095 

Artigo Original

Sobre idiomas, socialidades em rede e HIV/aids: divulgação científica, subjetividades e o aprimoramento da vida em um blogue brasileiro

Concerning languages, network socialities and HIV/AIDS: scientific dissemination, subjectivities and life enhancement in a Brazilian blog

Raul Elton Araújo Borges1  , conceitualização, curadoria dos dados, análise formal, realização da pesquisa de campo, desenvolvimento da metodologia, administração do projeto, recursos materiais, validação, visualização, redação do rascunho original, revisão , edição final
http://orcid.org/0000-0003-3861-6890

Mercês de Fátima dos Santos Silva2  , conceitualização, análise formal, desenvolvimento da metodologia, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, revisão , edição final
http://orcid.org/0000-0002-8124-6832

Lucas Pereira de Melo3  , conceitualização, análise formal, desenvolvimento da metodologia, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, revisão , edição final
http://orcid.org/0000-0001-8392-1398

1 Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (Facisa), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil, raullelton@hotmail.com

2 Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (Facisa), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil, merces.santos30@gmail.com

3 Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP), Brasil, lpmelo@usp.br


Resumo

A partir de dados produzidos por meio de etnografia digital, analisamos como a interação em um blogue brasileiro permitia a produção de subjetividades e de agenciamentos mediados pelas práticas científicas biomédicas dirigidas ao HIV/aids. As narrativas sinalizaram a divulgação científica, o compartilhamento de informações e de experiências como elementos nos processos de normalização e aprimoramento da vida com o HIV/aids. Além disso, o estudo desvelou o acesso e o compartilhamento de informações biomédicas e científicas como facilitadores na produção e no desenvolvimento de pacientes especialistas e a farmaceuticalização da vida como uma consequência da experiência de viver com o HIV/aids.

Palavras-chave: síndrome de imunodeficiência adquirida; HIV; experiência com a enfermidade; mídias sociais; blogue

Abstract

Based on data produced through digital ethnography, we analyze how the interaction in a Brazilian blog allowed the production of subjectivities and agency services mediated by biomedical scientific practices directed to HIV/AIDS. The narratives highlighted scientific dissemination, sharing of information and experiences as elements in the processes of normalization and enhancement of life with HIV/AIDS. In addition, the study unveiled the access and sharing of biomedical and scientific information on the blog as a facilitator in the production and development of expert patients and the pharmaceuticalization of life as a consequence of the experience of living with HIV/AIDS.

Keywords: acquired immunodeficiency syndrome; HIV; illness experience; social media; blog.

Introdução

Neste trabalho, analisamos a busca por informações sobre a enfermidade em ambientes digitais e suas reverberações na experiência de pessoas que vivem com o vírus da imunodeficiência humana / síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV/aids), a partir de narrativas produzidas em respostas às postagens feitas pelo autor de um blogue brasileiro. Os resultados apresentados aqui resultam de uma etnografia realizada no blogue “Diário de um Jovem Soropositivo” sobre as formas de agenciamentos de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA), no contexto atual de cronicidade da infecção pelo HIV, de restrição discursiva sobre a epidemia e de acesso ampliado às redes e mídias sociais.

Esta etnografia trata de processos de produção de subjetividades inseridos em um contexto amplo da biomedicalização da resposta ao HIV/aids, especialmente criados, mediados e reproduzidos em ambientes digitais. Conceitualmente, a biomedicalização configura-se como um processo complexo e multissituado, no qual a medicalização social é redefinida em função das inovações advindas da biotecnologia (Clarke et al. 2010; Rohden 2017). No caso do HIV/aids, sinaliza-se que o curso do processo de biomedicalização da resposta à epidemia é marcado por temporalidades, entre um período definido como “pré-antirretrovirais” e outro como “centrado em antirretrovirais” (Rosengarten 2009; Ferrari 2018).

O primeiro momento caracterizou-se pela emergência do HIV/aids no início da década de 1980 como uma doença fatal, pelo pânico moral e estigmatização (Sontag 1989). De imediato, a infecção gerou desafios à comunidade científica em um período marcado por incertezas e dúvidas em torno da aids (Czeresnia 1995; Bastos 2002). Nessa fase, destacou-se a construção do discurso científico que contou com a colaboração ativa dos grupos sociais atingidos, sobretudo os homens gays1 (Epstein 1996; Valle 2015). Estes atores travaram o diálogo com autoridades científicas da época e construíram uma consciência crítica e ativista em torno do jargão biomédico como forma de negociar estratégias e minimizar as chances da colonização de seus cotidianos pelos saberes médicos (Epstein 1996; Patton 1990). Assim, o ativismo em aids foi se tornando um ativismo de especialistas que lutavam incansavelmente por direitos, criação de políticas públicas e avanços em torno do HIV/aids (Czeresnia 1995; Valle 2015; Ferrari 2018). Como resultados dessa luta, a biomedicina, por meio da participação e protagonismo de ativistas da aids (Epstein 1996), rapidamente produziu um mecanismo explicativo da doença, identificou o agente infeccioso e suas formas de transmissão, desenvolveu testes para diagnóstico e,2 finalmente, medicamentos capazes de controlar o vírus e prolongar a vida das PVHA.

A partir disso, houve um deslocamento da “aids de antes” (doença fatal) para uma “aids de agora” (doença crônica) (Bastos 2002), manifestada pelo surgimento dos antirretrovirais e a composição de um complexo cotidiano de tratamento e prevenção (Rosengarten 2009). Com o tratamento, viver com HIV/aids por longos períodos se tornou cada vez mais possível, o que fez da infecção uma condição crônica. Para Aggleton e Parker (2015), a cronificação da infecção resultou em promessas otimistas de um futuro sem HIV/aids, em função da centralidade depositada nas tecnologias biomédicas. A despeito desse otimismo em torno da cronificação da infecção pelo HIV, a etnografia de Benton, Sangaramoorthy e Kalofonos (2017) apontou a existência de uma temporalidade específica e não linear que implicava na sincronização da vida do vírus à da pessoa afetada; do tempo cotidiano ao tempo da adesão; e da rotina diária à burocracia farmacêutica dos sistemas de saúde. Ademais, a cronificação da infecção pelo HIV tem fomentado a possibilidade de viver com a sorologia em segredo, o que tem implicado em estratégias para a gestão das informações sobre a condição sorológica.

Conforme assinalado por Pollak (1990) a partir do seu estudo sobre homossexualidade, a liberalização sexual experimentada nos anos 1960 e 1970 em alguns países ocidentais permitiu a reivindicação de um modo de vida homossexual no espaço público, o que fez esmaecer (mas não totalmente) as forças sociais que empurravam esses indivíduos a uma vida marginal, clandestina e que demandava uma gestão de uma identidade sexual “indizível”. Pollak (1990) argumenta que a emergência da aids na década de 1980 operou como um retorno à clandestinidade e ao segredo, recolocando, portanto, a injunção de uma economia de conhecimentos sobre práticas sexuais homoafetivas, já que estas se tornaram intimamente associadas ao risco, ao contágio e à doença.

Diante disso, argumentamos que, se nas últimas décadas os avanços biomédicos produziram tratamentos eficazes que possibilitaram a cronificação da infecção e o aumento da expectativa de vida das PVHA, tais avanços não reverberaram numa maior integração social dessas pessoas. Partimos do pressuposto de que a cronicidade atualiza o dispositivo da aids - antes mais centrado no controle da sexualidade e das práticas sexuais (Perlongher 1987) -, de modo que pode empurrar, novamente, as PVHA para uma vida marcada pelo segredo sobre a sorologia e, consequentemente, pela gestão de uma identidade que, para algumas pessoas, continua ou se tornou indizível.

É nesse contexto que as redes e mídias sociais digitais tornaram-se analiticamente rentáveis para a construção desta etnografia. No Brasil, o crescente uso da internet tem estimulado a criação de novos espaços e formas de contato/relação entre as PVHA, que têm se configurado como sítios de produção de maneiras de significar, compreender e narrar a experiência de viver com a enfermidade, sobretudo para quem vive com a sorologia em segredo. Isto porque as mídias digitais permitem a busca de informações e a comunicação com outras pessoas, no intuito de aprimorar suas condições de saúde e de vida. Nesse sentido, o interesse em etnografar a divulgação científica e as socialidades desenvolvidas no blogue emergiu durante a pesquisa de campo como pistas para compreender as relações entre tais práticas e a experiência de PVHA. Neste artigo, buscamos descrever como a interação digital e as práticas científicas biomédicas no blogue participavam da produção de subjetividades e de agenciamentos relacionados ao HIV/aids.

Seguir os fluxos das interações nos permitiu descrever elementos do processo de biomedicalização da resposta à epidemia no Brasil e a experiência de viver com HIV/aids na atualidade. Compreende-se que tal processo é marcado por uma via de mão-dupla entre a biociência e a sociedade e, apesar de ser social e culturalmente situado, extrapola as fronteiras nacionais (Good 2001). Nesse contexto, as narrativas compartilhadas articulavam, de um lado, saberes biomédicos que orientavam os discursos, as práticas e os serviços de saúde pública e, de outro, saberes de experiência forjados no cotidiano do viver com o HIV/aids. A imbricação desses saberes possibilitava a reconstrução narrativa de um conjunto de valores, de representações e de imaginários sociais da aids capazes de engendrar novos agenciamentos dos sujeitos que produzem, transitam e frequentam as mídias digitais.

Uma etnografia num blogue

Nesta seção usaremos a primeira pessoa do singular para relatar a experiência etnográfica do primeiro autor na condução da pesquisa de campo entre junho de 2016 e abril de 2017 no blogue brasileiro “Diário de um Jovem Soropositivo”.

Conheci o blogue em 2016 logo após ingressar no mestrado em Saúde Coletiva. De início, chamou-me a atenção o fato de ser um espaço de interação entre pessoas que diziam procurar por informações sobre HIV/aids na internet. Por isso, o blogue se revelou como um espaço rico em compartilhamentos de informações científicas e de outros aspectos relacionados à experiência de viver com o vírus. Com quase cinco mil seguidores, era um dos mais importantes no Brasil a abordar a temática do HIV/aids e mantinha postagens regulares.

Foi criado em março de 2011 por um autor que utilizava o pseudônimo Jovem Soropositivo (JS). Assim como JS, a maioria dos seguidores eram PVHA que também usavam pseudônimos em suas interações online e mantinham sua identidade protegida pelo anonimato. Por isso, não foi possível caracterizar socialmente os seguidores, apesar de compreender que esta caracterização teria contribuído para descrições mais amplas da experiência com a enfermidade. Nas minhas primeiras incursões, tentei contato por e-mail com JS para comunicá-lo sobre a pesquisa. Os e-mails foram enviados em julho e em agosto de 2016 através do próprio espaço que o autor disponibilizava na página, mas não obtive respostas. Isso contrastava com a disponibilidade que JS demonstrava em responder aos e-mails de outros seguidores, fato registrado em postagens e comentários. Em todo o caso, observamos os preceitos éticos contidos na Resolução n.º 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil) sobre pesquisas com seres humanos na área de ciências sociais e humanas. Além disso, todos os dados utilizados eram de acesso público, estavam disponíveis online no sítio do blogue e protegidos pelo anonimato digital, bem como os nomes usados aqui são diferentes dos pseudônimos empregados pelos seguidores.

Dada a dificuldade em contactar JS, optei por me manter anônimo nos acessos e por não interagir com os seguidores e o autor do blogue. Em etnografia digital, a esse anonimato dá-se o nome de lurking e a pessoa que efetua a observação silenciosa é denominada lurker (Hine 2004). Inicialmente, comecei a observar como o blogue se apresentava ao público, sua organização e, a partir daí, passei a acompanhar as relações que ali eram criadas. Ao final das incursões, registrava em diários de campo minhas impressões sobre as postagens (textos, reportagens, fotos e vídeos), os comentários e as discussões realizadas. Além disso, fazia capturas da tela do computador e as salvava em formato de fotografia, para realizar análise semiótica. Durante a pesquisa de campo, meu acesso acontecia, em média, duas vezes por semana, principalmente aos sábados e domingos.

Nesse período, o blogue estava organizado em três seções: diário, artigos e notícias. Na seção diário eram compartilhadas experiências do cotidiano do blogueiro com o HIV e dos seguidores.3 Nas seções, artigos e notícias eram divulgados, principalmente, resultados de pesquisas científicas, informações sobre aspectos biológicos e clínicos relativos ao tratamento, à cura e à prevenção do HIV/aids. É importante destacar que não se divulgavam conhecimentos científicos de diferentes áreas. A ênfase dada por JS estava no conhecimento biomédico, principalmente em suas vertentes biológica (imunologia, microbiologia, fisiologia), clínica (infectologia, clínica geral, farmacologia) e epidemiológica. Durante a pesquisa de campo não se observaram discussões de questões políticas, de ativismos, de demanda e garantia de direitos das PVHA.

O conteúdo dessas seções foi analisado por meio da técnica de análise documental (Prior 2011). Fiz um recorte temporal, de maneira que foram incluídas as postagens de JS e os comentários dos seguidores desde a criação do blogue até julho de 2016. Apesar disso, minhas incursões seguiram até abril de 2017, pois sempre acompanhava as novas postagens de JS e, principalmente, as postagens antigas, uma vez que os seguidores costumavam incluir novos comentários, o que acabava atualizando-as.

Ao acessar, permanecia ali em média uma hora e meia, lendo as postagens e capturando detalhes do que era narrado pelo autor e discutido entre seus seguidores. Nesses movimentos de aproximação e de distanciamento, a sensibilização teórica do meu olhar e a reflexividade foram de fundamental importância (Oliveira 2006) para a construção do corpus de análise.4

As postagens feitas no período analisado estavam assim distribuídas: notícias: 221 postagens; diário: 18 postagens; e artigos: 42 postagens. Ao longo da pesquisa de campo, observei que as postagens na seção artigos eram as que mais rendiam comentários e discussões dos seguidores, o que evidenciava que a divulgação científica poderia ser uma pista a ser mapeada. Diante disso, a seguir são apresentadas as descrições e análises das postagens e comentários publicados na seção artigos, o que totalizou 42 postagens do autor e 4.670 comentários dos seguidores.

“Tenho que dividir com vocês… cheguei ao excelente patamar de INDETECTÁVEL”: divulgação, compartilhamento de informações e produção de subjetividades

Discutimos agora como os comentários às postagens do autor produziam um espaço de divulgação e compartilhamento de informações científicas e de experiências entre os seguidores recém-diagnosticados e aqueles que frequentavam o blogue, faziam tratamento antirretroviral e viviam com HIV/aids por maior período, de modo que estavam indetectáveis.5 Veremos como tais interações auxiliavam nos processos de normalização da vida e de produção de itinerários terapêuticos.

De modo geral, o acesso inicial das pessoas se dava após o recebimento do diagnóstico positivo para o HIV. Esse encontro ocorria durante buscas por informações sobre HIV/aids na internet, conforme narrou Robson [08/09/2014]: “olá… chegando do laboratório agora. Deu soropositivo. Estou sem chão, sem pernas. E a primeira coisa que fiz foi procurar e entrar em algum lugar com pessoas que eu não conheça. Sem qualquer PRECONCEITO e que pudesse me aliviar. Bem, estou aqui, tentando. Um pouco perplexo, mas aqui. Alguém pode bater um papo comigo?” Esse tipo de narrativa era comum, principalmente nos primeiros comentários dessas pessoas às postagens de JS ou em diálogos que se estabeleciam com outros seguidores.

Estar ali tentando, como disse Robson, marcava para esses seguidores recém-diagnosticados o início de um processo de construção de itinerários terapêuticos que, de acordo com Alves (2016), significa elaborar ações, projetos e trajetórias com vista à produção de um modo prático de compreender a doença e de se engajar na situação experienciada. Acessar informações científicas e narrativas de outras PVHA se mostrava como um elemento importante na experiência dos interlocutores e na produção cotidiana de um itinerário terapêutico, uma vez que este não se restringia à reconstituição de trajetos estabelecidos pelos atores na busca por determinado tratamento médico.

Nesse sentido, a pessoa recém-diagnosticada que passava a seguir o blogue se configurava como um sujeito sedento de informações, tendo em vista a novidade do HIV/aids em sua vida ou a falta de conhecimentos sobre o tema, como exemplificado no comentário de Guto após o recebimento do diagnóstico: “preciso de ajuda, se alguém aqui quiser manter contato comigo pra troca de informações (se bem que eu não sei muito, ou mesmo nada), meu e-mail é xx@gmail.com” [08/09/2014]. Como visto nos comentários de Robson e Guto, o blogue parecia se colocar como um espaço protegido pelo anonimato onde se procurava adquirir informações sobre a experiência de viver com o HIV/aids, e ter contato com outras pessoas na mesma condição.

A busca por informações biomédicas e a troca de experiências com outros seguidores se mostrou fundamental para o início do tratamento e seu gerenciamento no cotidiano, pois contribuía para constituir e/ou atualizar estoques de conhecimento das pessoas recém-diagnosticadas necessários para orientá-las em situações diárias e para resolver problemas práticos com os quais se defrontam no mundo (Alves 2016). A interação entre seguidores e JS permitia a construção de um idioma informacional-científico pelos recém-diagnosticados, o que, em suas experiências, se colocava como parte do processo de produção da pessoa soropositiva. Segundo Valle (2010: 43), tal produção implica em “incorporar e aprender práticas terapêuticas de consumo sistemático e controlado de remédios, de leitura dos sintomas da doença e dos tratamentos sobre o seu corpo, dos procedimentos clínicos, exames e terapias que devem ser efetuados regularmente”. Destacamos que esse idioma informacional-científico era fortemente alinhado aos discursos da política de saúde. Tais discursos balizavam, inclusive, as regras de uso do blogue, uma vez que os comentários não deveriam conter mensagens com sugestões para que outros seguidores não fizessem uso dos testes de diagnóstico, do tratamento antirretroviral e da prevenção. Ou seja, eram proibidos discursos contrários ao recomendado pelo consenso médico e pelo Ministério da Saúde.

Nas interações tecidas por meio dos comentários às postagens de JS se destacava o convencimento 6 das pessoas recém-diagnosticadas sobre o imperativo da adesão à terapia antirretroviral (TARV). Tal convencimento era operado, em grande parte, pelos seguidores com maior tempo de diagnóstico e que haviam aderido à TARV, logo costumava se manifestar diante de algumas dúvidas relativas a iniciar ou não a TARV: “Estou normal e pretendo não iniciar a medicação caso isso se mantenha. Sei que o Ministério da Saúde quer que eu inicie o medicamento, caso não inicie pode acontecer algo comigo?” [João 11/03/2016] A maioria das reações dos outros seguidores a esse tipo de dúvida estimulava a adesão imediata ao tratamento, como enfatizado por Jonas e Angel: “[…] começar a medicação às vezes assusta, como receber o diagnóstico positivo, mas é tão importante quanto saber [que vive com o HIV]. Olhe só, eu nem tive efeitos colaterais, hoje a medicação é muito tranquila e quanto mais cedo começar, mais cedo estará indetectável” [Jonas 11/03/2016]; “Aliás, todos os testes de vacina, remédios para cura, etc., exigem pacientes indetectáveis, ou seja, com o vírus suprimido. Você precisará estar sob controle quando a cura chegar, meu caro. Comece seu tratamento” [Angel 20/10/2015]. Se, por um lado, as interações ajudavam a amenizar as incertezas individuais dos seguidores recém-diagnosticados relativas à adesão ao tratamento, por outro, forneciam exemplos vividos daquilo que Good (2001) descreveu como “abraço biotecnológico” (biotechnical embrace), quando os sujeitos/pacientes se sentem “abraçados” pelos avanços biomédicos e passam a traçar uma abordagem terapêutica em curso coerente, incutir desejo de tratamento, dar esperança e, em casos de condições em que ainda não há cura, como é o caso do HIV/aids, convidar os pacientes a abrirem seus corpos para estudos com terapias experimentais, ou seja, sem eficácia ainda comprovada.

Os seguidores mais versados como PVHA lançavam mão de narrativas fundamentadas no idioma informacional-científico forjadas ao longo de suas interações no blogue (e em outros espaços do mundo social da aids).7 Esses discursos refletiam graus variados de apropriação dos saberes biomédicos, fato que evidenciava o estágio de medicalização no qual se encontravam as pessoas com maior tempo de diagnóstico, uma vez que estas já eram, em alguma medida, tratadas, controladas e indetectáveis. Mais que isso, enfatizava os modos de apropriação e de reinterpretação dos saberes biomédicos (Young 1976) como ingredientes da produção de seus saberes de experiência e itinerários terapêuticos.

Além de informações gerais sobre o vírus e o tratamento, nos primeiros acessos de pessoas recém-diagnosticadas se destacava a procura de informações sobre serviços de saúde especializados em suas cidades. Assim, as orientações repassadas pelos seguidores mais antigos enalteciam os direitos e as conquistas políticas das PVHA no Brasil através do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso pode ser evidenciado na resposta dada por Marília às dúvidas de uma mulher acerca da demora na marcação de consulta inicial com o infectologista num serviço privado: “Rafaela, seria bom você tentar agendar em um posto de saúde, pois não demora tanto assim. Eu descobri ser soro+ em novembro, e já fiz duas consultas com o infectologista através do posto de saúde. O atendimento é excelente. Abraços! Se quiser manter contato pra tirar dúvidas xx@bol.com.br” [Marília 07/02/2014].

Nesse contexto, a interação entre os seguidores fazia circular não só informações sobre acesso aos serviços de saúde do SUS, como se constituía num tipo de preparação antes da consulta com o infectologista, como retratado na fala de Lorena: “Quando tomamos conhecimentos das notícias e dos relatos aqui, a calma começa a aquietar nossos corações. E quando vamos para a primeira consulta com o infectologista, já vamos conscientes de termos [médicos] que até então eram desconhecidos para nós como CD4,8 carga viral, TARV.” [22/12/2015] Além disso, era notória a ênfase dada à figura do médico infectologista, bem como à relação que deveria ser estabelecida com ele no momento inicial e durante todo o seguimento ambulatorial: “os tratamentos e interações medicamentosas serão feitos pelo infectologista, no qual você tem um parceiro a cada trimestre, é bom ter o número do celular dele também, e-mail, assim fica fácil a comunicação… e você vai precisar” [Alice 29/01/2015].

Dessa forma, via de regra, apesar de tudo o que era divulgado e compartilhado em relação a tratamentos e experiências, os discursos dos seguidores costumavam enfatizar: “você deve seguir a orientação do seu infectologista”. Na experiência dos interlocutores, conhecer esses termos médicos parecia servir como mais um instrumento para navegar e se comunicar melhor com profissionais de saúde, de maneira que pudessem compreender o que lhes passava e romper, em alguma medida, com um tipo de dominação médica que assenta na presunção de ignorância do paciente (Boltanski 2004).

A tessitura de um idioma informacional-científico entre os seguidores e as questões relacionadas à comunicação com infectologistas nas consultas não se colocavam apenas como uma preparação aos encontros clínicos, mas também após a sua realização. Alguns interlocutores aproveitavam o espaço do blogue para checar as informações repassadas pelos infectologistas. Tratava-se de uma estratégia para problematizar algumas informações sobre as quais ainda não existia um consenso científico ou entre os demais participantes: “Tá bem Olavo. Quando for [para consulta] te mando sinal e vou perguntar o mesmo que você perguntou pra comparar a resposta dos nossos médicos.” [Iury 03/12/2015] Esse engajamento entre Olavo e Iury com seus infectologistas, permite vislumbrar como o imaginário médico (Good 2001) engendra uma experiência com muitas possibilidades à PVHA, sobretudo em relação ao tratamento.

No blogue a procura por informações estava comumente relacionada à ação do vírus e a TARV (efeitos colaterais, usos, horários, estratégias de administração, entre outras). Diante disso, os seguidores mais experimentados como PVHA ajudavam no processo de esclarecimento de dúvidas, compartilhando suas experiências e estratégias de gerenciamento. Vale destacar que os saberes de experiência compartilhados eram produzidos no cotidiano e, por isso, eram mais específicos (e talvez mais eficazes) do que as orientações protocolares oferecidas de forma genérica pelos profissionais da saúde: “Iniciei o tratamento com 3 em 19 tá com 24 dias, e hoje esqueci de tomar na hora. Acabei dormindo. Tomei a medicação com 6h e 33min de atraso. Estou muito preocupada. Será que posso ter interferido no meu tratamento? Alguém pode me responder.” [Vanessa 30/01/2015] Vitória respondeu: “É um intervalo muito pequeno e não deve causar nenhum problema. Mas é ideal que tome sempre no mesmo horário. Se facilitar, nesse início, use aplicativos no celular para lembrete ou até na sua própria agenda do celular como alarme. Se não quiser sair com o frasco, use porta-cápsula que é prático, discreto e fácil de levar para qualquer lugar.”

Ao iniciar o tratamento e enfrentar toda a burocracia associada (acesso aos serviços, consultas, exames, medicamentos…), os seguidores recém-diagnosticados ansiavam atingir os padrões considerados normais (leia-se, estar indetectável) tanto pelos infectologistas quanto pelos seguidores mais antigos do blogue. Para Adam e Herzlich (2001), a expressão normalização faz referência à noção biomédica de readaptação, buscando relativizá-la e ampliá-la. Na perspectiva antropológica, esse processo nunca se configura como um retorno a um estado anterior à doença (disease). Ou seja, no plano da experiência (illness), corresponde às interpretações e às ações que possibilitam aos sujeitos construírem uma nova norma de vida, que lhes permita levar uma vida tão “normal” quanto possível, mesmo com a enfermidade. No tocante à normalização da vida com HIV/aids, a etnografia de Melo, Cortez e Santos (2020: 6) aponta como, para seus interlocutores (membros de um grupo fechado para PVHA no Facebook), a socialidade no grupo reforçava a adesão à TARV como um imperativo moral, de modo que, diante das rupturas biográficas ocasionadas pelo diagnóstico, “reconquistar a normalidade significava, além de restabelecer uma nova ordem de vida, elaborar o sofrimento e o medo do HIV/aids como emoções de uma história distante, da época do Cazuza, quando não se tinha o suporte político, social e biotecnológico de hoje” [grifos no original].

Nesse sentido, nas interações entre seguidores do blogue era possível esclarecer as dúvidas sobre os resultados dos exames e desenvolver nesses sujeitos a perspectiva de sempre melhorar tais resultados para se atingir o status de indetectável o quanto antes. Estar indetectável representava que a infecção estava sob controle e, consequentemente, que a pessoa estava cada vez mais hábil nas leituras e interpretações dos sinais orgânicos apresentados, por exemplo, nos exames laboratoriais: “Fiz todos os exames, incluindo toxoplasmose, triglicérides, hemograma, urina, vitaminas e colesterol. Todos dentro do esperado, inclusive toxoplasmose já imune. Porém já até chorei de medo quando vi o CD4/CD8, CD4: 276, CD8: 1540, CD4/CD8: 0,18. Caramba, muito baixo né? Galera preciso de uma força de vcs” [Alexandre 20/10/2015]; Luciano respondeu: “Oi Alexandre. Tive resultados similares ao teu. Meu CD4 era de 254. Após 4 meses de Tarv subiu para CD4 359. Fique tranquilo, siga o tratamento direitinho, alimente-se bem, faça exercícios, que tudo se ajeita.”

Assim, para se atingir o patamar indetectável através da adesão à TARV não se tratava apenas de obter um controle sobre a saúde por meio de intervenções farmacológicas, pois assumia um sentido mais amplo na experiência desses sujeitos. Tratava-se, para além de um status, de uma nova identidade, como comemorado por Fernando ao receber seus exames de rotina: “Minha gente, tenho que dividir com vocês… cheguei ao excelente patamar de INDETECTÁVEL… GRAÇAS A DEUS!!! MEUS EXAMES ESTÃO EXCELENTES!!!” [02/12/2014] Nesse sentido, não significava dizer que são identidades completamente novas, mas sim atualizações, pois em torno do HIV/aids muitas identidades clínicas foram adotadas ao longo da construção histórico-social da epidemia, como: aidético, portador assintomático, soropositivo, pessoa vivendo e, atualmente, indetectável. Logo, configuram-se como identidades sociais por meio das quais os indivíduos são classificados e culturalmente representados (Valle 2010), dentro e fora do blogue.

A identidade de indetectável acionada pelo contexto da cronicidade (“aids de agora”), parece guardar semelhanças ao portador assintomático da “aids de antes”. Ou seja, o soropositivo de aparência saudável (Valle 2016). Na fase pré-antirretroviral, esta última identidade só era possível aos sujeitos que permaneciam em latência clínica do vírus após infecção. O HIV estava ativo, mas se reproduzia em níveis muito baixos, de modo que o indivíduo era capaz de transmitir o HIV, mas não de manifestar sintomas associados à aids. As intervenções biomédicas e os avanços nos tratamentos permitiram novas formas de acessar e performar essas identidades já existentes. A performance atual desses sujeitos é cada vez mais mediada pela TARV e se fundamenta na assertiva (agora corroborada pela ciência) de que a PVHA indetectável não transmite o vírus.10 Talvez por isso, alcançar esse patamar se tornou um desejo e, portanto, parte de um imperativo moral para a maioria das PVHA que seguiam o blogue.

No blogue também foi possível observar que os comportamentos e práticas de cuidado eram regularmente postos em visibilidade pela divulgação e compartilhamento dos resultados de exames (carga viral, CD4, testes bioquímicos). Dessa forma, esses exames assumiam papel fundamental no cuidado da PVHA porque, principalmente entre os indetectáveis, eles mostravam que o vírus estava ali, mesmo não se manifestando. Esses resultados de exames eram (re)apropriados pelos seguidores e, por vezes, utilizados como um aspecto de diferenciação interna, o que demonstra o potencial dos exames como tecnologias de produzir visibilidades capazes de modelar práticas cotidianas, corpos e subjetividades (Foucault 2010a).

Tais compartilhamentos de resultados de exames e de avaliações periódicas com infectologistas pelos interlocutores produziam uma “gramática dos números”, como observado por Fleischer (2013) em sua etnografia com pessoas que viviam com diabetes e pressão alta. Na análise da autora, essa gramática dos números busca dar conta das variações numéricas da glicemia capilar e de outras taxas bioquímicas materializadas em exames de rotina. Assim, números, medicamentos e emoções formavam uma tríade que operava com vista ao controle dessas doenças, capazes de imprimir traços calculáveis de individualidade a cada pessoa diante da condição. Na experiência de pessoas que vivem com adoecimentos de longa duração essa prática tem sido identificada em diversas etnografias como reveladora da “verdade” que pode ser ocultada pelo sujeito a respeito da sua adesão ao tratamento, o que possibilita ao profissional da saúde um acompanhamento contínuo da enfermidade (Ferzacca 2000; Fleischer 2013).

Logo, a constante introdução de novas tecnologias de controle e administração do HIV serve como pano de fundo para a emergência de um sujeito-paciente que se apropria do conhecimento biomédico como forma de controle de si mesmo e, consequentemente, da doença/condição (Ferzacca 2000; Fleischer 2013), o que deixa em relevo a dimensão normativa dessas tecnologias e conhecimentos biomédicos e sua participação na produção da pessoa soropositiva. Nesse contexto, os corpos se tornam disponíveis para uma variedade de técnicas de mensurabilidade, padronização e de possíveis intervenções pela biomedicina (Rohden 2017). No caso do HIV/aids, a profilaxia pós-exposição (PEP) e a profilaxia pré-exposição (PrEP) são bons exemplos, pois ampliam as formas de intervenções biomédicas como forma de prevenção da infecção.

Além disso, os resultados numéricos dos exames permitiam aos nossos interlocutores construírem um autoconhecimento centrado na experiência com a enfermidade ao longo de suas vidas: “Quando descobri que era HIV+, foi horrível e meu Cd4 estava em 23. Porém, sem muitas delongas, hoje venho aqui comemorar que peguei o exame de Cd4 e estou em 153. Ainda estou abaixo dos 200, mas foi um alívio saber que estou melhorando” [Arthur 05/05/2014]; “Quando recebi os resultados em números, quase tive uma ‘vertigem’ na frente da médica, pois meu CD4 estava em 89 (vejam bem, 89) e a CV [carga viral] em mais de um milhão. Na hora, fechei os olhos e pensei: Deus, me ajuda! E suspirei fundo.” [Thor 08/09/2014]

A despeito da construção cotidiana da adesão à TARV e demais atividades vinculadas ao cuidado com o HIV/aids, nessas interações entre seguidores recém-diagnosticados e aqueles com maior tempo de experiência com a condição há que se destacar o tom idealista relativo aos antirretrovirais, uma vez que os interlocutores pareciam deixar de fora dos diálogos as incertezas implicadas no curso da própria infecção pelo HIV (como de outras condições de longa duração), a labilidade das taxas como CD4 e carga viral, os efeitos colaterais de alguns medicamentos que, por vezes, podem inviabilizar a adesão e, por fim, as consequências do uso continuado dos antirretrovirais. Tal fato pode decorrer do perfil de pessoas que atendem ao blogue, do contexto com melhores opções terapêuticas (TARV que produz menos efeitos colaterais) e mesmo da condição de ser recém-diagnosticado, o que coloca em relevo as temporalidades que conformam não só o estágio do desenvolvimento biotecnológico, mas as próprias experiências de quem vive com HIV/aids.

“Insisti na troca, porque a Zidovudina causa lipodistrofia e o Tenofovir não”: a farmaceuticalização da vida e as demandas de aprimoramento diante do HIV/aids

Seguidamente apresentamos, a partir de diferentes formas e graus de intervenção, como os saberes biomédicos e os avanços tecno-científicos têm atuado no aprimoramento da vida com o HIV/aids. Nesse sentido, será enfatizado o papel dos seguidores mais antigos do blogue, caracterizados como pacientes-especialistas, ou seja, consumidores de informações científicas e alto capital de experiência com a condição em busca de se aperfeiçoarem cada vez mais. Sendo assim, não basta apenas regular ou normalizar os resultados dos exames, a alimentação, as consultas, os medicamentos, as práticas de exercícios físicos, etc., mas é preciso melhorar constantemente e, para isso, é necessário saber cada vez mais e se especializar sobre a condição de viver com a enfermidade (Rohden 2017).

Destacamos o acesso e o compartilhamento de informações biomédicas como facilitadores da produção e desenvolvimento do expert patient (paciente especialista, ou rico em informações) (Taylor e Bury 2007). Nesse sentido, o blogue funcionava como um espaço potente de compartilhamento de saberes, divulgações científicas e experiências com o HIV/aids. Tendo em vista que as informações publicadas eram atualizadas permanentemente, tanto por JS quanto pelos seus seguidores e criava-se, assim, uma rede de produção/consumo de informações científicas e estratégias de enfrentamento que era vista como fundamental no processo de construção de uma vida aprimorada com o HIV/aids.

Nos comentários dos interlocutores foi possível observar os ganhos decorrentes de se atingir, com sucesso, o patamar de indetectável, conforme destacou Henrique: “Pessoal, deixe-me compartilhar uma notícia com todos: completei seis meses indetectável e fui liberado pelo meu médico para engravidar minha esposa. Ela participou da consulta e está de acordo. Agora, o sexo é sem camisinha no período fértil. Colocaremos em prática na nossa vida a evidência científica de que o vírus não se transmite a partir de fontes indetectáveis. Deixarei todos a par da evolução. Torçam por nós.” [20/05/2016] Essas conquistas repercutiam na experiência dos interlocutores que viam no atual contexto de cronicidade da infecção novas possibilidades para situações tidas como impossíveis até há pouco tempo: “Cara, desde que acompanho esse blog, seu depoimento foi o mais marcante pra mim. Que seu filho venha para dar uma nova prova ao mundo de que continuamos, sim, muito vivos!” [Diego 20/05/2016]

Os comentários de Henrique e Diego assinalam o deslocamento produzido pela indetectabilidade, uma vez que permite a anulação do risco de transmissão viral, permitindo uma mudança de paradigma na vida sexual das PVHA, que deixam de ser veículos de transmissão do vírus, ao mesmo tempo que estar indetectável se torna uma nova forma de prevenção. Por outro lado, sinalizam os regimes de verdades constantemente emergentes com os avanços biomédicos aos quais profissionais da saúde e pacientes estão sujeitos, além de refletir o entusiasmo e a esperança daqueles que vivem com enfermidades de longa duração diante das novas possibilidades terapêuticas da medicina (Good 2001).

Outrossim, foi possível evidenciar algumas expertises adquiridas ao longo da experiência com o HIV/aids pelos seguidores mais experientes no autogerenciamento da condição, principalmente em relação aos regimes e estilos farmacêuticos. Nesse sentido, a produção da pessoa soropositiva, indetectável, com algum grau de domínio do idioma informacional-científico, como vimos anteriormente, anda pari passu e é tributária de processos sociais mais amplos como a biomedicalização e a farmaceuticalização, que fazem circular, de forma integrada, estratégias de governo de si. Trata-se, portanto, de processo de subjetivação no qual operam tecnologias do self e de cultivação de si (Foucault 2010b, 2011) como autodisciplina, autocontrole, automonitoramento, autoconhecimento e autovigilância. Assim, o blogue e outros espaços da vida social desses sujeitos (serviços de saúde, laboratórios, consultas, etc.) se apresentavam não só como sítios de circulação de discursos, de saberes, de práticas, mas de atualização destes.

Nessa ótica, a farmaceuticalização é definida como um conceito que captura a crescente importância dos produtos farmacêuticos dentro e além da medicalização social (Martin 2006). Ainda que com larga superposição com a medicalização, a farmaceuticalização se distingue por não estar necessariamente ligada apenas a algum tipo de diagnóstico médico, mas sim pela busca de uma certa “supernormalidade” por meio dos aperfeiçoamentos (enhancement) da vida frente à necessidade e/ou condição de saúde (Williams, Martin e Gabe 2011). A farmaceuticalização implica, continuamente, em processos de subjetivação que, no caso em tela, envolvia conhecimentos científico e médico especializados. Destacam-se os significados dos medicamentos, dos resultados de exames, bem como do autogerenciamento destes nas experiências cotidianas compartilhadas no blogue.

Outra dimensão retratada nos comentários às postagens de JS era a de que a TARV punha um fim ao sofrimento que assombrava a experiência de PVHA no contexto da “aids de antes”: o medo da morte iminente. Assim, o acesso a TARV parecia atar a crise e a urgência da aids num passado distante, ao mesmo tempo em que punha em relevo novas economias morais vislumbradas num futuro onde o estigma seria reduzido pelo acesso ao tratamento (Sangaramoorthy 2018) e a saúde se colocaria como “um dever, uma ética e estética que inviabiliza o aparecimento da feiura, da dor, do adoecimento e da morte” (Cunha 2014: 103). Essa moralidade permitia a positivação da vida com o HIV/aids - uma forma de vida produzida pela modelação de si mesmos, de seus atributos pessoais, de suas emoções e da transformação dessas pessoas em governantes de si (Benton, Sangaramoorthy e Kalofonos, 2017; Cunha 2014).

Diante disso, os interlocutores enalteciam os avanços biotecnológicos dos medicamentos, principalmente a diminuição da quantidade de comprimidos e dos efeitos colaterais, como retratado por Gustavo: “Eu sou mais o 3x1. Eu penso o seguinte: é a melhor combinação, um comprimido só, e você tomar uma vez ao dia é maravilhoso. Por mais que você passe mal, pense que podia ser pior. Histórias de remédios do tamanho de jaboticabas, vômitos e diarreias incontroláveis, 30 comprimidos por dia, uns a cada 6 horas… Um conselho? Encara. Podia ser pior, bem pior.” [16/06/2014]

Entretanto, existia uma ambivalência em relação à TARV no que se referia aos seus efeitos colaterais. Se, por um lado, eles eram narrados de forma terrível, como descritos por Gabriel: “Hoje faz 7 dias que comecei com biovir e kaletra. Os efeitos colaterais gastrointestinais estão pesados! A sensação é de que estou com uma bomba relógio. Os dias passam e parece que a morte tá do lado” [26/02/2014]; por outro, eles eram vistos em suas próprias temporalidades, o que contribuía para significá-los como uma coisa boa: “sobre as coceiras, tenha paciência, elas passam! É normal! Eu também tive no início do tratamento. Minha infecto disse que tem a ver com a reação do remédio, um sinal que ele está ‘fazendo efeito’, portanto, a coceira é uma coisa boa.” [21/11/2015] Tal ambivalência em relação aos efeitos colaterais se fundamentava em discursos dos médicos infectologistas que, em alguns casos, perdiam de vista as particularidades de cada pessoa, de cada forma de viver com o HIV/aids - seriam discursos desacoplados da vida das PVHA, para usar a expressão proposta por Kelleher (1994).

Enfim, tratava-se de discursos normatizadores, baseados em médias estatísticas (Canguilhem 2009) que estabeleciam a probabilidade de aparecer este ou aquele efeito adverso. No caso da atenção à saúde de PVHA, especificamente, esse aspecto remete a uma prática médica mais protocolar e consensual (não para os sujeitos, mas para as sociedades científicas que publicam os consensos médicos citados por JS nos termos de uso) do que centrada na pessoa (Bonet 2014). Diferente dos infectologistas, os conhecimentos dos interlocutores sobre TARV permitiam a associação entre medicamento, efeito adverso e vida cotidiana, como observado na resposta dada por Alex: “Oi Bruno. Quanto tempo faz uso dos ARV’s [antirretrovirais]? O Efavirenz causa sim um tipo de formigamento na cabeça, mas isso tende a ser passageiro. Quanto à troca somente seu infecto poderá lhe responder.” [Alex 08/09/2014] Conhecer tais aspectos se mostrou importante nas trocas de informações no blogue e, consequentemente, nas tentativas de aproximar a prática médica e o mundo da práxis (Alves 2016).

O conhecimento e domínio das informações científicas de cunho biomédico pelos interlocutores eram tão aprofundados que chegavam a níveis moleculares, principalmente quando a pauta das discussões eram medicamentos, efeitos colaterais, mecanismos de ação dos fármacos e estudos sobre a cura: “O Kaletra, por se tratar de um inibidor de protease, pode causar osteoporose sim! Gentem… só não me peçam pra explicar o que é um inibidor de protease” [Rafaela 01/12/2014]; “A protease é uma das proteínas que garante a replicação do vírus. Quando o vírus entra num linfócito cd4, seu RNA se transforma em DNA mediante a ação da proteína transcriptase reversa. O Tenofovir e a Lamivudina são inibidores desta proteína. Procure no youtube, há vídeos bem interessantes descrevendo a ação dos ARVs. É legal saber disso! Beijo.” [Moacir 01/12/2014]

Esse processo nos remete ao que Rose (2007) denominou de molecularização da vida. Tal fenômeno enfatiza a passagem de informações biomédicas que antes se centravam apenas no corpo macro para as que se especializam no nível molecular. Segundo o autor, esse é um novo estilo de pensamento que tem chegado, via profissionais da saúde, mídia, internet, etc., às pessoas em geral e que desempenham possibilidades de compreender as doenças (disease), notadamente as de longa duração e de tornar público o imaginário científico (Good 2001). Ou seja, essa característica está associada às ideias de aprimoramento como algo direcionado ao futuro e ao surgimento de indivíduos consumidores desses novos desejos e possibilidades de controle da vida (Rose 2007). No blogue, tanto JS quanto alguns dos seguidores pareciam ter suas experiências modeladas por tal fenômeno.

Ademais, era dada especial atenção à capacidade do grupo para neutralizar comentários de pessoas que procuravam acesso a novos medicamentos ou terapias diferentes daquelas preconizadas pela política de saúde. Nesse sentido, qualquer dúvida ou compartilhamento de terapias (não reconhecidas e aprovadas cientificamente) eram desacreditados por JS e seus seguidores: “JS, gostaria de perguntar se você já ouviu falar ou já conheceu alguém que defendesse ou usasse a auto-hemoterapia. Se lhe interessar pesquisar para refutar ou entender de que se trata aqui está o link: http://www.geocities.ws/autohemoterapiabr/doencas/hiv.htm” [Felipe 01/03/2014]. Respondeu JS: “Felipe, até onde eu sei a auto-hemoterapia é uma infração sanitária no Brasil e não existem estudos sérios que comprovem sua eficácia.” Pode-se perceber que existiam regimes de verdade que circulavam nas interações e que necessitavam, sistematicamente, da validação do saber biomédico, notadamente aquele que se produzia a partir de estudos sérios.11

No caso em estudo, podemos concluir que o diagnóstico positivo para o HIV/aids e o início do tratamento permitiam a produção do sujeito-paciente-consumidor de tratamentos e informações científicas, como um aspecto central das novas demandas que surgiam na administração da própria vida com a condição. Nesse sentido, os recursos disponíveis no blogue assumiam importância nos processos de produção da pessoa soropositiva, em especial no que se refere ao alargamento da obrigação moral de estar atento a toda e qualquer informação disponível sobre a temática dentro e fora deste. Esta evidência era construída de maneira muito dinâmica na página e podia repercutir em uma série de escolhas e atitudes tomadas no cotidiano dessas pessoas, a partir das experiências compartilhadas nesse ambiente digital.

Considerações finais

Esta pesquisa buscou analisar como a interação em um blogue brasileiro permitia a produção de subjetividades e de agenciamentos mediados pelas práticas científicas biomédicas dirigidas ao HIV/aids. Destacamos as contribuições das mídias sociais e de um blogue em especial ao estudo da experiência de PVHA no atual contexto da cronicidade e do avanço da biomedicalização da resposta ao HIV/aids no Brasil. Nesse cenário, os comentários às postagens do autor do blogue produziram um ambiente de divulgação científica, de compartilhamento de informações e de experiências que auxiliaram nos processos de normalização e aprimoramento da vida com o HIV/aids.

Tais experiências atuaram na produção de novos agenciamentos e subjetividades em torno do HIV/aids inseridas no discurso da cronicidade da infecção. Para os seguidores recém-diagnosticados, a produção de uma vida normal implicava em atingir os padrões considerados adequados (estar indetectável, sobretudo) tanto pelos infectologistas quanto pelos seguidores mais experientes. Nesse sentido, foi dada ênfase ao papel destes últimos na socialização dos recém-diagnosticados no mundo social da aids, nomeadamente numa espécie de “letramento” naquilo que denominamos aqui como idioma informacional-científico. Destacou-se também a farmaceuticalização presente nos discursos das PVHA e os significados dos medicamentos, dos resultados de exames laboratoriais e do autogerenciamento atualizados permanentemente e compartilhados como estratégias para uma vida aprimorada.

Além disso, a farmaceuticalização se dava no blogue e em diversos espaços da vida social da PVHA: serviços de saúde, laboratórios, consultas, nas relações com outras PVHA, etc. No entanto, o blogue atuava reforçando de maneira mais contundente esse fenômeno devido às informações científicas compartilhadas diariamente entre JS e seus seguidores e pela apropriação cotidiana desse idioma informacional-científico, uma vez que ele nunca se completa, pois sempre se tem algo a aprender, inclusive pela dinamicidade das pesquisas em HIV/aids. Por fim, cumpre assinalar que tal idioma se colocava como importante nas experiências dos interlocutores, não só pela sua dimensão cognitiva e capacidade de orientar a produção de itinerários terapêuticos, mas, especialmente, por ser produzido e acionado num contexto sociopolítico em que há um franco desmonte da política brasileira de aids (intensificada no governo de Jair Bolsonaro), marcado pela quase inexistência de campanhas e ações estatais sobre HIV/aids, o que aprofunda a restrição discursiva sobre a epidemia e coloca para o indivíduo a responsabilidade de, por um lado, buscar informações e se manter atualizado e, por outro, de produzi-las e veiculá-las, como o faz JS.

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1Usamos itálico para termos em outras línguas.

2A este respeito, ver a etnografia de Valle (2002), na qual o autor analisa as relações entre testagem anti-HIV, medicalização e subjetivação na política de aids brasileira.

3JS recebia por e-mail relatos de seguidores que narravam suas experiências pessoais.

4Etapas da composição do corpus: (1) identificação e localização das fontes no blogue; (2) arquivo do material em formato eletrônico; e (3) construção de um banco de dados contendo título, data de publicação, comentários e texto copiado do blogue. A análise do corpus se deu a partir da identificação dos principais conceitos e códigos que foram agrupados em categorias por meio da técnica de codificação temática (Flick 2009).

5Estar com a carga viral (corresponde à quantificação das cópias do vírus no organismo) indetetável significa que se atingiu uma quantidade do vírus no sangue menor do que 50 cópias em decorrência do uso dos antirretrovirais.

6Dizemos convencimento porque há um forte estímulo à adesão à terapia antirretroviral nos discursos veiculados no blogue e reiterado nos termos de uso da página.

7Na perspectiva desenvolvida por Valle (2008) a partir de uma etnografia numa ONG Aids no Rio de Janeiro, o “mundo social da aids” inclui espaços institucionais, como ONGs, hospitais, centros de testagem, postos de saúde, eventos e outros espaços de interação social.

8CD4 são células do sistema imunológico (linfócitos) e o principal alvo do vírus HIV.

9O “3 em 1” é um comprimido composto pelos antirretrovirais tenofovir, lamivudina e efavirenz.

10Destacamos o estudo Partner o qual evidenciou que a carga viral indetectável pode ser um limiar sob o qual a transmissão sexual do HIV não ocorre (Rodger et al. 2016).

11O que JS considerava como “estudos sérios” tinha influência da medicina baseada em evidência, que estabelece como meio válido de produção de verdades biomédicas os resultados adquiridos através de estudos observacionais e experimentais, de entre essas duas amplas categorias se destacam os estudos de caso, transversais, caso-controle, coorte, ensaios clínicos randomizados e ensaios comunitários.

Recebido: 01 de Abril de 2020; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

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