Um dos objetivos essenciais de uma instituição de saúde é a prestação de cuidados seguros e de qualidade, embora, mesmo durante fortes crises como, por exemplo, desastres naturais ou pandemias, os fluxos assistenciais possam ser fragilizados (Denning et al., 2020). O final de dezembro de 2019 e o ano de 2020 ficaram marcados na história mundial pela pandemia COVID-19, alterando o modo de viver dos indivíduos pelo confinamento domiciliar, na tentativa de minimizar a transmissibilidade e conter a propagação do coronavírus SARS-CoV-2, os seus efeitos e impactos. Por outro lado, temos os profissionais considerados essenciais, especialmente, os da saúde que estão na linha de frente no cumprimento da sua responsabilidade social e profissional no combate à pandemia pela COVID-19 e na prestação de cuidados seguros e de qualidade.
Estes profissionais, mesmo com medos, incertezas, receios e riscos inerentes à contaminação cruzada durante a atividade laboral não recuaram nos seus compromissos e deveres no que respeita ao combate ao coronavírus SARS-CoV-2, cuidando e fazendo o melhor que sabem, independentemente dos riscos, desafios e faltas de recursos materiais e equipamentos de proteção individual (Ribeiro et al., 2020).
Adicionalmente, têm-se os efeitos e impactos sobre os doentes e profissionais de saúde. A pandemia pela COVID-19 também impôs um enorme desafio às organizações de saúde, como a divisão drástica no modo como os cuidados de saúde são prestados; o elevado custo de equipamentos, recursos materiais e de proteção; a ausência de protocolos e criação emergencial de fluxos assistenciais para casos suspeitos e confirmados de coronavírus SARS- CoV-2; o aumento exponencial e inesgotável de carga de trabalho; a realocação e novas contratações de profissionais; o cancelamento de serviços de rotina clínicos e cirúrgicos, além da interrupção de tratamentos e acompanhamento de saúde dentre outros. É verdade que estas condições desafiadoras nas organizações de saúde podem interferir na prestação de cuidados e na manutenção da qualidade, e como tal, na cultura organizacional de segurança. Uma maneira de obter dados sobre o impacto do novo normal sobre a cultura de segurança no ambiente de saúde é por meio de investigações que possam gerar relatórios institucionais focados.
Recentemente, uma investigação inédita realizada durante a pandemia pela COVID-19 no Reino Unido reforçou que a cultura de segurança positiva está associada à melhoria da segurança do doente e, por sua vez, aos resultados do doente. Este estudo, ao comparar os dados de 2017 e 2020, revelou que capacitação e suporte da gestão para readaptação foram associados a pontuações mais elevadas da cultura de segurança, ao contrário, do que foi encontrado para reportar notificações de incidentes, domínio importantíssimo para a cultura organizacional, pois mostra a vulnerabilidade da organização, promove a aprendizagem organizacional e levanta a preocupação do dia-a-dia dos profissionais de saúde.
Ainda houve diferença na avaliação da cultura de segurança de 2017 para 2020 entre os grupos de profissionais, sobretudo, mais positiva em 2020 para o grupo dos médicos do que para dos enfermeiros (Denning et al., 2020). Estes resultados encontrados no estudo podem expressar para a enfermagem, profissão que presta cuidado 24 horas ininterruptas e corresponde ao maior número no que respeita à saúde, uma compreensão maior do risco de segurança e da mudança de paradigma sobre a natureza do trabalho. A enfermagem precisa de pressionar fortemente para a criação de condições de trabalho digno, em que se possam prestar cuidados seguros.
O ano da pandemia pela COVID-19 marcou os profissionais de enfermagem, pela comemoração dos 200 anos de Florence Nightingale, onde estavam programadas inúmeras atividades e a campanha global Nursing Now pela valorização e empoderamento da Enfermagem pelo mundo, na qual foi repentinamente interrompida pela pandemia pela COVID-19. O movimento foi apoiado pelo Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN) e Organização Mundial da Saúde (OMS; Ribeiro et al., 2020).
Pouco se sabe até o momento, o verdadeiro impacto da pandemia pela COVID-19 sobre a cultura de segurança. A cultura de segurança de uma organização é entendida como o produto de valores individuais e de grupo, atitudes, capacidades de perceção, e modelos de comportamento que estabelecem o compromisso com a gestão da saúde e segurança de uma organização e o seu estilo e proficiência (Advisory Committee on the Safety of Nuclear Installations, 1993).
Com o crescimento de estudos sobre cultura de segurança, tem-se incorporado na definição alguns atributos através da implementação de sistemas de gestão de segurança robustos, no qual todos os profissionais aceitam a responsabilidade da sua própria segurança, dos seus pares, doentes, e familiares; priorizar da segurança relativamente aos objetivos financeiros e operacionais; estimular e recompensar a identificação, a comunicação e a resolução de questões de segurança; incentivar capacitação e a aprendizagem organizacional; fornecer recursos, estrutura e sistemas de segurança mais eficazes (Direção-Geral da Saúde, 2011).
A segurança na prestação de cuidados é um dos atributos da qualidade em saúde, na qual se minimizam os riscos e danos aos utentes/usuários dos serviços de saúde. O grande desafio da segurança do doente é que ela seja vista através da perspetiva sistémica que abrange os fatores organizacionais para além dos fatores humanos e tecnológicos, o que demanda pensar que a verdadeira mudança se direciona para a cultura organizacional de segurança nos serviços em saúde. Certamente, talvez seja esta a área na qual mais importa investir para promover genuinamente a segurança do doente (Direção-Geral da Saúde, 2011).
Entretanto, as organizações de saúde são consideradas como minissociedades, pelo facto de terem os seus próprios padrões e modelos de crenças compartilhadas, divididas e suportadas por várias normas operacionais e rituais que podem desempenhar uma influência crucial na eficiência da organização para atingir os objetivos propostos (Schein, 2009).
Diante de uma pandemia global observa-se a necessidade de atingir inúmeros avanços e de investir na saúde e nos profissionais de saúde. Diante deste contexto, foram observados diversos desafios e riscos para os profissionais, os quais deverão ser enfrentados como desgastes físicos, psíquicos e emocionais, infeções associadas aos cuidados de saúde, violência, estigma, doenças e até mesmo a morte. Sabe-se que trabalhar em ambiente stressante pode tornar os profissionais de saúde mais sujeitos a falhas e erros que podem causar danos ao doente. Nesta perspetiva, a OMS reconheceu a magnitude do problema e estabeleceu, para o ano de 2020, no Dia Mundial da Segurança do Doente - 17 de setembro, a temática “Trabalhadores de saúde seguros, doentes seguros” (World Health Organization, 2020).
Diante disto, é verdade que não há segurança do doente sem segurança dos profissionais de saúde e que todos precisam de admitir que o compromisso deve ser transformado numa cultura organizacional de segurança participativa ou construtiva, com envolvimento de todos os profissionais, independente do nível hierárquico. O cerne da organização de saúde está na promoção da cultura de segurança e aprendizagem organizacional, pois durante uma crise, como é o caso da pandemia pela COVID-19, fomentar uma cultura de aprendizagem, não enaltecendo falhas individuais, ser orientado para solucionar questões latentes e incidentes que surjam, além de aprender com situações exitosas, possa ser mais relevante. A liderança precisa de ser motivadora a seguir o modelo de resiliência e promoção da adaptabilidade e flexibilidade aos profissionais que estão na linha de frente na prestação dos cuidados em saúde.
Sabemos que a crise gerada pela pandemia pela COVID-19 será profunda e longa, portanto, torna-se necessário enfrentar a situação com máxima transparência, resiliência e aprendizagem, e com visão para o futuro, pois certamente será uma experiência para toda humanidade. Os principais problemas organizacionais que enfrentamos com a pandemia pela COVID-19 relacionam-se com os fatores humanos e cultura de segurança (Albolino et al., 2020). A segurança do doente e dos profissionais de saúde deve ser posta como prioridade nas organizações de saúde, especialmente em tempos de crise, a qual se deve tornar numa grande oportunidade para avaliar e discutir quais são os pontos fortes e frágeis da cultura organizacional. É relevante pensar em estratégias de melhoria frente a uma crise inesperada, na qual não estávamos organizados para enfrentar. A crise mostrou-nos o quanto ainda precisamos de aprender e preparar para momentos como este que estamos a passar durante a pandemia, principalmente no que diz respeito à área da gestão de risco e ao contingenciamento.
Diante do exposto, torna-se urgente priorizar a mudança para um sistema mais seguro, no treinamento constante dos profissionais, na aplicação de boas práticas baseadas na evidência, na incorporação de tecnologias em saúde e na melhoria das condições de trabalho. Estas medidas devem ser fundamentais para o alcance de melhores resultados para os pacientes, profissionais e organizações de saúde. Por fim, vale então deixar uma reflexão dirigida a todas as organizações e profissionais de saúde: qual é a nossa contribuição para a evolução da maturidade da cultura de segurança nos sistemas de saúde? Qual será o modelo de maturidade de cultura de segurança da organização em que atuo? Patológica, reativa, calculista, proativa ou participativa? O que tenho contribuído na organização de saúde para alcançar uma cultura justa, transparente, aberta e que promova a aprendizagem organizacional sem medo de punição ou de represália? Como profissional de saúde tenho atuado durante as minhas atividades laborais com comportamento de segurança?