Introdução
O Bullying é um fenómeno de projeção mundial que ocorre, sobretudo, no ambiente escolar. Trata-se de um tipo de violência intencional que acontece de forma constante entre estudantes e numa relação de desequilíbrio de poder (Oliveira et al., 2020). Os protagonistas deste tipo de situações incluem vítimas, agressores, vítimas-agressores e observadores. Como estudantes, todos podem sofrer as suas consequências deletérias: vítimas podem apresentar problemas comportamentais ou psicossomáticos; agressores podem envolver-se em comportamentos antissociais; observadores podem apresentar problemas de adaptação social ou sentimento de insegurança na escola (Thompson-Ochoa & Hodgdon, 2019). Como um tipo de violência, o bullying envolve não apenas vítimas (estudantes agredidos) e agressores (praticantes da agressão), pois a maioria dos alunos presencia situações de agressão de tal tipo. Esse testemunho ocorre em 80%-85% dos casos (Obermann, 2013).
Com efeito, o inquérito epidemiológico intitulado Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) incluiu o bullying entre os seus módulos de investigação nas edições de 2009, 2012 e 2015. Numa série histórica, a pesquisa revelou o aumento e manutenção das taxas de prevalência do fenómeno no contexto nacional. A edição de 2015 evidenciou que de 102.301 estudantes de 3.040 escolas (dentre públicas e privadas), 7,4% disseram ter sofrido bullying, e 19,8% disseram tê-lo infligido em colegas (Mello et al., 2017). São Paulo foi o estado com percentual mais elevado de ocorrências. Contudo, observe-se que a PeNSE não incluiu o papel de discentes que observam situações de intimidação sistemática nas escolas. Isso também ocorre na produção do conhecimento, pois as pesquisas ainda focalizam com maior significância as vítimas e, em alguma medida, os agressores ou o papel do professor (Romualdo et al., 2019).
Neste sentido, é consenso na literatura científica que defender a vítima diminui os índices de intimidação sistemática nas escolas, enquanto o efeito de reforçar o comportamento dos agressores os aumenta. Este aspeto sugere que os observadores são centrais na compreensão do fenómeno e no desenvolvimento de ações contrárias (Romualdo et al., 2019). Outrossim, evidencias demonstram que os comportamentos dos observadores influenciam a dinâmica do fenómeno no contexto escolar. A redução da ocorrência de bullying e das suas consequências estão associados aos comportamentos de defesa e de ajuda às vítimas por parte dos observadores (Romualdo et al., 2019). Assim, salienta-se a necessidade de se conhecer a vivência destes estudantes, sendo que se entende a vivência como a reunião de afetos e sentidos que modelam a compreensão sobre determinado fenómeno e os comportamentos-resposta ao mesmo. Neste sentido, este estudo tem como objetivo conhecer a vivência dos estudantes identificados como observadores (testemunhas) de situações de bullying de uma escola particular.
Enquadramento
Quando se analisa a experiência dos estudantes que observam as situações de bullying na escola, dois constructos postulados pela teoria social cognitiva são relevantes para compreender a intervenção ou não intervenção diante das agressões presenciadas: a autoeficácia e a autorregulação. A autoeficácia é definida como a capacidade de a pessoa agir diante de determinada situação, pois ela acredita que é capaz de resolver o problema ou minimizá-lo. Ela apresenta quatro níveis de compreensão: o nível das experiências de domínio ou controle de si; o nível das experiências vicárias ou de observação do comportamento dos outros; o nível da persuasão verbal (capacidade de influenciar os outros) e o nível dos estados somáticos/afetivos relacionados com a inferência das pessoas sobre as suas capacidades, a sua força e a sua vulnerabilidade numa circunstância de fracasso (Iaochite, 2017). Já a autorregulação presume comportamentos sociais positivos, sendo constituída por três subprocessos: automonitorização - ou seja, a auto-observação de padrões comportamentais; julgamento - isto é, a avaliação do comportamento de alguém em relação a objetivos ou normas sociais; e autorreação - baseada nos incentivos tangíveis ou intangíveis, estabelecidos como recompensa para se alcançarem certos objetivos (Azzi & Polydoro, 2017).
As consequências para a saúde e o desenvolvimento dos estudantes relatados em muitos estudos, bem como os altos índices de bullying nas escolas, tornaram-se num problema de saúde pública global. Neste sentido, problemas psicossomáticos ou de saúde mental estão relacionados com o envolvimento dos estudantes em situações de bullying (Thompson-Ochoa & Hodgdon, 2019). O campo da enfermagem, por meio de equipas multidisciplinares ou da atenção primária à saúde, pode auxiliar em programas de prevenção ao bullying (Evgin & Bayat, 2020). Já foram sintetizados modelos teórico-conceiptuais sobre como enfermeiros/as podem auxiliar os estudantes. Este modelo pressupõe um trabalho de diagnóstico dos diferentes estudantes envolvidos nas situações de bullying, seguido por ações de formação de habilidades sociais ou resolução de problemas (Evgin & Bayat, 2020). No que diz respeito aos comportamentos de promoção da saúde, conceptualmente definidos como um padrão multidimensional de comportamentos e perceções autoiniciadas que servem para manter ou melhorar o nível de bem-estar e autorrealização, intervenções com os estudantes observadores podem representar uma diminuição da ocorrência de bullying nas escolas e melhorar o clima escolar percebido.
Questões de investigação
O que estudantes observadores pensam das situações de bullying que testemunharam? Que comportamentos e sentimentos são referidos por estudantes observadores ante uma situação testemunhada? Como se comportam alunos e alunas, distintamente, em situações de bullying que testemunham?
Metodologia
Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, descritivo e exploratório. A pesquisa foi realizada numa escola privada de um município de médio porte que compõe uma região administrativa do nordeste do estado de São Paulo, Brasil. A escola foi selecionada por conveniência, estratégia adequada e utilizada como base para gerar hipóteses e insights em pesquisas qualitativas. O contexto das intuições privadas constituiu-se num cenário de difícil acesso para pesquisas, sendo o bullying um tema ainda pouco investigado, o que confere importância para a sua compreensão.
O grupo de participantes incluiu alunos matriculados no 9º Ano do Ensino Fundamental (Elementary School) e nas 1ª, 2ª e 3ª Série do Ensino Médio (High School). Estes períodos escolares foram selecionados para contemplar o momento de transição escolar entre ensino fundamental e ensino médio, pois a reformulação das séries escolares é recente no contexto brasileiro e anteriormente os anos do 9º Ano do Ensino Fundamental estariam, via de regra, na 1ª Série do Ensino Médio.
Na etapa de diagnóstico das situações de bullying na escola, 78 estudantes eram elegíveis para participar no estudo e 62 responderam ao questionário de diagnóstico (seis faltaram no dia de colheita de dados e 10 não aderiram ao estudo).Dos respondentes, 64% (n = 40) foram qualificados como observadores de situações de bullying na escola. Deste grupo, para operacionalizar a pesquisa qualitativa, os estudantes foram convidados para entrevistas individuais semiestruturadas e, posteriormente, realizaram-se as sessões de grupo focal. Vinte estudantes foram incluídos na etapa qualitativa, sendo que a definição do número final de estudantes participantes seguiu o critério da saturação na etapa das entrevistas. Deste grupo, 11 eram meninos (55%) e nove meninas (45%) com idade média de 15,4 anos. Estes estudantes também eram do no 9º Ano do Ensino Fundamental (Elementary School) e nas 1ª, 2ª e 3ª Série do Ensino Médio (High School).
Os dados da pesquisa derivam de informações colhidas entre abril e maio de 2019. A colheita seguiu uma abordagem multimétodo, ou seja, recorreu a estratégias diferentes num mesmo estudo qualitativo metodologicamente estruturado (Carter et al., 2014). A primeira estratégia de colheita usada foi a aplicação coletiva do questionário para identificar estudantes que observaram situações de bullying - este instrumento foi útil para estimar dados de prevalência. O tempo médio da aplicação dos questionários foi de 25 minutos.
Com base nas informações colhidas através dos questionários, foram entrevistados e participaram nos grupos focais alunos de ambos os sexos, identificados como testemunhas de situações de bullying, o que cumpriu com os objetivos de pesquisa. As entrevistas foram conduzidas individualmente e seguiram um roteiro que continha perguntas como: “Você já presenciou alguns dos seus colegas ser ameaçado, maltratado, humilhado, excluído ou agredido na escola?”; “Por favor, relate-me tudo que você se lembra dessa situação”. As entrevistas foram realizadas num espaço físico previamente preparado e foram gravadas para posterior transcrição. Os estudantes foram informados sobre os interesses/motivos/objetivos do pesquisador e sobre a sua condição de estudante de um curso de doutoramento em saúde pública.
Em seguida foram organizadas as sessões de grupo focal, as quais foram realizadas numa sala de aula onde as carteiras tradicionais deram lugar a almofadas coloridas e individuais, dispostas em círculo. A intenção foi proporcionar conforto, interação e envolvimento dos participantes com o pesquisador, e vice-versa. A adequação do ambiente físico foi elemento preponderante para obter resultados pretendidos. Foram desenvolvidas quatro sessões, sendo duas com meninas e duas com meninos. A separação por género objetivou contemplar nuances e diferenças entre meninos e meninas relacionadas com as vivências como observadores de bullying na escola. O tempo médio de duração das sessões foi de 77 minutos. A condução das mesmas contou com auxílio de um observador, além do investigador, que registou notas de campo sobre o desenvolvimento das discussões durante o grupo de focal. Este observador possuía título de doutor, conhecimento sobre a técnica aplicada e sobre o fenómeno investigado. As sessões foram registadas em áudio (com gravador digital) para posterior transcrição completa. As discussões foram mediadas por questões, como por exemplo, “por que colegas da escola praticam esse tipo de violência?”, imagens, histórias sobre vivências de bullying e vinhetas com notícias sobre a ocorrência do fenómeno nas escolas.
O desenvolvimento da pesquisa e das análises embasou-se na teoria social cognitiva de Albert Bandura (Bandura & Azzi, 2017). Além disso, a leitura analítica dos dados seguiu a análise temática proposta por Clarke et al. (2019) tendo sido aplicados os seguintes passos: familiarização com os dados; conceção de códigos iniciais; procura por temas; revisão de temas; definição e nomeação de temas; e divulgação dos resultados. A partir da análise dos dados foi construída a categoria temática intitulada: Tomada de atitude, reforço e sentimentos - “O que motivava o agressor era a plateia”.
Com a finalidade de aprimorar o presente manuscrito na sua descrição e métodos analíticos, visando a sua confiabilidade, utilizaram-se os critérios e diretrizes da checklist Consolidated Criteria For Reporting Qualitative Research (COREQ). O desenvolvimento deste estudo também seguiu as recomendações da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da EERP-USP (Parecer nº 124/2018). Também foi firmada autorização para desenvolver o estudo na escola selecionada. Termos de consentimento e assentimento também foram colhidos junto dos participantes e dos seus encarregados (quando menores de 18 anos).
Resultados
A taxa de prevalência de estudantes observadores de bullying, revelada na primeira etapa do estudo, teve um número expressivo, pois 64% observaram muitas situações de bullying. Verificou-se que o tipo de violência mais testemunhado (57 referências) foi escárnio ou humilhação. O uso de nomes ofensivos teve 54 referências. A calúnia/difamação ou a exclusão do grupo foram recorrentes (45 ocorrências). Houve casos de estrago propositado de objetos pessoais da vítima (44 referências), bem como de causar mágoa propositadamente (42 ocorrências). Apalpar um aluno sem a sua vontade foi o comportamento menos observado (somente 6 ocorrências). Ser agredido fisicamente e ser roubado foram outros comportamentos poucos verificados (18 e 17 ocorrências apenas). Entre as ações mais referidas, os discentes que informaram ter feito alguma coisa mencionaram ter ajudado a vítima a intimidar o agressor ou a bater neste. Três estudantes disseram que conversaram com a vítima e a aconselharam a falar com alguém. Em situações em que a violência sofrida era exclusão grupal, o aluno tentou incluir a vítima no seu grupo.
A partir da análise dos dados colhidos nas entrevistas e sessões de grupo focal foi construída a categoria temática intitulada: Tomada de atitude, reforço e sentimentos - “O que motivava o agressor era a plateia”.
Assim sendo, as atitudes, os comportamentos e os sentimentos expressos pelos participantes deste estudo revelam o papel da plateia (grupo de observadores) na manutenção e interrupção das situações de bullying nas escolas. De início, as alunas entendem coletivamente que, quando testemunham tal situação, têm de interferir ou interromper a agressão. Já os meninos analisaram que uma pessoa que pratica bullying consegue destaque no grupo porque tem apoio, porque conquista uma plateia. Os excertos a seguir apontam esses entendimentos.
“Tem que segurar na mão da pessoa e falar: Ó, estou com você. Tá comigo, não interessa, dá um chega pra lá com a pessoa que está fazendo” (Bruna, grupo focal).
“O que estava motivando, também, o agressor a fazer é essa plateia. Se não tivesse a plateia, tipo, ninguém apoiando ele, ele talvez não estaria fazendo isso” (Gabriel, grupo focal).
Por outro lado, embora os estudantes avaliem as situações de bullying como negativas ou prejudiciais às vítimas, nem sempre esse entendimento favorece o surgimento de ações de defesa ou ajuda, mas ao contrário ocorre reforço aos comportamentos dos agressores.
Os meninos viam e começam a falar. Você começa a rir, mas no momento você nem dá bola, mas aí, depois que você está em casa, que você para, que você põe a mão na consciência, que aí você vai pensar (Theo, entrevista).
Os participantes do estudo também revelaram ações adotadas ante o testemunho de situações de bullying. Com efeito, o testemunho era um foco do estudo - o de identificar o que faziam os estudantes observadores. Por isso, o tema foi explorado nas entrevistas e sessões de grupo focal. A atitude tomada com mais expressividade em relação à vítima foi a de conversar, sobretudo com a manifestação de pedidos para desconsiderar as agressões. Também foram incluídos outros colegas para inibir a exclusão de discentes vitimizados. Nos grupos focais, especificamente, a tomada de atitude foi ampliada. Alunas e alunos ponderaram que a intervenção deveria ser realizada junto aos agressores. Outra atitude adotada pelos participantes foi procurar a ajuda de algum adulto, como se pode depreender pelo excerto abaixo.
Ou, às vezes, no caso que você tinha falado, tipo assim, se ela tem a mesma idade que a menina, se elas forem tentar ajudar, ele vai gritar com elas também. Então acho mais coerente elas chamarem um adulto ou alguém que esteja superior a ele, né? Para corrigir. (Bianca, grupo focal, maio 2019)
Contudo, vale destacar que, segundo os estudantes participantes, as atitudes de ajuda (conversar com as vítimas, agir junto aos agressores ou chamar um adulto) só ocorrem se houver relacionamento harmonioso com as vítimas. Se as interações forem guiadas pela amistosidade, então o relacionamento prévio ou as relações de amizade podem encorajar os observadores a agir. Essa possibilidade explicita-se na fala de uma aluna:
“Porque, tipo, eu não vou sair dando conselho para uma pessoa que eu não tenho muita intimidade” (Amora, grupo focal).
Por outro lado, as referências limitadas à tomada de atitudes foram acompanhadas por empatia, respeito, solidariedade e tolerância: aspetos passíveis de suscitar uma ação positiva em ocorrências de bullying.
Às vezes, eu fico me colocando no lugar da pessoa. Eu fico pensando se aquilo lá fosse comigo o que eu deveria fazer pra, tipo, tem pessoa que não consegue se ofender, aí é meio difícil, aí a pessoa só fica escutando, escutando, escutando, levando, e aí não tem como. (Guilherme, entrevista)
Contudo, os comportamentos de ajuda são evitados, principalmente, pelo medo do estigma de ser visto como “noveleiro” ou mesmo de se tornarem vítimas de bullying e pela falta do senso de autoeficácia. Esses aspectos são os que mais se apresentam como barreira à ajuda ou defesa de vítimas.
Acho que, se for parar para pensar no lado disso, se eu fizer isso, pode sobrar para mim, pode ser que aconteça, tipo, a pessoa começa a me zoar. Só que isso é muito errado, se você ver que está acontecendo, se você consegue enxergar que, às vezes, não dá para ver, você deveria intervir, deveria falar, deveria mostrar que está completamente errado aquilo, que a pessoa está ficando chateada. Só que é difícil, porque às vezes é mais gente a favor da brincadeirinha do que só você. (Carol, grupo focal)
Eu me sinto impotente por não poder ajudar ou não poder fazer alguma coisa, porque muitas vezes não adianta conversar com a pessoa, falar que ela está errada, falar que é bullying ou qualquer coisa do tipo. E, como eu não sei como agir, eu quero ajudar e não sei como e fico me sentindo impotente. (Bianca, entrevista)
No que se refere à falta de autoeficácia, os estudantes participantes ainda manifestaram sentimentos de apatia, de falta de ação e até de perceção da agressão perante as situações. A apatia - a falta de motivação para ajudar, para avaliar as agressões testemunhadas como negativas e mesmo não saber o que sentir - pode ser percebida no excerto de relato a seguir.
Eu acho que não tem muito o que fazer, não. Sei lá, velho, vai da cabeça da pessoa [agressor], que ele tem que perceber isso, que o que ele está fazendo não é certo. . . . Não contei para ninguém [que essas coisas acontecem]. Eu prefiro ficar quieto. (Guilherme, entrevista)
A Figura 1 sintetiza os dados sobre os níveis individual, escolar e contextual da vivência dos estudantes diante das situações de bullying e que facilitam ou dificultam a tomada de atitude. A síntese considerou os dados empíricos colhidos nas entrevistas e nas sessões de grupo focal, bem como aspetos da teoria social cognitiva úteis à compreensão dos dados empíricos.
Discussão
Este estudo objetivou conhecer a vivência de estudantes de uma escola particular, identificados como observadores (testemunhas) de situações de bullying. Revelou-se que os estudantes possuem bom conhecimento sobre o bullying, avaliam o comportamento agressivo como negativo ou prejudicial, mas esse entendimento não se converte em ações de ajuda ou defesa das vítimas. Foi significativo o número de estudantes que referiram já ter testemunhado bullying na escola privada. A vivência dos estudantes diante do bullying testemunhado é assinalada por questões individuais, como sentimentos de medo, empatia ou apatia, assim como por falta de crenças de autoregulação e autoeficácia. Também foram assinaladas questões escolares como a negligência ou minimização institucional diante das agressões, aspeto que é reforçado pelo nível contextual, pois comunidades tolerantes à violência foram percebidas pelos participantes como as mais propícias para a ocorrência do bullying.
O papel dos observadores e da plateia, assinalado pelos participantes, permite reconhecer a prática de bullying no contexto da escola que foi lócus de estudo. Sobre o alto número de estudantes que observaram as situações de bullying, tal constatação condiz com resultados de outros estudos, cujos dados indicam que quase 85% dos alunos observam (Obermann, 2013). Eis, então, a importância deste grupo para compreender o problema e para projetos de intervenção. Isto é agravado quando se percebe que, muitas vezes, a maioria dos estudantes se posiciona contra agressões por bullying, alguns indicam o desejo de ajudar ou alguma intenção de apoiar as vítimas, mas nem sempre esse comportamento é traduzido em ajuda real (Zequinão et al., 2016).
Nos dados, notou-se ainda que a chamada plateia pode tanto reforçar o comportamento dos agressores - ou seja, revelar uma certa curiosidade ou expressar comportamentos de reforço, como risadas ou aplausos - quanto ser um elemento usado para enfrentar o problema. São dois potenciais colocados nos grupos de observadores e que são assinalados pela literatura específica como possíveis de ocorrer quando se analisa o fenómeno pela lógica dos observadores (Obermann, 2013). A ajuda e a defesa, especificamente, são acompanhadas de sentimentos de medo; além disso, sobressaem-se a indiferença ou o sentimento de falta de capacidade para agir.
Neste sentido, em primeiro lugar, os participantes do estudo revelaram ações adotadas ante o testemunho de situações de bullying. Ficou destacada a procura de ajuda dos adultos, o que revela o sentimento de ineficácia da ação direta dos observadores, sobretudo quando os agressores são fisicamente maiores ou discentes de séries mais avançadas. Mas chamar um adulto para intervir ou estar ciente do facto é a atitude positiva, porque implica a presença de autoridade escolar na resolução de conflitos e problemas entre escolares. Ao mesmo tempo, convém que os estudantes percebam o apoio de professores e outros adultos, pois é essa a perceção que se associa à repetitividade de comportamentos de ajuda a vítimas ou de comportamentos indiferentes a bullying que reduzem significativamente a probabilidade de ajudar/defender (Choi & Cho, 2013).
Por outro lado, foi documentado neste estudo pouco movimento de ajuda entre os participantes e a menção recorrente à ideia de necessidade de uma proximidade com vítimas para empreender ações nessa direção. As testemunhas de situações de bullying ignoram com mais facilidade tais situações quando não há vínculo emocional com a vítima (Romualdo et al., 2019). Outro estudo já verificou que os observadores são mais propensos a defender/ajudar quando têm relações próximas com a vítima (Pöyhönen et al., 2012). Inversamente, são menos propensos a intervir quando são amigos ou têm relações de afeto com agressores (Pöyhönen et al., 2012). Nestes casos, também é comum não se manifestarem discursos de empatia e ocorrer um aumento da crença na falta de poder para intervir nas agressões presenciadas. Com isso, têm-se condições favoráveis à observação passiva; ou seja, favoráveis à ocorrência e frequência de intimidação sistemática de modo a ser normatizada no contexto escolar (Romualdo et al., 2019).
Com efeito, a necessidade de ser empático permeia a fala de alguns estudantes participantes. A empatia é um construto cognitivo e afetivo que, segundo outros estudos, quando presente nos observadores, é capaz de levar a um comportamento mais favorável à ajuda ou defesa das vítimas e menos favorável ao apoio aos agressores ou à apatia ante situações presenciadas (Choi & Cho, 2013). Além disso, sabe-se que discentes com níveis elevados de empatia são mais propensos a apresentar comportamentos positivos em relação às vítimas quando comparados aos poucos empáticos (Zequinão et al., 2016). Neste sentido, programas de intervenção com foco no desenvolvimento da empatia têm sido desenvolvidos em países da Europa, onde já se percebe o aumento das responsabilidades dos alunos e diminuição de comportamentos agressivos nas escolas (Obermann, 2013; Salmivalli, 2014).
Este movimento pode ser explicado pela teoria social cognitiva que explora os determinantes principais para as pautas de comportamento das pessoas. No caso de bullying, para que os estudantes observadores atuem em prol das vítimas, precisam acreditar que as suas ações produzirão efeito positivo nelas. Esta é uma premissa inicial a ser considerada para ajuda ou defesa, ou seja, a de aliviar ou produzir efeito positivo na experiência das vítimas na escola (Pöyhönen et al., 2012). Assim, não está em jogo apenas interromper as agressões, mas ainda aumentar o bem-estar e a satisfação das vítimas na escola. Esta perspetiva introduz a necessidade de serem trabalhados em intervenções antibullying aspetos de valores humanos e a tolerância à diversidade, pois tais conteúdos podem abordar essa dimensão referente à melhora das experiências dos vitimizados.
A omissão e a passividade versus a atividade perante situações de bullying colocam os alunos na condição de ter comportamentos negativos em tais situações. Este comportamento negativo do observador é entendido como favorável, em alguma medida, às ações dos agressores (Evans et al., 2019). Além disso, segundo a literatura específica, engajar-se em comportamentos de ajuda ou defesa de vítimas pode provocar efeitos positivos nos estudantes observadores (Romualdo et al., 2019). Ao adotarem estes comportamentos, tendem a aumentar o otimismo quanto ao futuro e à autoestima, podem até melhorar o desempenho académico (Evans et al., 2019). Estes impactos positivos são conhecidos como sintomas de internalização que os fazem intervir em situações de bullying, seja chamando um adulto para intervir ou até intervindo diretamente junto das vítimas ou agressores (Evans et al., 2019).
Entretanto, muitas vezes, quem vê a situação de bullying na escola não faz nada por conta de medos, sentimento manifesto que indica problemas de autorregulação entre os participantes da pesquisa. Especificamente, as pessoas são motivadas a obter resultados favoráveis e evitar desfechos desfavoráveis mediante os seus comportamentos. Assim, analisar o resultado esperado pode aumentar a hipótese de um determinado comportamento se manter ou ser abandonado (Azzi & Polydoro, 2017). É a expectativa de resultado que fornece reforço, impulsiona ou inibe comportamentos; no caso dos observadores, é a avaliação da repercussão dos seus comportamentos que determina se ocorrerá alguma intervenção na situação presenciada.
Este problema de autorregulação culmina na falta de autoeficácia, o que, entre os estudantes participantes, pode ser expresso pela falta de segurança para ajudar: podem não saber o que fazer ou não se sentirem capazes de ajudar ou defender as vítimas, não verem solução para o problema nem resultado prático na ajuda que podem oferecer. Segundo Bandura e Azzi (2017), o senso de autoeficácia aumenta com as experiências positivas da pessoa; exemplos de aumento ocorrem quando se ajuda alguém e há resultado positivo, as experiências negativas diminuem, ou então quando os discentes vislumbram que podem agravar o caso das vítimas ou se tornarem também vitimizados. Dentre as características da autoeficácia, estão: a crença de poder resolver problemas se houver esforço suficiente; a sensação de que é fácil manter ou realizar os objetivos pessoais; a confiança de que os eventos inesperados ou imprevistos serão superados; e a confiança nas próprias habilidades para enfrentar situações limite (Azzi & Polydoro, 2017; Iaochite, 2017).
Com efeito, a autoeficácia tem sido discutida na perspetiva de orientação para aprendizagem. Tal orientação tem nexos com as cognições que motivam o desenvolvimento da autoconfiança não como resultado final de uma experiência, e sim como aspeto que compõe habilidades e conhecimentos necessários a certas situações (Bandura & Azzi, 2017). Nesta perspetiva, pessoas que atuam de tal forma procuram ativamente desafios e oportunidades de aprender e estão abertas à aquisição de novas habilidades e novos conhecimentos aplicáveis em situações similares no futuro. No caso dos estudantes participantes deste estudo, observa-se que não percebem a resolução bem-sucedida em situações anteriores de bullying (falta domínio da experiência); não identificam outros colegas exitosos na defesa ou ajuda às vítimas (experiência vicária deficiente); não há incentivo social para ser pró-vítima (falta persuasão social); e os sentimentos são mais negativos que positivos, marcados pelo medo (Azzi & Polydoro, 2017; Iaochite, 2017; Bandura & Azzi, 2017).
Assim sendo, quando há desenvolvimento do senso de autoeficácia, maior capacidade de autorregulação e um aumento das responsabilidades dos escolares observadores de situações de bullying, pode-se inferir que comportamentos de promoção da saúde são estimulados. Autoeficácia, capacidade de autorregulação e auto responsabilidade são considerados determinantes individuais para hábitos de promoção da saúde. É significativo que o presente estudo também tenha incluído nas suas discussões essas variáveis para compreender a vivência dos estudantes que testemunham situações de bullying na escola, um grave problema de saúde pública. Intervenções devem ser consideradas no campo da saúde para manter ou aprimorar comportamentos de promoção da saúde destes estudantes, pois esses comportamentos são capazes de melhorar a qualidade de vida, a experiência na escola e diminuir a ocorrência do fenómeno nas escolas.
Os resultados deste estudo apresentaram limitações. O número de participantes limitou o volume e a diversidade das informações e amostras; dados mais horizontais (alunos de mais de uma escola, de escolas públicas, por exemplo) poderiam gerar outras categorias/temas importantes para a discussão. A abordagem qualitativa limita a generalização dos resultados da pesquisa. Como estes derivam de uma escola privada, não se pode dizer que sejam válidos para mais de uma escola privada ou para escolas públicas. O uso de entrevistas semiestruturadas na colheita de dados também pode representar um viés de memória, pois as situações de bullying relatadas foram resgatadas do passado.
Conclusão
Os resultados deste estudo contribuem para uma compreensão da vivência de estudantes que observam bullying na escola. Poucos estudos no Brasil incluíram este grupo de estudantes nas análises sobre o fenómeno. Também foi possível abarcar a experiência em escolas privadas, aspeto inovador, pois a maioria dos estudos emergem da realidade de escolas públicas. A conjugação de entrevistas e grupos focais na colheita de dados é outro aspeto relevante a ser mencionado. A vivência dos observadores de situações de bullying é marcada por aspetos individuais, escolares e contextuais. Os participantes manifestaram intenção de ajudar as vítimas, mas falta suporte dos professores e institucional para que a compreensão de que o bullying é algo negativo se transforme em ações pró-vítimas. Estes dados apontam para implicações no plano do planeamento de intervenções que pode incluir equipas de saúde e enfermeiros da atenção primária.
Assim, deve-se considerar a alteração da abordagem individual, focada nas vítimas ou agressores no combate ao bullying, passando a incluir também os observadores. As equipas de saúde e de enfermagem podem contribuir para o diagnóstico dos diferentes estudantes envolvidos nas situações de bullying e na implantação de ações para o desenvolvimento de habilidades sociais ou resolução de problemas. Profissionais da saúde ainda podem ajudar os adolescentes a desenvolverem relações mais saudáveis e a cuidarem da própria saúde, dentro da lógica da promoção. Outros estudos podem investigar a experiência de observadores de situações de bullying em outros contextos, além de incluírem outros informantes como professores ou pais/responsáveis.