Introdução

A sensação dolorosa da vacinação e/ou medo da agulha podem contribuir para a não aceitação da vacina (^{Fontes et al., 2018}). Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu pela primeira vez uma declaração sobre a dor na vacinação, na qual recomendou uma variedade de intervenções baseadas na evidência científica, sendo a redução da dor um dos princípios da boa prática de imunização (^{World Health Organization, 2015}).

Blomqvist e colegas (2019) observam que a falta de prevenção da ocorrência de dor e a sua gestão inadequada estão diretamente associadas a consequências negativas, tanto a curto como a longo prazo. O estímulo repetido de dor logo no início da vida da criança pode trazer mudanças no desenvolvimento cerebral, incluindo a hipersensibilidade à dor, além de repercussão no desenvolvimento motor e intelectual (Christensen et al., 2020). A dor causa, não apenas o sofrimento no momento da aplicação da vacina, mas também consequências negativas a nível físico e cognitivo ao longo da vida. Assim, torna-se imprescindível que, nesta população, a dor seja avaliada, tratada e, sempre que possível, evitada (^{Boggini et al., 2021}).

No contexto da melhoria da qualidade dos cuidados, diversas estratégias de gestão da dor podem ser implementadas nas salas de vacinação, a custo zero ou muito reduzido. Especificamente em lactentes, as estratégias não farmacológicas como a amamentação ou o contacto pele-a-pele são de aplicabilidade universal, uma vez que não requerem custos adicionais e/ou equipamentos especiais. Para isso, é necessário que a equipe de saúde esteja preparada para aplicar essas medidas no momento da prestação de cuidados (^{Harisson et al., 2016}).

Nos últimos anos, houve um crescimento exponencial de estudos sobre como reduzir a lacuna entre a evidência científica e as práticas e políticas de saúde. Assim, é de extrema importância que sejam realizados estudos com o objetivo de implementar o conhecimento produzido na prática. As estratégias baseadas na Knowledge Translation (KT) têm como alvo a aplicabilidade de evidência na prática clínica, visando a melhoria do cuidado, além da redução de custos e uma melhor experiência para os usuários do serviço de saúde (^{Balice-Bourgois et al.,2020}).

A geração de conhecimento tem pouco valor caso este não seja aplicado. O uso de metodologias verticais, como a simples disseminação do conhecimento no término de uma Investigação, por meio de publicações em revistas ou apresentações em eventos científicos, não garante a sua efetiva utilização pelos profissionais de saúde dentro do serviço (^{Straus et al., 2009}). Dessa forma, o estudo justifica-se pelo facto de que é necessário diminuir a lacuna entre teoria e a prática profissional, inovando e sendo mais efetivo, de facto, nas práticas de gestão da dor. É essencial que essas práticas sejam implementadas com as estratégias mais adequadas, tornando-os sujeitos ativos na criação e implantação de formação, documentações e políticas internas da gestão da dor, criando o sentimento de envolvimento em todo o processo. Esse envolvimento faz uma enorme diferença na eficiência, eficácia e efetividade da real aplicação dos conhecimentos adquiridos por meio das estratégias de KT (^{Balice-Bourgois et al., 2020}).

Visto a importância de implementar estratégias efetivas para melhoria do cuidado da população em questão, o presente estudo objetivou analisar o efeito de uma intervenção multifacetada, baseada na KT, para capacitação de profissionais de saúde na gestão da dor na vacinação em crianças.

Enquadramento

O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi constituído em 1973 e possui a missão de controlar, erradicar e eliminar doenças imunopreveníveis (^{Gugel et al., 2021}). Na criança, o esquema vacinal é iniciado logo após o nascimento, sendo as primeiras doses de algumas vacinas aplicadas ainda na maternidade. A vacinação em crianças é fundamental e necessária, trazendo enormes benefícios tanto para a saúde individual quanto coletiva. No entanto, sabe-se que a vacinação pode ser um evento doloroso e que a maioria dos indivíduos não recebe tratamentos adequados para a sua redução, principalmente na infância (^{Fontes et al., 2018}).

De acordo com a Associação Americana de Pediatria, existem ainda grandes lacunas no conhecimento sobre a maneira mais eficaz de prevenir e aliviar a dor nas crianças, o que evidencia um problema relacionado à disponibilidade de terapias seguras para a população pediátrica. Desse modo, há a necessidade constante da procura e utilização de terapias que mitiguem ou reduzam esse problema (^{Lim & Godambe, 2017}).

Vários estudos têm realizado esta procura por terapias. No entanto, poucas ações são conduzidas, visando a sua aplicação efetiva na rotina de assistência. Desse modo, a prevenção da dor durante a vacinação deve incluir não apenas o tratamento farmacológico e não farmacológico da dor, mas também a educação do profissional de saúde, colaboração interprofissional e questões organizacionais (^{Balice-Bourgois et al., 2020}).

Neste contexto, no que toca à aplicabilidade efetiva de evidência na prática, dispõe-se da Knowledge Translation (KT), que é definida como um processo dinâmico e iterativo, que inclui a síntese, a disseminação, a troca e a aplicação eticamente sólida do conhecimento para melhorar a saúde, bem como fornecer serviços e produtos de saúde mais efetivos e fortalecer o sistema de saúde (^{Canadian Institutes of Health Research, 2020}). O objetivo da KT é proporcionar que os benefícios do conhecimento produzido por meio de pesquisas cheguem ao maior número de pessoas e instituições e ainda avaliar o impacto dessas intervenções tanto na perspetiva da promoção da saúde, quanto na da redução de danos e ainda substituir ou eliminar ações terapêuticas que sejam comprovadamente ineficientes e dispendiosas (^{Vieira et al., 2020}).

Para alcançar o objetivo proposto pela KT, comumente utiliza-se a Evidence-based Practice for Improving Quality (EPIQ), que consiste numa estratégia interativa e multifacetada de melhoria da qualidade, no sentido de mudar a cultura organizacional e sustentar mudanças comportamentais. A EPIQ permite a personalização de uma estratégia para melhorar o atendimento aos utentes, tendo como base os dados/evidências locais e o envolvimento de pessoas que atuam nos serviços em questão (^{Lee et al., 2015}).

Um estudo conduzido por ^{Balice-Bourgois et al. (2020}) teve como objetivo determinar a qualidade das diretrizes disponíveis na literatura acerca da gestão da dor. O estudo evidencia que das dezessete diretrizes incluídas, quatro continham diferentes elementos relativos à implementação, avaliação, monitorização e custos financeiros. Apenas uma diretriz utilizou um modelo para a prática da tradução do conhecimento para adaptar as diferentes recomendações a cada ambiente clínico. Neste sentido, é importante que existam na literatura modelos de implementação bem-sucedidos, para que sejam amplamente utilizados de forma individualizada, atendendo às necessidades específicas do contexto local.

^{Almeida et al. (2018}) avaliou a viabilidade, a aceitabilidade e a utilidade de um vídeo com estratégias de alívio da dor em bebês, na percepção dos enfermeiros. Apesar dos profissionais terem conhecimento acerca das estratégias de alívio da dor, o vídeo foi avaliado por todos os participantes como útil, fácil de entender e fácil de aplicar em situações reais. Sendo assim, é importante que as estratégias de disseminação utilizadas sejam de fácil entendimento por parte da equipe, que sejam facilmente implantadas na rotina de cuidados, possuam baixo custo para a instituição e que demonstrem efetividade na sua utilização, proporcionando uma melhor experiência para o usuário (^{Vieira et al., 2020}). E dessa forma as estratégias baseadas no referencial da KT contemplam os requisitos descritos para o sucesso da implementação.

Hipótese de investigação

A estratégia multifacetada EPIQ, com base no referencial da Knowledge Translation aumenta a aquisição de conhecimento relacionado à gestão da dor em crianças por parte dos profissionais de enfermagem que atuam na sala de vacinação.

Metodologia

Trata-se de um estudo inserido numa investigação mais abrangente intitulada Projeto Incríveis: intervenções para o alívio da dor em crianças na vacinação. Envolvimento e iniciativa para o SUS, aprovado pelo Comissão de Ética em Pesquisa da instituição proponente. A Resolução Nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde sobre as pesquisas envolvendo seres humanos foi seguida e os profissionais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Estudo de intervenção, do tipo quase-experimental, sem grupo controle, com delineamento pré e pós-teste. Foram utilizados métodos quantitativos para a colheita de dados em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) pertencentes à Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF). As duas UBS foram selecionadas por conveniência e fazem parte das estratégias de Atenção Primária à saúde. A intervenção teve duração de 5 meses, acontecendo entre os meses de agosto e dezembro do ano de 2017.

A população alvo eram os profissionais de saúde que atuavam na sala de vacinação das duas UBS descritas acima. O tipo de amostragem utilizado foi a de conveniência (não probabilística), onde os profissionais que atuavam nesse setor foram convidados a compor um grupo de trabalho. A inclusão dos profissionais de Enfermagem ocorreu de forma voluntária após convite e a população do estudo foi de nove profissionais que possuíam vínculo com a UBS, especificamente aqueles que atuavam na sala de vacinação, na qual era o setor que a intervenção seria desenvolvida. Apesar de ser um número aparentemente pequeno, ocorreu a participação de todos os profissionais da sala de vacinação, nas duas UBS, uma vez que o trabalho foi focado num setor específico da unidade. Essa estratégia foi definida com o objetivo de atingir o maior número de profissionais capacitados por unidade, em detrimento de um número maior de profissionais de diversas UBS, os quais teriam pouca representatividade na sua unidade, comprometendo o trabalho e reduzindo a eficácia no processo de implementação. Os critérios de exclusão foram: profissionais que estavam de férias ou licença durante a condução do estudo.

O presente estudo foi realizado em duas fases: Preparação e Implementação (^{Stevens et al., 2011}). A fase de Preparação consistiu na colheita de dados basais, formação do Conselho de Pesquisa e Prática (CPP), elaboração das barreiras e facilitadores e a seleção de evidências científicas relacionadas à temática.

A fase de implementação ocorreu com a definição de metas e estratégias, além dos temas que seriam abordados e a realização das sessões de capacitação. A definição dos temas foi guiada pelos profissionais do CPP, após a apresentação e discussão das evidências científicas atuais. As sessões de capacitação abordaram os temas definidos através da utilização do recurso audiovisual Microsoft Power Point e distribuição de material impresso. Antes do início da sessão, foi aplicado o pré-teste, contendo sete questões relacionadas ao tema. Uma semana após a realização da sessão de capacitação foi aplicado o pós-teste, e aberto espaço para discussão de dúvidas relacionadas à temática.

Os dados foram digitados primeiramente em Microsoft Excel. Foi realizada dupla digitação para garantir a confiabilidade dos dados, sendo posteriormente exportados para o software IBM SPSS Statistics, versão 23.0. As perguntas referentes ao pré e pós-teste foram agrupadas pelo total de respostas certas a fim de obtermos uma análise mais consistente dos dados.

A análise quantitativa dos dados foi realizada por meio de estatística descritiva (média, desvio-padrão e distribuição de frequência absoluta e relativa/proporcional). Além disso, para comparação de resultados por Grupos (pré e pós-teste) e entre UBS, foi utilizado o teste de Mann-Whitney. Para verificar se existia diferença no total de respostas certas por capacitação, foi utilizado ANOVA. O teste Tukey foi utilizado para comparar quais capacitações eram diferentes pelo total de respostas certas.

Resultados

Os resultados foram apresentados em três sessões: identificação de barreiras e facilitadores; estabelecimento de metas e estratégias; e mudanças no conhecimento dos profissionais com as capacitações.

Discussão

O presente estudo demonstrou que as capacitações que compõem a estratégia multifacetada EPIQ, baseadas na KT, melhoraram a aquisição de conhecimento relacionado à gestão da dor durante o procedimento realizado por profissionais de enfermagem, que lidam com a vacinação em crianças. Neste aspeto, ressalta-se que, no contexto brasileiro, a possibilidade de se aplicar evidências científicas na prática clínica é um desafio (^{Vieira et al., 2020}), sendo a utilização do KT e da estratégia multifacetada EPIQ possibilidades efetivas para incremento da autonomia laboral de profissionais de saúde.

Destaca-se a participação fundamental e ativa da equipe de enfermagem durante todo o período de realização deste estudo, atuando como agentes de mudança nas UBS para a implementação de boas práticas de imunização. Entende-se que a Enfermagem é protagonista na geração de conhecimentos na área de saúde, destacando-se também nas áreas básicas da pesquisa científica. Isso sinaliza a existência de novos paradigmas na sua formação (^{Vattimo & Fonseca, 2019}).

Faz-se necessário ressaltar que o sucesso da aplicabilidade das evidências depende também da utilização de modelos conceituais de KT que melhor se ajustem ao contexto de cada local (^{Vieira et al., 2020}). O referencial da KT mostra ainda a necessidade do levantamento das barreiras e facilitadores ao uso do conhecimento. Neste estudo, para planear as intervenções, foi necessário entender quais eram as barreiras específicas para a gestão da dor na vacinação, de modo que o conteúdo a ser abordado em cada formação pudesse contribuir para transpor suficientemente essa barreira, bem como os pontos facilitadores fossem utilizados e favorecessem a aplicabilidade das evidências científicas na prática clínica (^{Kaufman et al., 2018}). Nesse sentido, a participação dos membros do CPP para a elaboração das barreiras e facilitadores foi de extrema importância para o sucesso das atividades, pois somente eles, que vivenciam o dia-a-dia da unidade, poderiam levantar tais necessidades e pontos de discussão com maior precisão e assertividade. Além disso, a elaboração das barreiras e facilitadores ofereceu subsídios para a definição das metas e estratégias que seriam implementadas nas unidades.

A abordagem utilizada nesta etapa foi baseada nas necessidades coletivas de aprendizagem dos participantes. Isso foi observado também no estudo de ^{Hunter et al. (2015}), no qual durante a reunião introdutória, os participantes em colaboração com os facilitadores, sugeriram e priorizaram conteúdos específicos para as reuniões seguintes. Desse modo, para capacitações futuras, recomenda-se a utilização de abordagens participativas, nas quais os profissionais estejam engajados no processo de melhoria, a fim de obter resultados positivos nas intervenções. Isto favorecerá um maior entendimento e interesse dos usuários em utilizar tais resultados nas tomadas de decisão (^{Gagliardi et al., 2015}).

Durante o estabelecimento de metas e estratégias definiu-se que a modalidade de capacitação seria utilizada para aplicabilidade das evidências no contexto local. Sabe-se que, no contexto da dor pediátrica, utilizam-se estratégias baseadas no referencial da KT com o objetivo de promover mudanças nos setores e no comportamento dos profissionais de saúde perante a gestão da dor, na qual a maioria das iniciativas apresenta uma abordagem multifacetada (^{Gagnon et al., 2016}).

^{Gagnon et al. (2016}) evidenciaram que o treinamento em serviço foi frequentemente o principal método de KT utilizado. Essa abordagem alcançou mudanças positivas quanto ao conhecimento e as atitudes dos profissionais de Enfermagem, conforme demonstrado por inúmeras iniciativas que alcançaram sucesso (^{Gagnon et al., 2016}). Os resultados corroboram tais achados, pois demonstram que as capacitações baseadas no KT acrescentaram conhecimento relacionado à gestão da dor na vacinação em crianças.

O presente estudo descreveu apenas uma parte das intervenções da estratégia multifacetada EPIQ, e levantou a necessidade da continuidade das intervenções de KT para a efetiva melhoria do serviço prestado e avaliação da sua sustentabilidade. Dessa forma, é necessário que sejam realizadas as etapas de monitorização do uso, avaliação do impacto e a manutenção do uso do conhecimento. Todas as iniciativas devem prever um período de acompanhamento para avaliar por meio de auditorias se as mudanças são sustentadas ao longo do tempo. Em geral, períodos de seis a doze meses de acompanhamento têm sido utilizados na literatura para demonstrar a sustentabilidade das iniciativas em curto prazo. Além disso, a sustentabilidade em longo prazo é igualmente importante (^{Gagnon et al., 2016}).

Como uma das limitações do estudo, considerou-se a falta de financiamento por parte de agências de fomento, sendo este encontrado em frequência cada vez menor e mais concorrida no Brasil (^{Vieira et al., 2020}). Dessa forma, não foi possível incluir outras UBS previstas anteriormente no estudo, pois além de não haver recursos financeiros, havia também a falta de recursos humanos para a condução da investigação (assistentes de pesquisa). Outra limitação foi a falta de avaliação das competências geradas a partir do conhecimento transferido, uma vez que seria necessário o follow-up após 6 meses para avaliar como o conhecimento impactou as estratégias utilizadas pelos profissionais durante a vacinação, a qual ficou impossibilitada devido aos prazos finais para conclusão do curso.

Conclusão

A estratégia multifacetada EPIQ, baseada no referencial da KT, melhorou a aquisição de conhecimento relacionado à gestão da dor durante o procedimento realizado por profissionais de enfermagem que lidam com a vacinação de crianças.

Ressalta-se que os resultados do presente estudo devem ser compartilhados, pois essa experiência possibilita que outros investigadores utilizem essa ferramenta em outros contextos de forma adaptada, no sentido de promover mudanças efetivas nos diferentes contextos laborais, o que contribuirá para diminuir a distância entre o saber e fazer, proporcionando atendimentos qualificados e mais humanizados.

Entende-se que a realização de atividades de educação continuada e de educação permanente com este formato são essenciais para a promoção de mudanças positivas no contexto laboral de profissionais de saúde, porém se realizadas de forma isolada podem não ser suficientes e/ou sustentáveis. Nesse sentido, torna-se necessária a implementação de outras facetas e processos de atualizações e auditorias para a permanência das boas práticas em serviços de saúde. Além disso, para que aconteça, de facto, a transferência do conhecimento, há necessidade de se aplicar estratégias individualizadas, levando em consideração o contexto e a experiência dos usuários.

Recomenda-se que novos estudos de maior duração sejam realizados para avaliar o comportamento dessas mudanças de longo prazo, contribuindo, assim, para o aprimoramento das estratégias de sustentabilidade, outro grande desafio que necessita de ser melhor explorado.