Introdução
A COVID-19 é uma doença respiratória aguda, causada por um novo coronavírus humano (SARS-CoV-2), que em março de 2020 obteve status de pandemia, 2 meses depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) tê-la declarado como emergência de saúde pública de importância internacional. No Brasil, a primeira ocorrência da COVID-19 foi registada no dia 26 do mês de fevereiro e, deste então, a sua transmissão tem-se expandindo progressivamente, contabilizando milhares de óbitos no país e no mundo (Brasil, 2020; Fahmi, 2019; Zhou et al., 2020).
Devido à transmissão acelerada do vírus, as autoridades de saúde preconizaram o distanciamento social como uma das principais medidas para conter a sua propagação, provocando mudanças radicais no quotidiano das pessoas, transformando os seus hábitos e atitudes. Outras medidas preventivas como suspensão das atividades académicas presenciais, encerramento dos estabelecimentos comerciais e de órgãos públicos, além da recomendação para as pessoas ficarem em casa, foram gradualmente adotadas, em maior ou menor intensidade, na maioria dos países do mundo (Oliveira et al., 2020; Xu et al., 2020).
Perante tal realidade, e pela emergente necessidade da implementação de medidas de controlo da pandemia, torna-se imprescindível revisitar a realidade das populações vulneráveis, como a população em situação de rua, cujas recomendações de saúde impactam a realidade dos contextos de renda, acesso à alimentação e à água corrente. Portanto, estes fatores tornam-se condicionantes para o contágio e agravamento da doença pela ausência de direitos básicos, como saúde, educação e habitação. O Brasil não conta com dados oficiais sobre a população em situação de rua, a qual foi estimada em 22.1869 pessoas no ano de 2020 (Natalino, 2020). Para atender às demandas deste público têm sido revelados novos desafios aos trabalhadores da saúde, sobretudo os da enfermagem, seja na linha de frente da prevenção, ou no combate à COVID-19. Neste sentido, as teorias de enfermagem são alicerces epistemológicos que fundamentam a construção do conhecimento científico e prática profissional dos enfermeiros, considerando a complexidade e multiplicidades dos fenómenos que permeiam o campo da saúde. Portanto, a aplicabilidade no campo prático rompe a cadeia contemplativa e torna possível a análise da realidade do trabalho da enfermagem atrelado às mudanças paradigmáticas e os avanços nas reflexões éticas, bioéticas e epistemológicas. Neste sentido, torna-se possível a atualização das conceções do metaparadigma saúde, ambiente, pessoa e enfermagem, que compõem as teorias de enfermagem. Assim, em vista do exposto, o estudo tem o objetivo de refletir sobre o cuidado à saúde da população em situação de rua à luz de cinco teorias de enfermagem, diante da pandemia da COVID-19.
Desenvolvimento
Como ficar em casa se não há casa?
Os estudos de Wanda Horta, desde 1974, baseiam-se no processo de enfermagem, como método científico a ser aplicado a qualquer pessoa, independentemente da doença de base, ou local onde receba ou deva receber cuidados. As necessidades humanas básicas foram classificadas em três grandes dimensões: Psicobiologias, Psicossociais e Psicoespirituais. Necessariamente, deve contemplar os aspetos da vivência da pessoa com a compreensão de toda complexidade que compromete a sua saúde. Percebe-se que nos cenários de rua o comprometimento destes aspetos já é amplamente conhecido e tem sido ainda mais afetado com o advento da COVID-19, uma vez que resultam da interação entre o meio interno e meio externo (Braga & Silva, 2011; Horta, 1974).
Embora viver na rua não seja um fenómeno recente, o seu crescimento tem sido marcante, principalmente nos grandes centros urbanos e os seus personagens permanecem quase sempre invisíveis, de modo a não se tornarem prioridade de políticas públicas efetivas. Apesar deste crescimento, não existem números precisos sobre a atual quantidade de pessoas em situação de rua no Brasil, uma vez que a única pesquisa nacional foi publicada no ano de 2008, contabilizando 31.922 pessoas adultas vivendo nas ruas, enquanto no ano de 2019, apenas na cidade São Paulo, 24.344 pessoas foram registadas nessas condições. Portanto, a ausência deste diagnóstico em âmbito nacional denuncia as dificuldades em efetivar políticas públicas direcionadas a este público (Arrais et al., 2020).
As medidas de proteção recomendadas para evitar a propagação do vírus são as mesmas utilizadas para prevenir doenças respiratórias e muitas permanecem inacessíveis a essa população, como a higiene das mãos, seja com água e sabão, ou com solução antissética de base alcoólica, medidas educativas para quando tossir ou espirrar e o uso de lenço descartável. Além disso, também são orientados hábitos para o fortalecimento do sistema imunológico que incluem o cuidado com a alimentação, dormir bem, não consumir drogas e manter a ingesta hídrica de pelo menos 2 litros de água diariamente (Ribeiro-Silva et al., 2020). De acordo com Horta, tratam-se das necessidades básicas do ser humano que precisam de ser atendidas a fim de torná-lo tão independente quanto possível (Horta, 1974).
Sabe-se que o maior contingente das pessoas em situação de rua vive sem a proteção concreta e simbólica de uma casa e parte destas, sobretudo durante a pandemia, pode não conseguir obter pelo menos três refeições diárias, às vezes nem mesmo uma. Além disso, o uso e abuso de drogas interfere no autocuidado desta população, também prejudicado por outros fatores, como dificuldades do acesso aos cuidados com sua saúde. Assim, percebe-se que as precárias condições de vida dessa população favorecem à COVID-19, como mais uma contundente ameaça à saúde e morte para este grupo (Silva et al., 2018).
Da mesma forma, o distanciamento social, disseminado mundialmente por meio da frase “fique em casa”, não se adequa ao contexto da população em situação de rua, o que alerta para a necessidade da adoção de estratégias e de medidas específicas para esta população no cenário da pandemia. Neste sentido, verifica-se pertinência para esta reflexão: Como é que as pessoas que não possuem casa podem atender a tal recomendação?
Assim como numa pandemia, Florence Nightingale, considerada fundadora da enfermagem moderna, vivenciou no século XIX uma guerra e desenvolveu um modelo ambiental, associando a melhoria dos seus doentes ao ambiente, higiene e cuidados. O cuidado com a separação dos doentes por patologia, a abertura de janelas, o banho, a higiene das mãos, o não compartilhamento de utensílios de uso pessoal e a limpeza dos ambientes orientados por Florence, adequa-se às recomendações atuais sobre a COVID-19 para todo o segmento populacional, incluindo a população que vive nas ruas (Denadai et al., 2020).
Florence considerava a necessidade do equilíbrio e controlo do ambiente, tanto das pessoas saudáveis, como das pessoas doentes. O pensamento de Florence no contexto da população de rua remete para a necessidade dos serviços estratégicos para abrigar e acolher nos espaços de referência, como por exemplo os centros especializados para população de rua (Centro POP). De acordo com Florence, a manipulação do ambiente físico constituía o principal componente de enfermagem. Neste sentido, fica clara a importância da atuação da enfermagem nos diferentes cenários do cuidado, como os espaços das ruas. Quanto ao equilíbrio do ambiente, Florence salientava a necessidade de deteção e separação de pessoas sintomáticas, bem como encaminhamentos dos sintomáticos graves com fatores de riscos mais severos aos serviços de referência. Além do controlo do ambiente, a teoria de Florence destaca a importância do olhar além do indivíduo, ou seja, para o ambiente social em que esteja inserido, constituindo um modelo de ativismo político na sua época (Braga & Silva, 2011; Denadai et al., 2020).
Sem saúde e sem direitos: consequências da pandemia para população em situação de rua
A teoria e metaparadigma de enfermagem de Virgínia Henderson considera a necessidade da abordagem colaborativa apoiada nos direitos essenciais dos pacientes e na consideração em conhecer a vida da pessoa fora do ambiente institucional. A abordagem colaborativa pressupõe a importância de olhares interdisciplinares e multissetorial no âmbito do cuidado. A visão holística do ser cuidado precisa de promover um ambiente harmonioso e interativo entre profissionais, pessoas com necessidades de cuidados e sociedade (Denadai et al., 2020).
No contexto atual, a persistência pela sobrevivência apresenta-se ainda mais comprometida, uma vez que os efeitos económicos também têm atingido essa população. Assim, a gravidade dos efeitos associados à COVID-19 fica ainda mais evidente pela acumulação de desvantagens sociais, visto que eles costumam viver em ambientes aglomerados, seja como estratégia de enfrentamento da violência, de sobrevivência mediante recebimento de doações ou mendicância, ou até mesmo de sociabilidade (Zeferino et al., 2019). Henderson propôs 14 necessidades fundamentais, a maioria delas são impactadas pelo contexto de vida nas ruas, como dormir e descansar, comer e beber adequadamente e evitar os perigos ambientais (Braga & Silva, 2011).
Isso torna imperioso o entendimento de que a transmissão comunitária nas populações em condições de pobreza extrema pode constituir uma grave ameaça à vida e à saúde pública. É importante ressaltar que diante de tantos desafios que este grupo enfrenta no seu quotidiano, as consequências para a saúde são as suas últimas preocupações, pois primeiro precisam de saber como se vão alimentar, trabalhar e abrigar-se do sol, da chuva e da violência.
As marcas da desigualdade para esse grupo populacional também podem ser vistas pela falta de acesso à internet ou a outros media, dependem apenas das orientações adequadas para compreender o que está a ocorrer no mundo. De acordo com a teoria de Orem (1985) , a ação de autocuidado pela pessoa em situação de rua é afetada por condicionantes básicos, fatores da rede de cuidados de saúde, ambientais e familiares (Almeida et al., 2020; Orem, 1985; Valle et al., 2020).
O autocuidado também depende do empenho do indivíduo, para prover ações de educação em saúde de forma a que haja a provisão dos requisitos universais para o autocuidado. As atividades de vida diárias dessa população também têm sido reduzidas, aumentando as chances de adoecimento, principalmente frente a uma nova doença. A exigência nas mudanças de comportamento do autocuidado foi e está a ser um desafio para população de um modo geral, portanto para quem vive nas ruas este desafio é ainda maior.
Saúde mental das pessoas em situação de rua em tempos de pandemia
Em situações normais já seria comum identificar um contingente significativo de pessoas em situação de rua em sofrimento psíquico, e/ou com consumo abusivo de drogas. Parte destas pessoas passaram a viver nas ruas em consequência de tais comprometimentos, outras desenvolveram ou intensificam estes quadros de adoecimento diante do stress crónico nas ruas, frente a um conjunto contínuo de adversidades, privações e incertezas. Os quadros de sofrimento psíquicos agudos ou crónicos causam grande impacto e estão entre um dos principais problemas de saúde nesta população, constituindo-se também como barreiras para a continuidade dos tratamentos (Denadai et al., 2020; Valle et al., 2020).
Esta realidade pressupõe que o sofrimento neste contexto de pandemia possa afetar ainda mais a saúde mental das pessoas em situação de rua. Apesar das estratégias existentes no Brasil, como o consultório na rua, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS Ad), a maioria das pessoas em situação de rua com prejuízos de saúde mais acentuados não costumam utilizar de forma sistemática estes serviços. Como agravante, durante a pandemia estes serviços têm funcionado de maneira restrita, com redução de profissionais, principalmente afastados por questões de saúde, de modo que estes espaços têm funcionado de maneira limitada, dificultando assim as possibilidades já escassas de cuidado (Pinho et al., 2019; Silva, 2018).
A teoria das relações interpessoais, desenvolvida por Hildegard Peplau é adaptável à realidade das ruas, pois enfoca o potencial terapêutico da enfermagem por meio de ferramentas do vínculo e da educação em saúde, como forma de cuidar e modificar comportamentos. Portanto, para se ensinar é necessário conviver com os hábitos culturais, entender as linguagens faladas e corporais deste grupo para identificar suas demandas, exigindo emancipação e criatividade das ações de enfermagem (Braga & Silva, 2011; Denadai et al., 2020).
Além disso, é relevante a representação do sistema adaptativo da pessoa em situação de rua, que de acordo com a teoria de Callista Roy, é apoiado numa perspetiva holística de que as pessoas estão em constante interação com os seus ambientes (Denadai et al., 2020). O enfermeiro torna-se referência deste cuidado, no apoio aos mecanismos de enfrentamento e na busca das respostas adaptativas para promover a integridade da pessoa, utilizando a perceção das respostas comportamentais e a construção de laços de confiança.
A variação de respostas é exclusiva de cada indivíduo e podem ser comunicados de maneira subjetiva. Neste sentido, a enfermagem deve conduzir o indivíduo no estabelecimento de metas em termos de sobrevivência, crescimento e domínio. Portanto, o exercício do autoconhecimento para interagir com o outro é indispensável e essencial para a identificação dos impasses e desafios para o enfrentamento da situação atual, bem como para o desenvolvimento de ações criativas que possam impactar o cuidado a essas pessoas, durante e após a pandemia. Os cuidados de enfermagem devem ser planeados na busca de respostas adaptativas e, devido à sua formação holística, a presença do enfermeiro deve ser requerida na composição das equipas de referência para população em situação de rua.
Conclusão
A preocupação sobre os impactos da pandemia da COVID-19 sobre a população em situação de rua deve ser prioridade das políticas de saúde e da assistência social, uma vez que essa população é considerada um dos grupos sociais mais vulneráveis para adoecerem. Neste sentido, precisa-se do avanço imediato na oferta de cuidados multidisciplinares, especialmente neste momento de pandemia.
Para a enfermagem, os paradigmas biomédicos e emergentes evidenciam-se em várias teorias de enfermagem e apresentam correlação apropriadas ao processo de compreensão da dimensão do cuidado à pessoa em situação de rua frente à COVID-19. No âmbito da saúde pública, torna-se imperativo o reconhecimento e visibilidade das pessoas em situação de rua, quanto à necessidade de assistência integral, que envolva participação intersetorial: dispositivos de saúde, sociedade e poder público, através de ações conjuntas que possam ampliar e fortalecer cuidado e proteção social para essas pessoas, durante e após a pandemia.